BLACKOUT - Antologia

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blackout blackout blackout blackout

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este livro foi impresso em meados do mĂŞs de fe vereiro, no ano de 2 0 1 8 , n a c i d a d e d e N ata l , r n .


sumário

Introdução .....................................................................pg 5 Black Out? .....................................................................pg 7 Apresentação .................................................................pg 9 Murilo Zatu .................................................................. pg. 12 Olga Hawes ................................................................... pg. 20 José Zapiski ................................................................... pg. 28 Ana Mendes ................................................................. pg. 35 Ian Itajaí ........................................................................ pg. 42 Gabrielle Dal Molin .................................................... pg. 46 Caroline Santos ............................................................ pg. 54 Maíra Dal’Maz ............................................................. pg. 65 Igor Barboà .................................................................. pg. 75 Maluz ........................................................................... pg. 85 Ionara Souza ................................................................ pg. 91 Pedro Lucas .................................................................. pg. 96 Folha Joice .................................................................... pg. 102 Jota Mombaça .............................................................. pg. 108 Gessyka Santos ............................................................ pg. 115 Ayrton Alves Badriyyah .............................................. pg. 122 Victor H. Azevedo ..................................................... pg. 129 Fulô ............................................................................... pg. 139

Org. Ayrton Alves Badriyyah & Victor H. Azevedo



INTRODUÇÃO

Poderíamos começar com aquele lero-lero de sempre de que toda antologia já nasce incompleta, ou com o migué de que é resultado de uma afetação com os trabalhos selecionados que a compõem, mas não será o caso desse texto afirmar nada disso. Os poemas aqui selecionados tentam dar um panorama da produção poética de uma galera mais nova, cronologicamente falando, de Natal-RN, que até a data da “captação” dos poemas ainda era inédita em livro solo. Aqui, os poetas são conscientes de que o texto poético expande-se do objeto-livro e se espraia na voz, e é principalmente na voz que quase todos aqui ganham os becos e vielas da cidade. Alguns não têm livro solo, porque acham balela tirar os poemas da cabeça, outros publicam colando nos postes da cidade, outros não têm oportunidades: este é o lado perverso & artístico natalensis: os que podem fazer alguma coisa se entregam ao observatório do próprio umbigo que, em sua maioria, aspira um dia ultrapassar o ano, em brasilis termus, de 1922 que por aqui parece não chegar nunca. Os textos preservam, quando é a proposta, a gramática própria de quem os escreveu, a gramática da subversão das ruas e do meio e por que não de si próprio, da desconstrução e reconstrução de si próprio? Mas também não é o objetivo deste texto dar uma chave de leitura: ou você se joga no abismo faminto, ou fica com os pés bem fincados na imobilidade superficial e gritante do agora.

Os organizadores

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BLACKOUT ?

“Natal não consagra e nem desconsagra ninguém”. A máxima cascudiana parece ser a pedra na qual todos fazem questão de tropeçar. Muitos nomes geniais surgem e se perdem nessa cidade que faz questão de ser uma província desmemoriada. Esta antologia traz no título o nome do poeta que foi ícone da marginália natalense, unindo um projeto de vida a um projeto literário, como forma de driblar a miséria, o racismo e a loucura. Blackout, pseudônimo de Edgar Borges, além de poeta, vivia de pintar paredes e fazer reparos em instalações elétricas. Residia no Bairro de Mãe Luiza, desde que chegara de Currais Novos, interior do RN, onde nasceu a 16 de Outubro de 1961. Permitia-se um estilo de vestimenta excêntrico, dormia no hospital psiquiátrico João Machado, trocava seus poemas por comida no Café São Luiz e, frequentemente, era vítima de perseguições policiais por ser negro. Aos 20 anos, publicou o livro “Duas Cabeças” pela Cooperativa dos Jornalistas de Natal (COOJORNAT), em 1981. Além disso, compõe o grupo de poetas selecionados por J Medeiros para participar da antologia “Geração Alternativa”(1997). Faleceu em 1999, eletrocutado ao fazer um “bico” numa residência em seu bairro. Pouco se fala em Blackout, o nome fica restrito a algumas observações vagas dos que se dizem, hoje em dia, seus amigos. Ao contrário do costume local, em que é rotineiro ver nome de escritores em tendas de eventos, em ruas e escolas, como forma ineficaz de preservação ou retomada da obra daquele que nomeia tais elementos à memória da cidade, a antologia

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Blackout tenta de alguma forma homenageá-lo, pela coragem que teve, e é esta coragem de se dedicar à arte em Natal o principal elo entre os poetas que estão por ser desbravados nas próximas páginas.

VERSO PASSAGEIRO

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Caminha ali aqui... coisas de um povo... passa, grita, sussurra e nada de novo... Está completo, vivido, ou vivida a branca cor de um poeta esquecido nas avenidas. (poema de Blackout)

Os organizadores


APRESENTAÇÃO

Eu me arrepiei quando vi o título desta antologia, me arrepiei quando li o outro eu de gente que eu só conhecia pela cara e por um olá como vai, me arrepiei ao encontrar sujeitxs cujas existências enxergo através um grazie mille. Ayrton e Victor fizeram um trabalho lindo, gigantesco: imagina montar uma antologia com a galera nova que escreve poesia em Natal (e findar num resultado-delícia) quando todo mundo já ouviu de alguma boca teia-de-aranha que Natal tem 1 poeta em cada esquina. Mas Ayrton e Victor cataram justamente essxs: xs das esquinas, que não têm livro publicado (dentro dessa pândega-metida-a-Louis-XIV que é o MERcADo literário no erre-ene) e visibilizaram essas pulsações. Dou também meus parabéns porque adoro o dito “visibilidade importa sim”: coisa linda é ver numa só publicação um lgbtq brilhando. E, para além disso, encontrar vozes poéticas fortes, autênticas, com tons próprios. Alguns poemas desta antologia perdem um pouco de magia porque estão presos à superfície inerte do papel; por isso, sugiro um exercício: ler os poemas em voz alta, andando em círculos pelo seu quarto, por uma praça, pela Av. Rio Branco, sempre inventando outras formas de dizê-los. E de repente estalará uma explosão, uma alegria, uma comichão, um calafrio. E se apagarão as luzes da Ponte Newton Navarro, os prédios amontoados protoespigões se escure-

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cerão, e nos canhões do Forte dos Reis Magos crepitará uma faísca. Essa chama, que definitivamente tem por nome poesia, não é para proteger a capital, mas para incendiá-la com um novo olhar. Gozem cada palavra dessa reunião, sem medo de que o verso penetre vocês como um dedinho que faz o corpo inteiro tremelicar.

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Leonam Cunha


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murilo zatu paris paris, rue des rosiers, com meu bem, 5 de dezembro de 2015 para therezinha

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paris, tempos atuais trouxemos aquele mpb nas malas para levar o romantismo nos livros mas antes tomaremos um café em frente a torre retomaremos aquela dr sobre aquele carinha que você olhou na praia sobre a pouca quantidade de vezes que me deste atenção ou então pairemos por ai tem uma discoteca virando aquela esquina imagino que exista a música popular francesa eu tomarei nota para o meu livro de poemas você apenas falará sobre os movimentos dos dançarinos mais tarde dirá que me viu no meio deles eu vou dizer “querido, eu não danço eu só leio livros” e isso vai soar brega talvez eu tome algumas doses veja, estamos aqui onde tua amiga disse que queria vir outra vez mas agora é nossa vez paris, tempos atuais


*** amor de meu amor já não sei quantas vezes eu disse que fiz um altar teu em meu coração estou devotado ao que nós somos ou ao que um dia fomos orquídeas abertas, primavera na praia lua cheia, vênus e marulho golfinhos, saguis, escorpiões timbus, bem-te-vis estou devotado do que nós um dia fomos aquele ponto em que parece entrega de almas uma fogueira num inverno glacial a cabeleira esvoaçava junto com a neve a paixão, o sexo, os mais lascivos movimentos porque encontramos calor amor de meu amor hoje estamos consumidos já nos estapeamos, nos xingamos nos tratamos como um transeunte parece que somos transeuntes mas eu ainda quero ti perto de mim porque dizem que os grandes amores suportam grandes coisas mesmo que eu perca a chance de conhecer outros amores eu escolho a ti porque estou devotado ao que um dia fomos e isso me dá forças para os próximos dias amor de meu amor eu te faço um singelo convite esqueçamos isso por um momento e me vê feliz querendo uma dança e dança dança comigo enquanto é este momento, dança comigo

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machuca quando é hora de dizer adeus não parece um até logo adeus para o quê? adeus para isto? tão fácil dizer adeus com porte tão fácil dizer adeus quando em sua frente eu me despedaço pouco a pouco tão fácil tão fácil tão fácil dizer adeus sem saber que adeus não existe graças a deus, existe a memória irei te assombrar nos seus piores pesadelos pra quê adeus? se é aqui que tu bebes o teu poderoso cálix; jaz em meus braços só eu sei do seu segredo my sweet love, eu jamais ousaria. *** Ergo os braços para o azul translúcido do céu. Hendrik partiu. Disse que iria se perder em Santiago. Desde sua ida, ergo meus braços para o imenso céu e meus olhos viram as cascatas do meu quintal. Eu rezo. Oh, Iago, por que partiste? Não sabes que a Miranda não entende mais meu linguajar?


Seremos dois estranhos que já não conduzem mais a mesma dança. Sem ti, não há nós. Por que partiste e só deixaste um bilhete? O céu derrama águas violetas e eu me banho de novo, mais uma vez. Ergo os braços para o azul translúcido do céu. Como é suave as gotas da tempestade que se aproxima... Eu ficaria aqui por anos rezando sua partida e pedindo graças aos anjos mas, bem, por que eu perderia meu tempo com fábulas? Sei que tu não me esqueceste isto jamais acontecerá. ***  No cangote, sinais. No cangote, um cheiro delicado (calêndula) saturado na gola de zéfiro. Aquele cheiro que há mais de três semanas ainda jaz lá e eu lembro desse dia há três semanas: Manhattan, tantra, uma erupção... Um ósculo rodopiante entre lençóis. Dizem que as crianças amam genuinamente. A criança dentro de mim, de braços retesados clama socorro, pelo teu socorro, pelo porto dentro dos teus olhos enigmáticos.

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- Alguém me diz, sussurrando no ouvido: quam pulchra visum vitae est at XC gradus – e dou cambalhotas para ver a vida em 90° lá naquele ponto entre o ombro e a pelagem cor de anis. Como o meu cavo. ***

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Tem aquela coisa Que me volve desejos – ah! Aquilo que é túrgido Que me assola por completo Como se me dobrasse ao meio E meus quereres E meu entrecho Tudo o que sou Na gozada se esvaía... ***

Pissing Ele me regou Como eu rego as minhas variegadas flores. De olhos fechados, Um banho áureo. ***


Filhos Filhos pequenos cactos que uma cópula concebeu. Pequenos cactos num ancho deserto. Pequeno cactos, pequenos brotos que desabrocham dia após dia - e desabrocham com selvageria... Mãe, eterna e fantasma. Alma que dança com seu vestido verde enquanto seus filhos rodopiam como piões explodem como um bubble gum e atiram o coração ao negrume, como jogar pedrinhas no arroio e vê-las quicando uma vez, duas vezes e assim vai. Esses filhos dessa senhora... Houvera dito que o luto é como uma onda forte eu não rolaria pela beira mar Não fosse o luto, era o silêncio. E esse silêncio esses filhos não ouviriam sequer de longe... Tão alagado estariam vossos quartos.

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um dia quando me olhei no espelho mal acreditei o tempo realmente fez o seu trabalho passei o dia chocada e túrbida com os meus sinceros desejos ser jovem mãe de família

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disseram-me que sou louca tenho em mim as minhas falhas tão louca quanto uma cigana tão louca quanto uma louca falo três idiomas mas não sei dizer eu te amo em sua língua me olhei no espelho e tentei decifrar enigmas como se diz eu te amo em sua língua? todas as vezes em que falo só ouço o seu silêncio. um dia quando me olhei no espelho mal acreditei...  ***

Primeiro, eu deito. O teto sobre a minha cabeça traz mais histórias tanto quanto o baú empoeirado na cachola do meu avô.


Segundo, fecho os olhos. O silêncio que se faz dentro de mim cuja calmaria mais parece a quietude do universo particular do menino no balanço que de um extremo ao outro sempre volta saltitando para dizer que ele na verdade: soy yo. Entre isso, adormeço. Os delírios de Caco são tão mágicos e reais quanto os sonhos que tenho por vezes achando que são tão vívidos que tenho a sensação de caminhar sobre as águas. Acordo. Me equilibro no meio fio com os braços tipo um 14 bis ou a cabeça cheia como um balão. As flores que nasceram em meu peito foram regadas pelas despedidas de São Pedro. O cheiro de terra molhada só me lembra o amadeirado que ficava em minha gola. - que saudades! – eu suspiro. Como um foguete rumo ao infinito.

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olga hawes barravista

Para Ele.

Os dias de terror não mais tanto diferem daqueles na casa em frente ao mar onde você me ensinou a sequência dos planetas e como identificar constelações (meus poemas são substrato de ti apesar de tudo)

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Estas janelas circulares, os enfeites nas paredes, esse marulho e até mesmo a maresia que corrói os dentes, nos últimos dias tornaram-se assunto. Agora eu durmo onde costumávamos dormir abraçados depois de você me contar as histórias de seu joca, o pescador sobre quando foi abduzido por extraterrestres e viu sereias em alto mar. (quando escrevo sobre esse mar e sobre esses pescadores juro dizer nada além da verdade em memória) Mas os tempos são outros e nós estamos em tempo. Vou engolindo o que passa e permaneço eternamente remoçando. Quanto mais me transformo em essência mais me assemelho a ti que falha em ensinar filhotes de passarinho a bater asas quando parte muito antes de doar-se o suficiente para que sejam


capazes de voar. Os morcegos da casa ficaram Os traumas ficaram Os distúrbios ficaram Suas camisetas tamanho gg ficaram Nossas fotos em preto e branco ficaram Minhas cegueiras ficaram Nada mais ficou. Já não durmo da mesma forma que antes e seria difícil reconhecer a diferença sutil entre as situações, mas você me treinou exatamente para isso. *** (um poema sobre silhuetas, medo de mar de madrugada e poesias inacabadas) Roda gigante o mundo girando dois corpos aqui eu estático olhando a tua silhueta em alto mar Você gosta de ficar em êxtase pular sete ondas e fazer alguma oferenda mesmo nós estando em março que me desculpe não é ano novo em nenhum calendário. Mas sabe, é assim que se ama, não? Com cabelo molhado de suor pele quente de banho de lua

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no ímpeto das coisas que a gente faz de madrugada na areia da praia eu gosto desse seu jeito meio sei lá o quê vamos morrer juntos dessa sua vontade de se afogar no mundo no calor dos meus braços ou no oceano que carrega nos olhos mas é quando começa a nascer o sol que você deita na cama e me agradece com essa voz cansada de quem lutou contra setenta e quatro tubarões pra estar ali só pra poder encher as unhas de areia e o cabelo de água e sal

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E eu sento na cadeira pra tentar te colocar num poema mas não tem palavra no meu vocabulário que te descreva fácil assim É desse jeito que isso acaba virando um poema sem nome E sem fim… *** um idoso sozinho em um restaurante Um senhor idoso sozinho em um restaurante tomando sopa, entre a vida e a morte (como absolutamente qualquer pessoa, só talvez mais perto de um dos extremos) olha descabidamente o relógio. Tem pressa. Falta um dia para amanhã. Observa os casais nas mesas ao lado,


e como um consolo se diz para amanhã. Observa os casais nas mesas ao lado, e como um consolo se diz que nenhuma companhia o contempla. Questiona: onde estaria se não estivesse aqui? onde estaria se, nos últimos 3 anos, não estivesse aqui? Mais um idoso sem objetivos fora do comum, já saciado da sopa de todos os dias antes mesmo de tomar a sopa do dia. O tempo, ele diz, não acredite no tempo, e repete as palavras como repetiria alguém que já se cansou da linguagem. Disseram que a sabedoria vem com o tempo, mas o que veio com o tempo foi o cansaço. O idoso cansado, que não sabe se está perdendo ou ganhando dias, esquece do número que calça quando fica de pé para ir até seu carro na vaga preferencial. 41. O idoso cansado sem números nos sapatos deixa a porta de casa entreaberta esperando que alguém, que não é importante, entre.

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jornada 1. Clarão no olho eles agarram minha cabeça (talvez arranquem fora) 2. a gengiva coça a boca quer cravar os dentes e dizer o que guarda o peito

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3. hoje é dia de mostrar minha lancheirinha nova. 4. Por que mamãe fica estranha quando eu pergunto por quê é bom pôr a mão na florzinha? (menina não deixa seu pai ouvir isso!) 5. Eles disseram que eu devo gostar de rosa.

6. Tem uma algema no meu dedo anelar. ela coça. 7. Hiperatividade se pega por osmose quem é esse do meu lado afirmando que é neurose?


8. Deixo-lhe flores feito um símbolo de comemoração pela minha cama de solteira de volta. 9. Quase não tenho forças quando ouço a batida e preciso abrir a porta. 10. É fim de papo. Abraço o eterno ócio. meu pulso já não suporta mais o peso do relógio. *** petricor 1. Dia nublado Abro espaço Para o peito Sozinho e congelado 2. Dia úmido Anagramo eu: Miúdo 4. Dia chuvoso O poema É gozo

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5. Banho de chuva Mergulho A visão turva 6. Já a tempestade advertiria: Quem toma banhos de chuva Corre o risco de nostalgia *** Empasse natural 26

Talvez o furacão katrina tenha escolhido começar numa fazenda de esquina onde dois velhinhos brigam pois já estão casados há 60 e tantos anos e não suportam mais a presença um do outro. E um cachorro late pro troço vindo com tamanha velocidade, sendo que os velhinhos nem ligam porque ainda estão brigando por causa da pasta de dentes que um deixou no chuveiro; pela toalha molhada em cima da cama; pelas vezes que um cuidou do outro doente ou pelas vezes que como agora eles brigaram até não terem mais motivos e voltarem a se amar como sempre foi. O resumo da história doida é que o monstrão comeu a casa toda e a velhinha ficou perdida sem saber se era destino ou falta de sorte mas sobre o velhinho decidiu o seguinte: ela não vai deixá-lo como disse ontem que faria


e nesse caos, no olho do furacĂŁo, eles encontraram a calmaria. ***

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josé zapiski

Se lembre: você é gente. Uma solução de pedra e água. Você é gente: Uma mistura de terra e asa. É gente. Você é Gente: Uma lesma sendo carregada pelo vento. 28

Não, nem o miolo preto e redondo da pupila mais profunda é capaz de absorver tudo. Observe, olhe tudo; será mesmo que o mundo passa todo dentro de você? Perceba; a vida também é a arte de deixar passar

***


*** Percorri fundos de mundos e galopei horas e dei voltas -órbitasem minha vida de -rotação Revolta idiota: Demora tanto e Acaba tão rápido. Automático e caótico. Aleatório e ordenado. Fractal e limitado.

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*** Caminho: destino inacabado. ***

Um cachorro revira lixo na rua e minh’alma atirou-se numa melancolia de rasgar os olhos.


Minha vontade era agarrá-lo num abraço despedaçado pra prender minh’alma qu’andava querendo desgarrar-se do corpo. Alma vadia, astuciosa... Quando se baixa, desce mais rente qu’o chão. Quando sobe, Eleva-se mais que pra lá. 30

Eu fico no meio de cabo de guerra, caboca fechada, cococo fervendo. Arre, Alma, te aquieta! Arre, Quorpo, te acalma! *** quanto mais palavras fossem ditas mais elas pareciam dizer (como quem escreve um romance que poderia facilmente ser um poema) No pescoço, uma bolsa de mágoas. No porão,


um cofre de alegrias. Não me cabe varrer o sentido das coisas. No lixo, um quebra-cabeças de emoções com várias peças faltando. Um labirinto aceso. Posso eu ralhar com os pássaros-bebês que choram por comida mastigada? Ah, que merda! As palavras não dizem nada (e cada vez menos).

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*** Sim, eu tenho pressa de tirar o osso da carne! E se você tem pressa, então abraboque fale! E se a fala falha, faça então o que te cabe!

§ (...) E na noite escura... Seja a mão que te ajuda... Que afaga, cospe e empurra...


E a faca; corta e cura! § Sim, o ferro fere, mas, por mais que você erre, não se iluda, não se engane e jamais se desespere, por que o sol que queima o solo é o mesmo sol que ergue. § 32

(...) E quando estiver só... Se lembre que o pó... Já foi teu pai! *** O que se esconde atrás da face? Atrás dos olhos? Atrás da máscara? Persona.

O que esconde o mistério qu’está depois da casca? Nós todos estamos fantasiados.


*** Arremesso bombas de efeito retardado: Granadas preto e branco, que o vento contrário traz de volta ao meu colo Lanço-me ao mar e explodimos juntas n’ alguma praça perdida. E no meio da rua, na sala esquecida dum prédio prestes a desmoronar, compartilhamos a ruína:

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Eu e ele enlatamos memórias com prazo de validad. Sumiremos um dia entre gritos, risadas y gemidos imbecis.

*** (prólogo) O prédio tira minha peruca me beija (dulcemente y con paixão) e sussurra, ao pé do meu ouvido:


“take it, take another little piece of my heart” *** Não foi fácil incendiar-me sou frio demais e junto muita umidade nos ossos. Tive de me quebrar em pedaços, partir meus galhos, arrancar minhas folhas E só assim pude ir queimando aos poucos. 34

Com a ajuda do vento, reduzi-me a cinzas. Fui feliz em deixar um leve calor sobre a terra e uma marca escura de fogueira apagada. O tempo varreu meus destroços e meu carbono alimentou a respiração das árvores.

Esse fogo foi o melhor que pude tirar de mim.


ana mendes

antes de mais nadas: não sou poeta nem poetisa sou uma pirralha balbuciando palavras e por isso trago em mim o rosto do mundo e de deus: um adolescente aprendiz conhecendo a si através das nossas almas *** poesia é o ápice da abstração *** há silêncios que são guizos: meu ventre vibra o teu víbora *** o respirar das folhas em seu embalar calmo tem um algo que não diz se mostra: a existência vaga ***

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não me anulo me empresto sou enquantos

o outro me é encontro e perda ***

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Mãe não adianta tá no mundo enquanto teu sossego estiver sujo: volte para casa Cria estou voltando para mim a morada e a poesia: sustento *** - você é estranha o que ainda pode dizer o meu escândalo o que ainda pode os clichês do nosso tempo todas as coisas sinceras são bregas e sem jeito o mesmo que nossa timidez teu riso e o primeiro encontro e eu agradeço por este lugar na terra onde os quadris ninam os olhos alimentam e o silêncio e a luz baixa nos diz saudade é um entardecer uma crise de ansiedade


uma rede que em espanhol é extrañar... quis que soubesse *** queria ser menino quando pequena pensava que apenas meninos podiam beijar meninas pensava que apenas meninos podiam poder ainda sem saber ler escrever aprendeu de ouvir palavras gritantes VIADO SAPATÃO com elas agressividade com ela medo temia a mesma sina ser: alvo de exclamações cresceu com isso de dor e riso descobriu o frio na barriga de fazer e ser o que quer, sentiu do macio das meninas nunca quis ser menino

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e sim, ser ela mesma liberdade

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esgrima de egos e toda a boçalidade que lhe é possível em palcos palanques púlpitos praças poemas e o topo do mundo num punhados de umbigos cagando regra há séculos que só cabem em seu próprio cu o que há de você na tua aparência? o que não é orgulho e vaidade? o que não é trauma na face? o que nos difere a fuça dos detritos da fossa? setorizando felicidade em sessões e por embalagens nos exilando dos nossos próprios corpos convivendo em um não lugar de ondas de micro afetos emoticons smiles os quase mortos de pernas e braços cruzados outros de seu gesto em cruz de seu medo teleférico e a letargia de uma geração inteira me perdoem meu juvenil libido ainda desejo arrebentar a vida dos átrios


*** Sempre que resisto Sou arrastada, esfolada, pisoteada Espancada pelo punho do padrasto Capital Personificado na insígnia da farda Que sussurra em cassetetes e coronhadas: Recue! Desista! Os omissos se preenchem com mais um cheque Os desesperados com crack Ou esvazia a cabeça com cleck! Afogam-me na lama Me bombardeiam no oriente Às vezes, caminho com um fuzil Que me pesa mais que meu corpo E a fome, minha companhia inseparável Tem rosto franzido Com passos de brita caminha E sorri ao prato de comida: Quem dera Pelo menos aqueles alimentos cancerígenos Eu comesse... E o meu algoz? Assina e assassina Com mais um cheque Aos meus sobram Crack e cleck! Minhas mãozinhas carregam pedras Esculpem tijolos E para me manter acordada Masco coca cheiro loló Caminho descalça sobre pedregulhos e chão ressecado Com fome e sede

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Desesperada Também agonizo no concreto das metrópoles Nos morros, nos becos Morando entre lixão e bueiros Repouso pelas calçadas E me esquento com a chama do isqueiro Seja no chão rachado Ou no asfalto Ou naquele terreno Em que meu corpo abandonaram A mídia madrasta Ganhará mais um prêmio: Sonegação de impostos e um cheque Pelo registro fotográfico Da minha carcaça esquelética Apática, leiloa minha dor: Vende a imagem da minha tragédia Àqueles que lhe querem Recortada, silenciosa e encoberta. lhes convido a responder a charada existencial: Quem eu sou? Sou o sonho de Humanidade Que vocês esquecem E perseguem *** cansado de jogar meus pedaços aos porcos de mim da minha paranoia da minha ansiedade gástrica da posição fetal da repetição entediante dos dias do meu corpo se deteriorando - meu estômago que o diga - a exaustão tem sido a palavra constante e não sei mais quais sinônimos usar e o que escondi por trás dos olhos tornou-se insuportável arquiteto frases para dizer o óbvio puuff... crescer dói e o mais foda disso é que estamos indissociáveis do que nos faz rir e doer e meu


otimismo tristonho tem provocado deboche: é preciso que doa que incomode que faça acontecer mesmo sem aplausos, pulsos ou plateia quero me desprender do que criei deus caso exista algum é um poeta frustrado com crise de identidade depois de se enxergar na criatura do poema

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o que me dói é lembrar o futuro, a mesma queda ao declive molhado de dentro enquanto isso, coso versos na pele para que existam em silêncio manso, singela, para se saber bruta e toda inteira rir de lábios moles forte e vulnerável feito um cão de rua mantendo-se apaixonado incessantemente indo embora que me perdoem as faltas, antes isso do que o apalpar da indiferença em tuas minhas costas: há ausências tão palpáveis em palavras desencapadas que esmurrar o nada é mais desconcertante do que a parede limpo a dor charmosa de escolher ser quem e no impacto da cobra cega do meu rosto defronte é preciso; sim, se voltar a nossa subjetividade e isso é o mais próximo da redenção que há e se te defines, definhas, porque com o mesmo rosto jamais conhecerá a si próprio é a empatia que gesticula o oculto de nós mesmos e que a culpa não nos ampute pois é o insulto do inusitado que nos ganha a alma e amplitude é me enxergar em suas córneas porque o amor é uma palavra na tentativa enquanto arranco lascas de mim: pois é no toque a existência do desejo

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ian itajaí Rebelde sem causa Você teme tanto que virou um bolor sob o nariz. Você teme tanto que virou uma chanana com espinhos. Você teme tanto que perto de ti, sou um teatro de espíritos. Chego de boné. É teu pai que lhe dava surras. Chego a pé. É o carteiro que noticiou as mortes suas. Beijo sua bochecha. É o amor que lhe desfiou em mil espirais mudas. 42

E é em espiral que me suga o rebelde sem causa. De mãos atadas, a presa perfeita espreita. Nem espírito, nem penada alma, apenas o amor insuficiente diante daquela viela estreita que sempre será teu trauma. Ouço estalos. São suas vértebras que quebram, e dobram E giram, e esticam os braços inanimados E dobram-se os dedos e afundam toras de ti Você teme tanto que virou um próton Você teme tanto que virou retrato mórbido Você virou almondegas, você virou o olhar que foge Você virou aquele que morre. E a presa te põe numa caixa redonda E guarda no bolso esquerdo de sua melhor camisa casual. O temor emanando raios gama


Que perfuram a gentileza d’um coelho que se joga às raposas A gentileza que o torna amável é a mesma que o torna tragável E a presa morre por amor a venenos sem causa. *** A Fome Dói a boca do estômago E a dor é análoga àquela sob o peito, penso Estou faminto Mas não quero comer! De birra As coisas inanimadas me chamam, eu penso A fome é uma forma estranha De impedir que meus miolos adentrem canoas em busca de indiozinhos Penso Que meu coração é couve-flor Meu olhos são tamarindos Meus lábios são de mel - E o nome das coisas é findo – Passo os dedos sob a derme Sinto cravados hieróglifos, aramaico, letras romanas Num tufo de cabelo, no entanto O emaranhado se solta em fio que não acaba mais E é puxando fios no ralo que eu vomito o infinito - As flores morrem às onze horas E eu sei que meu coração existe Porque dói a falta dele

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Dói feito bocas de estômagos famintos Dói feito pulmões vazios Dói feito uma goiabeira brotando dos alvéolos A ponta do dedo pega a ponta do meu ser (ou seja, meu nariz) E eu sinto que estou a beira do famigerado colapso que deu vida a tudo Só a pele sob o crânio me ligando aqui E a gravidade puxando bolsas sedosas sob meus cílios E Aquele Que Me Chama dando vida a milhares de buracos negros Que um dia me sugarão E chorarão as palmeiras que amei E a areia pedregosa, ou aquele lamaçal que é a praia de grossos Chorarão as flores que vi morrer e os besouros que trepam nelas Chorarão os móveis suaves, a nota Dó do trompete Chorarão as gravuras de Victor que nunca me viram nem me verão Porque eu sou um abismo para o qual ninguém merece ser sugado O vento gostoso que mescla com sol e desenha um arco-íris na minha alma chora também Chorarão porque saberão que existi Pois a falta se faz presente E a falta será meu único legado. Terei ido dormir com meu coração. *** Escute os baixos tocando e os trompetes estourando tímpanos distantes Augusto dos Anjos, horrorizado por ser carne, escreveu a antologia de sua vida.


Eu canto harmonias físicas e sinto o vento sobre meu rosto e a grama sobre os pés Os asfaltos as bactérias coliformes fecais bichos de pé as texturas do muro da sua casa e eu ando em sintonia com ondas mecânicas que me trazem a música Temos a paz de ser Deus E a obrigação de ser o caos. *** Goiamuns em estaca de feira Eu sou o trauma de meus pais. Os filmes de ficção científica de sessões da tarde E a dopamina que tais lembranças me jogam no sangue. Eu sou o cérebro, o pulmão, a hipófise Sou a ansiedade, a depressão e a catarse ansiolítica de surtos esporádicos Fui abençoado por deus com anormalidades sociais E uma puta vontade de olhar encontrar o desgraçado Só para tomar umas cervejas e saber Por Que? A ponta da caneta rabisca nomes falsos Eu sou o interpasso, vândalo descalço Eu sou aquele que não existe Eu sou o hospício, o louco e o triste Eu sou as duas da manhã e eu sou o dia de jornada Eu sou aquele homem que a buceta ficou cansada Estou esperando que me existam E nem pensarão em ter pena, em ter pena, os leitores, que não estarão em posição. Vocês não existem tampouco. Um dia, a existência será apenas uma saudade profunda Nos cosmos da imensidão.

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gabrielle dal molin

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esse péssimo hábito de me doar sem perceber as fronteiras do que há e do que nunca vai haver quero tanto o querer me perco dando e pra quê? se já não sou mais linear nessa vida de cimento que concreta não há de ser porque dissipa-se em medo e nessa eterna foda mal dada que a gente sua mas não goza que a gente goza mas não ama e se ama joga fora o gozo e o amor no lixo do banheiro *** Quem és tu América que passas por mim como se fôssemos ainda aquele tempo de chumbo? És uma ferida aberta um sentimento profundo Os poros de tuas ruas marcam em mim teus muros O que tu queres América se em ti ardem os sonhos cerram-se os pulsos?


América, não falamos a mesma língua mas posso entender-te com as veias de meu coração ibérico por onde corre nosso sangue bebido Quem és tu América que reconheço em linhas mortes e santos? Quem és América tu que fazes de mim um desejo doce e incestuoso fraterna y sedutora América, não falamos a mesma língua mas quero fecundar-me de ti teus sonhos, tua fúria sobretudo tua fúria Para que teus gritos não me abandonem para que tua alma não vá em vão Para que teus caminhos durmam em meus pés e as sementes cresçam em minhas mãos *** ela me diz: que tempo bonito pra chover! e eu me perco contando as nuvens que pairam sobre sua cabeça insone eu digo que não sei mais onde procurar meus cometas servir meu céu que tem fome de mais água e menos homens o clima ameno me agrada mas eu sinto o tédio violar meu corpo quando chove pouco e de nada me lembro

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que não seja pingo me iluminando na fonte dos meus desejos ela me diz que a gente pode dar a outra face quando cansar de bater de frente a lua está em peixes e eu sonhei com uma cama habitada encharcada de leite eu não bebo mais vacas nem as como nem as louvo mas sei que na Índia há deus na carne sei que em mim há carne em deus morto pela minha vontade de saciar os lábios em outras santas que de tanto rezar perderam os dedos fazem de mim sua chuva ***

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Aquela parte do teu corpo me invade aquela arte do teu gozo me arde meu coração queima te encontro inteira minha mão não sabe teus atalhos onde cabe mais de mim em tua carne aquela parte do teu gozo é arte aquela face do teu corpo em alarde meus dedos e anseios derretem e caem aquela parte do teu ser


me tem no que te convém e em mim explode afoga e dissolve todo teu corpo é porto nesse mar de vai e vem. *** Lilith Invoco-te em meus sonhos para que me tomes mais uma vez Não como virgem mas como puta Não como deusa mas como tua Invoco-te rezo para teus santos cubro-me de mantos azuis como Maria para que em mim surja Um prazer bastardo Uma luz divina Invoco-te em minha pele Um sacrifício em atrito em sangue, gozo e cuspe A poção da paixão

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para encarnar-te e poder viver sem ti ***

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Poder avistar-te Mar Entre a solidão Concreta das ruas É poder abrir-me À completude De suas cores Que navegando-me Não sei pintar Tento escrever E só sei amar No verde sereno Azul imenso Na onda que é vento No tempo da lua No cheiro que abraça E abrasa meu peito Saber que posso avistar-te Habitar-te no fundo Ainda que não peixe Ainda que gente Ainda que em sonho Escrever-te Mar É sempre um dever De minhas escamas Retraídas em arrepio E de minhas lembranças Insistentes, aquarianas Na existência solar


Desses mares azuis E nos sentimentos imersos No asfalto quente *** todas as pintas de sol todos os fantasmas palhas de coqueiro ao vento tudo que eu quis e não sabia tudo que eu soube depois que não quis e toda essa vida que em meu corpo responde por: arrepios, tatuagens, vícios pelos remexidos em lençóis coleção de resquícios as roupas que eu levo pra todo lugar porque não tenho casco minhas conchas de feitiço de me fazer em miragens salvam todo meu sentido saudade, cidade, som todas as coisas em mim tem um dom de se fazerem paisagens *** Vi você a tarde pela janela andando um andar acima do mar seu pano de esquentar era pra espantar o sol e eu corria os olhos pra ver se as rodas alcançavam seu vestido me despedi pelo vidro e agora você entrou e sentou cinco bancos de distância alguém do seu lado que eu não quero conhecer

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e eu implorando pra sorte que da próxima vez podem ser uns dois bancos quem sabe lhe vejo na praia nós moramos no mesmo bairro essa cabeça no seu colo não me importo levanto e demoro cada passo pra poder lhe ver mais quando passo pela catraca você está atrás encosta em meu braço por que não me leva logo! me pede desculpa e eu sorrio querendo dar meu telefone ou saber seu nome tanto faz desço e você vira na rua de trás e eu meio bêbada com essa sensação de que sempre chego atrasada amor de ônibus não deveria ter ponto final 52

*** acordei com saudade de me sentir estrangeira entre a porcelana e a solução final para as uvas eu bebo a chuva e sonho com fantasmas do velho mundo com cães cobras e vulvas com amigas jardins e lares meus sonhos são como filmes que eu tenho medo de assistir mas não de encenar meu tempo é como uma sala de espera sempre cheia de barulhos disfarçados parecendo conversas de calçada grande segredos em banho maria ah Maria se eu pudesse! eu te amaria mesmo pra morrer pra sonhar com mais jardins da realeza pra me cobrir com mais água desta fonte


amaria qualquer um que me dissesse porque eu sonho tanto e que me fizesse viver mais do que dormir *** Nunca me perguntei porque o céu era azul e o sangue era vermelho as cores me surpreendem não pelo nome mas pelo gosto como quando lambemos a calda de morango de um céu azul quase roxo ou de tanto gostar de tudo que eu quase engoli teu rosto as cores me surpreendem não pelo nome mas pelo gosto como aquela noite em que eu escolhi a melhor casa pra fatiar e comer com a mente lilás dos meus sonhos as cores me surpreendem não pelo nome mas pelo gosto e apesar de serem da luz só um engano derretem em mim como teus lábios úmidos ***

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caroline santos juízo final

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Nojo é um verbo que tirei do meu calendário assumi o escárnio que os outros descartam em mim e escarro cada cusparada é fecunda Sou a palavra aberta, encruzilhada na América de becos, vielas, ruas asfaltadas e esgotos a céu aberto tudo queima perto da linha do equador e minha pele morena reluz melanina de sabor intenso O olho permanece aberto habitando cada palavra desse vocabulário que transgride e assopra e grita vocabulário mitológico, serpentes, medusas e Harpocrate Eros me acerta certeiro no clitóris Eu sou o horror de cada boca salivante que não beijei anunciada pela trombeta do apocalipse e a pomba gira e revira meus olhos pra me vestir de vermelho boca e sexo, a língua afiada Essa cidade é um deserto de almas vivas e desabitadas Deus não me pune, mas me deu o inferno e eu não salvo ninguém o céu é um condomínio fechado de fichas marcadas Mas quando a pele arde e me olham torto entortado mundo dos outros eu lembro que gemer alto é gostoso e a benção de todos os santos eu levo no pescoço Na quaresma tive uma anunciação divina a natureza dizia ‘seja!!! minha filha como poesia intrauterina e ria e ensine os outros a rir também’


agora estou em paz, com deus e o diabo pelo meu corpo, pela alma e pelo tempo até o fim das eras. *** entrelinhas e reticências Escapo na aterrissagem do olho sobre a nuca que se insinua feito palavra lânguida eu penso, me chupa me lambe, lambe a lambida minha encharca comigo o ouvido e esses verbos absurdos de prazer que dançam e dançam nus sobre a pele aquecida abre a boca pra que eu penetre com poesia fervida que me escorre pelo pescoço feito soluço ritmado - um ah! ah! sorria agora, mostre os dentes se abra, me abro e assista eles tocam-se despretensiosamente coléricos com mil tentáculos escapo o olho entorpecido se fecha, se abre umedecido segue o fluxo dos risos estou fora de mim

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e finjo controlar o magma transbordando entre as coxas entrelinhas entre no meio das coxas intumescido pulsando reticências. . . *** abutre

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Venho perseguindo ratos medíocres espíritos zombeteiros bêbados venho caindo na graça dos esgotos a céu aberto meu coração é uma viela e faz tempo que o carro do lixo não passa por lá Estão amontoados todos os corpos que amei já sem vida sobrepostos, empilhados um sobre o outro e as lágrimas que um dia chorei por eles tornaram-se chorume A escuridão me fascina tanto que não há luz nos caminhos que persigo tenho uma fome corrosiva por todas as mentiras compro mentiras, pago com o corpo por elas Saio farejando em busca de uma sobrevida de um moribundo porque sei que assim não teremos muito tempo juntos que eu me machucaria com o fim já próximo Eu vivo com os fins, o começo é só uma lembrança distante um sonho supérfluo


porque o meu amor é aquele de febres e solidões não sou melhor que um abutre *** carnívora Me come sem tirar os ossos, me engole enquanto ainda respiro, com os dentes cerrados sorri, sem haver mastigado um só pedaço de minha carne, sem haver gasto um só dente, me deglute pela saliva, gastando a língua no gosto de nos transformar em um só corpo, em um só desejo, o de ser também o outro. antropofagia no amor e outros hábitos alimentares *** prece pagã Pagando pelo meu paganismo há uma filosofia que não atinjo de um corpo hedonista vil e viril eu que tenho um corpo marcado pelos trópicos de câncer e capricórnio oro em línguas e tenho um mapa astral kármico marcado pelo movimento retrógrado dos quadris habitam em mim as sete chaves e conchavos que não abrem nenhuma porta mas me abrem como uma fenda no espaço eu sou a bênção de um deus feminino que me presenteia com orações extraordinárias

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e proteção intergaláctica na próxima encarnação não venho como Buda ou Jesus Cristo venho novamente como mulher pra semear mais uma gota de sangue sob esta terra fecunda *** Anunciação

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Ela anuncia minha chegada, eu, relâmpago de fogo, alumiando o céu em escuridão, que em mim retém as moléculas salivantes de chuva, eu anuncio a tempestade e os pesadelos, com assombroso estrondo luminoso, me perseguem os céus mais pesados, pra eu poder sair me rasgando, inflamando o extraordinário. Ao meu lado trovões e furacões se despedindo da melancolia dos dias todos que se guardam sem atingir ninguém de horror, eu que ando entre a imensidão e dela tenho medo, tive de aprender a ser luz. Clarão. *** Fogo Se com escrita de sangue falo e fogo apazígua no coração uma tempestade de magma espesso e veloz como toque aveludado numa noite febril de Abril abriu a vala da consciência e fez um oco pra se arder o fogo da língua, céu da boca em chamas a palavra se escorrendo, derretendo sob a pele nua fogo-fátuo de minhas entranhas

***


Carne de carnaval Dedos de carnavais quantos carnavais ela esfregará seu frevo em mim? Rodopiando, ciganeando seus olhares de flecha sobre este corpo em estado de choque! Há algo nela que não me pertence que não me cabe que não me deixa entrar e é justamente o que me fascina, não tê-la nunca sentir-nos sempre escorregadia, umedecida sempre pisoteada pelo bombear de sua percussão em meus pelos que se oriçam e se levantam para vê-la passar para que ela passeie a mão em mim, indo e vindo (espero que ela sempre venha) ai que abestalhamento doce e incerto de dar lambidas no pescoço suado e achar gostoso *** Lambidas metalinguagem a língua da palavra habitada a língua na língua das primeiras causas com quantas línguas anunciaste aquele verbo ao pé do ouvido em quantas línguas a tua saliva encontrou morada se derramando garganta adentro ***

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Ser tão Quantos sertões eu preciso atravessar pros teus olhos virarem mar?

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Teu calor deixa minha terra fecunda, tu é igual um cacto, espinhoso por fora, mas suculento por dentro tu mata minha sede quando nem comida eu tenho no buxo ainda Gente que trabalha o dia todo quando chega a noite e a lua alumia, ainda faz poesia? Teu coração nunca pus cercado, delimitava apenas com os dedos e te deixava avoar negro feito urubu quando tinhas outras fomes e só o que eu podia te oferecer era terra Enquanto você ia, eu cuspia no chão, doava toda minha saliva que era pra deixar tudo florido e pra que tu voltasse de teus voos noturnos E a gente se fundia, ardendo em febre, fazia suar o quarto inteiro ele respingava em nós! Tu era o sol que me aquecia e a lua que me fazia uivar feito lobisomem na tua pele colhi as melhores frutas, me lambuzava assim como quando a gente encontrava um açude e a água dava pra beber. Meu coração é quente feito mil sertões e tuas raízes profundas. ***


Ploft Acordei com uma secura na boca um gosto amargo de ausências uma dor cancerígena atravessava meu estômago Ah! eu tenho um rombo, sou um buraco, uma vala um poço sem eira nem beira no fundo não tem nem água nem ouro, só lama! Acordei assim meio atravessada, de supetão, já acordei sem ar chupando pelas venta um ar que doía, o coração cambaleava. Mas que porra é essa? Nem eu sabia Será pavor ao tédio, ansiedade, angústia ou paixão? Nesse mundo de carroça de aço e barulho de ventilador eu fico ariada, me confundo toda as coisas que sinto, às vezes, parecem uma só! Começam todas no estômago! Mas que fome que eu tô! Mas de comida não é não, provei por A + B que quatro pão com manteiga pra quem é pequena como eu bastava quisó, excedia e a dor que lateja cortante, perfurava e tomava conta de mim! E agora o que eu faço? Rezei tudo de reza que conhecia que na escola a gente era obrigado a saber pedi com minhas palavras as rezas que não existiam até me benzi 10 vezes, que 10 é número fechado e eu não gosto quando termina em número ímpar não que fica ruim pra dividir e contar direito eu nunca soube Eu sentia que ia desaparecer sabe passei a ter medo de acordar e simplesmente ter desaparecido, assim ploft! Porque eu sentia que meu coração ia ficando pequeninim, deste tamanhinho

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e sem o coração eu não existo podia até não desaparecer, mas ninguém ia me reconhecer, nem eu, nem minha mãe, meu cachorro, meu piriquito, meu vizinho... Sem sentir eu não vivo, deus me livre ser dormente dizem que tá dando em muita gente por aí né mas em mim não pega não aqui o coração lateja e sai matando cachorro a grito!!! Mas já faz uma semana que acordei assim e não passa de verdade, sejam sinceros comigo é possível alguém sumir assim do nada, ploft? ***

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Chumbo, flores e ouro Um presente de chumbo, dado entre aços invertidos, que convertem na divergência. Um pedaço de asfalto que escarro pela boca me atravessava a garganta, abrigo da minha voz fina e trêmula, por tanto aguentar pedrada, quando insisto em continuar atravessando. Atravessa em mim o eu profundo, tão inocente como quando sou apenas um átomo. Sigo, carregando uma pele em erupção, me revestindo de bolhas de fogo purulentas que cintilam, me abrigando de flores e Atravessa em mim o eu profundo, tão inocente como quando sou apenas um átomo. Sigo, carregando uma pele em erupção, me revestindo de bolhas de fogo purulentas que cintilam, me abrigando de flores e falso ouro e amuletos mitológicos. Me presenteiam com maçãs apodrecidas, jogadas ao chão enquanto caminho, como uma oferenda ao meu escárnio, eu sou aquela que come ao lado de eva, o feminino é o pecado original. Envergo e me aproximo tanto ao chão que


que penso que mais um passo e quebraria todos os meus dentes, com essa força que me exorciza e me mantém imaculada. Serpentes não atravessam meu ventre, intacto, ele sangra. Como sangro em cada esquina, pavimentada e rebocada, de azulejos coloridos e com buracos de balas, atravessando a noite numa corrida assimétrica entre minhas pernas e meus pensamentos. No meio, o medo, me fazendo tropeçar. Mais um dia que gasto poesia dentro, silenciosa, silenciada, se transformando em mim feito corpo apodrecido e enterrado, mais um dia que vou abrindo a bofetadas um outro caminho que me caiba. Devolvo esse chumbo que me pesa o bolso e me estanca, sigo atravessando. *** Transbordar e expandir Todo o deslimite hipertrofia engasgada com o gozo na ponta da língua desenfreado desejo e na rua o horror meu corpo é uma bandeira que hasteio e deixo flamejar nos bueiros da cidade cada esquina em cada prece com os dedos cruzados e no pico, por cima da cegueira ele dança, o corpo, é meu e dança e sua e sua e sua sou sua toda lágrima virou suor

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quando eu levanto a mão é um ato uma anunciação a palavra do absurdo o absurdo das horas todas as horas em que disse não foram contabilizadas, mensuradas e agora esquecidas entre as mãos me escorre a vida do ventre profundo que habitas e tem poros e pelos e saliva, terra fecunda da vida estéril fiz poesia delírios, devaneios e desvarios extraordinários grunhidos e gemidos e sussurros dos mudos orgasmos que ritmado agora grito 64 quebramos a barreira da matéria e do mistério

***


maíra dal’maz

tema para o corpo de h. ao dormir sobre os espasmos, os que há tempos não sinto (eram no meu lábio superior) você, então, teve primeiro na pálpebra (sobretudo você tem em seu corpo inteiro) antes dos blackouts mas, desde então, quando as noites juntaram-se surgiram: mãos que imitam movimento de despertar pernas que parecem estar a ponto de largada (você fala que é reflexo da evolução, do alerta primata em cair da árvore) sinto toda sua circulação quando abraço suas costas e encosto o entremeio nariz-lábio a noroeste, perto do sinal de carne, intermitente até os rios de tuas bacias hidrográficas (e eis o real aviso: as quedas d’água) desaguarem na planície-algodão e só fluírem em seu curso calmo, vivo, criador d’uma rota até o R.E.M. ***

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sem título lendo chaya, a mulher que só tinha o nome e karma sifilítico desviado e sendo exposta a todo esse íntimo à luz, com pressa de se colocar pensando e descrevendo o não-ser ou o ser lírico que fala só dos aflitos eu, tentando escrever um poema em que fosse lido como música e que me mostrasse poeta de sentimentos e angústias eu, frustrada com meu poema 66

pois entre as baratas, cemitérios e sonhos com embates meus e um red nose na rua do baldo só penso nas unhas da embaladora do supermercado e como elas devem estar nos poemas mãos-suspense toda embaladora de presentes de supermercado tem as unhas longas, pintadas com glitter sobre algum tom róseo que ditam a maestria dos usos de durex tal qual todas as que embalaram os brinquedos da minha infância e hoje embalam sagatibas ouro ***


“quem hoje é vivo corre perigo” (Xangai)

§ ouço na música a solidão do vaqueiro entre os bois

a estrela solitária no anel de xangai e essa vergonha de ser do litoral que só tenho o mar (não tenho mais garimpos ao redor, terra de leis douradas onde pessoas somem e o sol continua nascendo) também tenho o vinho e o vento batendo na mesa de centro vento que imita esse mar distante da matança desde quando o amor sentava nas cadeiras com almofadas que lembram a Amazônia, longas corridas livres de animais § matança devia ser uma palavra bonita, na verdade,

como lembrança

***

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“Violinos: seda encrespada, queixas de mulher à noite sozinha.” (M. Darwish) “...esta noche angustiosa llena de dualismos” (A. Pizarnik)

consummatum est: há solidão em qualquer não-litoral e por quando passo trêsquatrocinco dias componho o hábito teu esquartejo as frutas recriando teu vulto na cozinha 68

eu como, pelo menos, tua sombra *** filha de estradas, onde emaranham-se juremas e cactos deixo h. para ver freadas, enquanto ele, calmo, compõe poemas pós modernos para tentar decorar meu número de celular ou acerta despertadores para um pouco mais tarde presos aos limites da derme, não alcançamos o bliss assim tão fácil sobram tentativas de rompê-la, quando já ultrapassadas no que escuto longe em silêncio com sinatra because I’ve got you under my skin


ou lembro de histórias do ero-guro lá em dois sozinhos como acordar para a ordem moderna? *** sem título existem tantos outros fracassos a considerar que apenas o de não ser o faroleiro do farol de mãe luiza como a tristeza de ana c com trintaium anos: sua metástase moral como as mortes diversas em hebrom pela capital prometida o suicídio em massa dos zelotas em massada o oriente médio ... existem outros fracassos além de passar na via costeira vivendo o delírio de acender a luz-guia náutica em vez de ir para casa mas ir pra casa e existem tantas casas...

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*** depois de sílvia sentir a permissão para alcançar uma emoção coisa há muito esquecida nas paixões e seus ímpetos de objetos quebrados, como os vasos lançados das janelas, acender o círio d’um santo e rezar longas preces a essas paixões descuidadas: o que entocam os poetas no cano que leva o fundo dos seus vasos de banheiros sujos depois de cervejas, cigarros e som? 70

sentir a permissão de jogar o corpo na estrada, ir até... voltar a si e negar o arremesso mas só depois do desvario de quando sílvia me fala

***

para todas as crianças que fogem das guerras, civis, diárias contra a fome, contra a sociedade que engole os pequenos pés das crianças como balançam crianças nunca alcançam o chão


quando sentadas à mesa e agitam seus pequenos pés em tédio e expectativa com curtos e frágeis passos, as crianças nunca podem ir muito longe no máximo, à praia então, uma criança, na praia, brinca de pequenos zigue-zagues de costas para o mar desce-lhe o cansaço, certa hora, a praia enfada então, os pés das crianças balançam vagarosos no colo, que deveria ser da mãe mas é do guarda ceifam o ar sem escolha, tédio ou expectativa 71

nunca alcançarão o chão *** bacamarte em uma cidade na parahyba existem nuvens dispostas de forma não usual nos idos deste mês tal qual a música progressiva nos anos 70 com uma coincidência de nomes em tentativa de narrar todas as letras naquele mesmo céu pequeno sobre a cidade pequena, como quando se buscam as diferenças pela arte de esculpir coronhas das armas dos grandes vilões do cinema


as nuvens: estranhas como os arranjos de depois do fim longas como o último entardecer sobre pastos onde podem haver recordação d’algum país de língua castelhana nunca tive ciência d’um bar nesta cidade da parahyba nem de nenhuma dos arredores em que se pudesse iniciar uma briga, puxar o gatilho [aquele espaço entre o ar e a coronha esculpida a coronha engordurada e a marca no jeans do botão da carteira] mirar o cano para cima: 72

um menino com estilingue assiste a tudo e brinca de assustar o céu *** despedida pra fotografia de costas a. tocando violão na beira de águas da frança sem entender os idiomas, cores, frios só, como um cantor de folk que veio antes do dylan nesse tempo antes da queda da bastilha e desarmado por espaços vazios e um olhar para longe na fotografia de costas, a. é uma ilha

a. ensaiando uma desordem de acordes tentando descobrir aquela melodia que esqueceu


pelo vinho francês tinto bordô barato mas desacostumado e sucumbe, então à ordem de quem vem reger aquelas águas oxum ou xangô a. sozinho contra o céu na lembrança do sonho passado com cabelos cada vez mais prateados como a lua que deve continuar iluminando a orla para a. tocar a balada de um homem que pede desculpas a última: um dueto com as vozes dele mesmo a. é resta um 73

*** “Quem diz dor diz segredo” Alan Pauls a s. m. veste-se dessa sua presença de lua nova -- expectativa d’um mero devir de pranto traduzindo-se num só corpo (o projeto frágil de não poder consigo) pode ser essa tua presença (ameaça -- voz grave -- puro conceito de sentir demais) ogiva


lembra-me dos meus piores temores em comum e entendo-me com essa lua nova de trinta dias noutro canto como a pele às justas peças fundos sulcos se à minha queda tu não vens poetisa, por que não sobes? the downstairs means nothing

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***


igor barboà

A palavra perdeu minha infância. E agora tudo que escrevo e leio eu, julgo sem importância. Nem sombra de orvalhos maduro é como estar podre nos galhos.

A vida me impõe um pesar mesmo que eu não tenha balança: Despertar é leve, mas cansa.

Daqui de cima o que acho, é que lágrimas só pesão pra baixo.

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Era só o corpo era só a morte

A coragem se despontou nesse segredo: Lembrar é uma questão de medo.


Ser tudo em todos com a sede de um só. A ser meu avô aprendi com minha avó. Amanhecer é quando renasço pelo que me findo.

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Um homem comum à dor só pode viver no seu conforto estando vivo depois de morto ... ou o contrário.

Cair é deixar o corpo entender sozinho o ex ... passo.

Esses querem foder com tudo. Aqueles, não querem foder com nada. Mas por aqui, pra andar bem nem pelo meio da rua nem em cima da calçada. Rastro de acender pavio calmamente, arrisco meu fósforo pelo meio fio.


Nem estilos nem estilhaços eu caminho eu esmo, traços!

O vento dá eu abro a asa um dia inda voo de volta pra casa!

Tinha olhos de dizer tudo de uma vez era tão calado ante vocês.

No duro e febril consorcio da madrugada fiz meu divorcio com o nada: vou amanhecer um sonho.

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Partiu foi buscar eternamentos na cacimba dos instantes com o balde dos momentos.

Amar: que jorra na sede onda.

Corpo essa limitação fantástica que faz a gente perceber o quanto a mente é elástica.


Ler-mes quando Corpo simples Gozo plácido Deus ou um ácido?

É preciso ter aquela festa no pensamento Pois fora dele, há coisa 78 que o des’festa à todo momento.

A beira de meu juízo danço ao revés. Fôlego, é coisa que dá nos pés!

Isso de querer num ser se tornar o exato amante daquilo que ele é ... pra além de si ainda vai te trazer aqui. A chuva me continua lhe caio em pingos sou meio da rua.

Aqui meu lugar por excelência A contradição entre os que vêm e vão, e a permanência.


Acerca da cerca ainda que se perca ... dá a vista: Limites. Toda cerca é um pulo pros convites.

Se o agora não tá dando lembra o tempo existe de herdar o quando.

NÔMArDiz... Lá Doce ... Lá.

A pedra é alguém que trouxe tudo pra fora. Pedra e ninguém tem um bocado de agora. Eu não duro, enquanto pedra.

Faz por onde nunca errar próprio endereço. Gente é o que tem medo de se ver ao avesso.

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“Pessonhas” A partir a parte que não somos perigosos, somos todos venenosos.

A certeza é um pandeiro que eu toquei errado. Aquela noite, sem dúvida: a gente dançou um bocado.

Pras coisas de maior pulso não tem discurso. 80 Poeta, um corre à míngua. O diabo é ter o gesto na língua.

O que vai acontecer não há como ter sido, Há como tecer.

Muito bem, lembra dois.

A um matuto da cidade não adianta muita sofisticalidade: Civilização é um canto perto duma padaria.


Há noites Pelo que não venço às vezes nada, é mais intenso do que a brasa do incenso.

Intento muitas coisas que nem tento só no pensamento.

Há horas que nem a primeira letra eu engato. Tem poema que se faz, de fato.

Se tua simples presença é erotismo, imagine então vestida.

Acordei com isso

Tudo é tão tudo ou nada, que em vez desse tudo eu vou querer um de cada.

Chovia e fazia sol que nem você um sol e chuva que demorei pra entender.

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Não sei você mas no caso meu a melhor coisa que alguém pode se lembrar é de que se esqueceu.

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Fotografei a lua a comer-me os próprios olhos Retina é ela de resto, o globo.

Ao sabor de forças que nos minam algumas verdadeiras coisas só começam, depois que às terminam.

Literatura Subliminar Dialética Podem o chamar de mente rasa mas ele trouxe, seu mundo de casa. E quem entenderá sua razão sem nunca lhe bater as portas... dá percepção? O silêncio é um indício da fala houve só ... como se cala.


Nem tenha cuidado Cintura é onde o vento apuro o rebolado.

“Passageiros” O vestido é tão bonito que por seu dentro o vento, venta um grito. Treme o tecido, me balança. O corpo é uma dança chegando ao ponto ... de ônibus.

Vem e nos diz par. Que faço da gente Impar despido.

De SI, Frações... O quarto de mim parte... do inteiro. É incomodo mas pelo menos não me cabe.

Quem faz sua sombra Sabe o que olha:

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Sigo pássaros Olho vistas Eu sou onde você está.

Lembro o que me esqueci.

Te ver dura anos. Mal te vi e já foram-se todos ... os meus planos.

Êis o primeiro passo para ver de novo o que nunca vi.

Sua poesia Foi esse crime: Usar o elementar Pra fazer ver o sublime.

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Não suporto Ter chapéu O sol É minha saudade do céu.

Se for agora talvez o tempo me guarde. Talvez o vento me conte. Talvez minha memória não pule da ponte.


maluz

ancestralizada por palavras de outras mulheres me tornei pesada e avulsa mas forte meu útero efervescente burila as palavras para o poema disperso meus passos nos paralelepípedos dessa cidade perdida com as pernas lisas diluo os pedaços de meus malfeitores derramando suor-amálgama com os calcanhares friccionando o solo esburaco preparo o asfalto para a chegada de novas sementes em espelhos com capas e títulos desmancho-me emparedada reconstruo-me o farfalhar de páginas brancas enfileiradas vestem meu novo corpo a cada velha deusa hospedada em minhas pálpebras retiro novos significados refaço meu idioma ***

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transeunte

transeunte tuas pernas descamam em meu caminho de tudo o que deixas cair faço uma calça para cobrir-me do que és as sobras eu olho teus lábios cheios de ranhuras, gastos por mil páginas quando voas alto pelos panos de tuas batas malandras um coco roda as nossas palavras na tua vórtice voz

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transeunte, és um vampiro? há um silêncio me esmagando desde que a tua existência seduziu meus olhos foi pra junto de teus livros, canetas e troco de passagens, todo o meu caos e agora queimas pela cidade, nos filtros do teu cigarro os olhares de quem passa te percebendo tomando junto com as bebidas o que tens a dizer desejo agora que tuas confissões venham agasalhar-se em meus dedos que pouco a pouco perdem a casca transeunte quando desceres do ônibus, não te esqueças que cheguei [cedo e estou te esperando para me devolveres a cor da pele e dos olhos das outras pessoas ***


a brevidade da vida levou a perguntar como continuar existindo depois de borrado o alcance das visões e as netas derramarem café nos cadernos que ideia perguntar isso depois de quarenta e cinco horas sem dormir ainda hipnotizada pelas linhas das mãos eu não posso afirmar o que acontece com um poema de cem anos mas sempre terá centelhas de vida em minhas gavetas esquisita sala nada entre a mobília combina penso que materialmente a consumação do sumiço se dará com os móveis enfeitando a vitrine de um vuco-vuco no Alecrim e a biblioteca transferida para um sebo com queima de estoque - qualquer livro por três reais quando os herdeiros liquidarem até o último botão *** passo por ruas absurdas derretendo com a atmosfera rude e o exagero que em mim agasalha-se cultivo nas unhas o chão que não varri na última semana e agora me deito evocando oráculos fazendo o espaço poético de sanatório

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essa dislexia moral é mais voraz que debruçar-se ao fogo *** eu oceano me fiz quando amarraram a contemporaneidade aos infinitos líquidos de inconstância

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o corpo precisa de litros de água o corpo é água litros de sangue abro as pernas e circuitos de líquidos completam-se *** o céu virou carbono antes da noite as telhas expurgam um pó preto tornando-me relicário líquidos festivos acendem febre na insônia dormências desligam a mordida a consciência desfoca o quarto transmuta meu corpo em carcaça lunar redigindo cartas e testamentos sem destinatários mastigo os lápis e os fundos das canetas


esperando o próximo poema a caneta estoura envenenando a língua o poema se ausenta coluna dói deitada sobre espinhas crescidas soul mais peixe que mulher *** as tuas palavras me dão borboletas de fogo no estômago refluxo de passado querendo voltar bile afora [mergulho em avessos]

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te como com os olhos pelas orelhas dos livros espionagem de entrelinhas enquanto despe-se *** analgésicos e chás tingem os fundos das xícaras caminhos de ardores cruzam o corpo cada poema morto é um prego retirado com sangue soníferos e almofadas passam os zíperes sobre a [consciência cada poema morto é infecção interna


[versos e janelas abertas competem por espaços e foguetes] *** a inclemência da noite faz-te espada cega aumentando minha pele busco o irreal vestida de cenas fictícias teu fantasmagórico holograma me convence a inclemência da noite derruba muros cria vândalos em seus seios fartos

***

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em hematomas e com penas na garganta espalho um odor ocre os quartzos no bolso erguem uma religião própria tudo é azul petróleo


ionara souza Tem um útero na minha cabeça pra ver passar o tempo se esfarelando de um avião sem asas Carregado de mulheres que Correm pra lua para encontrarem o sol porque não sabem se amanhã será um dia para catar laranjas Você consegue enxergar depois das lágrimas? Elas perguntam preenchendo almofadas sempre que ouvem a virgem gemer derramando ouro do clitóris convidando anjos a visitarem sua fonte Para roubar suas asas E observá-los, homens Enquanto saltam de penhascos. *** Respirar Sugar a terra pra dentro sentir o chão desabar quando se esquece de passos em dias ímpares virar a página sem ler o livro correr pro mar e se afogar em alguma poça que encontrou antes de chegar talvez a pedra no caminho que não estava lá respirar voar sem sair do lugar sentindo os pássaros saindo um a um até se esvaziar criando um redemoinho ou ciranda para fazer criança [brincar engolir o céu de uma vez e alcançar o inferno com a mão

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e ver que a ordem certas das coisas caminha em passos de formigas quando fazem vida no interior de um formigueiro. mas o osso que sucumbi a carne é fixado em gente e mundo se acaba em algum quarto de hospital no verso de algum poeta no fim de algum amor Hoje é dia de chuva caminho sem saber dos passos não sei mais dançar O que me rasga a garganta é mudo guardo nele todas as lembranças que nunca tive do meu pai. O que me rasga a garganta é mudo e contém partículas de mim guardadas naquele radiozinho de pilha com que brincava aos cinco anos, hoje, esquecido, dentro de uma gaveta no armário da cozinha da minha mãe. O que me rasga a garganta é mudo e também me rasga a alma e às vezes me aperta o âmago até virar nó. O que me rasga a garganta é mudo e desatina a dor que Camões tanto falava é mudo, mas as vezes cresce desordenadamente na garganta do menino que pede esmola em um sinal de trânsito cortando a Prudente de Moraes com a Bernardo Vieira. É mudo e desabrocha em flor de espinho que carrego em meus pés desde que gritei em lagrimas e o medico disse: – Nasceu! é uma menina ***


Mesmo escondendo o fio que me liga a Eva e Adão, e sem provar do fruto proibido, fui expulsa do paraíso. E de longe enxergo teus desejos escorrendo em vestes brancas, seguindo em direção à terra, que come os meus pés para saciar a alma e fazer viva a promessa de que ao pó voltarei. Ainda assim, tenho anjos cravados nas mãos que levantam voo ao nascer o sol, E em mim adormecem antes do cair da noite. *** Mãe, não sou poeta Eu não enxergo o futuro, e se disser que lembro o passado: É mentira. Eu vejo um mar e ondas sonoras que me afogam. Vejo um córrego que não alcança meus passos. E deuses dançando sobre o peito daqueles que dizem ter fé. Mamãe, irrito-me com decaídas e injeções dos vampiros que me cercam E com o veneno com que ofuscam as palavras dos sábios. Há uma cinza cobrindo os olhos, que não enxergamos o morro cobrir-se de ipê. Há um rapaz dizendo que me ama enquanto goza na minha coxa. Há um gatilho desfazendo minhas palavras E as águas já cobrem os meus pés. Mamãe, não sou poeta E ontem arranjei um amor que vai embora amanhã. ***

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O povo quer festejar riscar o céu com fogos e se enganar com várias cores eu também quero desbotar o corpo fazer língua de pincel pra entender que às vezes o que se fala é o que falo e deve ser engolido O povo quer festejar fingir que está tudo bem ouvir música cantar tom Jobim eu também quero falar mal dos poetas e dizer que Freud é louco amar alguém do outro lado do país O povo quer festejar fazer releituras de qualquer texto e ser chamado de artista eu também quero ser artista mas por entender Bataille Sempre que me come 94 e escrever sobre isso porque é bom O povo quer festejar rezar pra senhora sorte e agradecer as luzes de natal Eu também quero festejar com o povo pisando na própria cabeça. *** Os peixes pescam homens e redes cobrem os barcos que afundam antes de entrar no mar areia enterra gente, madeiras, poetas e amores você vê tudo ao contrario e não entende porque sempre te perco nas folhas de papéis e te encontro em poemas que não foram escritos. Eu queria acreditar em deus. Assim como você acredita. Mas sempre que vejo algodões manchados e o mundo se despindo em um colorido


que se perde no riso de um furacão. Então aqui de fora do tempo os rabiscos (talvez de vida) se apagam. Marias e Josés criam sonhos Um casal está olhando a lua e por ela agradecem Você brinca de refazer a noite E eu ainda acredito que deus não passa dos meus desejos. ***

Cristinas e Ana. O que é alto e o que baixo se estou no centro e no centro me perco de tudo e todos? Quais as indagações que ainda não fiz ou não ouvi? O que é Deus se não meus desejos? Fui tantas, que era apenas uma. Ou uma que queria ser tantas? Reflexos. Em segundos, entre espelhos, retiro a luva e me entrego à escuridão. O corpo dança em um só movimento. Vento no rosto. O céu se aproxima e está manchado de sangue. Por afrontamento do desejo, agora sou linguagem figurada, tenho asas, voo em direção ao chão. Sem contramão, via única. Pequenas partículas que desaparecem nas sombras, poeira que cobre o sol de Copacabana.

***

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pedro lucas

Cânticos da Ribeira antes das 4 a.m. 1.

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O rio se oferta ao rito e passamos por ele sem deixar rastros colares de pérolas, chaves perdidas, flores de prata para a sagração da primavera, e as manadas com seus elmos cheios de nada bebem suas heinekens e fumam seus cigarros parliament, também indicado para cocainômanos O ofício da noite se permite vagar, abrir uma cova no corpo da cidade doente, inconsútil tela negra como só um espelho negro destrói a cor, o ânimo e transforma sua violácea rosa em pesadelo, a memória vazia Sobra na nossa paisagem a montanha ao longe que não se permite um só grito [monge no claustro infinito rua chile, ancoradouro, novena dilacerada


2. Todas as vezes que andei no grande vaticano erguido sobre o baldo, eu lembrei dela, Rita Lee antes dos 20 anos tocando harpa nos Mutantes, como um sotaque distinto, antigo, uma litania, uma voz que se desata dos mangues da noite geral 3. O céu da ribeira às 4am pode ser para nós a procissão de luzes das catedrais portuguesas a nota final de uma música esquecida uma pergunta escrita num bilhete e perdida no alvorecer do viaduto do baldo, uma sorte de vidraças quebradas com a via crúcis estampada uma ligação perdida, uma abóbada celeste, um massacre simultâneo de cem bois (que é o mesmo que a palavra “hecatombe”) carpas nadando no rio morto, o cais solene e vário espreitando a manhã que descerá em chumbo e lava e nós, tantas vezes bêbados tantas vezes perdidos pisamos na terra prometida pois é dela o reino dos sonâmbulos

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4.

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O Brasil é o país mais deprimido da América Latina é por isso que aqui jamais prosperou o cinema de ação o cigarro Pink elephant as bromélias amarelas o tango e a luta corporal e talvez também seja por isso que as bailarinas morrem tão cedo e talvez seja por isso que a poesia nunca sobe que as veredas se bifurcam por isso que fumamos crack na sacada de sua casa às 5 horas da manhã, minha cara musa sem nome [vez por outra vislumbro a rua dos náufragos, as motos passando em réstias e o corpo ingênuo da musa sem nome levitando sobre os prédios mortos da cidade] e é por isso que imagino que as estátuas e as crianças devem odiar morar no país mais depressivo da américa latina desde que o samba cessou e o sonho da juventude é a marcha nupcial sob as pedras e deve ser por isso que o radiohead jamais virá os animais silvestres as máscaras de carnaval os nossos olhos cegos os fios de cetim/ferro retorcido que compõem o corpo


da musa sem nome, mais uma vez 6. invoco meus dentes e minhas mãos de metal para que toquem os pássaros de neblina ou as flores de sargaço nos seios da iemanjá inconstelada assumo os ventos e as diásporas para que os aviões passem por mim e repousem na gravidade de aço que é onde esperarei você ou a bomba-h ou o último molotov em silêncio inaugurado pela fumaça do meu cigarro camel na cidade estrangeira 7. Eu vou construir uma nave espacial dessas que flutuam no vácuo e esbarram em estrelas para enviar você, mandrágora da av. Tavares de lira e seu séquito de damas invisíveis travestis de pernas mecânicas e seu séquito de damas invisíveis

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lavadeiras do rio potengi com mãos de ouro & mirra e sob teu crânio, fustigado pela noite vazia da rua Chile, acenderei velas para a pomba-gira do absoluto mais uma vez é verão na cidade do natal e o tédio é nossa guerra nossa bandeira estendida contra o ventre do tempo mudo, apocalipse do céu nublado 9.

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não rimarei não nadarei no absoluto não lerei as cartas de Newton Navarro não olharei o potengi sob o abismo não vingarei na cidade objeto cidade qualquer coisa palimpsesto medusa muralha de ossos naufragada, mil vezes destruída e reconstruída e atravessada por fuzilados e fuzilamentos não voltarei 10. ao caminhar na noturna avenida afonso pena entre manequins nas lojas fechadas e fumaça de crack que despencava de céu nenhum senti o sol atravessar as ruas do pós chuva como cruel ironia


atravessar as ruas do pós chuva como cruel ironia a erguer-se contra mim nada posso fazer além de parar e morrer lentamente sob o sol de satã e dos tigres do capitalismo que avançam contra nós como se fosse uma marcha ou uma invasão lodo, reficção o sol não é deus e nem é uma víbora que engole perdizes; espraiado em todas as ruas do mundo onde passam os bêbados e os doentes as crianças descalças e os librianos o sol toca clarinetes contra a lua dos pântanos a lua da ribeira das 6 horas da manhã os ônibus lotados que atravessam o abismo meus pés contra o chão do mundo e o mundo outra vez voltando sozinho contra si mesmo e contra nós, praticando o sartorialismo febril ou a diáspora ou a depressão no pior país da américa latina a poesia no claustro nem sobe e nem desce vai, apenas

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folha joice

poema pra você me fuder

se chegas mansinho eu mio e engatinho só toma cuidado a gata não mia à toa no cio 102

*** procura-se um amor que a lambida felina do vento cruze com minhas chinelas de dedo encardidas. procura-se uma amor que como um edifício estranho na rua a sorrir procura-se um amor que seja de si e queira viajar até mim procura-se um amor que me dê cãibras nas pernas e molhe o colchão procura-se um amor que a companhia em me estar seja voar procura-se uma amor repartido, múltiplo como orgasmo


procura-se um amor que distraído ou espontâneo vamos nos achar procura-se um amor duas gingas e tapioca procura-se um amor que recíprocos de fraqueza na guerra vamos nos abraçar procura-se um amor que venha na linguística do verso livre procura-se um amor que chegue, talvez, em tempo de rugas ou cabelos brancos, conhecedor que ao tempo o charme. procura-se um amor como quem nada procura

*** pós bruxa ser for pra ser profética serei, profana, como as bruxas que foram queimadas na inquisição, descabida de moralidades fumaçarei sufoco em teus pulmões.

***

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a preencher me a desmedida do corpo ao copo eu apreendi a contemplar os dias que ao mundo posso gritar e assumo: SOU FRACA de uma leveza rarefeita soufraca egrito MEDEIXEM eu desvario em encruzilhada MEBASTO ***

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anestesia é quando grito minha saudade pra dentro. arame farpado essas algas silenciosas que se estalam no meu peito no rádio jim frequenciava people are strange há uma doçura de tablete em ser sem encaixe é como picada intravenosa e “puro açúcar branco blue”. *** a esquizofrenia seu perfume de acarajé invadindo meus ouvidos silenciosas madrugadas as garrafas prestes a ficarem secas e do outro lado a cidade uivava como se fosse o centro e seus prédios apenas em pé pra manter a estrutura estática da poesia nunca adormeci entre quereres bem aceitos interrompida por falhas seria a minha língua louca de cadela de rua


mas não sei mijar em postes e assobio um fragmento baiano ah, gostaria de te levar pra conhecer um pouco da minha cabeça mesmo havendo chances de te prenderes em meus cachos acostumei a esperar a lua cheia enquanto menstruações correm e faço poemas como se fosse piva pederastando numa esquina qualquer pra me manter social eu escorrego meu cérebro entre ressacas e asmas eu sou todos elas aqui mas só tenho duas pernas tropeçar é o passo mais espontâneo *** capricorniana 105

felina como sou se quero carinho espera, primeiro eu passar entre tuas pernas. acaso e ao contrário, fujo pra cima de qualquer muro. *** anarquia de um corpo nesse corpo livre substituo o concreto dos órgãos


por nome de mulheres mas o coração vou pinxar com meu próprio nome, só, meu falho. ***

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seria fácil se só chorasse por mim, todavia o mundo todo fudido e não faço desuso dos olhos pra calar, choro como quem assobia a terceira pessoa do plural choro eu e elas. *** meu ex amor tem cheiro de larica de esquina aquele hot dog bauru com alface febre virose de verão hipocondríaca vã meu ex amor que acenei despedida foi embora mas barulhenta deixou aquele passo: dois pra lá dois pra cá meu ex amor


& eu em hemisférios distantes quando anoitece e ninguém nus vê talvez nos sorriamos ***

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jota mombaça

pós-versos por uma escrita pós-gênero

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Eu deveria começar descrevendo a mobília, as paredes brancas, a malha dulcíssima que acoberta os dias; ou no máximo adivinhar o céu, os pássaros eventuais e eventualmente um fio que esganasse num choque um filão do cosmos. Há um poema antes do poema, mas o segundo poema está cansado de ser subordinado ao primeiro. Por isso esta literatura vê diásporas: debandadas recorrentes de moléculas desconectadas; descaminhos amontoando-se como barracos na Favela Mor Gouveia. Supere-se o suporte! o que conta é o nervo, o peitopulso! um poema é um corpo. Ou não é. *** monólogo a dois sou o mais miserável de nós dois mas tenho você por isso não deixe que os automóveis te atropelem na volta de casa és o mais miserável de nós dois e não me tens mas não deixe que os automóveis te atropelem na volta de casa ***


artistas do mercado de trabalho, uni-vos ! (24/9/2011) dai-vos as mãos agora. depois silêncio nas antessalas, passos em falso, minas no quintal de casa – acirradas competições para eleger a obra mais bem paga. dai-vos as mãos depressa. antes de desafinar a ópera, narinas de platina, veias desertas na cidade – enormes zumbis de concreto velho.

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dai-vos as mãos sem medo. e fechem os olhos, e rasguem a língua. com a benção dos padres, se encham de publicidade (!) da felicidade na publicidade. *** girassóis para van gogh (para jota medeiros)


minha espingarda é de abater elefantes, mas tenho preás para janta; o zunido diuturno das moscas, um prato de sopa requentada e nenhum pão. *** o pai Tétrico, Triste, carrancudo. Fúnebre, medonho, horrível. 110

*** com carinho (28/1/2014) onde está você, cachorro magro? terá deslizado das prateleiras, escritor mal vendido, soterrado sem vida no amontoado de livros de uma loja de departamentos, onde outrora um outro fixou olhares num retrato de Anna Akhmátova? ficou preso às elipses, encurralado nos armários, triste e infame, passando da meia-idade, com os olhos vidrados, numa sala secreta do prédio do governo? resíduo de cidade, por onde você caminha agora? de um confinamento a outro, miserável mas sadio, é verdade


que anda gordo, comendo os rabos mais fáceis, e se perguntando se teria sido grande caso tivesse ousado escrever as coisas caladas em respeito ao pai? pergunte ao pó, cachorro magro, da tua geração em frangalhos, conte os cacos e as condecorações, faça a matemática. quanto mais esperaremos para que tua memória, teus livros, tuas aspirações de grandeza, tua carne cinza, sequer se deduzam da geografia arruinada da terra natal? ou você também procurará bumbas-meu-boi na night zombie da metrópole? e forjará folclores, enquanto eu chupo tuas bolas e outros escuros? *** 111

por telefone, jota mombaça comunicou que Jarbas Martins, você não percebeu minh’art-pop? minha linguagem Ti Ti Ti total… gestada na barriga da miséria… A Classe Média, Chernobyl e todos os não-lugares por que meu vago olhar de novela teve de passar. por que não o Grande Irmão caçando Winston? assim eu qual BBB Polêmico, Prolífico, Patético merda no ventilador e o leite mau na cara dos caretas.

***


auschiwitz quer dizer alagadiço remove teu comboio, salu, de dois ou três escravos nordestinos. que eu voume embora para sá viana. em 1992 eu era um saco brilhante de lixo no jardim gramacho, der Muselmann sob o sol de satã. faça uma topografia do nosso momento über crack! obture minha paisagem desolada. confine-a. a canção inexprimível da gulag, o desterro do baldo, as palavras no sumidouro, uma literatura de diásporas, mas tu, elena… “o teu canto mais parece um silêncio”. 112

*** óperas silenciosas, tímpanos estilhaçados (para nina rizzi) – o viaduto vai silenciar o viaduto. – toma a barcarola, a nau dos loucos. não fossem os urubus a nos sobrevoar, recostava minha cabeça turbulenta no teu ombro selvagem e chorava o choro in dócil doutro poema em fuga. becos, avenidas estreitas, esgotos, gramachos, sucessão de polaroides – e a hiroshima onde meus pés. minha geografia sentimental é a do desterro.


baldo, dez de maio. *** carnaval em chernobyl Por Lobo Errático falves silvas insolenes atravessam, diáfanos a luz deficiente que nos banha as casas e ruínas, enquanto eu fumava pedra na manhã rarefeita quem te assassinou, cidade, desde á paixão-mulher de moacy? e por que você sobreviveu? quem te assassinou, cidade, desde a saúdade de civone? e pra que você sobreviveu? *** fotografia Uma praia onde desovar cadáveres. E aos domingos as famílias. ***

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cantinela nuclear Chernobyl sob os meus tênis avante, manco! sair vamos para catar abortos tudo esgotado dos esgotos junto a lama da boca do lobo escorrem obus e poetas empurrados pela maré dos canos Água não-potável de beber , carcará 114

debaixo do céu de Estamira nuvem de poeira no asfalto Chernobyl sob os meus tênis Chove ácido São Paulo mergulhar Petróleo em Oceano Índico meu coração: iminente bomba anti-rosa ao Império! Fukushima, mon amour

***


gessyka santos

O menino do sertão De chão batido, retalhado pelo facão Sonha em ser pescador De nuvem. Vê o céu sem beira, azul mermim o açude que sua avó Neide tanto lhe enfeita E pensa que as águas arribaram, mermo, foi pro céu e quem sabe pescando, ele possa furar o peito da nuvem e dela correr todo açude Fazendo com que as rachaduras que pisa e as do rosto de vó Neide se inundem.

*** inútil lhe escrever qualquer palavra que seja Tal qual um Betta azul num aquário tentando sobreviver às garras dum gato preto Que já sente o gosto do pouco sangue contido em seu corpo Lembra que naquela noite falamos sobre espinhos Que estavam em minhas costas e queu não conseguia retirar? Você cuidadosamente os arrancou Palavra por palavra E no fim seu peito me aqueceu como nunca [repousei] Tolo é o Betta que pensa ter encontrado quietude Em sua casa de vidro mas quando menos espera

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Passa pelos dentes afiados Pelos restos de comida e é digerido no estômago Pintando de azul O interior do bichano

***

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você me diz que domingos são tediosos e que funcionam como máquinas do tempo que te levam a recordações indesejadas [às vezes] fica inquieto ou quieto demais e sua constante falta de atenção me tira o ritmo me organizo em ideias que são vazias planejo coisas que logo serão esquecidas me adapto ao desejo que você tem de ser invisível todo domingo e todo final do final da semana tento fazer com que esse mistério do tempo pare pra que o hoje-real-palpável seja mais forte do que o peso nostálgico que esse inicio de fim de noite traz pra que domingos sejam menos cinzas e transforme-os em segundas terças ou quintas só pra que pesem menos sobre teu corpo [ que se curva toda vez] só pra que meus dedos caminhem por suas costas definindo tuas constelações pra criar novos planetas nos nós dos teus dedos ver no canto da sua boca a curva do mundo e esquecermos enfim o dia da semana.

***


As turbinas rasgam o céu Levando seus olhos de sol escaldante Transformando os meus em garoa Fina Fria Condensando o ar Deixando rastro dos km que separam Natal de sp E eu espero [Com as cortinas entre abertas] Sentir os teus primeiros raios Queimarem novamente minha pele.

*** Minhas pernas procuram pelas tuas Debaixo do lençol fino Que nos cobre cuidadosamente Enquanto minhas mãos Religiosamente Caminham por entre os pelos do teu peito É impossível pensar em qualquer coisa quando o cheiro forte do teu corpo Invade as narinas e Me atrai até teus lábios carnudos Encho a boca Me farto Me lambuzo Lambo as pontas dos dedos a cada punhado teu [Insaciávelmente] Até que teu sabor doce/salgado Esteja em mim fixado.

***

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Minhas mãos têm Urgência De colher do pé O teu fruto E de pensar na Explosão do sabor no palato Salivo Como quem está Em jejum a meses Como quem há tempos Não sente na ponta dos dedos A aspereza de teu sumo E se contorce de desejo E come desesperadamente Sem regras Sem etiqueta Como um bicho Estraçalhando sua presa.

*** Meu corpo carne À beira cama Tempera teu mascar Entre um goto e outro Quando há de me engolir?

*** feito porra um fio de luz me bate a cara desperto com olhos semicerrados vejo a hora [caralho,já são sete horas!]


noite passada eu só consegui dormir às cinco pensando na falta de dinheiro e no macarrão velho que jantei no dia anterior puxo o lençol que ainda tem o cheiro de suor daquele escroto o que fudeu minha vida. [preciso lavar essa porra] foda é que depois de tanta merda só quero dormir mais um pouco esquecer as últimas bombas que foram jogadas na minha vida. [dormir sempre é a melhor saída] o ventilador espalha ainda mais o corpo dele na cara sinto falta minhas mãos descem o corpo tentando refazer o caminho qu’ele fizera da última vez [peitos-barriga-coxas-virilha...] com três dedos estimulo o clitóris recordo da língua macia fazendo sempre os movimentos certos que meu corpo exige. 119 o dedo indicador me penetra, numa tentativa desesperada de recobrar a lembrança do seu pau-médio entrando centímetro por centímetro em mim. o suor aumenta a mente brinca com as lembranças os dedos acompanham [de-quatro-de-costas-de-lado-em-cima-em-baixo-chupando...] o corpo contorce e enquanto grito o nome dele GOZO! [pernas-trêmulas-boca-seca-cheiro-de-corpo-espalhado] meus músculos relaxam pego o lençol uma outra vez e fecho os olhos [esse escroto vai sempre fuder minha vida - e a boceta] adormeço.

***


Caminho com o mundo entre as pernas que vê por debaixo da saia meu sexo e aplaude e saúda o nascimento de mais um o mesmo mundo que abre o guarda-chuva quando de mim chove sangue e pelos e meus mais íntimos desejos caminho com o mundo rompendo os dias e noites noites e dias dias e noites noites e dias até me deixar exausta 120

e ainda assim continuo enquanto em meu corpo existe vida enquanto meus olhos veem, minimamente, onde piso caminho com um passado de sangue nas costas, com os ecos de outras em meu peito com flores murchas sobre o chão escarlate de oitos de março, de agosto, setembro caminho com unhas e dentes para ser mais que mãe esposa filha caminho por ser mulher. *** Ele me disse uma vez que tempo é relativo Que caminho sobre o passado presente e futuro enquanto tomamos sorvete de creme às 13:20 de seu


horário de almoço talvez seja por isso que a veia do meu braço esquerdo salta pois toda vez que o tempo me pressiona como lâminas de vidro o passado me empurra as costelas o presente comprime os órgãos e o futuro estraçalha minha caixa torácica - eu só quero tomar meu sorvete tranquilamente, só quero respirar tranquilamente então vemos jogos brinquedos armas encontramos amigos que partilham dos mesmos medos e nos abraçamos com os olhos mesmo perdidos em algum lugar vazio do mundo eu penso em pílulas e tenho medo penso em medo e me encolho ele me diz: confia eu tomo enquanto minha mente diz pare enquanto meu corpo para na espera de que a gente tome sorvete e que o agora seja só o presente.

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ayrton alves badriyyah

me obrigaram a engolir um cavalo de aço eu talhado na madeira podre sustentáculo das palafitas margeantes deste rio que rasga o meu corpo de forma precária rio escoando por caminhos de cupins de homens que trocam a sua arcada dentária por um punhado de algemas na língua e me despertam mais uma vez nesta tarde mal-dormida com esse toque que seria gostoso se não fosse frieza metálica 122

eu engoliria o cavalo mesmo que ele fosse de pano mesmo que não fosse cavalo eu trocaria a minha língua por uma faca que despisse esses homens dos seus uniformes de superfícies homens que molham meu ânus com uma sede de 500 mil cactos minha cabeleira farta é impregnada por um cheiro de lençol que espera minha cama é um leito seco de um rio preenchido com o sabor mental do gozo desses homens que não puderam amar outros homens e transformaram suas testas e seus lábios em mais um pedaço de terra seca

***


*** é você menino da pele dourada insistindo em lamber meus espaços de caramelo em mordiscar minha-língua-lábios-açucarados entre o céu e a terra há qualquer colher de chá que nos serve de barco sem rumo nesse bálsamo à deriva nos teus dedos de violão, menino soo qualquer coisa entre a encenação e a descontinuidade escalo tua voz para despencar no teu cabelo de mola levando nossa língua a milperfurações celestes desalinho da insistência de escorrer por esta inexplicação luzente essa ferida que não para de lapidar o meu olhar sem fundo devolvendo tudo em carcaças esta dúvida do nosso poder de imantar o mundo sobre os travesseiros de manhãs deixando um rastro de saliva com os nossos braços

*** El Greco me escreve diz que posso tirar os alfinetes da ásia e atravessar os furinhos no mapa ao ponto de ver um bicho da seda tecer um rio uma margem que por trás das minhas unhas é o traço que renova minhas pálpebras aqui é a ásia e me comovo como se fosse abraçado por rochedos como se finalmente achasse um deus que me acariciasse no fim da chuva e atravessasse a rua para te perder do outro lado como se estivesse no rio em sampa ou em floripa e não me vissem num sinal cuspindo o fogo que antecede a mágica

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ou como se de repente tudo isso fosse costurado aqui ao lado e uma gueixa finalmente lesse meu futuro no fundo de uma xícara hoje é o dia em que converso com o silêncio que encolho e vejo o céu sendo sustentado por joelhos o dia em que me sirvo dos cadarços para descer a janela ou lars von trier me amarra nos galhos de alguma mãe protetora ou pasolini estraçalha meu corpo apara meu sangue e garante a próxima colheita viajo no lombo de uns morcegos imaginários parece que o retrato da família não acumula poeira mas acumula e por isso é hora de abrir meu peito para estes trens passarem dançando o mal-me-quer-bem-me-quer com meus brônquios e vejo a caricatura da ásia se fazendo na lua uma pena são jorge matar todos os dragões 124

*** bataille o tempo passa e eu me masturbo para além do mar *** P/ Victor H amo demais o meu inferno para querer que o visitem quando você está comigo sempre diz que é dia e o sol de metal nas nossas costas queima como gelo


mas é sempre noite, amigo e é sempre à noite que os mistérios usam escudos goze com as curiosidades que não se desfizeram não quero que o meu vir a ser se crave nas suas mãos e nos seus pés e lhe envolva numa estrutura tão exposta me perdoe se a crosta que o cobre se rompe com a minha respiração se me imponho como um colar de bocas mudas me perdoe por não poder me refazer em dúbios e me perdoe mais ainda por fazer com que tudo aumente a musculatura desse incêndio

*** pássaros a desvoar a noite é o que somos especialistas em construir um vulcão orvalhado ao redor da nossa caixa torácica como nova roupagem para a metralhadora em estado de graça que sublima nosso estado de sítio sim é por você é por nós é por mim e sobretudo por mim que rastejo entre os escombros com a última palavra bem presa aos dentes e talvez quando tudo acabar possam com ela reconstruir uma ponte

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ou talvez os meus ossos sim é por você é por nós é por mim e sobretudo por mim que recebo os cortes da pressa com notas de masoquismo nasci para passar adiante o último segundo desta bomba *** P/ Lu Hiroshi

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Você me escreve em meio ao plástico chinês estourando a bolha eclodindo do seu cômodo único de sumpaulo que é a terra onde os poetas se lavam com sabonete e pólvora que é a terra onde meus olhos ainda não podem vagar vulgares e meus olhos se queimam nesse escarcéu solar que é o teu silêncio no centro do mundo no centro de mim e o teu silêncio é um gato se adaptando às minhas entranhas um dia o gato tomará sua forma e você eclodirá de mim enquanto eu estiver atravessando uma faixa de pedestres no último instante

*** as orquestras escondidas nas pegadas são só para os meus ouvidos


desfiadores das salivas convulsivas deste tempo e de todas as bombas prestes a explodir como uma mulher da Pérsia transformo os fios do horror em recomeço em tapetes com paisagens desconhecidas para substituir a visão ultrapassada das janelas desenho o globo terrestre no chão da sala e dou várias voltas ao mundo me esfarelo para pagar a dívida: me deixarei um pouco onde meus pés tocarem escrevo palavras ocas que me prendem só pelo prazer de poder quebrá-las como se extinguisse a eternidade das pedras em pequenos blocos que furam o horizonte em casas que não me pertencem transcendo para sobreviver nos outros e não tenho medo de me matar um pouco para permanecer vivo de prolongar o corte a viagem de falhar por ter a coragem de me fazer aos pedaços

*** quando eu ficava triste porque o barulho do possante dessalinizava lágrimas – dizia olhando pelo retrovisor as pilhas de sal e tristeza que ficavam pelo caminho e quando voltávamos

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eu me sentava no paraíso depois dele ter plantado algodão nos bancos daquele carro aquele que poderia ser o automóvel verde do ginsberg mas era branco às vezes máquina do tempo o fusca 57 do meu avô ***

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Uma parede invisível. O tempo. Um senhor manco a colar cartazes nesse muro. Eu me desgrudando a amassar-me em busca de um chão. Não há chão. Plena queda. Bem que vovó falava da fragilidade do calendário. Os meses destacados facilmente. Não, não serão os meses que irão aparar-me ou me oferecer chão. Abra a boca, Yrto, e diga Ahhhh. Mar, vó, tá bom? Não estirei-lhe a língua para não cobrir a possibilidade de você pescar as palavras, mesmo sabendo da esterilidade da minha saliva. Estou caindo, vó. Resgato os seus ossos de um arquivo inexistente. Você se dissolvendo à medida que eu me dissolvo, à medida que caio. Que péssimo o arquivista-mor que nos circunda. Que deixa tudo terminar dentro da terra. Dentro da memória. Como você foi destacada facilmente. Como nós somos destacados facilmente. Agora vários peixes nadam no esboço das suas órbitas consumidas. Agora há alguém a encher as redes com crueldade. E é por isso que afundamos na superfície das águas. Engarrafados em misericórdia.

***


victor h azevedo

II. quanto que tá o o suco de caju? quanto que tá (então) o o pastel de forno? quanto (então) que tá o o café puro? (então) quanto que tá o o bombom? 129 quanto que tá o o picolé de tutti-frutti (então)? quanto que tá o o refrigerante de (então) laranja? quanto que tá o o (então) sanduíche natural? quanto que que tá o o preço? quanto que tá o preço do (então) (então) tá o (então) o (café puro) pastel de forno? (bombom) picolé de tutti-frutti? (suco de caju) sanduíche natural? [refrigerante de laranja (pastel de forno)] bombom? [picolé de tutti-frutti (sorvete de pistache)] café puro?


[bolo de fubá (cigarro)] suco de caju? {antídoto [para os dias (chuvosos)]} pastel de caju? {sonolência [furta- (cor)]} picolé de café? {pedagogia [das (pedras)]} sanduíche puro? bombom de café de picolé de caju de tutti-frutti puro de suco puro de refrigerante puro puro caju puro puro de cor de forno de cor de cigarro de café de cigarro de caju de pistache de sorvete de pedra de pedras de picolé de pastel de tutti-frutti de caju de fubá de sorvete de cigarro de picolé de cor de furta-cor de sanduíche de bombom de antídoto de para de para de para os dias pedras dias-pedras dias de puro suco de fubá de refrigerante de sanduíche de tutti-frutti de furta-frutti de tutti-cor de pastel de café de caju de picolé de cigarro de antídoto de forno de caju de antídoto de cigarro de forno de pedra de pedras de sorvete de bombom de pedagogia de tutti-frutti de pastel de laranja de sonolência de fubá de pastel de cigarro de pedagogia de refrigerante de 130 picolé de bolo de chuva de antídoto de café de sonolência de bolo de sonolência de café de antídoto de furta-forno de furta-dias de furta-cigarro de furta-furta-cor de dias de pastel de que sorvete de que pedagogia de que pedra de que pedras de que dias de que chuvosos de que picolé de que refrigerante de que laranja de que de que de que cigarro de que pistache de que café de que suco de que tutti-frutti de que bombom de que caju de que forno de que cor de que furta de que puro de que sonolência de que antdoto de que (então) o preço = os dias chuvosos de refrigerante = pastel de pedra sanduíche de laranja


= (bolo furta cor + suco de café) ÷ picolé de antídoto = cigarro de tutti-frutti × [bombom de pedagogia ( forno de sonolência²)³] = ca ju + fu bá × puro ÷ natu ral 131 = (então) *** yahtzee Jogo Yahtzee enquanto espero você terminar De explanar seus conselhos amorosos. Pergunto: Você acha mesmo que tudo que escrevo é sobre Amor? — Acho — Mas eu juro pra ti que nem perfume Eu tenho, me encontro com as pessoas, os objetos, Os lugares sem deixar cheiro por lá, juro pra ti que Tento ser esse animal inodoro — Mas tu tem um perfume. Tenho? — Tem — E eu cheiro a quê? — Tu tem esse cheiro De jacarandá, suor, persiana — É? — É. ***


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*** torquemada Descobri há semanas, pesquisando o preço a se pagar por uma serenata e sobre a constelação de nevos na minha epiderme, que o colégio que eu tanto temia estudar tem o nome do primeiro poeta a renunciar sua eternidade numa cadeira, hoje provavelmente já carcomida por cupins e topadas de pés desvairados. E desde de então eu venho buscando em dúzias de livros já sepultados, — alguns com dedicatórias furtadas outros com tiques nervosos entre cada página — imagens que não sejam fáceis para o desjejum. Procuro o retalho de um livro de mil novecentos e uns quebrados que me deixe feliz por ter nascido aqui nesse chão imaturo e não em Minas Gerais ou Taquaritinga. Tudo que descubro, porém, é esta retrato desbotado de ombros nebulosos e bigode meticulosamente aparado. E uma dúzia de relâmpagos pouco ortodoxos enfartando as senhoras e senhores de ceroulas plúmbeas e enferrujadas. Desencontro esse também o de escrever bilhetes suicidas toda noite de segunda-feira mas deixá-los engavetados confortavelmente sem dar nenhum beijo de despedida com estes lábios que tem um je ne sais quoi. ***

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11|12

(após ler alfonsina brión)

Meu avô geraldo morreu estrangulado pela própria úlcera. Apesar de ter cândido em seu nome tinha sido um homem intransitivo, obrigava os filhos a trabalhar garimpando algodão e talhando lenha e partilhando da hóstia, transfigurada em bolacha maria, a cada caminhada quilometricamente diária. 134

Os netos que ele amava, (eu não fui um deles) davam para contar nos dedos da mão de um avestruz. Isso porque eles o obedeciam sem pestanejar levando água e café quando ele pedia inutilizado pela mangueira na frente da casa que parecia enraizada nas aortas dele e pela cadeira de balanço na calçada na qual ficava boa parcela do dia espionando o movimento na avenida principal. Penso também na minha avó agora com alzheimer que talvez tenha que constantemente lembrar digo descobrir que ele morreu e que sempre vai se assombrar com o fato de nunca mais precisar esvaziar o penico ao lado da cama.


Escrevo isso porque sonhei ontem com a casa deles, provavelmente agora ainda mais habitada por ecos, e que nela um homem cantava num violão sobre alguém mitológico que costurava e remendava a roupa dos outros com fios de ouro. Mas eu não tenho saudade do meu avô. Nem do bigode de pistoleiro que ele deixava florescer, ou da bengala que não guardava nada de extraordinário. *** Somos pássaros extintos. Nosso nome científico não consta em livros de biologia muito menos nos calhamaços que sustentam os sonhos onívoros. Temos nossas penas tingidas de dilúvio, fermentadas de arrepio. E mesmo assim nosso ninho é rodeado pelo indefinido das espadas. A saliva das nossas asas limpam as gargantas dos solitários. As brasas que respingam do nosso pouso alimentam as pequenas santidades. Em dias movediços & adolescentes, ficamos pelas redondezas, mordiscando a orelha dos namorados. Bebericando desse sol sonífero. E não há jaula de dedos que vá nos capturar e nos colocar em exposição. ***

135


alô, quem é?

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eu ué


meditação (porque ayrton pediu)

Meu quarto é minha câmara de despressurização. Lá, me exilo do incêndio dos outros, largo meu casco de tartaruga e dedico-me à minha própria tempestade. E então fuzilo tinta negra nas penas dos pardais, trovoo trôpego as cores úmidas de um lençol - a cama é um barco, às pálpebras, a cadeira, uma bicicleta sem rodinhas e rabisco o nome dos meus futuros filhos na palma da mão. Um deus silvestre nasce, sempre sem avisar, na margem de um rio que cruza meu quarto e molha meus pés ansiosos com as águas desse abismo.

*** olhar para o céu azulíssimo e, sem saber porquê, lembrar de gosto do merthiolate. ***

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macondo p/ otávio os livros que você me enviou eu digo tem cheiro de tabaco minha mãe diz que tem cheiro de shopping center *** falsificação sobre um poema de um amigo a propósito das pegadas 138

p/ Ayrton Alves Ao espreguiçar dos semáforos, faço uma prece que traz em sua silhueta o Ciclone no nome e concentro os meus poros junto à cama para medicar as minhas placas tectônicas. Apalpo os seios do travesseiro E endereço minhas úlceras ao vento vizinho Que sempre vai maquinando à frente Que sempre alforria meu rosto desse azul. Pouco importa se um desengano junta-se as cordilheiras nas costas. Desafino todas às minhas ladainhas Mas dessa vez sem microfone e nem latitude O perigo é alguma divindade me reconhecer e fazer de mim um bibelô de profeta. ***


fulô

poetisa laudeada com espinhos marginais degenera o corpo com a insônia viagem infinda ouvidos apurados e língua à mostra tal serpente venenosa impiedosos açoites que lhe reabriram cicatrizes esconderam-lhe o seu brilho imperial dourado, azul, vermelho e preto formaram o carnaval dos seus gritos de batom protetor como beiço de vela apagada esqueceu-se do brim e seus trajes lindos manipularam o tempo para compreender o passado mas de corpo e alma é voraz o meu sangue latidos e cacarejos ameaçaram o encanto da minha voz voltem, vocês, aos seus afazeres horrendos e podres. *** poesia de abelha não-operária mas rainha de todas elas cria o doce mel do polén e fel que proporciona as pétalas colmeia casulo mistério ao homem que delas precisa para enganar a amarga saliva de fumo mas ledo engano, é de borracha o seu líquido voando andorinha esperta olhos de água feroz e felina sabota o orgulho do macho que príncipe encantado

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só sabe de birra mas, pobre coitado, perdeu o ditado que aceite ou cale, eu determino para nós, mulheres sensatas não, obrigada! criamos juízo. *** amor_in_suficiente

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na tua vez, chegas como quem não quer nada, dá uma analisada básica como se comparasse preços no supermercado, coça a barba, faz cálculos, conta nos dedos, faz cara de dúvida, dá uma volta e vai embora. Pseudo azia no peito coceira no couro cabeludo cara de desassossego receio prematuro congênito distanciamento indisponibilidade emocional cárcere de autocuidado fobia espiritual língua ferina venenosa perfeita para calar desafetos


repertório de narrativas pré-selecionadas audição alheia não é deserto vidas que doem agudas nos chakras parceria relegada ao esgoto sonâmbulo desviando-se de ciladas vampiros brincando de vivo-morto bolo de catarro na garganta estraçalhada salgadas lágrimas que recusam suas apenadas migalhas. 19/05/2016 *** Borderline Fica triste, escreve um poema. Fica feliz, sorri com vontade. Fica triste, escreve um conto. Fica feliz, limpa o quarto. Fica com raiva, destrói tudo. Fica triste, chora um pouco. Fica feliz, dança pop. Fica triste, ouve rock. Fica com raiva, se agride de fome. Fica feliz, come chocolate. Permanece feliz e canta alto. Fica triste, quer se matar. Fica feliz, quer o mar. Fica com raiva, se acha feia. Fica triste, sente saudade. Fica feliz, desenha um rosto. Fica triste, corta os pulsos. Fica feliz, quer ler. Fica com raiva, quer bater. Fica feliz, sente tesão. Fica triste, fuma maconha. Fica feliz, sente-se plena.

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Fica com raiva e corta a lombra. A raiva dilata-se em ódio. O restante do tempo permanece apática. Vítima do vazio crônico. De dias que nunca acabam. ***

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Incômodo soul ranzinza não me kahlo bato o pé no chão com força nego veementemente algo questiono duvido contraponho a lágrima não cai me desenquadro desencanto não soluço soluciono a injustiça se esvai resisto alegro-me supero sobrevivo sossego problematizo não desespero incomodo soul ***


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