o centro é a borda

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derivas redor

da

e

borda

rua

devaneios 24 de

ao maio

o centro



o bigode de Paulo Mendes da Rocha não é arquitetura adoraria

escrever sobre

como tudo isso

começou

mas

não sei

mais

A cidade é um campo de guerra, distopia para poucos. Cidades invisíveis, gente invisível, desejos soterrados. 300 rios soterrados. O urbanista de São Paulo é o capital. Nordestinos em São Paulo seremos sempre borda... Ser borda é ser esse tecido cujo corpo viral cria interstícios em cadeias hegemônicas. O crack será sempre menor. Eu me descobri como alguém capaz de ser tocado pelo simples fato de estar perdido. Na primeira deriva o contato não veio e isso me fez questionar. Derivar com o intuito de me perder e transformar isso em algo para ser visto e lido? Que se foda. Foi na segunda deriva que soube a resposta e ela é somente minha. Ruídos, desencontros, início contínuo. Processo-momento. Estar de corpo e mente no lugar. Quase um exercício meditativo. Reconectar. A cada proposição, novas camadas de significado. Dos significados, mais memórias. Investigar. Investir. Onde isso vai parar? O que há depois da borda? O abismo? Camadas mais profundas em meu olho. Cosmologias. O oráculo é essa rua suja. Aceite. Ria e solte a prisão. A cadeira fala aos ouvidos e o que se ouve é mar. Amar. Escreve. Estar sobre o mesmo teto mas não sobre o mesmo chão. O chão é meu e é só. Busca do que me cabe nessa teia complexa chamada São Paulo. Sermos nômades de nós mesmos. Surpreender-se em meio ao desgastado. Inspiração no concreto, no lixo, nas peles, na histeria coletiva, nos respiros possíveis. Corrupção. Sexualização. Qual o gozo da cidade? Descompasso a cada passo. Andar com entrega de corpo. Numa busca do ser, do estar e do pertencer... ou apenas percursos vazios? Somos todxs um só. Completamente sós. Em meio a tantos. Passantes. Amantes. Errantes. São Paulo. Beleza na feiura. Saber que no final da deriva nos encontraremos naquela sala. Âncora? 10 minutos. Quantas palavras cabem nesse tempo? Quantas são necessárias? Escrever é costura. Cura. Lugar onde nos cruzamos, este. Permanecemos. Rimos muito. Fizemos até dinheiro. Inesquecível. Tava ali, jogado em cada rabisco, rascunho e conversa. Terapêutico. Levei pra minha vida a deriva. Livre live vive só-lto só sã sou negro negras passos passantes fico findo lado dentro borda bordei bordado dei dei-me cantei olhei restei tratei parei pensei terra território ter não-ter ver dor adorno cidade. Texto coletivo escrito em 10 de novembro de 2017


24 de maio o centro de

São Paulo

e

como

arredores

oráculo

1. No começo não houve confiança. Era fácil entregar papel e não entregar memórias. Entre roupas vendidas, saladas de frutas e gelos, um grito por honestidade e um desejo de ter tido chances. "Sou uma fênix renascida". E isso diz tudo sobre mim. O ar cheirava a mexerica. 2. O amor, você não sai dele. De onde você é? Ela é essa falta. Um céu nublado, uma saída, essas flores brancas, um galho seco, a insegurança. Um chão molhado me move. 3. Presos ao chão. "Nós não anda armado". Iria na transversal? Pelas ruas, nos fios? 4. Acima do azul onde se esconde a nova casa, abaixo dos pés onde se caminha pisando sobre cinzas. 5. Honestidade para todos, respeito para todos, mas não me enxergam. Não me respeitam. Do prazer de chegar em casa e dormir a não ter onde dormir. Permanecer calmo e tranquilo e ter coragem para pedir comida. Eu te diria pra ter: respeito. 6. Uma mulher não digna de José de Alencar. Não houve português ou forasteiro que a domasse. O meu fazer é o meu prazer e o meu prazer é seguir o meu caminho. Foco e luta para a vida de todos, uma vida cheia de marcas. Viver todo dia na rua lembrando que não posso lembrar dos cinco motivos que estou aqui.

7. Pra onde ir? Por onde ir? Filmes com histórias imperdíveis. Várias pessoas passando contra a minha direção. Bêbado na praça. É sexta-feira.

8. Descampado de concreto. Nos degraus e nos bancos, pessoas repousam. Pausa. Um espaço para si. Momento.

9. Anhangabaú. Rio de mau espírito. Enterrado e concretado. Vergonha.


10. Liberdade. 11. Alguma coisa acontece no meu coração. 12. Aflição, direção, satisfação. Você é a Priscila? Alívio Purificação. 13. Pessoas perdidas. Natureza perdida. Natureza escondida (rios). 14. Vende-se tudo. Não quero comprar nada. 15. Tudo é lixo e belo. Roupas descartáveis. Pessoas descartáveis. Pessoas descartadas. 16. A runa da busca. Busca a autonomia das esferas, busca dentro de si, busca no outro, olha pra dentro de si e do outro e dispersa. A busca tem fim? 17. Amarelos. Brasil tocando. Braços cruzados, vidros, pichações, dança. Inércia e movimento. Sino dourado, bolsa dourada, Brasil dourado. 18. Verdes. Árvores. Área militar. Militares camuflados em bermudas. Encontro. Sorriso. Opa! Desculpa! 19. Vermelhos. Cheiros misturados. Tigres num casaco. EVITE FILAS. Senhora maquiada. Senhora maquiada pelas roupas. 20. A runa da responsabilidade. Responder ao outro e ao tempo. Peciência e resiliência. Seguir. Oráculo é, etimologicamente, a resposta dada por uma divindade a uma questão pessoal através de artes divinatórias. O termo oráculo também designa o intermediário humano consultado, que transmite a resposta e o local que tem reputação de distribuir a sabedoria oracular, que normalmente é considerado solo sagrado. O termo é igualmente atribuído a um objeto ou meio pelo qual alguém possa obter respostas para um esclarecimento maior.

Runas são letras características, usadas para escrever nas línguas germânicas da Europa do norte do o séc. II até o séc. XI. Estes caracteres têm sido encontrados em pedras, e em menor número em ossos e peças de madeira, assim como em pergaminhos e placas metálicas. Cada letra rúnica tem significado oracular e, se lida por iniciados, pode dar conselhos e revelar aspectos do passado, presente e futuro.

21. Última runa. Última é primeira. É dura. Se completa no início. Sobrepõe e relaxa. Sobre se põe. Relaxa.


22. Desigualdade social, poluição visual, algumas artes espalhadas nos muros e alguns trabalhadores. 23. O que está dentro do espaço corresponde ao sentido do espaço? A ocupação tem cunho propositório ao povo ou é um monumento para autoafirmação de alguém? 24. Qual o verdadeiro sentido do acúmulo e do vanglorio senão a perpetuação por séculos da imagem (fantasma) do ego? Um monumento destituido de várias funções não se perderá se houver histórias pra contar. 25. Saber identificar as formas. As contradições dela não diminuem quem sempre pede ajuda. 26. Runas de sexo na cidade. Qual o espaço do invisível numa cidade ? Qual o tempo do sonho e da inércia? Dentro da urbis. Tem pubis na urbis. Qual o sexo da cidade? Qual o desejo da cidade? 27. Gigantes habitam a cidade. A cidade é o desejo gigante. 28. Corpos demarcam territórios, o corpo sendo substituído pelos prédios. Corpo-prédio? 29. Ficções são vitais para se viver na urbis. 30. Lixo. Lixo? Um mundo inteiro descartado. História. Comida, coisas vestidas, lidas, segredos. Notícias. Vidas inscritas no que desce pelo ralo. 31. Dois se beijam contra uma parede. Olhos fechados. Os sons da 24 de maio como trilha sonora. Tempo expandido. Corpos expandidos em um beijo diante de olhares apressados demais.

32. Um homem passa com seu café num copo plástico. Engole, com o líquido escuro, tantos pensamentos. Ele escolherá os pensamentos que os levam à liberdade? Que desejos descem pela sua garganta com a cor negra do café?

33. Passam, passam, passam. Pressa. Pressa demais. Não há tempo pra nada. Não há tempo pra si. Não há tempo para o outro. Vida?




Futuro (do latim futuru) é o intervalo de tempo que se inicia após o presente e não tem um fim definido. Referente a algo que irá acontecer, o futuro é o estado utilizado na mecânica clássica para dizer algo que está por vir. É o que ainda não aconteceu. Já na mecânica quântica, não existe a figura do futuro, pois a mecânica quântica atua de forma atemporal.

Primitivo (latim primitivus) significa: mais antigo, primeiro. Inicial, original, primevo. Relativo à origem de algo ou aos seus primeiros momentos ou estados. Que não sofreu evolução. Que não usa as convenções sociais de boa educação; que não mostra delicadeza no trato. Relativo à primeira época da humanidade. Que ou quem vive em estado natural, geralmente sem uso da escrita nem de técnicas consideradas evoluídas.

*inspirados por Sou Fujimoto, pela New Babylon de Constant e pelo livro "O que é uma casa? de Raiça bomfim e Vânia Medeiros

Casa (do latim casa) é, no seu sentido mais comum, um conjunto de paredes construídas pelo ser humano cuja função é constituir um espaço de moradia para um indivíduo ou conjunto de indivíduos, de tal forma que eles estejam protegidos dos fenômenos naturais exteriores, além de servir de refúgio contra ataques de terceiros. Apesar de seu caráter artificial, originalmente o homem utilizou-se de formações naturais, como cavernas, para suprimir as demandas de uma residência.


galeria do galeria comercial vendem -se

cabelos

reggae

,

presidente

o encalço te encontro, te vejo subindo. eu desconforto, desajuste. você pressa, desassossego. no terceiro andar te perco, te busco, te encontro. nós ansiedade. você tira o casaco, as flores, o calor, agitação, pressa. carrega o casaco e com ele a preocupação, atende uma ligação. você diz que não. não. não pode? não posso me aproximar, seria estranho. não quer? não quero? você busca um lugar, tranquilo? parece não acreditar. eu desacredito. eu espero, eu me canso. você se agita, anda, busca. eu sigo. a conversa paro e observo a vitrine. venha, ela faz! hoje não posso. porque não? tenho compromisso, mas qual é o preço para colocar? essa 180. barato não? sim, esse é leve? não! esse é pesado , aquele é leve, importado! dá pra colocar mais de uma cor? sim, faz por 200. vocês estão sempre por aqui? aqui não, guaianases. vocês moram em guaianases? sim, é perto. vocês tem telefone para marcar. whatsapp. pode ser. ela pede para eu anotar meu número no celular dela, anoto e ela me manda um oi e talvez me oriente a mandar áudio ao invés de texto, não consigo entender se é isso. venha amanhã cedo. obrigada, eu aviso. a percepção estou aqui, mas não sou daqui. sinto em mim o deslocamento, uma sensação de estar, mas não pertencer. e não pertenço, sou estrangeira. homens parecem vaguear ou contemplar e seus olhares geram em mim desconforto. mulheres desempenham seus labores. especular ou sensorial? as vozes são altas cheias de energia, os cheiros, as imagens, os gestos, os comportamentos inspiram força, afirmação e resistência. CAXI

sobre o perseguido haiti? angola? senegal? nigéria? não sei! talvez outro, um outrora, dum outro, camiseta rosa, você vê pessoas a olhar-te, sem compreender-te, encosta-se à grade, sorri, bebe, a negra, de belos cachos, trouxe o lance, os pés, as pernas, o tênis, preto, balança, ritmo ao ritmo da cancíon, ele observa, com os braços cruzados, o horizonte, lá, abaixo, na galeria, […] se calam, se levantam, será que estão a me perceber? parece feliz, come e fala, fala muito, incansavelmente, sua voz alta me alegra, ao embalo dum som dançante, quem és ele? sinto vontade, muita, de descobrir-lhe, trocar, quero saber donde ele vem, qual o nome de sua mãe, quem[ns] ele lá deixou, o mistério também atrai! levanta-se, pertin, estás, preciso ir, me sinto, invasor, absurdamente, invasor, sobre o diálogo ele: da hora? eu: da hora! ele: se precisar de alguma coisa, tâmo aê, me chamo ricardo! eu: beleza, já é! ele: seja bem vindo à 24 de maio, a rua dos loucos [apontando para o chão]! eu: nós! sobre a galeria que lugar, o lugar, o tratamento está aqui, BICHO 1- Lea é nigeriana e está no Brasil há um ano. A convite de Sara, veio conhecer as diversas lojas que vendem cabelo na Galeria do reggae. Seu sonho sempre foi ter cabelos compridos. Quando era criança sua mãe não deixava porque dizia que dava muito trabalho. Quando adulta, dizia a si mesma que ter cabelos curtos era mais prático... Com 30 anos, 2 filhos, um marido machista (que não enxerga sua beleza) e amigas africanas vaidosas com as quais convive no Brasil, finalmente resolveu investir nela e realizar seu sonho. Na companhia de Sara que já colocou e tirou os diversos tipos de cabelos a venda, pesquisa nas lojas o modelo perfeito e que cabe no bolso. A última loja que entra é a de curioso nome "Cabelos Kaipiras". O modelo que mais gostou custa R$200, com serviço de colocação incluso. Olha, toca e resolve ir embora... Quem sabe mês que vem?


programa de deriva: SEGUIR alguém CONVERSAR com umx desconhecidx PERCEBER o espaço NARRAR a experiência

2- Ricardo, segurança - Por que aquelas 2 mulheres estavam brigando? - Por causa de cabelo. - Como assim? - Não sei direito. Elas entraram na galeria brigando... Acho que foi serviço mal feito... - Sempre tem briga aqui? - Não, é tranquilo. - Há quanto tempo trabalha aqui? - Dois meses. Aqui tem de tudo... cabelo, discos, lan house, restaurante... - Todos os andares são iguais? - Sim. Tudo parecido... Quer alugar uma loja? - Não, só conhecendo... - Vai comprar cabelo? - Num sei... parece que algumas negras ficam bravas com não-negras que adotam o tipo de penteado igual... Falam em apropriação cultural... Tenho medo de apanhar... rs - Aqui não tem isso. Vem todo tipo de mulher colocar cabelo... loira, morena... - Ah, vou pensar então... vou olhar os outros andares... Obrigada! - De nada! 3- O prédio tem estilo decadente, mas com muita vida, cor, cheiros, sons e olhares diferentes. Os homens jogam, fumam, bebem, comem... com as mãos. As mulheres vendem e cuidam de seus filhos. Há uma união entre os frequentadores... Estão em casa. Me olham com curiosidade, com enfrentamento. Me sinto segura no "campo de pesquisa" e isso faz com que não me sinta acuada. Em retorno, olho com curiosidade e enfrentamento também. Acho que isso me ajudou a conversar com várias pessoas... Me senti igual sendo diferente. Foi uma descoberta divertida! KEILA Conversa - Heda, conte a sua história? - Eu moro na região do Grajaú e possuía um salão de cabeleireiro até que comecei a ter depressão. Fiquei 8 meses em casa e era horrível, até que um dia uma amiga me chamou para trabalhar na Galeria no reggae e estou firme e forte até hoje. Atualmente vendo trança aqui na galeria. - O que acha daqui? - Da galeria ou do centro? - De tudo em um modo geral? - Eu gosto do centro, se eu pudesse morava aqui, mas pagar R$ 1.000 de aluguel e muitas vezes fora o condomínio não dá.

Se você ver, todos me conhecem e eu conheço todos. Aqui é uma extensão da minha casa, eu me divirto, converso com todos e faço o meu ganha-pão. - Espera continuar aqui por mais um tempo? - Eu espero um dia voltar com o meu salão e sair daqui. - Por que? - Todo os dias eu fico brigando com essas africanas. Elas vem dos países delas e acham que sabem mais que nós. Elas querem dominar tudo. Eu gosto daqui, mas as pessoas são chatas. Eu preciso de R$ 2.000 pra abrir o meu salão e só vou sair quando eu consegui juntar o meu dinheiro. Eu já tô boa de novo e quero continuar a minha vida. Galeria Todo espaço quando ocupado cria uma vida única, o que não torna a galeria um caso diferente. É composto e atraído por diversidades, tendo como elementos básicos a crença, a alimentação, origens e diálogos em diferentes línguas e dialetos, além do estilo e da confraternização. Para nós que nunca estamos naquele lugar, é como se tivéssemos em um território fora de nossa cidade, mas para outros é só mais um dia em um lugar além da galeria, em olhares de pessoas distraídas mas que só se cruzam entre velhos conhecidos, onde as mulheres trabalham e os homens só ficam entre si bebendo e papeando, como se esses elementos fossem extensões de seu mundo particular ou mesmo necessários para se manterem vivos de alguma forma. MARIANA Nascemos no centro Um centro ancestral Partilhado por toda a espécie humana lugar que todos um dia habitaram e que nos mantêm na continuidade do que somos Centro materno Centro Selvagem Natural Real Animal E mesmo sendo centro mesmo nascendo centro também somos borda. . Nos fazem borda daquilo que não somos e os fazemos borda daquilo que não nos são. O outro habita a nossa borda assim como a habitamos para o outro. Ao mesmo passo que O olhar do não-eu me acalenta e me corrompe Me distingue e me aproxima.


É vendo o outro e sendo olhado por ele que vou constituindo aquilo que sou e o que também não me és. Mergulhado na imensidão sou navegante de ilhas que não minhas Não tentando fazer morada em territórios que não pertenço E sim deixando água de lastro que carrego e trazendo em seu lugar suas areias conchas ouros e especiarias. Estrangeiro em minha própria pátria me faço na hibridez e hibridizo essa teia chamada vida. Desconhecido nesse mundo onde nascemos um dia voltarei para o centro de onde viemos. TCHÔ Sobre a perseguida Atenta para onde vai e foi. Dona. Dona da Casa Blanca, ela vende cabelo. O negócio vai tranquilo e entre uma ajeitada no cabelo em frente aos espelhos e um momento de observar o público, seu pensamento encontra-se em casa. Em casa pois essa é sua rotina e aqui parece conviver uma grande família. A família dela não está, porém. Indo e vindo, sempre vendendo cabelos, os cabelos de seu marido começam a cair. O cabelo de sua filha única, longo tal qual a distância que as separa. Dona ainda não sabe, e ainda que não aprove seu comportamento ultimamente, sabe que a distância está ligada a um segredo ainda não revelado, um por vir. Dona. Conversa I: Belli Roots - Opa! E aí, já conhece a nossa loja? - Não, ainda não. - Tá querendo dar uma olhada? Nós somos a loja do reggae, temos seda, dichavador... - Ah... curti esses bongs, quanto que tá saindo? - Ih... vai de vinte a quinhentos... - Pode crê... - Quer entrar dar uma olhada? somos a loja oficial do reggae... - Mas como assim "loja oficial do reggae"? - A gente promove shows, recebe artistas... por exemplo esses caras aqui ó - direto da Jamaica, dizia o cartaz. - Legal... Você trabalha aqui faz tempo? - Pô, sou um dos funcionários mais antigos aqui da loja... Tô aqui há seis, sete anos. - Gosta? - Pô, aqui é a minha casa, né? Conversa II: Klacksmansk - Ei, você aí! - Eu? - É! Vem cá! - Opa! E aí, tudo bem? - Bem. Tá procurando alguma coisa? - Não, tô aqui observando... primeira vez que entro na galeria.

- Ah, é que tô vendo você aí, andando de um lado para o outro... Tá sozinho? - Não, tem mais gente aqui, viemos do Sesc. - Como é o seu nome? - Rafael, e o seu? - Klacksmansk. - Como? - Klacksmansk. - Ah... de onde o senhor vem? - Venho da África, sou africano. - De que país? - Nigéria... aqui tem de tudo, angolano, negeriano, gente do Congo. Percepções Escrevo e ando com a mente. Há muito que se ver, muito que se ouvir. Estas histórias não são contadas diariamente. E tem história. Um caminhar, um desbravar: as pessoas estão aqui para resolver seus problemas e resolvem. Se a escada não te leva pra cima (ou para baixo) sem esforço, escalá-la-emo-nos. O divertimento não se separa do trabalho aqui, e o prédio segue resistindo. RAFAEL Me sinto estrangeiro. Que país é este? Sou minoria aqui. Olhares desconfiados. Cheiro de fritura, cheiro de erva. Tranças, tingimento. Cabelo natural. Estica, puxa, colore, enrola. Cabelos presos na escada rolante. Celestino Pereira, 61 | amolador Seu Celestino trabalha na Galeria há 43 anos. Mora em Guarulhos. Trabalhava ele e o dono, mas atualmente o dono não vai mais para a loja. Passa os dias na loja, de segunda à sexta, das 8h às 17h. Não abrem aos sábados. Ainda não conheceu o Sesc 24 de Maio, pois faz um intervalo com tempo só para o almoço. Tem um celular simples, sem whatsapp. Não usa muito, "não tem paciência". Acha que as pessoas hoje em dia não fazem outra coisa, no ônibus ou metrô, todo mundo em seus aparelhos gesticula, imitando com os dedos as pessoas teclando sem parar. No dia 9 de novembro vai trabalhar só até as 10h e depois pegar um ônibus para fazer um exame médico; reclama da distância onde realizará o exame mas diz que depois retorna para a Galeria. Disse que a Galeria já foi muito melhor, mas de uns tempos para cá piorou. Das lojas de discos, sobraram poucas. Um dos donos de uma delas, foi dono de seis lojas nos anos 90. A tabela de preços para amolar uma tesoura é definida de acordo com o número. "O serviço é de ponta", desmonta-se a tesoura, afia-se, etc. Dou minha tesoura para ele avaliar. Ele me alerta para o risco de levar a tesoura solta na bolsa e após avaliar me devolve embrulhada para eu guardar. Prometi retornar a semana que vem com minha tesoura n. 07 para o Seu Celestino afiar. WLAD


Paquistão Paquistanês pergunta o que os homens estão fazendo vestidos de mulher com bebidas na mão, e por que há mais homens que mulheres. Falei que no Brasil e no carnaval os homens têm esse costume de se travestirem. Satanismo Converso com Geovane, 28 anos. Toca um violão na ONG "É de lei" para pessoas dependente químicas, frágeis socialmente. Ele toca músicas com mensagens de Jah. Pergunto se ele segue Jah, ele fala que não tem religião, que não acredita em Deus e que é satanista, mas também não cultua o diabo. Na parede da ONG lê-se a uma placa com a inscrição "Não julgue, apoie". Amendoins Me sinto transportado para outro país, dentro da Galeria do reggae. Cheiro de comida bem temperada, inúmeras lojas de cabelo, implantes capilares, produtos para alisamento, peixes enormes fritos, pastéis em enormes bacias e amendoins dentro de garrafas de água mineral vazias. Vi várias pessoas com essas garrafas cheias de amendoim sem casca. MARCELO Perseguido Em ritmo acelerado entrou um moço de camiseta branca, shorts jeans e tênis. Ele deu uma volta rápida e encontra com um amigo ao pé da escada, vejo que eles não são brasileiros e começam a subir. Começo a segui-los. Assim que eles chegam ao primeiro andar eles começam a descer rapidamente. Eles saem pela rua, entram na Galeria do rock. A galeria estava mais cheia do que o normal, tornou o exercício ainda mais desafiador. Por receio de perdê-lo, na escada rolante eu fico mais próxima... Acredito que ele percebeu a minha presença e “coincidência” de estar no mesmo lugar que ele. Tento disfarçar o máximo possível, mas fica claro que eu tenho que ficar mais distante. No segundo andar eu os perdi, dei voltas procurando eles. Quando eu os encontrei, eles haviam acabado de sair de uma loja. No terceiro andar eu os perdi de novo... Procurei, sem sucesso. Desci para o segundo andar e quando ia desistir, eu os vi novamente! O amigo do meu perseguido estava tirando fotos dele na galeria, uma lembrança da passagem (relâmpago) por lá e logo se foram. Eu voltei para a Galeria do reggae... Conversa Em um pequeno corredor à esquerda, um restaurante de banner “african food”. Ao entrar, fui recebida por um homem negro muito sorridente. O nigeriano com orgulho e sotaque forte, me mostrou na gôndola do self service o que eles ofereciam – banana da terra frita, feijão branco, arroz, molho de tomate apimentado, frango cozido e costela cozida – um p.f. por 15 reais. Quando eu estava para sentar, eu perguntei se passava cartão, já que não ando com dinheiro. Com desânimo me disse que não. - Poxa, infelizmente fica para a próxima...

Já de saída, ele uma mulher que estava no restaurante começam a discutir em seu idioma. No fim, a ela ficou insatisfeita, mas o homem continuou gentil e estendeu os braços me oferecendo uma mesa: "Senta em uma cadeira, sinta-se em casa!" Fiquei sem entender, reafirmei que não tinha dinheiro sacado. - Sem problemas, tudo bem! Vou te dar um pouco para experimentar. Quando chegou o meu prato, estava bem servido, com um pouco de tudo que ele me apresentou. A comida estava saborosa e bem temperada. Enquanto comia, reparei mais no ambiente, a música de fundo, a grande rotatividade de pessoas e o que eles comiam Fufu. Satisfeita, levantei perguntando um meio de pagar. - Não precisa pagar, está tudo bem. Era só para você experimentar. Expliquei que fui muito bem servida e que não achava justo, mas ele foi irredutível. Agradeci muito, agradeci a todos os presentes. Pra mim, esse ato elevou a comida muito além do seu valor monetário e de experiência gastronômica. Uma sensação boa de ter sido tratada com gentileza, de ter alimentado também o espirito humano. CAMILA Na escada rolante, avistei um senhor casado, proprietário na galeria. No 3º andar, me distraí e perdi-o de vista. A conversa mais longa que tive foi com o Wlad, que encontrava a todo momento pelos corredores. Alguns vendedores tentaram me convencer a entrar em suas lojas para conhecer seus produtos. Não resisti à camiseta do gatinho de olhos esbugalhados. Curiosa para conhecer o outro lado da janela do Sesc, na galeria muito ruidosa, lotada de gente, que nem estava tão cheia, mas estava ruidosa! Imaginei tanta coisa: comidas diferentes, histórias da terra natal, esperanças na nova morada. Em minha primeira visita, prestei atenção no comércio: CDs, roupas, ervas, serviços, torcida de futebol, ligações internacionais. Cuidados com os cabelos: alisamento, hidratação, tratamento, alongamento, cortes. Produtos para cabelos. Perucas de cabelos naturais e sintéticos. Cabelos loiros, morenos, ruivos. Cabelos cacheados, lisos, ondulados. Cabelos curtos, médios, longos. Cabelos! Notei também que as mulheres trabalhavam e os homens estavam reunidos se alimentando, bebendo e conversando. O que não me surpreendeu é que queremos o mesmo da vida: trabalhar, se cuidar, se divertir, estar rodeados de parentes e amigos. Estar em paz pra ser feliz! CINTHIA


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Dinheiro é o meio usado na troca de bens, na forma de moedas ou notas (cédulas) para aquisição de objetos, serviços, força de trabalho ou nas demais transações financeiras, emitido e controlado pelo governo de cada país, que é o único que tem essa atribuição. O dinheiro em si é um bem escasso. Muitos itens podem ser usados como dinheiro, desde metais e conchas raras até cigarros ou coisas totalmente artificiais como notas bancárias. Podem substituir o dinheiro governamental: cupons, passes, recibos, cheques, vales, notas comerciais entre outros. Na sociedade ocidental moderna o dinheiro é essencialmente um símbolo – uma abstração. Atualmente as notas são o tipo mais comum de dinheiro utilizado.


Saimos em deriva pelo centro pedindo dinheiro a comerciantes, camelôs e pedestres para a impressão desta publicação. Andada descontínua, sem rumo, performática. Disritimia no cotiano apressado do centro. Contato direto e nãoburocratizado do corpo, sem hieraquizar os passantes. Evocamos um corpo de borda. Essa ação é produto da construção de afeto que se deu durante os nossos encontros. Da nossa vontade de criar e andar juntos. Marcelo trouxe uma caixa de som com microfone em forma de urso (Dj Urso) e uma polaroid. Bolamos algumas "promoções": doações de R$ 5 ganhariam o nome impresso; doações de R$50 ganhariam, além do nome, uma foto polaroid do apoiador, que seria publicada; doações em qualquer valor poderiam cantar uma música no Dj Urso. Conseguimos R$ 197,55 + um pacote de suco Tang de maracujá.




coordenação artística e edição Vânia Medeiros artistas Ana Caxi Camila Marchiori Cinthia Moriyama Gabriel Bicho Guilherme de Sousa Kauany Maria Keila Okubo Marcelo Gandhi Mariana Ferreira de Castro Tchô Rodrigues Rafael Brasil Vinicius Oliveira Wlad Pieroni participação Margareth Dj Urso Impressão Cinelândia Esta publicação reúne trabalhos feitos durante O centro é a borda - ateliê temporário de derivas urbanas e experimentos gráficos, coordenado pela artista Vânia Medeiros, que aconteceu no Sesc 24 de maio entre 15/09 e 24/11 de 2017. Para impressão da tiragem, recebemos apoio financeiro dos seguintes comerciantes, camelôs, trabalhadores e passantes do centro: Alessandra Guia, Amauri, Restaurante Apfel, Brigadeiro Gourmet Emunah, Carlos Batalha, Eduardo Ferroni, Fernando Campos, Guilherme Barros, Joelma Dantas, Leonardo Fabri, Magali Rossi, Mariana Mendonça, Martin da banca de jornal Dom José de Barros, Paulo Genestreti, Renata Helena Moura, Tapera Taperá e Wellington Silva. Os textos dos verbetes oráculo, runas, casa, futuro, primitivo e dinheiro são adaptações de verbetes da wikipédia e do dicionário Priberam. “Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons CC BY-NC 4.0. Para ver uma cópia da licença, visite https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/."

Número ISBN: 978-85-913482-3-7

Tiragem única de 200 exemplares




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