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MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA APLICADAS A PRODUÇÃO DE SOFTWARE: EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA NA GRADUAÇÃO/PÓS GRADUAÇÃO UNIFLU-FDC, PARA PRODUÇÃO DE TEXTO ACADÊMICOCIENTÍFICO. Amaro Ribeiro de Oliveira∗ Auner Pereira Carneiro∗ RESUMO Devido às inúmeras dificuldades observadas na aquisição, manuseio e adequação de dados, o que inclui os meios para a produção de texto acadêmico-científico, o projeto visa a elaboração de ferramentas tecnológicas que facilitem, viabilizem a produção desses trabalhos, tentando suprir as lacunas deixadas pela deficiência nos conhecimentos básicos de informática, metodologia e linguagem científica adequada. Também, visa ampliar a disponibilidade de acesso a equipamentos, dados e meios gerada pela manipulação de mercado, inibindo a produção de trabalhos acadêmicos. O projeto se orienta em contribuir para o desenvolvimento da ética e das atitudes científicas, evitando a mediocridade do reprodutivismo não científico.

PALAVRAS-CHAVE FERRAMENTAS TECNOLÓGICAS. DEFICIÊNCIA NOS CONHECIMENTOS BÁSICOS DE INFORMÁTICA. DESPREPARO EM INFORMAÇÕES TÉCNICAS DE BIBLIOTECONOMIA E DO IDIOMA COM REDAÇÃO CIENTÍFICA. ABSTRACT Had to the innumerable difficulties observed in the acquisition, manuscript and adequacy of data, what it includes the half ones for the production of academic-scientific text, the project it aims at the elaboration of technological tools that facilitate, make possible the production of these works, trying to supply the gaps left for the deficiency in the basic

knowledge of computer science, methodology and adjusted scientific language. Also, it Graduando do Curso de Direito, pesquisador no grupo de pesquisa Desenvolvimento Municipal UNIFLU – FDC. ∗ Prof. Dr. Coordenador do grupo de pesquisa de Desenvolvimento Municipal e Professor da disciplina de Metodologia e Técnicas de Pesquisa – LATO SENSU e Mestrado .UNIFLU – FDC.

Fonte: Projeto de Pesquisa – Mestrado. Direito e Cientificidade. Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Municipal. UNIFLU-FDC. 2000/2007 993


aims at to extend the access availability the equipment, data and ways generated by the manipulation of market, inhibiting the production of academic works. The project if guides in contributing for the development of the ethics and the scientific attitudes, preventing the mediocrity of the not scientific reprodutivismo. KEY-WORD TECHNOLOGICAL TOOLS. DEFICIENCY IN THE BASIC KNOWLEDGE OF COMPUTER SCIENCE. UNPREPAREDNESS IN INFORMATION TECHNIQUES OF BIBLIOTECONOMIA AND THE LANGUAGE WITH SCIENTIFIC WRITING.

INTRODUÇÃO Objetiva-se elaborar ferramentas automatizadas de informática, que contenham informações de metodologia e formatação facilitando sobremaneira uma redação científica dentro dos padrões ABNT de produção de texto acadêmico-científico. As novas tecnologias, os meios dispostos pela mídia informatizada, devem trabalhar de modo integrado compilando dados e auxiliando a produção do conhecimento. É inadmissível a manutenção de paradigmas e paradoxos que vedem a eficácia da produção de conhecimento realizado por estes meios. Os avanços tecnológicos, cuja finalidade precípua é minimizar o trabalho humano, maximizando resultados, nem sempre são difundidos, em sentido lato, portanto, apenas uma pequena parcela da sociedade tira proveito dessas facilidades. Observa-se que a tecnologia aplicada é muito cara, obviamente sob o ponto de vista geral. Somando-se a isso temos vários interesses em jogo, posto que são raros aqueles que se voltam ao desenvolvimento social. Esse desinteresse social impede o investimento em conhecimento e tecnologia. Porém, é fato que, o conhecimento e a tecnologia aplicada são partes de um caminho para uma sociedade mais equilibrada, mais justa, portanto muito mais feliz, por razões óbvias.

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CAPÍTULO I – A PRODUÇÃO DE TRABALHOS CIENTIFICOS A carência de ferramentas tecnológicas que incentivem a produção da pesquisa científica é muito grande. Também é verdade que a falta de conhecimento em informática, associado à carestia dos equipamentos e softwares são elementos impeditivos à produção de trabalhos científicos. Verifica-se que não há disponibilidade de softwares e hardwares alocados à comunidade acadêmica e mesmo aos veteranos. Uma significativa perda, pois, a velocidade de decisões e da própria tramitação do conhecimento aplicado não é célere o suficiente para se tornar solução para os problemas da vida moderna. Objetivando suprir parte dessa lacuna, pretende-se com essa iniciativa, ainda muito modesta, incentivar a produção de trabalhos acadêmico-científicos. Quiçá um dia seja possível contar com um enorme banco de dados, fonte de consulta para a produção de conhecimento científico. O trabalho é restrito, ao uso individual, porém levou-se em conta as melhores ofertas de softwares e a disponibilidade dos mesmos para a maioria dos usuários, com o menor custo, buscando-se o melhor custo x benefício, portanto ele vem baseado na plataforma Windows, utilizando o pacote Microsoft Office. Dentro do Office é identificado o editor de texto Word, que com a devida inserção de linhas de código em Visual Basic, ganha funções como automatizar algumas tarefas, por exemplo: a geração de folhas padrão de um trabalho acadêmico (capa, folha de rosto, folha de aprovação etc), a geração de referências (as mais comuns pelo menos), notas de rodapé e por último, tudo formatado conforme as normas ABNT pertinentes. Para realizar o fichamento, utiliza-se um banco de dados em Access. A vantagem da utilização de um banco de dados é o resgate das informações inseridas no mesmo. Pode-se dessa forma interagir com vários filtros disponíveis e sacar do aplicativo as informações de nosso interesse. É possível fichar toda uma biblioteca na sua diversidade. Dentro desse mesmo banco de dados temos um módulo para estruturar os nossos projetos de pesquisa, é a nossa matriz analítica. Os aplicativos são compatíveis entre si podendo os dados serem transportados de um para o outro, facilitando a composição do trabalho final.

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CAPÍTULO II – O Projeto em Execução: Orientação por Infovia nas atividades educativas através de Equipes Interativas “Online”. 2.1 - As atividades técnicas de levantamentos de dados através de leituras orientadas são registradas de forma simultânea com fichamentos de coletas de dados Manual e no Banco de Dados Informatizado. Exemplo de Fichas: Procedimentos Bibliográficos e Documental Fig. Nº 01 – Fichas de coleta de dados - modelos

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2.2 – Aplicativos para aplicação de trabalhos técnico-científicos para a produção do conhecimento na universidade. Exemplos: Acesso ao Aplicativo Fig. Nº 02 - Software

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2.3 – Etapas e Fases da orientação científica aos trabalhos de Monografia, Dissertação e Tese Fig. Nº 03 – Esquema de Desenvolvimento Operacional

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2.4 – Metodologia – Métodos e Técnicas de investigação sócio-jurídica – históricocrítica. Enfoque educativo de reconstrução Social. Fig. Nº 04 – Metodologia

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2.5 – Sumário: Estrutura básica da produção textual do projeto de investigação sóciojurídica Fig. Nº 05 – Estrutura

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2.6 – Sistema de Informações: Fluxo lógico Fig. Nº 06 – Fluxo

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2.7 – Referências do Projeto Fig. Nº 07 – Leitura Básica

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A finalidade maior desse trabalho seria disponibilizar aos pesquisadores, ferramentas necessárias para que ele se atenha à produção do trabalho em si, não se preocupando com detalhes técnicos formais do texto (formatação). Além da inserção dos módulos automatizados através de linguagem de programação, os aplicativos em foco, permitem opções e outras orientações facilitando, reduzindo custos e tempo. Busca-se, enfim, reduzir ao máximo a tarefa de elaboração de um trabalho acadêmico-científico, porém ao pesquisador resta o sopro da vida, o elemento primordial personalíssimo na produção do conhecimento. Nas expressões da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade como características desta passagem tecnológica no século XXI.

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REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. ABNT NBR 6032. Abreviação de títulos de periódicos e publicações seriadas. Agosto de 1989. _______________. ABNT NBR 6033. Ordem alfabética. Agosto de 1989. _______________. ABNT NBR 6034. Preparação de índice de publicações. Agosto de 1989. _______________. ABNT NBR 10719. Apresentação de relatórios técnico-científicos. Agosto de 1989. _______________. ABNT NBR 12225. Títulos de Lombada. Abril de 1992. ______________. ABNT NBR 6023. Informação e documentação – referências – elaboração. Agosto de 2002. _______________. ABNT NBR 10520. Informação e documentação – citações em documentos – apresentação. Agosto de 2002. _______________. ABNT NBR 14724. Informação e documentação – trabalhos acadêmicos – apresentação. Agosto de 2002. ______________. ABNT NBR 6024. Informação e documentação – numeração progressiva das seções de um documento escrito – apresentação. Maio de 2003. ______________. ABNT NBR 6027. Informação e documentação – sumário – apresentação. Maio de 2003. _______________. ABNT NBR 6028. Informação e documentação – resumo – apresentação. Novembro de 2003. ADEODATO, João Maurício. Bases para uma Metodologia da Pesquisa em Direito. In Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. São Bernardo do Campo : FDSBC, 2001. ALVES, A. S.; GEBRAEL A. G. F.; PENTEADO, A. C. P. A dificuldade de adaptação à

utilização

da

informática.

Disponível

em:

<http://www.sites.uol.com.br/santin/trabalhos/dificuldade.htm, 1998. AZEVEDO, N. S. N. Proposta de intervenção nas representações sociais de professores: possibilidade ou ilusão?

Jornada Internacional sobre representações Sociais:

teorias e campos de aplicação. BATTRO, A. M.; DENHAM, P. J. La educación digital. Buenos Aires: Emecé, 1997.

Fonte: Projeto de Pesquisa – Mestrado. Direito e Cientificidade. Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Municipal. UNIFLU-FDC. 2000/2007 1004


CLUNIE, G. E. T.; CAMPOS, G. H. B.; ROCHA, A. R. C. Ambientes de aprendizagem e

hipertecnologias:

uma

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promissora.

Relatório

Técnico,

COPPE/SISTEMAS/UFRJ, maio de 1996. FORQUIN, J. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. FRANCO, M. A. Ensaio sobre as tecnologias digitais da inteligência. São Paulo: Papiros, 1997. HARCKBART, S. Integrating web-based learning activities into school curriculums. Educational Technology, New Jersey, v. 37, n. 3, p. 59-66, 1997. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de Metodologia Científica. 4ª ed., São Paulo : Atlas, 2001. LAZLO, A.; CASTRO, K. Technology and values: interactive learning environments for future generations. Educational Technology, New Jersey, v. 35, n. 2, p. 7-13, 1995. LEITE, L. S.; SILVA, C. M. T. A educação a distância capacitando professores: em busca

de

novos

espaços

para

a

aprendizagem.

Disponível

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http://www.cfch.ufrj.br/sead/leite.html. Acesso em: ago. 1999. MADDUX, C. D. The internet: educational prospects and problems.

Educacional

Technology, New Jersey, v. 34, n. 9, p. 37-42, 1994. MONTEIRO, Gilson. Guia para a elaboração de projetos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. São Paulo : Edicon, 1998.SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo : Nobel, 1988. MORAN, J. M. A internet no ensino de comunicação.

Trabalho apresentado no

Intercom’97. Santos, 1997 a.

Fonte: Projeto de Pesquisa – Mestrado. Direito e Cientificidade. Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Municipal. UNIFLU-FDC. 2000/2007 1005


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DIREITO E CIENTIFICIDADE: EXPERIÊNCIA

CIENTÍFICA APLICADA NA UNIFLU-FDC, AOS

CONTEXTOS APRENDENTES E INTERATIVOS DE

AUTO-REALIZAÇÃO NOS CURSOS DE

GRADUAÇÃO, LATO-SENSU E MESTRADO.

TECNOLOGIAS SÓCIO-EDUCATIVAS POR

INFOVIA

Auner Pereira Carneiro'

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Práticas Tecnológicas Sócio-Educativas Inovadoras. 3. Metodologia e Software Aplicativo. 3.1 - UNIFLU - Faculdade de Direito de Campo~ ­ Estrutura de Acesso ao Banco de Dados dos contextos aprendentes interativos de auto-realização. 3.2 - UNIFLU ­ Faculdade de Direito de Campos - Aplicativos de acesso: Login­ E-mail: Mestrad020061 sip e senha que é disponibilizada ao aluno regularmente inscrito. 3.3 - UNIFLU - Faculdade de Direito de Campos - webmail- Matriz do Banco de Dados para utilização por infovia disponibilizados em todos os cursos de Pós-Graduação como quadro de referência do processo de Educação Continuada. 4. Projeto de Desenvolvimento Interdisciplinar nos Contextos aprendentes de auto-realização. Considerações Finais. Referências. RESUMO: Devido às inúmeras dificuldades observadas no manuseio e obtenção de dados e meios para a produção de texto acadêmico-científico, o projeto visa a elaboração de ferramentas tecnológicas que facilitem e viabilizem a produção de trabalhos científicos, suprindo, assim, as lacunas deixadas pela deficiência nos conhecimentos básicos de informática, • Doutor em Ciências pela USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa Institucional de Desenvolvimento Municipal. Professor do Mestrado da FDC. I Disponível em www.fdc.br Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, NQ 10 - Junho de 2007


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biblioteconomia, linguagem científica e pela carestia de dados e meios de informação gerada pela manipulação de mercado, inibindo a execução de trabalhos acadêmicos. O projeto se orienta em contribuir para o desenvolvimento da ética e das atitudes científicas, evitando a mediocridade do reprodutivismo não científico. Palavras-chave: Ferramentas tecnológicas; Deficiência nos conhecimentos básicos de informática; Despreparo em informações técnicas de biblioteconomia e do idioma com redação científica; Carestia; Ética; Atitudes Científicas. ABSTRACT: Due to the countless difficulties observed in the dandling and obtaining of data end means for the produc­ tion of academic-scientific text, the project seeks elaboration of technological tools that you/they facilitate and make possible the production of scientific works, supplying, Iike this, the gaps left by the deficiency in the basic knowledge of computer science, biblioteconomia, scientific language and for the shortage of the data and means of information generated by the market manipu­ lation, inhibiting the execution of academic words. The project is guided in contributing for the development of the ethics and of the scientific attitudes, avoiding the mediocrity of the reproduc­ tion no scientific. Key-words: Technological tools; Deficiency in the ba­ sic knowledge of computer science; Unprepared ness in techni­ cal information of biblioteconomia and of the language with sci­ entific composition; Shortage; Ethical; Scientific attitudes.


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1. Introdução Neste artigo são apresentadas as práticas tecnológicas sócio-educativas jurídicas e inovadoras no projeto didático, realizado no curso de Direito, a partir da implantação do programa de mestrado, na Faculdade de Direito de Campos, ora demonstrado, sobre a interdisciplinaridade da informação e do conhecimento que passam a interagir no desenvolvimento de novas situações de ensino e de aprendizagem, nas quais, processos de reconstrução sócio-críticos, revelam o que já está presente na experiência dos alunos e professores em suas estruturas cognitivas memoriais. Nesse processo, foram realizadas atividades, cursos de graduação e pós-graduação lato-sensu e no mestrado, com diferentes expressões da cientificidade no século XXI, experiências no magistério, através de enfoques Pedagógicos sócio-histórico-crítico. As reflexões sobre a ciência em direito e principalmente, ações didáticas foram feitas com relação aos equívocos hermenêuticas e as inadequações de paradigmas dominadores em cujas metodologias são aplicadas e divulgadas, respostas reprodutivas de um ordenamento jurídico verdadeiro. A primeira observação foi discutir a questão do direito e cientificidade, como apreensão intelectual do objeto conhecido e arquivado do sujeito cognoscente, passível de ascender a níveis de informação sistematizada para o desenvolvimento de uma inteligência jurídica vinculada a métodos e técnicas de pesquisa, concretizada em uma proposta - rastreamento teórico-temática - na consolidação de uma matriz insumo-produto para a elaboração de subsídios na reconstrução de dados, que são apresentadas no projeto de pesquisa. Em segundo lugar, foram organizadas as discussões sobre os aspectos ontológicos, epistemológicos, gnosiológicos e hermenêuticos das informações globalizadas em eventos de Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, Ng 10 - Junho de 2007


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educação continuada, tais como: Seminários, Painéis, Simpósios. A seguir, procurou-se identificar as tecnologias sócio-educativas jurídicas na produção do conhecimento cientifico no contexto universitário. As tendências no processo de produção de textos acadêmicos se tomam vigilantes para a configuração das normas, padrões e critérios da A.B.N.T..

2. Práticas Tecnológicas Sócio-Educativas Inovadoras Para que fosse desenvolvido este processo de Trabalho Cientifico, foi necessário promover condições Institucionais, estruturais e de gestão operacional que implementadas e consolidadas, determinaram um ambiente universitário-científico, permitindo a utilização de recursos disponíveis nas atividades de produção de informações que se transformaram em conhecimento. Nesse sentido, UNIFLU-FDC, caracterizou esse processo com a gestão acolhedora do Prof. Dr. Levi de Azevedo Quaresma e Prof. Dr. Armando Farhat, respectivamente Diretor e Vice-Diretor, quando do início dos trabalhos em 1999. A partir de tarefas e trabalhos de observações e discussão do projeto de mestrado, bem como, do conhecimento didático na disciplina de MPD I e MPD II e na monografia que foi consolidada em 200 1, orientada pela Coordenadora Acadêmica Prof" Msc. Gláucia Quaresma. Os trabalhos integrados com a Pós-Graduação lato­ sensu nas disciplinas de metodologia e técnica de pesquisa além de didática de Ensino Superior, neste período, proporcionou a ligação processual necessária a formação de um banco de dados dos projetos de Graduação e Pós-Graduação que culminou no estudo de tendências e possibilidades teórico-temáticas para produção de textos sobre projetos de pesquisas, artigos, monografias e dissertações, incentivadas no período de 1999­ 2007. No Mestrado, a experiência iniciou a partir do ano de 2000, integrada a perspectiva de trabalho na disciplina de Métodos Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, Ng 10 -Junho de 2007


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e técnica de Pesquisas Aplicadas em Direito, apresentada naquele ano no projeto aprovado para instalação do curso de Mestrado, cuja coordenação esteve a cargo do Prot". Dra • Rosângela Lunardelli. A partir de 2004 sob a Coordenação do Prof. Dr. Leonardo Greco, o curso de Mestrado apresenta novas condições e novas estruturas em avaliação, que determinaram mudanças essenciais, refletindo no modo de orientação científica. Primeiramente, com a implantação do 10 Grupo de Pesquisa Institucional de Desenvolvimento Municipal em 01/06/2004, gerando Projetos de Pesquisa, Eventos Regionais e Artigos para Publicação. Com efeito, produziu-se em software a I a apresentação do curso de Mestrado, já que a disciplina de Seminários de Projetos e Dissertação - SIPD. Iniciou o programa letivo de 2004, com enfoque interdisciplinar de Metodologia e Técnica de Pesquisa aplicada em Direito e Metodologia de Ensino Superior. Neste software - mestrad02006l sip - página de Intranet no site www.fdc.br. os mestrandos apresentam-se e identificam todas as informações sobre o curso, disciplinas, programas, normas, critério e padrões de desempenho, com destaque para a disciplina de SIPD - Seminários Integrados de Projetos de Dissertação, disponibilizando aplicativos para a tipologia de trabalhos acadêmicos. Como evolução tecnológica desse processo a partir do ano de 2006, primeiro semestre, o software transformou-se em endereço de internet na página da Faculdade de Direito de Campos, integrando informações, conhecimentos e práticas inovadoras dos métodos e técnicas de Pesquisa aplicadas em Direito. Na página eletrônica da UNIFLU-FDC, www.fdc.br. o graduando, pós-graduando, mestrando, professores e alunos acessam com o Login, mestrad02006lsip@fdc.br e respectiva senha, novas medidas, para refletir sobre modelos e orientações cientificas. A Metodologia e técnicas de Pesquisas e Didática do Ensino Superior voltadas a Graduação e ao Lato-sensu, interagem Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, N° 10 - Junho de 2007

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no Sistema de Orientação Científica para os trabalhos de pesquisa e configurações das Normas Técnicas do projeto de dissertação e das propostas de dissertação para o Mestrado, além dos Trabalhos Científicos orientados no grupo de Pesquisa de desenvolvimento Municipal. Esta dinâmica de contextos interativos aprendentes de auto-realização, tem sido utilizada pelos alunos em rede nas seguintes cidades: Boa Vista-RR; Itaperuna-RJ; Bom Jesus de Itabapoana-RJ; Itaocara-RJ; Santo Antonio de Pádua-RJ; Rio de Janeiro-RJ; Macaé-RJ, entre outros municípios do Estado do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, além de Campos dos Goytacazes-RJ, como apoio ao ensino jurídico e aos métodos e técnicas de pesquisas aplicadas em Direito. A Tecnologia sócio-educativa produzida por Professores, alunos, funcionários, sob orientação científica integrada e interdisciplinar do mestrado com procedimentos Interinstitucionais, tem proporcionado apresentação de projetos em instituições como a FENORTE com grupos de Pesquisa, participando com dois projetos aprovados, respectivamente, em 2005-2006 Plano Diretor e 2006-2007 Biotecnologia. Todo esse processo tem como fator fundamental o incentivo e a sensibilização para todos os alunos e professores da UNIFLU-FDC - Faculdade de Direito de Campos. Os dados estruturais são apresentados a seguir.

3. Metodologia e Software Aplicativo 3.1 - UNIFLU - Faculdade de Direito de Campos ­ Estrutura de Acesso ao Banco de Dados dos contextos aprendentes interativos de auto-realização Site: www.fdc.br

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DIREITO E CIENTIFICIDADE: EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA...

3.2 - UNIFLU - Faculdade de Direito de Campos ­ Aplicativos de acesso: Login 1 E-maU: Mestrad020061sip e senha que é disponibilizada ao aluno regularmente inscrito

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Disponível em www.fdc.br. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, NQ 10 -Junho de 2007


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3.3 • UNIFLU - Faculdade de Direito de Campos ­ webmaiP - Matriz do Banco de Dados para utilização por infovia disponibilizados em todos os cursos de Pós­ Graduação como quadro de referência do processo de Educação Continuada

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DIREITO E CIENTIFICIDADE: EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA...

4. Projeto de Desenvolvimento Interdisciplinar nos Contextos aprendentes de auto-realização3

CENTRO UNIVERSITÁRIO FLUMINENSE - UNIFLU

FACULDADE DE DIREITO DE CAMPOS

MESTRADO

DIREITO E CIENTIFICIDADE: PROJETO DE

INTEGRAÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO COM A

GRADUAÇÃO (EDUCAÇÃO CONTINUADA:

PESQUISA, ENSINO, EXTENSÃO, APLICAÇÕES).

BRASIL, 1988 - 2010.

Dr. AUNER PEREIRA CARNEIRO (Coord.) et alli.

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Disponível em www.fdc.br Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, NQ 10 -Junho de 2007


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Projeto de extensão apresentado à Faculdade de Direito de Campos, para fms de desenvolvimento da integração pós­ graduação (educação continuada: pesquisa, ensino, extensão e aplicações). Orientador: Prof. Dr. Auner Pereira Cameiro.

CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ

2004

Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, NQ 10 - Junho de 2007


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DIREITO E CIENTIFlCIDADE: EXPERIÊNCIA CIENTIFlCA...

RESUMO: As atividades educativas e sistematicamente organizadas e orientadas para a inovação, efetividade e conectividades interativas, desenvolvem padrões de desempenho para a cientificidade. O projeto visa integrar todos os níveis de abrangência da informação científica do curso de Direito da Faculdade de Direito de Campos, bem como promover um inter­ relacionamento entre as atividades planejadas e as desenvolvidas entre os professores, alunos e a Instituição de Ensino Superior, para a formação e capacitação/desenvolvimento científicos de todos os atores educacionais envolvidos. Pesquisa, Ensino, Extensão, Integração, Corpo Docente e Discente, Instituição de Ensino Superior.

ABSTRACT : The educative activities and sistematicamente organized and guided for the innovation, interactive effective­ ness and conectividades, develop standards of performance for the cientificidade. The project aims at to integrate all the leveIs of abrangência of the scientific information of the course of Right of the Law school De Campos, as well as promoting a Inter­ relationship between the planned activities and the developed ones between the professors, pupils and the Institution of Superior Education, for the scientific formation of all the involved educa­ tional actors. Research, Education, Extension, Integration, Faculty and Learn­ ing, High School.

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SUMÁRIO: 1.Tema e Objetivos. 2. Justificativa e Objeto. 3. Metodologia TEMA E OBJETIVOS TÍTULO DO PROJETO: Direito e Cientificidade: Projeto de Integração da Pós-Graduação com a Graduação (Educação Continuada: Pesquisa, Ensino, Extensão, Aplicações). Brasil, 1988 - 2010. Delimitação espacial: Campos dos Goytacazes-RJ. Delimitação temporal: 1988 - 2010. IES: Faculdade de Direito de Campos, Centro Universitário Fluminense - UNIFLU. Coordenador do Projeto: Prof. Dr. Auner Pereira Carneiro Endereço para correspondência: Rua Tenente Coronel Cardoso, 349 ­ Campos dos Goytacazes (RJ) - CEP 28013-460 Web Site: www.fdc.br E-mail: mestrado2006lsip@fdc.br Linha de Pesquisa: Direito e Cientificidade. Núcleo de Pesquisa: Grupo de Desenvolvimento Municipal, FDC, Campos/RJ. Área do Conhecimento: Direito - Epistemologia

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1. TEMA E OBJETIVOS

Delimitação do Projeto: Aplicação de normas ABNT pertinentes. Utilização das ferramentas de informática. Aplicativos para produção de texto acadêmico-científico. OBJETIVOS: Objetivo Geral: Promover a função integradora do Ensino, Pesquisa e Extensão com os aplicativos tecnológicos de aprendizagem nas atividades acadêmicas do Curso de Direito na Faculdade de Direito de Campos, através das disciplinas de Metodologia da Pesquisa em Direito I e 11. Objetivos Específicos: a) Apresentar efeitos-demonstração dos métodos e técnicas, bem como os procedimentos científicos para o desenvolvimento da vida acadêmica na produção de textos científicos; b) Divulgar os trabalhos acadêmicos, a criatividade e a inovação, contribuindo com a produção acadêmico­ científica, maximizando a eficácia das pesquisas e dos textos com o mínimo de tempo necessário para o desenvolvimento de trabalhos voltados para o ensino, a pesquisa e a extensão na graduação e na pós­ graduação da Instituição de Ensino Superior objeto do presente projeto. c) Produzir Software - Tecnologias Sócio-Educativa.

2. JUSTIFICATIVA E OBJETO Justificativa: As inovações no Ensino Superior de Direito estabeleceram novos paradigmas de ensino-aprendizagem através do desenvolvimento da pesquisa e da extensão, juntamente às

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atividades educativas já ministradas nas disciplinas de MPDIIII, no período de 199912005. De acordo com as orientações no sentido de integração da Pós-Graduação com a Graduação é uma constante que deverá ser observada para a formação científica dos alunos, in casu, do Curso de Direito da UNIFLU-FDC. Objeto: Pesquisa, Extensão, Ensino, Aplicativos.

Tipos de atividades a serem desenvolvidas: Palestras, debates, seminários, conferências, mesas-redondas, oficinas dentre outros. Local dos eventos: A Instituição de Ensino Superior delimitada para este Projeto de Ensino, Pesquisa, Extensão e Efetiva Aplicação Acadêmica é a Faculdade de Direito de Campos, integrante do Centro Universitário Fluminense ­ UNIFLU, desde 1999. Formas de participação dos eventos: A participação será feita mediante inscrição em eventos programados, conforme sugestão no item cronograma, em local a ser designado pela Direção da Faculdade. Os horários previstos para as atividades deverão ser fixados entre 19h e às 21h. As datas dos eventos serão divulgadas após a aprovação do projeto. O controle de freqüência será por lista e os professores poderão exigir relatórios - papers - para controle da mesma e avaliação futura em suas disciplinas.

3. METODOLOGIA MARCO TEÓRICO: Além da ignorância sobre como pesquisar e como apresentar os resultados de suas pesquisas, os juristas estão em geral tão envolvidos com problemas práticos do diaRevista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, N° 10 - Junho de 2007


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a-dia que não têm tempo para estudos mais aprofundados. A pesquisa toma tempo, exige grande dedicação e as recompensas imediatas são parcas, ainda que o seu resultado, o saber, seja extremamente útil no tratamento dos problemas práticos do dia­ a-dia (ADEüDATü, 1996, 171). A Metodologia Científica, mais do que uma disciplina significa introduzir o discente no mundo dos procedimentos sistemáticos e racionais, base da formação tanto do estudioso quanto do profissional, pois ambos atuam, além da prática, no mundo das idéias. Podemos afirmar até: a prática nasce da concepção sobre o que deve ser realizado e qualquer tomada de decisão fundamenta-se naquilo que se afigura como o mais lógico, racional, eficiente e eficaz (LAKATüS, 2001, p.125).

Método de Análise - Instrumentação necessária: Dedução, indução e análise dos fatos e dados presentes. Bibliográfica: leitura e fichamento de bibliografia, geral e específica, obras clássicas, revistas, jornais, anais, dentre outros documentos escritos; Documental: obras, revistas, jornais, papers relacionados com o tema. Público de interesse: Docentes e discentes da graduação e pós-gr(lduação (especialização lato- sensu e mestrado). Ambiente Laboratorial: As atividades de laboratório serão feitas na Faculdade de Direito de Campos, durante as atividades didático-educativas nas disciplinas de MPD I e II (Metodologia da Pesquisa em Direito) e na disciplina de Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, NQ 10 -Junho de 2007


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Metodologia e Técnicas de Pesquisa Aplicada (pós­ graduação) e Seminários Integrados de Projetos de Dissertação. Equipe científica: Para além dos componentes que atuarão diretamente na programação e execução dos eventos, contam-se com os seguintes docentes responsáveis por disciplinas. Do mesmo modo, foram convidados a integrar o projeto os professores abaixo relacionados, de disciplinas teórico­ temáticas e instrumentais. 1.Prof. Wladimir Flávio Luiz Braga

2.Prof". Ana Lúcia S. B. Mendonça

3.Prof. Paulo Gomes Sanguedo

4.Prof". Amanlis Martins Gualda

5.Prof". Ruth Maria C. O. Martins

6.Prof. Hélio de Freitas Coelho

7. Prof. José Inácio Henriques Viana 8. Prof. Sivaldo Vasconcelos 9. Prof. a Marilda Vieira Azevedo

1O.proe Maria Amélia B. da Silva

11. Prof. Jorge Batista de Assis 12. Prof. Gerson Costa

Considerações Finais: Certificação dos eventos: A Faculdade de Direito de Campos, nas atribuições a ela concedidas, fará a certificação dos eventos ministrados pelo presente projeto. Bem como do Registro de Atividades Complementares. Divulgação dos Eventos: O Projeto contará com a colaboração efetiva da Equipe de Apoio Institucional para sua divulgação pelos veículos de comunicação social necessários. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, N~ 10 - Junho de 2007


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Avaliação: Projeto está inserido no Programa de Avaliação Institucional e suas atividades produzirão trabalhos acadêmicos tais como: Resumos, Resenhas, Artigos, Relatórios e outros Papers. Semestralmente haverá troca das Atividades no Currículo Lattes. Referências ADEODATO, João Maurício. Bases para uma Metodologia da Pesquisa em Direito. In Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo: São Bernardo do Campo: FDSBC, 2001. AZEVEDO, Cláudia Rosa; NOHARA, Jouliana Jordan. Monografia no curso de direito. São Paulo: Atlas, 2004. BOAVENTURA, Edivaldo M. Metodologia da pesquisa: Monografia, dissertação e teses. São Paulo: 2004. BOSCHI, Olga Maria Aguiar de Oliveira. Monografiajurídica. São Paulo: Síntese, 2003. BOENTE, Alfredo; BRAGA, Gláucia. Metodologia científica contemporânea. São Paulo: Brasport, 2004. BRAGA, Raul Nunes; ROITMAN, Riva. Monografiajurídica: uma abordagem didática. BH: Del Rey, 2001. CARVALHO, Alex Moreira. et.all. Aprendendo metodologia científica. 3.ed. São Paulo: nome da Rosa, 2002.

°

CARVALHO, Maria Cecília M. de. Construindo o saber(metodologia científica -fundamentos/técnicas). Campinas: Papiros, 1988. CASTILHO, Maria Augusta. Roteiro para elaboração de monografia em ciências. São Paulo: Saraiva, 2000.

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CIRIBELLI, Marilda Correa. Como elaborar uma dissertação de mestrado através da pesquisa. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

CERVO, Amado Luiz. Metodologia científica. São Paulo: Makron Books do Brasil, 2001. DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1980. DIEHL, Astor Antonio; TATIM, Denise Carvalho. Pesquisa em ciências sociais aplicadas: Métodos e técnicas. São Paulo: Prentice-Hall,2004. ECO, Umberto. Como sefaz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2002.

ESTRELA, Carlos. Metodologia científica, planejamento e técnicas de pesquisa. São Paulo: Artes Médicas, 2001. FIGUEIREDO, Nébia Maria Almeida de. Método e metodologia na pesquisa científica. São Paulo: Difusão, 2004. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999. GONÇALVES, Hortência de Abreu. Manual de metodologia da pesquisa científica. São Paulo: Avercamp, 2005. HENRIQUES, Antonio; MEDEIROS, João Bosco. Trabalho de conclusão de curso. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. HUBNER, Martha Maria. Guia para elaboração de monografias e dissertação. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1998. HÜHNE, Leda Miranda. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1992.

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KOCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica. 14.ed. São Paulo: Vozes, 1997. LABÃO, Antonio Carlos A . É possível ser feliz fazendo uma monografia: um guia para eficiência. São Paulo: Hucitec, 2004. LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2001. _ _ _o

Técnicas de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1996.

MACIEIRA, Silvio; VENTURA, Magda. Como elaborar projeto, monografia e artigo científico. São Paulo: Freitas Bastos, 2005. MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia. São Paulo: Atlas, 1998. Metodologia científica para o curso de direito. 2.ed. São Paulo: Atlas, 200 I.

_ _ _o

MARTINS, Gilberto de Andrade. Manual para elaboração de monografia e dissertação. São Paulo: Atlas, 2000. MEDEIROS, João Bosco. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2005. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1993. MENDONÇA, Samuel. Projeto e monografia jurídica. 2.ed. São Paulo: Forense Universitária, 1991. MICHEL, Maria Helena, Metodologia e pesquisa científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 2005. MOURA, Francisco. Trabalhando com dissertação. São Paulo: Ática, 1992.

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MONTEIRO, Gilson. Guia para a elaboração de projetos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. São Paulo: Nobel, 1988. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Manual de monografia jurídica. 3. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2001. OLIVEIRA NETO, Alvim Antonio de. Metodologia da pesquisa científica: guia prático para apresentação. Santa Catarina: Visual Books, 1980. OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Metodologia cientifica aplicada ao direito. São Paulo: Pioneira, 2002. ______. Tratado de metodologia cientifica. São Paulo: Thomson Learning, 2002. PARRA FILHO, Domingos; SANTOS, João Almeida. Metodologia científica. 5. ed. São Paulo: Futura, 2002. PASOLD, César Luiz. Prática da pesquisa jurídica. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. ______ . Monografia e apresentações de trabalhos científicos. São Paulo: Gráfica Terra, 1997. RIBEIRO, Wanderley. Monografia no curso de direito. São Paulo: Forense, 2002. RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social - métodos e técnicas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1995. RUIZ, João Álvaro. Metodologia científica: guia para eficiência nos estudos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1988. SALOMON, Delcio Vieira. Como fazer uma monografia. 10. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VIII, N° 10 - Junho de 2007


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DIREITO E CIENTlFICIDADE: EXPERIÊNCIA CIENTÍFICA. ..

SALVADOR, Ângelo Domingos, Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. Porto Alegre: 1987. SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Elaboração de pesquisa e da monografia jurídica. São Paulo: Ma1heiros, 2004. TACHIZAWA, Takeshy; MENDES, Gildásio. Como fazer uma monografia. 10. ed. São Paulo: FGV, 2005. THOMPSON, Augusto. Manual de orientação para preparo de monografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. VIEIRA, Liliane dos Santos. Pesquisa e monografia jurídica na era da informática. 2. ed. Brasília: Brasília jurídica, 2005. VIEIRA, Sonia. Como escrever uma tese. 5. ed. São Paulo: Thomson Pioneira, 1999. VICTORIANO, Benedito A D. ; GARCIA, Carla C. Produzindo monografia: Trabalho de conclusão de curso. São Paulo: Publisher Brasil, 1996.

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HUMANIZAÇÃO DO DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA

Inês Cabral Ururahy de Souza1

RESUMO: Ao início do século XXI começa-se a falar em uma política geral, relativa à segurança pública e, também, em políticas especiais as quais atuariam em setores variados da sociedade. O mundo vive transformações que interferem nos rumos das sociedades de todos os cantos deste planeta, sem falar nas modificações que as novas descobertas trouxeram para a humanidade e que no seu desenvolvimento chegaram aos nossos dias, carregando o peso das inovações e das rupturas que se deram, sobretudo, no século XX. A cidadania é o eixo da legalidade e a violência dos novos tempos nos leva à discussão dos direitos fundamentais sob a ótica do multiculturalismo, tema que emerge da necessidade do estabelecimento de parâmetros conceituais às questões que se colocam, nesse instante, no debate sobre a violência. Palavras-chave: Estado, segurança, liberdade, políticas públicas, sociedade. ABSTRACT: At the beginning of twenty-first century begins to speak in a general political relating to public safety and also in special police which would act in various sectors of society. The world is experiencing changes that interfere in the directions of societies from all corners of this planet, not to mention the changes that the new findings have brought to humanity in its development and reached our days, carrying the weight of the innovations and disruptions that occurred mainly in the twentieth century. Citizenship is the axis of the legality of the new times and violence leads to a discussion of fundamental rights from the perspective of multiculturalism, a theme that emerges from the need to establish parameters conceptual issues that arise at that moment, the debate over violence. Key-words: State, security, freedom, public policy, society.

1

Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Fluminense (1994), graduação em

Letras pela Faculdade de Filosofia de Campos (1973), graduação em Pedagogia pela Universidade Augusto Motta (1975), Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1999) e Doutorado em Direito pela Universidade de Burgos (2003). Atualmente é Professora Titular no Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, Diretora ESA /Secretária -Geral da 12ªSubseção - Ordem dos Advogados do Brasil e Professora - Cursos de Pós-Graduação da FGV e da Escola Superior de Advocacia. Exerce a coordenação do Curso de Direito do Centro Universitário Fluminense, atuando como Avaliadora de Cursos de Direito pelo INEP/MEC. Ministra palestras tendo como tema principal Direitos Humanos. Membro da Academia Campista de Letras. Endereço: Rua Edmundo Chagas, 114 - Campos dos Goytacazes/RJ - CEP; 28010-410 - E-mail: inesururahy@bol.com.br


HUMANIZAÇÃO DO DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE SEGURANÇA A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SEGURANÇA A vida em grupo, desde os tempos primitivos trouxe para o campo antropológico, questões que foram dando sentido ao “fazer histórico”. O homem, desde o primeiro instante de sua presença no mundo, sabe que tem que se defender. Em primeiro lugar, vai lutar para manter-se na agressividade de um meio natural selvagem, com seus bichos estranhos e seus elementos naturais. Proteger-se é condição de sobrevivência e o homem descobre que sua grande arma está no pensamento. Em seguida este ser frágil, no que toca à estrutura física – pele sensível; necessidade de alimentação constante; pernas e corpo, cujo tônus impedem de correr com rapidez etc. – desenvolve mecanismos cognitivos que o fazem superar as limitações de sua própria espécie. De acordo com Litsz: “A geopolítica no mundo globalizado: as questões ambientais”, em: Serviço Social e Sociedade. São Paulo, CBSSIS, v.48, 1998, p.83, "o homem é um animal predador como os demais, só que diferentemente dos irracionais, age por previsão”. À proporção que vai aprendendo, adaptando-se ao meio em que vive e convivendo com os demais membros do grupo, o ser humano descobre uma outra característica da espécie, que é o desejo de competir com o outro, seu complemento na construção da identidade social. Sua subjetividade virá à tona, como integrante natural do seu jeito de ser e ele sente que pode ser “o mais forte”, “o mais sagaz”, “o mais empreendedor”, “o mais sedutor”, ou seja, “o líder”. É neste momento que o Estado Natural cria suas regras de convivência, até alcançar o momento, no qual os líderes locais já não darão conta de frear as paixões humanas, na luta permanente dos homens pelo poder. Thomas HOBBES comenta: Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar e espoliar uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima. E longe de ser considerada contrária à lei natural, quanto maior era a espoliação conseguida, maior a honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como únicas regras as leis de honra, ou seja, evitar a crueldade. Quer dizer, deixar aos outros suas vidas e seus


instrumentos de trabalho. (HOBBES, Thomas, Leviatã, op.cit., p.130).

Mas, à proporção que as comunidades cresciam, os conflitos também iam tornando as relações mais complexas. Sentimentos e paixões vinham à tona nas disputas entre líderes de clãs e entre homens que muitas vezes vinham da mesma origem familiar. A força ostensiva passa a ser uma ameaça à vida e a segurança torna-se uma questão prioritária, na medida em que a sua ausência, gera violência, arbítrio e faz valer sempre a lei do mais forte. Surge então entre os homens neste início da civilização, a necessidade imperiosa de oferecer limites aos mais afoitos e assim encontrar uma autoridade, representativa de todos, capaz de estabelecer regras comuns, que consensualmente serão cumpridas. Isto, contudo, não significa que entre estas regras, estejam aquelas capazes de punir os que por ventura se colocarem contra o estabelecido. Assim, em dado momento de sua trajetória histórica, o homem descobre a importância de uma organização política, capaz de conferir um estatuto administrativo à vida social, fazendo surgir assim o Estado, mesmo que os defensores da origem divina do poder negassem a concepção contratualista do Estado. Como afirma HOBBES, é como se cada homem dissesse a cada homem: ”Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, a multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado” (HOBBES, Thomas, Leviatã, op. cit., p.131)

Este surge então, da necessidade de segurança, ameaçada pelos costumes da época que dava a cada homem, condição de decidir, julgar e condenar, a partir de uma única visão de mundo, no caso a sua própria visão. É esta concepção de pacto social, que dará ao Estado, a essência democrática que a atravessará os tempos e que no campo dos direitos humanos, fará também surgir, o conceito de cidadão. Mas, este Estado pioneiro que nasce de uma realidade concreta, está longe de ser algo harmônico, pois o seu surgimento nasce do conflito entre os homens, e estes conflitos com o tempo darão origem a muitos


confrontos. Entre os papéis básicos do Estado instituído está o de buscar o bem comum e assim, preservar a paz, que é a harmonia. Na Antigüidade clássica, uma das estratégias de alcance do bem comum era a guerra e, isto já sugere que a paz é algo que não se deu com a criação do Estado, ao contrário, este como representante de todos, tinha que incorporar as várias posições, mesmo que essas se colocassem contra a vontade pessoal do soberano ou chefe. As assembleias gregas como exemplo da democracia grega, nem sempre eram consensuais, mas vencia a vontade da maioria. Por outro lado, entre as primeiras informações do Estado Antigo, encontra-se o exemplo do soberano autoritário, na figura do faraó, mistura de Deus e homem, cujas excentricidades eram movidas mais pelas paixões, do que propriamente pelo consenso. Neste caso, não havia ainda, mecanismos de proteção à segurança do povo, contra a crueldade dos soberanos. Neste ponto só a guerra, ou mesmo a revolta dos opositores organizados, podia vencer a força das tradições e dos costumes. Nos primeiros tempos, o Estado Antigo está muito preso à religião, aos costumes, chegando mesmo a confundir-se com as tradições, reproduzidas na cultura dos povos. Mesmo para o povo grego, cuja sensibilidade para a filosofia, as artes, a estética, tinham em seu território, os habitantes de Esparta, povo voltado para as práticas bélicas, possuíam como ideal a força física e a capacidade de guerrear. Já Aristóteles viu o Estado "como a mais elevada expressão da relação social". Dizem que colocou, acima dele, somente Deus e o homem. Já para os teóricos que se inspiraram nas idéias dos antigos filósofos gregos, como Spinoza. (...) o Estado não é o resultado da ação racional dos homens, mas do choque de suas paixões. Sozinhos, os homens não podem sobreviver. Ao se unirem e formarem um Estado simplesmente trocam seus medos individuais por um medo e uma esperança comunitários..” (SPINOZA, Coleção Os Pensadores, vol. IV, Abril cultural, p. XXII).

Há o entendimento da segurança como algo que deve ser compartilhado, por que o medo acompanha os homens, sempre ameaçados por sua própria natureza passional. Assim, mesmo que cronologicamente Spinoza venha após Hobbes, os comentários aqui feitos referem-se às idéias


da origem do Estado na Antigüidade e dos pensadores que abordam esta fase da construção do conceito de Estado. O Estado surgiu então, da interligação de todos os fatores que sempre motivaram o homem a buscar uma unidade, um elemento concreto, com personalidade jurídica e política para administrar conflitos em favor do interesse coletivo. Ele surgiu de um processo contínuo, natural, de um conjunto de idéias, de ações dos homens na busca de um maior apoio para cuidar de tudo que represente o interesse da coletividade. Porém, as discussões sobre a origem do Estado envolvem muitas teses e argumentos, pois enquanto há os que consideram que ele nasceu da violência, ou seja, no momento em que o temor da barbárie fez surgir a figura do líder, chefe ou soberano e as regras por ele impostas; para outros como Hobbes, Lock, Rousseau e o próprio Kant, ele nasce do pacto social, mais exatamente de um contrato, de início tácito, entre os vários grupos componentes de uma sociedade, para instituir-se na forma de um contrato escrito, institucionalizado como aparato legal no direcionamento da vida social. Filosoficamente entre os jusnaturalistas que tratam em suas teorias do Estado, sobressaem-se as figuras de Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu, Rousseau, Bodin. Por outro aspecto, em um estudo acadêmico desta natureza, torna-se imperioso analisar criticamente o jusnaturalismo como substrato da organização política que se legitimou desde o advento do Estado Nacional, perpassando pela consolidação das instituições políticas no constitucionalismo

clássico,

e,

ainda

contextualizando

conceitos

fundamentais para o Estado Constitucional. Hobbes, o mais significativo e lúcido dos teóricos do individualismo utilitarista, desenvolve sua obra no século XVII, obcecado pela idéia de dissolução da autoridade, preconiza a unidade de poder contra a anarquia dentro de uma linha humanista.” (KRIELE, Martín, Introducción a la teoría del Estado: fundamentos históricos de la legitimidad. Buenos Aires, Depalma, 1980, p.525).

A figura do “Leviathan” que ilustra a capa da primeira edição do livro retrata um monstro bíblico, representando o Estado – homem artificial dotado de uma armadura composta de escamas, as quais são seus próprios


súditos – e está, conforme uma leitura semiótica, ligada à imagem de alienação dos direitos e da própria vontade dos súditos em favor dos soberanos.

Embora

de

tendência

absolutista,

Hobbes

renuncia,

decididamente, à tese de que o poder soberano seja de instituição divina. Constrói o fundamento de sua concepção de poder, em perspectiva laica, estabelecendo como função social do Estado “pax et defensio communis”, entre os súditos. Na concepção hobbesiana, os homens vivem inicialmente em estado de natureza, mas com o tempo necessitam usar a razão e as instituições públicas eficientes. Hobbes influencia o surgimento do Estado Moderno. Também John Locke, que é chamado o “pai do liberalismo” por ter construído as bases do Estado Liberal, situa-se como o primeiro intérprete inglês do iluminismo. Suas idéias estão assentadas na tese hobbesiana da função social do Estado. Para Kriele o Estado para Locke sofre mudanças a partir do momento em que os homens avançam historicamente: “Do ponto de vista do procedimento construtivo, Locke além de algumas concepções de Pufendorf, inspirou-se nos preceitos teóricos hobbesianos. Assim, sua teoria política começa com a descrição do estado de natureza como uma situação de liberdade e igualdade: é uma condição em que os homens são livres para dividir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas e iguais; compreende igualdade como a situação em que a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, mas não é estado de permissividade.” (KRIELE, Martín, op.cit., p.100).

Locke se opõe a Hobbes, quando afirma que o estado de natureza se opõe ao estado de guerra: um é estado de paz, benevolência, assistência e conservação recíprocas; o outro, um estado de hostilidade, maldade, violência e mútua destruição. No estado de natureza de Locke, há guerra parcial e intermitente, devido à inexistência de leis positivas e de juízes competentes, com autoridade para julgar. O estado de natureza pode ser repristinado, preservando-se as suas vantagens no estado civil, mediante um poder coercitivo que recepcione os direitos naturais, referentes principalmente à propriedade, como base de toda a liberdade, de igualdade e da vida. Locke tornou-se o marco teórico do Estado Liberal de direita, ao preconizar o poder civil derivado do consentimento popular. Sua doutrina, ao justificar a “Gloriaus Revolution”, demonstra que a liberdade só pode existir graças à limitação do poder estatal, pelo consentimento dos membros da comunidade, quando os direitos naturais individuais pertinentes à vida e à propriedade forem legalmente salvaguardados e protegidos. Locke converte a ordem da propriedade burguesa como substrato natural do poder estatal


fundamentado contratualmente.” (QUINTÃO SOARES, Mário Lúcio, op.cit., p.102).

Um outro pensador que vai influenciar a concepção do Estado Democrático de Direito é o francês Jean Jacques Rousseau, que exerceu forte influência sobre a Revolução Francesa e a concepção de cidadania que ela desencadeia e absorve. Sua tese do contrato social, como fundamento do Estado, está alicerçada na vontade geral de utópico governo do povo, consoante o princípio da identidade. Rousseau à semelhança de Hobbes acreditava que a coerção no sentido de socialização deriva de um Estado de desconfiança universal e de insegurança gerado pela luta competitiva e geral dos homens em seu estado de

natureza.

O

pacto

social

é

o

caminho

para

a

superação

das

desigualdades, sem que se tenha que apelar para a barbárie. Na concepção de Kant o paradigma do Estado Liberal de Direito caracterizava o Estado como a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito. Mas, existem aqueles que se colocam contra a teoria de que o Estado surgiu da força bruta. PINTO FERREIRA diz: "o elemento coativo de si só não é bastante para permitir em sua plenitude o nascimento dos Estados, é um elemento de valor sem dúvida, mas não único e decisivo.” (Teoria Geral do Estado. São Paulo. Saraiva, 1975, p.60). Mesmo que sua visão se posicione contrariamente à idéia do Estado como catalisador das oposições, na forma de uma autoridade que paira sobre todos, os fatos históricos revelam que como a instituição do roubo fez nascer a política, o crescente clima de violência entre grupos de pessoas contra outros, fez nascer o Estado. Nesta perspectiva histórica sobre a natureza do Estado como poder que limita, a teoria econômica da origem do Estado de Marx e Engels, revela-se sob um novo enfoque na revolução do conceito de Estado. Para eles, o Estado representa o domínio do mais forte economicamente contra o mais fraco. O marxismo, no campo da reflexão sobre o Estado, preocupa-se com quem governa, ou seja, com os sujeitos das classes dominantes. Por isso, cuidou muito pouco das instituições e de como se governa.


Na verdade, o Estado Antigo tinha como um dos critérios de poder, o econômico. Eram os proprietários, os donos de escravos, os donos de terra que dominavam as funções atribuídas ao Estado, mesmo que não representassem efetivamente, pois o povo ficava de fora desse arranjo. O que levava essas classes privilegiadas a pseudo-representação do Estado, era o fato de serem estes personagens, detentores do poder econômico, titulares de riquezas, agentes econômicos no sentido moderno da expressão. Em

síntese,

o

Estado

surgiu

no

processo

contínuo

das

necessidades dos homens, visto na perspectiva do coletivo, e sem sombra de dúvidas,

da

necessidade

de

segurança

e

proteção

contra

os

seus

semelhantes. Dominar a natureza foi para os homens ao longo de sua trajetória histórica um permanente desafio; mas lutar contra os da sua espécie, significa lutar contra as paixões humanas, sobretudo quando ela é obstáculo ao bem comum. SEGURANÇA E VIOLÊNCIA: OS PARADOXOS DE UMA SOCIEDADE GLOBALIZADA Com o progresso e o advento da tecnologia, sofisticaram-se as formas de violência e o processo histórico que culmina com as violações de direitos dos cidadãos, sobretudo nas áreas urbanas, demonstram que o Estado Capitalista não soube lidar com as questões de segurança. Além deste fato, um outro ponto tem que ser destacado no que se refere à questão da evolução do conceito de segurança que é o caminho da violência que muitos estados soberanos escolheram para lutar contra a sua própria incapacidade de oferecer segurança aos cidadãos. A questão da violência que gera a falta de segurança pública não se reduz à objetividade do crime organizado internacionalmente e de suas explicações. O crescimento da violência no país remete ao plano subjetivo, da interpretação também. Considero fundamental incorporar o plano cultural da análise, pensar as questões mais difíceis de serem apresentadas no debate público tão viciado nas visões do determinismo sociológico. Mas só posso fazê-lo a partir da experiência local, particular, de uma etnografia feita no local em circunstâncias muito especiais. (ZALUAR, Alba, “A Globalização do crime e os limites da explicação local. In VELHO e ALVITO, Cidadania e Violência. UFRJ. FGV. Rio de Janeiro, 2000, p.61).


Darcy Ribeiro comenta em muitas de suas declarações sobre a necessidade de oferecer às crianças e adolescentes das favelas brasileiras o acesso à educação de qualidade, em todos os sentidos, além de acentuar o importante papel do conhecimento na vida destes cidadãos, valorizava a qualidade para estes setores, que no olhar das políticas sociais autoritárias, sempre receberam o pior tratamento, tanto na escola quanto na vida além dos muros escolares:

quando a criança da favela nasce, a primeira coisa que ela aprende no Brasil é “ter medo de policial” ou de qualquer outro representante oficial na área de segurança. Acostumada à discriminação, sua consciência ingênua aliada aos contextos que têm a droga, o roubo, a trapaça como mecanismos de ascensão social, ela só pode ser salva por uma educação de qualidade, que como diria Paulo Freire a faria sair da falta total de consciência da realidade e seus movimentos para a consciência crítica e questionadora.” (RIBEIRO, Darcy, “A escola de qualidade para todos”, in: Revista Transformação, no 2. Governo do Estado do Rio de Janeiro (MEC/SEE) p.5).

Assim, o que o autor expõe é que a segurança como conceito, ficou aquém da evolução da violência hoje uma questão que ameaça governos de todo o mundo. Quantos americanos se perguntaram após o episódio de 11 de setembro: Como a segurança norte-americana não viu ou desconfiou dos preparativos para o atentado das torres gêmeas pelos terroristas? Como não localizaram aviões seqüestrados através de radares? Logo, nem a sofisticação da tecnologia e nem os estudos sobre segurança dos mais importantes profissionais da atualidade, conseguem parar a violência que vem tomando conta do mundo contemporâneo. O que se assiste hoje em todos os lugares do planeta é a excessiva preocupação com a segurança, de formal tal que nos grandes centros urbanos, grande parte da classe média vive enclausurada em suas fortalezas, muitas delas situadas nos últimos andares dos prédios. Com a perda do sentido público e a valorização do privado, os homens se transformam em vítimas de suas próprias armadilhas. Porém, o que tem incomodado a população consciente de muitos


países, é o fato de que as tentativas de colocar em prática projetos de segurança grandiosos, na maioria das experiências acabam frustrando o cidadão do povo, que no final das contas é quem paga o preço. Sobre isto Pinheiro discute quando aborda a dificuldade que as líderes na área de segurança encontram no momento da tomada de decisão: Há políticas públicas, como a segurança das práticas populares ou uma reforma da cultura que, como nós sabemos não podem ser planejadas. Ao lado de uma compreensão cada vez maior das atitudes, das práticas das mais sofisticadas do pensamento das classes médias ou populares e dos jovens delinqüentes, os aparelhos do Estado que continuam tendo uma autonomia relativa em relação à sociedade, devem ser alvo de escrutinação específica e campo para a intervenção reformadora. (PINHEIRO, Paulo Sérgio, Violência. Direitos Humanos e Democracia no Brasil: O reino da impunidade In: Trabalho Cultura e Cidadania. São Paulo, Scritta, 1997, p.211).

Em todo o Brasil, segundo dados do banco do Poder Judiciário do STF (Supremo Tribunal Federal) referentes ao ano de 2000, havia apenas 4.864 juízes, ou seja, um juiz para cada 30.624 habitantes. No ano de 2011, segundo levantamento feito pela Revista Consultor Jurídico, existem oito juízes para cada 100.000 (cem mil) habitantes. Justamente nos estados onde a impunidade é mais flagrante como nos estados do norte e nordeste, ou seja, onde a transparência sobre a violência e o crime é menor, a relação entre o número de juízes e a população é menor. Para alguns críticos das políticas de segurança na América Latina e com base no parecer dos novos estudos do CEBRAP (NOVOS ESTUDOS CEBRAP. Pobreza, Violência e Direitos Humanos. São Paulo, jul. 1994, p.220), muitas das graves violações dos direitos humanos seriam drasticamente diminuídas, por meio de reformas políticas, melhor controle sobre os aparelhos repressivos e melhor funcionamento do aparelho judiciário. Na verdade, há de se considerar que isto é possível em países que não tenham uma distribuição de renda injusta como é o caso do Brasil, da Colômbia e demais países latino-americanos e hoje também da Argentina. A história da América Latina traz em sua origem, a opressão de uma colonização violenta, cujas marcas permanecem. Certa vez, um visitante vindo ao Brasil, apesar de muito bem recebido, disse na abertura de sua conferência: “O que me chamou a atenção nas ruas foi a degradação da


população – famintos, drogados, prostitutas, menores infratores, etc. –, mas o que me fez perdoá-los foi a lembrança do processo de colonização portuguesa, que trouxe para este belo país – ladrões, degredados, falidos, traidores. A segurança aqui é difícil, por conta das marcas culturais. (MARCELINO, Antônio, Histórias ilárias, Rio de .Janeiro, Damadá, 1998. p.26). Mas a questão central que se coloca neste espaço temporal é a de que além de ter que enfrentar o enigma de sua auto-instituição, a sociedade histórica passa a ter que enfrentar o advento do poder político, como pólo separado do social e que, no entanto, nasceu da própria ação social. Neste sentido a nova sociedade é forçada a compreender, como o poder nasce em seu interior e como o dela se destaca, indo a abrigar-se em uma nova figura, que parece pairar fora e acima de todos os mortais: o Estado. As leis surgem então na dialética do político e do social imbricados e dando configuração a uma nova ordem, que dali para frente, norteará a vida e as relações dos homens em sociedade. É como se de repente, um Estado passasse a representar o poder maior de garantir a segurança das populações e, demonstrando que o direito divino de punir pecadores ganhasse um correlato no campo civil. O Estado toma assim o lugar de Deus no imaginário acerca das formas de segurança. Assim, se antes havia uma aceitação natural das formas de dominação e contra dominação, a partir da criação do Estado Moderno, as normas vão ocupar os espaços de poder, legitimando-os e cedendo campo para as contradições. A segurança tão sonhada chega aos novos tempos, carregando em sua origem as paixões humanas, categoria básica para o entendimento das relações estabelecidas nos tempos contemporâneos. Marilena CHAUÍ aborda a questão básica da configuração das visões de "justiça" como conceitos que estarão nas bases do Estado instituído, mostrando as desigualdades e os conflitos presentes num "corpo de representações e normas”. "Surge, um corpo de representações e de normas através do qual os sujeitos sociais e políticos se representarão a si mesmos e à vida coletiva. Esse corpo de representações e de normas é o campo da ideologia no qual os sujeitos sociais e políticos explicam a origem da sociedade e do poder político; explicam as formas de suas relações sociais, econômicas e


políticas, explica as formas " corretas " e " verdadeiras " do conhecimento e a ação; justificam através de idéias gerais, as formas reais das desigualdades, dos conflitos, da exploração e dominação, como sendo " naturais . (Op.cit., p.19.) Em termos de segurança, o Estado Moderno vai realmente tornar-se o Estado que implanta a segurança como meta primeira. A guerra entre povos, por conquistas, por seu lado, não vai acabar, mas simplesmente ganhar o estatuto de legalidade. Não é mais a decisão do soberano que levará os homens a lutarem por seu país, sejam quais forem as causas, mas as normas que regulam este procedimento, daí a "deserção" ser um ato contra o Estado. Kant, ao ser citado por Bobbio: (...) os imperativos morais, e só os imperativos morais, são autônomos. (...) Quando o homem, em vez de obedecer à legislação da razão, obedece aos instintos, às paixões, aos interesses, segue imperativos que desviam da realização de si mesmo: o seu comportamento consiste, nestes casos, em uma adesão a princípios que estão fora de, e enquanto tal, não é mais pelo comportamento moral. (BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Campos, 1992).

estabelece que a razão deve regular o fazer humano, evitando que os homens ultrapassem os limites legais. Para que exista liberdade é indispensável um mínimo de segurança. Temos, pois, que o excesso de segurança elimina a liberdade e a supressão da liberdade aniquila a segurança, fechando-se assim o círculo. Entre os elementos do binômio “segurança e liberdade” ocorre uma ligação especial como bem definiu Montesquieu quando definiu a liberdade política do cidadão como sendo a tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada qual tem de sua própria segurança. Cfr. MONTESQUIEU, O espírito das leis. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 1998. Com efeito, o excesso de segurança acaba por suprimir a liberdade, assim como a total liberdade é a ausência de segurança. Há, por conseguinte, na unidade dialética entre liberdade e segurança um ponto de equilíbrio que representa o ideal, o objetivo desejado. Contudo, o Estado Moderno que criou os direitos humanos como base da cidadania, é o Estado que institucionalizou a legalidade pela via democrática, ou seja, do Estado


representativo, aquele em que a "liberdade" é o valor máximo dos cidadãos. Neste ponto é interessante acentuar que este Estado Moderno se confunde com o Estado Liberal, concebido por Locke, Hobbes e outros pensadores influenciados pelo iluminismo, ou seja, o Estado que colocou ou "indivíduo", como portador de direitos e ele próprio como o guardião desses direitos, tendo como respaldo as leis. Nas discussões acerca da relação entre Estado e segurança, a fala de Spinoza traduz a essência do Estado Moderno, bem como suas contradições. É ele quem diz que "O Estado Moderno não é uma questão de segurança, mas de liberdade". (ESPINOSA, Tratactus politicus. Haya, Van Vloten e Oland. 1914 (trechos reproduzidos: Biblioteca UENF) Perspectiva já estudada por segmentos que vão da academia aos movimentos sociais, a relação cidadania-segurança se impõe como modelo de convivência democrática no Estado de Direito. O binômio cidadaniasegurança vem se colocando como um exigente patamar político que necessita ser cuidado no cotidiano por todos os segmentos que compõem a malha social. Precisa-se observar que a superação da insegurança se dá através de atitudes afirmativas, fundadas nos atos concretos praticados entre segmentos de segurança pública, no interior dos órgãos de segurança e, entre as diversas forças mobilizadoras da sociedade. É necessário abolir a mentalidade fracionadora que restringe as questões de segurança ao nível da criminalidade. No mundo atual, somente a partir de uma visão global das questões que dizem respeito à qualidade de vida de uma sociedade, dos avanços tecnológicos-científicos é possível interpretar a questão de segurança como multifacetária, interligada aos fenômenos sociais. Os episódios recentes de ataques terroristas na Europa e nos Estados Unidos revelaram ao mundo novo, que mesmo em tempos de discussões mundiais acerca dos direitos humanos, o mundo nunca esteve tão distante da paz e do pacto universal que foi a utopia para o milênio que se inicia. A questão é que o homem contemporâneo já não acredita que o espaço do "privado" seja seguro, é como se vivesse sob a permanente ameaça de um ataque repentino à sua integridade. Esta paranóia, segundo o psiquiatra brasileiro Jorge Lima tem sido uma das características do tempo


contemporâneo. Há uma insegurança que se encontra no inconsciente, ameaçando a consciência e a qualidade de vida das pessoas: (...) é uma construção de vida nos espaços sociais urbanos e nasce da indiferenciação entre o público e o privado. Se estou na rua, sou assaltada, se estou em casa, a TV apresenta filmes de filmes violentos. Não há saída. (LIMA, Jorge, O imaginário do medo: uma construção coletiva. São Paulo, Zahar, 2001, p.23).

As políticas públicas de segurança se apresentam hoje, como uma questão filosófica e política. Isto significa dizer que as condições para atingir estas políticas estão diretamente ligadas à forma com que as sociedades contemporâneas as encaminham, delimitam e protegem, frente às instituições jurídicas e políticas existentes. Claude LEFORT comenta: “nada se pode dizer de rigoroso sobre políticas públicas de segurança enquanto não se examinar se essas políticas têm uma significação propriamente política, e nada se pode avançar sobre a natureza do político que não ponha em jogo uma idéia de existência ou, o que dá no mesmo, da coexistência humana.” (Pensando o político, São Paulo, Paz e Terra, 1991, pp.3842).

A posição do Estado, quase que se confunde com a do homem comum, caracterizando-se pela impotência parcial e pela impotência total. É no limite destes pólos que as políticas públicas de Segurança atuam, realizando, em muitos casos, as contradições dos próprios sistemas institucionalizados. Recentemente, uma pesquisa feita por um instituto abalizado no campo das pesquisas populares, o Data Folha, – em todos os estados brasileiros, – concluiu que na amostragem dos resultados obtidos junto à população consultada, o problema político que nenhum dos dirigentes conseguiu resolver é o da segurança. Um depoimento feito por um prefeito de um município do norte fluminense (Estado do Rio de Janeiro) comenta as dificuldades em manter a segurança nestes tempos em que a violência parece ter sido banalizada: Criamos a Guarda Municipal para atender as comunidades, mas já existem guardas concursados que estão pedindo demissão, porque temem atuar nas comunidades mais violentas. Na verdade, não esperávamos esta meação”. (RAMOS, Saulo, Jornal Monitor Campista, “Coluna Política”, mar., 1999, p.3).

Sobre isto, é importante acentuar a posição dos autores como Antunes Cfr. ANTUNES, Ricardo. “Os sentidos do trabalho, ensaio sobre a


afirmação e a negação do trabalho”, (São Paulo, Bontempo, 1999 p. 45), quando este aborda o fato de que a ditadura transformou “antigos adversários em agentes póstumos”. Com isto ele quer dizer que o que restou no retorno à democracia, foi um ranço de opressão, hoje representado exatamente, pelos setores que cuidam da segurança. Quando fala na participação como um dos caminhos para o resgate da segurança sob o ponto de vista da cidadania Gloria Gohn comenta a situação dos profissionais da área: Não são apenas as condições materiais, salários, ou uma boa engenharia do trabalho técnico (ainda que inclua os aspectos sociais) que cria, estimula ou desenvolve a participação. A motivação, os valores, a mentalidade, são elementos constitutivos da cultura da participação. O não reconhecimento dos esforços desenvolvidos pelos profissionais da Segurança e a não valorização do seu trabalho, são elementos de grande estímulo à participação. (GOHN, Glória, “Educação, trabalho, segurança e lutas sociais” em: A Cidadania negada. São Paulo, Cortez, Clacso, 2001, p.117).

Segundo a Polícia Militar do Rio de Janeiro, nos últimos aos, quase mil (1.000) guardas da Polícia Militar, maior grupo na ativa, foram expulsos por mau comportamento, inquéritos, deserções e outras infrações que segundo o Código Disciplinar da Instituição, exige o afastamento. O destinatário da prestação de serviços de segurança deve ser o cidadão a serviço da cidadania. Para tanto, o treinamento e reciclagem de todos os quadros da segurança pública é uma das medidas fundamentais para direcionar os seus serviços para a proteção do cidadão, desenvolvendo tarefas educativas, preventivas, de controle e de serviços. Faz-se mister implementar a cidadania nas corporações, a fim de que as injustiças não sejam cometidas em seu interior. Esta situação é fruto de um contexto social que coloca os policiais hoje, como profissionais desvalorizados e mal qualificados, que diante da convivência com marginais e criminosos, acabam se corrompendo, colocando as necessidades acima da ética. Além disso, em razão da ausência de condições de trabalho, entre as quais inclui-se a segurança, a maior parte dos jovens não quer entrar para o quadro policial. Se forem da classe média e estiverem estudando, a questão é mais séria, pois a maioria irá optar por carreiras liberais e não pelas carreiras ligadas à segurança. Em


contrapartida, resta aos que não conseguiram optar por outras profissões consideradas socialmente “nobres”, realizarem concursos públicos para profissões como bombeiros e policiais, que em muitos países da América Latina, não exigem um nível de escolaridade superior. Diante desta realidade, o que se tem hoje, é uma força policial composta por indivíduos que realizam seu trabalho por força da sobrevivência. Esta situação, ao longo dos anos, tem retirado o respeito que os cidadãos deveriam ter pelos policiais, que carregam os estereótipos da violência e do descaso com o destino daqueles aos quais deveriam proteger. As políticas públicas de segurança têm por objetivo proteger a população, mas na medida em que isto não ocorre, as pessoas físicas, se vêem obrigadas a privatizar serviços que se encontram na ordem do público. Quem tem condição contrata firmas de segurança para proteger suas casas, seus comércios, criando um círculo vicioso. A crise do Estado contemporâneo, em face da segurança e os mecanismos administrativos-políticos para sua conquista, não pode ignorar a crescente complexidade das tarefas estatais: no primeiro momento, o Estado se especializou na clássica tarefa de preservar a ordem; depois, na função da justa distribuição das compensações sociais e, finalmente, na administração das situações de segurança. Jürgen HABERMAS nesse sentido comenta: “a domesticação do poder estatal absolutista, a superação da pobreza gerada pelo capitalismo e a tomada de precauções contra os riscos criados pela ciência e pela tecnologia fornecem os temas e finalidade de cada época: a certeza ou segurança jurídica, o bemestar social e a prevenção. As formas típico-ideais do Estado – o Estado de Direito (Rechtsstaat), o Estado de Bem-Estar Social e o Estado de Segurança (security state) – devem então ser talhados para essa finalidade.” (Between facts and norms, Londres, Polity Press, 996, pp.434 et seq.).

Os problemas de violência, de nova criminalidade, de delitos de exclusão social, de crimes tecnológicos e transnacionais devem ser enfrentados por técnicas novas, lastreadas na ciência. A segurança pública trabalha, em geral, com situações do cotidiano, estando despreparada para delitos contemporâneos, como os ataques terroristas, guerras biológicas, cartéis de drogas, crimes eletrônicos e o desenvolvimento de grupos criminosos, que se confundem com os governos e com empresas legais. A idéia mestra da segurança convivendo com a cidadania, na


perspectiva do Estado Democrático de Direito no constitucionalismo global, consiste na participação de todos os segmentos sociais no processo de desenvolvimento e promoção social, abrangendo a distribuição de bens materiais e imateriais indispensáveis à existência socialmente digna, a proteção dos interesses difusos e individuais, o controle do poder político, a administração

da

segurança

pública

e

a

proteção

dos

interesses

transnacionais. Nessa afirmativa, estão incluídos todos os Estados da ordem mundial, sejam os países centrais ou periféricos. No

contexto

contemporâneo

a

saída

para

a

questão

da

segurança, ainda encontra-se, segundo um número significativo de autores, no

chamado

pacto

social,

nascido

do

consenso

entre

as

diversas

representações dos segmentos da sociedade (associações de bairros, partidos políticos, sindicatos, instituições...), no qual as comunidades têm um papel essencial, no que toca à participação e à tomada de decisões, visto ser neste caso, a participação da sociedade civil organizada, a principal garantia de segurança. Os estados e municípios que têm investido nos chamados “agentes de segurança”, que atuam junto às comunidades, e além de oferecer segurança, realizam um trabalho de base, têm alcançado bons resultados. Por outro lado, estes agentes recebem treinamento especial, aprendendo a lidar com todos os problemas que envolvem a violência, sobretudo na periferia. A remuneração destes agentes deve ser diferenciada dentro do quadro da Polícia Civil, para que não aconteça o que já vem ocorrendo com o restante do quantitativo policial, ou seja, a corrupção e a debandada para o crime, pois no contexto atual, um dos principais problemas da força policial são os baixos salários e as oportunidades que eles têm nas ruas, de ganhos ilícitos. (FREIRE, Folha de São Paulo. Caderno “Folha Ilustrada”, São Paulo, 16/10/2000, p.5).

Enquanto as políticas públicas de segurança forem traçadas nos gabinetes por burocratas, os problemas com a violência de policiais nas ruas e de problemas ligados a questões como drogas, estelionato, seqüestros, crimes, vão continuar, sobretudo neste momento vivido pelas sociedades, que é o de luta pela sobrevivência no mundo do desemprego, do aumento das

desigualdades,

do

terrorismo

organizado,

do

medo

presente

no


inconsciente coletivo. Voltando a Bobbio, é mais do que urgente que a sociedade retome valores éticos nas suas relações, investindo na tolerância na

solidariedade,

na

autonomia,

formando

novas

mentalidades,

que

compreendam a cidadania como caminho para a Paz e para a valorização do “humano”, através do respeito de todos à dignidade humana e aos direitos fundamentais. Essas são algumas sugestões para o encaminhamento dos problemas de segurança pública. É preciso lembrar de seus limites, uma vez que o problema da violência está associado a fatores econômicos, culturais e de impacto dos novos meios de comunicação, que não podem ser resolvidos pelo sistema de segurança isoladamente. A vida social, em todas as formas que conhecemos na espécie humana, não está imune ao que se denomina, no senso comum, de violência, isto é, o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros. Violência não se limita ao uso da força física, mas à possibilidade ou ameaça de usá-la. A própria noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida social, à proporção que ela efetiva-se através da dinâmica das relações sociais. Então, a diferença é, ao mesmo tempo, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito. A segurança pública como direito, consiste na preservação ou restabelecimento da convivência social, que permite que todos usufruam seus direitos e exerçam suas atividades dentro da sociedade. Trata-se de uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas fora dos padrões estabelecidos por uma comunidade. A população tem um alto grau de preocupação com a segurança, com a violência dos nossos dias, com a violência urbana. Em verdade, os problemas de segurança decorrem de inúmeros fatores sociais e econômicos como as profundas desigualdades sociais, o desemprego, a desestruturação familiar. Durante anos ou décadas, o mundo ainda sentirá e discutirá os efeitos do dia que desencadeou uma crise de muitos ângulos: mostrou que o terror pode ter várias faces e abrigos; fez desmoronar o mito da segurança e invulnerabilidade do país mais poderoso do mundo; trouxe de volta a tese do


choque de civilizações; obrigou os Estados Unidos da América do Norte a travarem a primeira guerra do século XXI – guerra que vai ensinar ao mundo que a globalização da democracia é um dos horizontes desta época. Cabe indagar se a humanidade tem o direito de se silenciar diante de atrocidades cometidas em nome de tradições irracionais e da autodeterminação dos povos, ou ainda, questionar se não terá a comunidade internacional o dever de intervir em Estados quando estes, ainda que pela vontade religiosa de um povo, promoverem violações em massa de direitos humanos, tais como este lamentável ato de insanidade. Não se crê que os crimes e tragédias da história tenham suas raízes na natureza humana: são erros que podem ser corrigidos com mais respeito ao cidadão, com instituições políticas melhores, melhores padrões de vida. Os marxistas e os liberais do mercado podem divergir sobre qual é o melhor sistema econômico, mas para ambos, os interesses e a irracionalidade humana sozinhos permanecem entre a raça humana e um futuro melhor. Equilibrar os termos de uma complexa equação como esta, é uma das tarefas mais delicadas que se impõe ao direito contemporâneo globalizado. A conexão entre soberania e violência, que emerge de sua dimensão histórica, revela-se a cada momento no qual a violência se torna soberana. A consciência da violência como problema fundamental da sociedade perpassa toda a modernidade, mas há, ao mesmo tempo, tranqüilizador direcionamento, de que retirada a violência do conjunto do sistema social e colocada no sistema de Direito e da política, é possível a existência da ordem social. Para resolver a crise que acompanha a segurança, a violência e a globalização, o trans-modernismo propõe a substituição do modelo jurídico da modernidade, fundado no monopólio estatal do uso legítimo da força e da produção de normas jurídicas, por um sistema jurídico com vários centros, voltado para a resolução consensual dos conflitos. O direito trans-moderno torna-se mais flexível e menos autoritário. O Estado cada vez menos dita normas imperativas de conduta, porém, procura cada vez mais soluções negociadas com as partes interessadas; ao invés de obrigar, através de


regras coercitivas, o Estado tenta induzir os atores sociais à observância de comportamentos que considera positivos. Pensar políticas de segurança que acabem com a violência e resgatem os valores éticos da convivência humana é pensar em ações integradas no campo social, que ampliem as formas de participação das comunidades

pobres

e

periféricas,

na

co-responsabilidade

com

seus

destinos. É preciso enfrentar o problema da segurança pública com a compreensão de que ela só terá solução do ponto de vista de suas causas mais profundas, quando se constituírem as condições econômicas, sociais, culturais e políticas que assegurem a efetividade dos direitos humanos com justiça social, tendo por objetivo maior uma autêntica e concreta significação da dignidade da pessoa humana. Exercer a cidadania em relação à segurança pode estimular mudanças na qualidade de vida das pessoas: um passo importante para exigir acesso à saúde, à educação, ao trabalho digno, etc. somente através de ações que contemplem a perspectiva de dignidade da vida humana e concretizem-se

através

da

participação

social,

poderemos

esperar

a

construção de relações de convivência pacíficas e orientadas pela ótica do respeito ao outro. A segurança sustentável passa da utopia à realidade apenas quando pode interessar à sociedade de forma global e duradoura, não se constituindo num privilégio de poucos, mas num projeto de muitos. Tal como a democracia, a cidadania evolui com o tempo e se constrói tendo como base os direitos fundamentais do homem, requerendo providências estatais para a satisfação de todos esses direitos e a ordem a ser assegurada é a ordem democrática, a ordem de pessoas livres, fato que gera a noção da segurança pública protetora da cidadania. A segurança da liberdade é a única compatível com a democracia, porque é destinada a proteger todos os cidadãos indiscriminadamente, porque a segurança é direito da cidadania, constituindo-se como garantia da vida em sociedade. A

falta

de

segurança

abre

espaços

para

que

grupos


marginalizados criem uma revolta contra o institucional, e diante da violência que recebem no dia-a-dia, cultivem mais violência. Cada vez mais é necessário que haja vontade política por parte dos que detém o poder, para que os projetos voltados para as comunidades criem objetivos de justiça social visando a participação dos marginalizados socialmente em atividades construtivas na integração social e, que sejam valorizadas e apoiadas por todos os segmentos sociais. Vivenciar a democracia pelo que ela tem de mais importante que é a participação popular é criar espaços alternativos para que crianças, jovens e adultos exercitem a cidadania, com base em valores éticos universais. A responsabilidade de todos depende também de uma educação de qualidade voltada para os processos formativos humanizadores; uma saúde que tenha caráter preventivo e alcance todos os segmentos sociais; condições de saneamento e habitação, que possibilitem às populações criarem a visão de pertencer ao seu lugar; lazer e cultura, no sentido de possibilitar que as comunidades se reconheçam nas manifestações artísticas; alternativas para o exercício do trabalho e da criatividade.


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el


1 A Hermenêutica Constitucional

Maurício Crespo Rangel Mestre em Direito Especialista em Direito do Trabalho

I-) Introdução: O papel da constituição vem sofrendo alterações ao longo da história e também, por via reflexa, a importância de sua interpretação vem sendo revista gradativamente. Dessa forma, é importante o estudo da atual função da interpretação constitucional e do seu papel na efetivação dos valores consagrados no texto maior. Com o crescente processo de jurisdicização do discurso político e da luta por direitos coletivos e individuais de valorização da pessoa humana, devido ao advento do Estado Social, a interpretação constitucional deixa de ser de interesse exclusivo do direito para alcançar outra ciências como a sociologia e a filosofia. Além disso, a crescente internacionalização econômica, aos moldes da União Européia, dá ao direito uma importância maior como elemento concretizador desta realidade, uma vez que substitui o paradigma político pelo jurídico como elo entre o Estado e a nova comunidade internacional. Com isso, há uma valorização do papel do Juiz e, conseqüentemente, um fortalecimento dos instrumentos interpretativos. Não existe na literatura, nem na jurisprudência, uma teoria dos métodos interpretativos da Constituição que nos esclareça se é possível e necessário adotar-se um método previamente estabelecido ou uma ordem metodológica


2 concreta, um fato que embora não chegue a configurar uma falta inexplicável, por certo reflete a consciência de que não tem maior significado nos aproximarmos da interpretação através dos seus métodos . Em razão da variedade de recursos hermenêuticos e do modo, até certo ponto desordenado, como eles são utilizados pelos seus operadores, o primeiro e grande problema com que se defrontam os intérpretes da constituição parece residir, de um lado e paradoxalmente, nessa riqueza de possibilidades e, de outro, na inexistência de critérios que possam validar a escolha dos seus instrumentos de trabalho e resolver os eventuais conflitos entre eles. Seja em função dos casos a decidir, das normas a manejar ou, até mesmo, dos objetivos que pretendam alcançar em dada situação hermenêutica, os intérpretes não parecem seguros para fazer qualquer opção, o que, tudo somado, aponta para a necessidade de complementações e restrições recíprocas, num ir e vir entre os instrumentos disponíveis. Apesar das incertezas daí decorrentes, autores existem, hoje em maioria, que enaltecem as virtudes dessa riqueza instrumental sob o argumento de que, em face da extrema complexidade do trabalho hermenêutico, todo pluralismo é saudável, não se constitui em obstáculo, antes colabora, para o conhecimento da verdade e, afinal, desde que racionalmente

aproveitado,

ao

invés

de

embaraçar

os

operadores

jurídicos, acaba ampliando o horizonte de compreensão e facilitando a aplicação do direito.

II-) Definição : A hermenêutica tem por objetivo investigar e coordenar por modo sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e interpretação; por meio de regras e processos especiais procura realizar, praticamente, estes princípios e estas leis científicas. A aplicação das normas


3 jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos assim interpretados, às situações de fato que se lhes subordinam.[1] A palavra intérprete tem origem latina (interpres), que significava aquele que descobria o futuro nas entranhas. Modernamente, a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos e de princípios, uns e outros desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas - filosóficas, metodológicas, epistemológicas - diferentes mas, em geral, reciprocamente complementares, o que evidencia o caráter unitário da atividade hermenêutica.

III-) Finalidade da Interpretação Constitucional: Na ótica tradicionalista liberal, a interpretação constitucional serve apenas para adequar a norma ao texto da carta magna por meio dos processos de controle de constitucionalidade (concentrado e difuso) relegando-o a um mero exame da supremacia hierárquica da norma constitucional e de sua aplicação suplementar na lacuna da lei infraconstitucional. Esta posição ainda prevalece em nosso Supremo Tribunal Federal. Atualmente, busca-se uma visão mais ampla e funcional da Constituição para que sua interpretação possa dar maior efetividade aos valores nela consagrados. Habermas explica que o processo hermenêutico é o entrelaçamento de uma situação fática com a concretização das normas gerias.. O que decide a questão é um juízo de equivalência entre a norma e o fato concreto. [2] Mauro Cappelletti assevera que se trata de uma atividade discricionária e eqüitativa, ou seja, com o cunho político próximo à atividade legislativa. [1]

[2]

[RÁO, Vicente. O direito e vida dos direitos. São Paulo: Max Limonad, 1952. p. 542]

[HABERMAS ,Jürgen. FATlCIDADE. Uma lntrodução à Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, tradução provisória e não autorizada, exclusivamente para uso acadêmico Menelick de Carvalho Netto, Estudo Dirigido - Cursos de Pós-Graduação em Direito da UFMG, Belo Horizonte, 1996, cap. 5, p. 24.]


4 Errnst Wolfgang Böckenford ensina que a metodologia interpretativa não pode assumir uma postura dissolvedora ou destruidora da própria norma constitucional. [3] Kelsen e Calamandrei consideram a interpretação constitucional como uma atividade mais legislativa do que jurisdicional. [4]

IV-) Espécies de Interpretação Constitucional: Hans Kelsen[5] afirma haver duas espécies de interpretação: a) Autêntica, como fonte de direito, que é feita pela entidade que o aplica (jurisprudência). b) Não autêntica, realizada por entidade não jurídica, principalmente pelos doutrinadores. Não é fonte de direito por ser “pura determinação cogniscitiva do sentido das normas jurídicas” sem o poder de vincular o intérprete autêntico. Também ensina que não há apenas uma interpretação correta, mas sim várias possibilidades que seriam importantes para que o legislador possa aperfeiçoar a norma, aproximando-a da maioria e alcançando, assim, a segurança jurídica. Para José Ribas Vieira existem dois sistemas metodológicos a serem observados: o Sistema Norte-americano e o Sistema Alemão. Em ambos existem duas correntes, uma interpretativista eo utra não interpretativista. Sistema Norte-americano: A corrente interpretativista adota os métodos clássicos de interprtação, porém respeitados ao máximo os parâmetros da norma constitucional.

[3]

[BÖCKENFORD, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre Derechos Constitucionales.Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellchaft, 1993.] [4]

[CALAMANDREI, Piero e LEVI, Alessandro. Commentário Sistematico alla Costituzione italiana, G. Barbéra Editore, Firenze, 1950] [5] [Teoria Pura do Direito, tradução João Batista Machado, Coimbra, 1979, p. 472.]


5 A segunda corrente de perfil não interpretativista busca uma compreensão da norma constitucional para além de suas fronteiras, adequada a padrões morais, chamados por Dworkin de “Bill of Rights”. Sistema Alemão : Neste sistema há também duas correntes: uma com uma visão tradicionalista, interpretativista, seguindo as lições de Savigny e outra mais aberta, buscando o benefício da sociedade, nos moldes da República de Weimar. Como visto, não existe na doutrina nenhum método que se sobreponha a outro. Para Kelsen todos os métodos conduzem a uma solução possível, no mesmo sentido Zagrebelsky[6] afirma que quanto mais numerosos forem os métodos, maiores as possibilidades de se alcançar a finalidade interpretativa. Para ele os métodos constituem limitação e meio de busca. Canotilho[7] ao enumerar os métodos de interpretação, ressalva que não há prevalência entre eles, sendo necessário empregar um conjunto de métodos.

[6]

[Zagrebelky, Gustavo. La Corte Constitucionaly la interpretación de la Constituiçón. Tecnos. Madri, 1996, p. 169]

[7]

[CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 1995]


6

V-) Métodos de Interpretação Constitucional: Além dos quatro “métodos” ou elementos clássicos desenvolvidos por Savigny - o gramatical, o lógico, o histórico e o sistemático – podemos encontrar na doutrina outros métodos contemporâneos assim classificados:

1 - Método jurídico ou hermenêutico clássico: segundo o qual, interpretase a Constituição da mesma forma que uma lei, preservando, assim, o principio da legalidade, sendo a função do intérprete buscar o sentido do texto, sem extrapolar ou contrariar o seu teor literal. "A interpretação constitucional não é de natureza diferente da que se opera noutras áreas. Como toda interpretação jurídica, está estreitamente conexa com a aplicação do Direito; não se destina à enunciação abstrata de conceitos, destina-se à conformação da vida pela norma."; [8] 2- Método tópico-problemático: a interpretação da Constituição seria um processo aberto de argumentação, com pluralidade de intérpretes, buscando adaptar a norma constitucional ao problema concreto. Este método de interpretação é criticado porque o ponto de partida para se buscar o sentido da

[8]

[MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, ob. cit., p. 227]


7 norma não pode ser o problema, mas sim, o inverso, ou seja, parte-se da norma para solucionar o problema, a fim de evitar casuísmos. 3 - Método hermenêutico concretizador: parte da idéia da existência de uma pré compreensão da norma pelo intérprete. Esta teoria é tributada a Konrad Messe e se afasta do método tópico por reconhecer a supremacia constitucional sobre o problema. Zagrebelsky

[9]

afirma que os métodos não têm tanto

significado em si mesmos, senão como instrumentos interpretativos que encontram sentido em outro lugar, exatamente nas categorizações de sentido e valor subjacentes à "precomprensión". "A atividade judicante não se configura apenas no reconhecer e no expressar decisões do legislador A tarefa do poder judiciário pode particularmente exigir o trazer à luz e o realizar em decisões representações de valores, que são imanentes à ordem jurídica constitucional, mas que não, ou apenas incompletamente, chegaram à expressão nos textos das leis escritas, em um ato de reconhecimento valorizador; ao qual também não faltam elementos volitivos "; [10] 4 - Método científico-espiritual: pressupõe uma ordem ou sistema de valores consagrados na Constituição, que deve significar um sentido de integração. Deve conduzir à articulação da norma constitucional com a "integração espiritual real da comunidade (com os seus valores, com a realidade existencial do Estado)" Tribunal Constitucional da Espanha ao decidir sobre a descriminação parcial do aborto concretizou este método valorativo, através da "composición más moderada"[11] para resolver o conflito entre os direitos fundamentais da mãe e a vida do nascituro, considerando esta como um bem constitucionalmente protegido em sua forma mais penetrante e intensa possível (sentença 53/85); [9]

[ZAGREBELSKY, Gustavo. La Corte Constitucional y la Interpretación de la Constituición, p. 171] [10]

[HECK, Luiz Afonso, O Tribunal Constitucional Federal e o Desenvolvimento dos Princípios Constitucionais, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1995, p. 210]

[11] [RODRIGUEZ-ZAPATA, Jorge, Metodosy Critérios dela Interpretación de la Constituición en los Seis Primeiros Años de Actividade deI Tribunal Constitucional Division de Poderes e Interpretación - Hacia un Teoria de La Praxis Constitucional, edicion Antônio Lopez Pina, Tecnos, Madrid, 1996, p. 160; 72]


8

5- Método normativo-estruturante: este método parte da premissa de que existe uma implicação necessária entre o programa normativo e o âmbito normativo, entre os preceitos jurídicos e a realidade que eles intentam regular, uma vinculação tão estreita que a própria normatividade, tradicionalmente vista como atributo essencial dos comandos jurídicos, parece ter sido condenada a evadir-se dos textos e buscar apoio fora do ordenamento para tornar eficazes os seus propósitos normalitadores. Dessa forma, na tarefa de concretizar a norma constitucional, o aplicador, para fazer justiça à complexidade e magnitude do seu trabalho, deverá considerar não somente os elementos resultantes da interpretação do programa normativo que no dizer de Friedrich Müller constituem apenas "ponta do iceberg" - mas também os decorrentes da investigação do seu âmbito normativo, que igualmente pertence à norma, e com igual hierarquia, enquanto representa o pedaço da realidade social que o programa normativo "escolheu" ou, em parte, criou para si, como seu espaço de regulamentação. Refletindo, igualmente, essa mudança de rumos, nos dirá Konrad Hesse que a interpretação constitucional é concretização; que precisamente aquilo que não aparece, de forma clara, como conteúdo da Constituição, é o que deve ser determinado mediante a incorporação da realidade, de cuja ordenação se trata; que o conteúdo da norma interpretada só se torna completo com a sua interpretação e, assim, não pode realizar-se baseado apenas nas pretensões contidas nas normas, ainda mais quando o texto dessas normas se mostrar genérico, incompleto e indeterminado; que, para dirigir a conduta humana em cada situação, a norma, mais ou menos fragmentária, precisa de concretização, o que só será possível se nesse processo forem levadas em consideração, junto ao contexto normativo, também as peculiaridades das concretas relações vitais que essa norma pretende regular; e que, finalmente, à vista disso tudo, o processo de realização da norma constitucional não pode desprezar essas particularidades, sob pena de fracassar diante dos problemas que a Constituição é chamada a resolver. Conseqüentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: com os elementos resultantes da


9 interpretação do texto da norma (= elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa)" [12]

VI-) Princípios da Interpretação Constitucional : A interpretação constitucional tem princípios próprios, porém utiliza-se, também, dos princípios gerais do direito para alcançar seus objetivos, por ser a Constituição considerada uma norma de direito, no entanto as disposições constitucionais têm um alcance mais amplo do que as normas infraconstitucionais. Tais princípios, para a maioria dos autores, são os da unidade da constituição; da concordância prática; da correção funcional; da eficácia integradora; da força normativa da constituição; e da máxima efetividade. Afora esses, apontam-se, ainda, embora não estejam ligados exclusivamente à exegese constitucional, os princípios da proporcionalidade ou razoabilidade; o da interpretação conforme a constituição; e o da presunção de constitucionalidade das leis, sendo o primeiro um princípio de ponderação, que se reputa aplicável ao direito, em geral, enquanto os dois últimos são utilizados essencialmente no controle de constitucionalidade das leis. O ponto de partida do hermeneuta são os princípios de interpretação constitucional, assim entendido o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. No dizer de Canotilho, "refletindo a idéia de que a teoria da interpretação é hoje um conjunto de métodos, o catálogo dos princípios tópicos da interpretação constitucional foi desenvolvido a partir de uma postura metódica hermenêutico-

[12]

[CANOTILHO, Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, cap. 5, p.. 215]


10 concretizante (...) e tornou-se ponto de referência obrigatório da teoria da interpretação constitucional."

Definição de Princípios: Não basta definir e conhecer os princípios, mas também como eles podem ser utilizados como instrumento para a melhoria da vida em sociedade e, conseqüentemente, a melhorias das condições da vida humana. Atualmente, ainda prevalece no Brasil o entendimento liberal de que norma é aquela que está positivada e, portanto, princípio é apenas uma forma de integração da norma, em caso de lacuna. Porém, o entendimento que vem se solidificando é de que o princípio é uma espécie de norma jurídica e pode conter um grau de abstração e generalidade maiores que as normas em geral. É, por exemplo, a norma constitucional. No dicionário jurídico princípios são: " [...] as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. Assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tido em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. Princípios jurídicos significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Nessa acepção, não se


11 compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito. [...] Assim, nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos."[13] Os princípios são mandatos de otimização "que estão caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferente grau e que a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais senão também das jurídicas". O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. As regras, seriam normas que podem ser cumpridas ou não. Em sendo válida, nada há que se fazer, senão o que ela prescreva, nem mais, nem menos. As regras, assim, "contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível" Em face de tais observações constata que a diferença entre regras e princípios seria de natureza qualificativa e não de grau. [14] Segundo Riccardo Guastini,[15] os princípios são normas que servem de fundamento para outras normas. Para Miguel Reale, princípios são verdades fundamentais que servem de suporte ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos. [16] Para o professor Flávio Alves Martins[17], citando Rubio, princípio é um primeiro passo para obtenção da regra, tem essência normativa, pois impõe uma forma de conduta. [13]

[SILVA, De Plácio e. Vocabulário jurídico. 15.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro : Forense, 1999.] [Alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. espanhola de Ernesto Gazón. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.] [14]

[15]

[GUASTINI, Riccardo. Teoria e dogmatica delle fonti. In: CICU, Antonio; MESSINEO, Francesco. Trattato di Diritto Civile e Commerciale. Milão: Giuffrè, 1998.]

[16]

[17]

[REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986.]

[MARTINS, Flávio Alves. A Boa-Fé Objetiva e sua Formalização no Direito das Obrigações. 2 ed. Lúmen Júris: Rio de Janeiro. 2001.]


12 O entendimento de princípio como sendo, ou não, uma norma jurídica é de fundamental importância para convencer o Juiz no momento em que este for aplicar o direito nos casos de conflito entre a lei positivada e os princípios aos quais ela deve obediência ou mesmo na ausência de preceito expresso que não traga segurança para adotar-se uma solução.

VII-) Postulado do legislador racional : Inicialmente merece destaque, por seu alcance e fecundidade, o postulado do legislador racional, um topos hermenêutico que embora não integre o elenco dos cânones da interpretação constitucional - até porque os precede e transcende - para ela se mostrade fundamental importância. Como assinala Santiago Nino, o postulado do legislador racional é uma quase-hipótese, que se aceita dogmaticamente, sem submetê-la a nenhuma contrasteação fática ou comprovação empírica, uma pauta normativa de aparência descritiva, por força de cujos mandamentos o jurista interpreta o direito positivo como se este e o legislador que o produziu fossem racionais, motivado pela certeza de que pagando esse preço poderá extrair do ordenamento jurídico, assim otimizado, todas as regras de interpretação de que necessita para justificar as suas decisões. Noutras palavras, o jurista antropomorfiza a figura do legislador ideal e, desde logo, atribui-lhe os divinos predicados - ele é singular; imperecível; único; consciente; finalista; onisciente; justo; onipotente; coerente; onicompreensivo; econômico; preciso e operativo - de que precisa para preservar as valorações subjacentes às opções normativas e, ao mesmo tempo, ocultar a ideologia que as motivou. Com efeito, se o legislador real é racional, não se podendo duvidar dessa premissa nem submetê-la a testes de refutação, impõe-se a conclusão lógicodescritiva de que o ordenamento jurídico, que ele institui à sua imagem e


13 semelhança, também ostenta esse predicado, com todas as suas benéficas conseqüências. Daí, a título de exemplo, poder-se afirmar, categoricamente, que no ordenamento jurídico não existem lacunas, redundâncias ou contradições; que ele é preciso, finalista, operativo e dinâmico; e que, por tudo isso, o jurista tem condições de resolver os problemas de aplicação do direito dentro do próprio sistema jurídico e com os instrumentos de que este dispõe, sem necessidade de apelar para instâncias abstratas ou suprapositivas - como o desgastado direito natural ou a indefinível natureza das coisas - que lhe permitem descobrir saídas na exata medida em que debilitam a força de persuasão das soluções inventadas. A simples referência a qualquer dessas máximas de interpretação - que são inferidas do postulado do legislador racional mas se apresentam como proposições descritivas do próprio direito positivo - parece suficiente para mostrar a fecundidade desse topos hermenêutico e o seu vínculo de paternidade com os chamados princípios da interpretação constitucional, os quais, em relação a ele, podem ser considerados apenas subprincípios. Destarte, do postulado de que o ordenamento jurídico é onicompreensivo, operativo e coerente, extraem-se, pelo menos, estas três regras de interpretação: · Os preceitos da constituição incidem sobre todas as relações sociais, seja regulando-as expressamente, seja assegurando aos seus "jurisdicionados" aqueles espaços livres do direito de que todos precisam para o pleno desenvolvimento da sua personalidade; · Não existem normas sobrando no texto da constituição, todas são vigentes e operativas, cabendo ao intérprete tão-somente descobrir o âmbito de incidência de cada uma, ao invés de admitir que o constituinte, racional também do ponto de vista econômico, possa ter gasto mais de uma palavra para dizer a mesma coisa; e, · Não ocorrem conflitos reais entre as normas da constituição, mas apenas conflitos aparentes, seja porque foram promulgadas conjuntamente, seja porque não existe hierarquia nem ordem de precedência entre as suas disposições. Quanto ao modo como se utilizam os princípios da interpretação constitucional, também aqui se impõe advertir que são múltiplos os problemas relativos ao seu manejo, sobretudo naquelas situações hermenêuticas em que diferentes cânones


14 interpretativos, à primeira vista, se mostrem igualmente aplicáveis em dada situação hermenêutica mas os seus resultados se evidenciem inconciliáveis. Nessas situações de conflito, tal como se verifica no manejo dos diferentes métodos de interpretação, também se aplica a idéia de um jogo concertado, de restrições e complementações recíprocas, entre os cânones interpretativos concorrentes, com vistas à sua necessária conciliação.

VIII-) Princípio da Unidade da Constituição: o intérprete deve considerar os preceitos constitucionais como integrados num sistema interno unitário de normas e princípios. A credibilidade na unidade do sistema assegura que se alcance a máxima energia normativa "; [18] IX-) Princípio da concordância prática ou da harmonização: Deve-se através deste princípio evitar o sacrifício total de determinado bem jurídico em relação a outros. X-) Princípio da correção ou da 'justeza" funcional: Significa que o órgão encarregado da interpretação da lei constitucional não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório funcional constitucionalmente estabelecido. XI-) Princípio do efeito integrador: "Arranca da conflitualidade constitucionalmente racionalizada para conduzir a soluções pluralisticamente integradoras".[19] Segundo Dworkin, "o principio relevante para urna determinada questão certamente goze de prioridade, os princípios 'preteridos, tomados em segundo plano', não perdem sua validade. Dependendo do caso em tela de juízo, um princípio adquire prioridade, assume precedência, sobre os demais De caso para [18] [19]

[MIRANDA, ob. cit., p. 228] [CANOTILHO, ob. cit., p. 227]


15 caso distintas ordens transitivas são estabelecidas entre os princípios sem que isso afete sua validade."[20] As contradições de princípios, devem ser superadas através da "redução proporcionada do respectivo alcance e âmbito e da cedência de parte a parte e noutros casos, mediante a preferência ou a prioridade, na efectivação, de certos princípios frente aos restantes - nuns casos, pois através de coordenação noutros através de subordinação. " [21] XII-) Princípio da força normativa da constituição: Nas questões constitucionais devem prevalecer os pontos de vista que compreendam uma eficácia ótima da constituição, pois, assim, estar-se-á assegurando a sua eficácia e longevidade. "Todas as normas constitucionais têm de ser tomadas como normas da Constituição actual, da constituição que temos (conquanto com caráter prospectivo), e não como normas de uma Constituição futura, cuja execução não vincule, desta ou daquela maneira, os órgãos de poder e o legislador ordinário."

[22]

XIII-) Princípio da máxima efetividade: Ou da eficiência, ou da interpretação efetiva: a norma constitucional deve ter o sentido que lhe confira a maior eficácia possível, aplicável principalmente para assegurar os direitos fundamentais.

XIV-) Princípio da Razoabilidade : O princípio da razoabilidade não se encontra expressamente previsto sob esta epígrafe na Constituição de 1988. Isto, contudo, não permite se infira estar este princípio afastado do sistema constitucional pátrio, posto se pode auferi-lo implicitamente de alguns dispositivos, bem como do histórico de sua elaboração.

[20] [21] [22]

[HABERMAS, Jürgen. FACILIDADE E VALIDADE: Uma Introdução à Teoria ] [MIRANDA, ob. cit., p. 228.] [MIRANDA, ob. cit., p. 229.]


16 Em sua face processual, enquanto princípio do devido processo legal, encontra-se positivado no capítulo de direitos e garantias individuais, no artigo 5o., inciso LIV. Nesta mesma esfera, tocante à processualística penal da qual é oriundo, o inciso XXXIX do citado artigo expõe a idéia central do “nullum crimen, nulla poena, sine lege”. É, contudo, enquanto princípio conformador de direito material que a ausência de disposição expressa do princípio da razoabilidade é mais sentida. O apego desmedido ao Princípio da Separação dos Poderes tem lhe imposto barreiras a um desenvolvimento mais explícito. Mister é lembrar, todavia, que sua previsão constou dos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1988. Em certa altura dos trabalhos, lia-se na redação do artigo 44: “A administração pública, direta ou indireta, de qualquer dos Poderes obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, exigindo-se, como condição de validade dos atos administrativos, a motivação suficiente e, como requisito de sua legitimidade, a razoabilidade.” [22] Ainda que outra tenha sido a redação final do dispositivo, não se pode negar que a razoabilidade e a racionalidade integram de forma cabal o ordenamento constitucional brasileiro e constituem princípios inarredáveis para elaboração de leis e atuação do Poder Executivo, ensejando seu afastamento, em ambos os casos, impugnação

pelo

Poder

Judiciário,

sempre

que

perquirido,

também

estar

o

por

inconstitucionalidade destas medidas. José

Afonso

da

Silva[23]

afirma

princípio

da

“proporcionalidade razoável” consagrado enquanto princípio constitucional geral e explícito de tributação, traduzido na norma que impede a tributação com efeitos de confisco (artigo 150, IV). É vedado ao Poder Público tributar patrimônio de modo a impossibilitar sua manutenção pelo particular ou inviabilizar o uso econômico a que se destine, ressalvadas as exceções constitucionalmente previstas.

[22]

[Conforme nos ensina BARROSO, Luís Roberto. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Texto recolhido na Internet.]

[23]

[SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1997.]


17 Por último, cumpre destacar que a cada dia torna-se mais freqüente a alusão ao princípio ora em voga em diversos arestos de nossa Egrégia Corte. Assim, em Ação Direta de Inconstitucionalidade relatada pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence: “ (...) relevância da questão, embora complexa e delicada como sói, quando se cuida de verificar a razoabilidade ou não da distinção legal das situações de fato”.

[24]

Veja-se também as luminosas palavras do Ministro Marco

Aurélio em despacho: “ (...) Se a Corte de origem não dirimiu a matéria sob o ângulo constitucional, descabe assentar, contrariando até mesmo o princípio da razoabilidade, ou seja, a presunção do ordinário, que, se a Corte enfrentasse o tema, agiria de forma contrária ao que preconizado pela Lei Maior.” [25] Ou, ainda, em sede de mandado de injunção: “ (...)II. Mora legislativa: exigência e caracterização: critério de razoabilidade.” [26] Todavia, é possível notar, a partir das passagens acima citadas, que diversas são as oportunidades em que jurisprudência e doutrina utilizam os termos razoabilidade e proporcionalidade indistintamente. Embora esta imprecisão terminológica possa trazer algum prejuízo aos mais ciosos da rigidez acadêmica, mister é notar que em todas as oportunidades em que tem-se feito alusão a ditos princípios, esta tem estado em consonância com seus objetivos e conteúdo, que, de uma forma ou de outra, procuram garantir direitos ao cidadão em face de eventual arbítrio do poder estatal. XV-) Princípio da Proporcionalidade : O princípio da proporcionalidade insere-se na estrutura normativa da Constituição, junto aos demais princípios gerais norteadores da interpretação das regras constitucionais e infra-constitucionais. Uma vez que uma visão sistemática

[24]

[ADIn no. 489-1/600-DF. DJU, 22.11.91. Apud BARROS, Suzana. Ob. Cit., p.69.]

[25]

[Despacho exarado no Agravo de Instrumento no. 141.916-4-SP, em 22.02.94, publicado no DJU de 22.03.94. Apud BARROS, S. Ob. Cit., p.69.]

[26]

[Mandado de Injunção no. 361-1-RJ, Relator Ministro Néri da Silveira, DJU, 17-06-94. Apud. BARROS, S. Ob. Cit., p. 70.]


18 da Constituição permite-nos auferir sua existência de forma implícita, deverá guiar o magistrado na interpretação e o legislador na elaboração de normas hierarquicamente inferiores, não obstante não se encontrar explicitamente delineado. O princípio em estudo apresenta-se como uma das idéias fundantes da Constituição[27], com função de complementaridade em relação ao princípio da reserva legal (artigo 5o., II). Esta afirmação deve-se ao fato de que a ação do Poder Público deve ser conforme a lei formal, e que esta deve ter como parâmetro a proporcionalidade, pois o legislador não está liberto de limites quando elabora as normas, mormente quando

estas tendem a reduzir a esfera de algum direito

fundamental. Uma vez que o princípio da legalidade tem como um de seus aspectos complementares e essenciais à sua efetiva observação o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5o., XXXV), mister é notar que este se aplica a qualquer ato praticado pelo poder público que seja considerado por aquele a quem prejudica como desproporcional ao objetivo almejado. Conectam-se também ao princípio ora abordado, regendo sua aplicação, o princípio republicano (artigo 1o., caput), o princípio da cidadania (artigo1º, II) e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1o., III). Os direitos e garantias individuais que deles decorrem (artigo 5o.) representam formas para o particular se defender sempre que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer lesão de algum direito por abuso de poder ou ilegalidade praticados por agentes públicos. Os institutos do habeas corpus (artigo 5o., LXVIII), mandado de segurança (artigo 5o.,LXIX), habeas data (artigo 5o., LXII), assim como o direito de petição (artigo 5o., XXXIV, a), constituem subsídios de proteção do cidadão face ao poder público. Ao afirmar que todo homem possui uma esfera intangível de direitos, decorrentes somente de sua existência enquanto ser da espécie humana, a Constituição garantiu devam todos os cidadãos ser tratados de forma eqüitativa, o que pressupõe, para além da igualdade formal, tratamento diferenciado buscando adequar a lei às necessidades e peculiaridades de cada um. O princípio da

[27]

[ BARROS, Suzana. Ob. Cit., p.89.]


19 proporcionalidade tem, portanto, papel indispensável na consecução de um dos principais objetivos do Estado brasileiro, qual seja, “reduzir as desigualdades sociais e regionais”, consoante letra do artigo 3o., III, de nossa magna Carta. A proporcionalidade é, por conseguinte, idéia ínsita à concepção de estado democrático de Direito ( CRFB/88, artigo 1o., caput). O princípio da proporcionalidade, encontra-se concretizado em diversas normas de nossa Constituição, conforme ilustração que se segue. Em relação aos direitos e garantias individuais, no inciso V do artigo 5o., que constitucionaliza o direito de resposta proporcional ao agravo. Em sede de Direito Penal, ao garantir a individualização das penas (artigo 5o., XLVI, caput), está implicitamente garantido que estas serão proporcionais ao delito cometido. Quanto aos sociais, observar o que dispõe os incisos IV e V do artigo 7o., em que explicita-se que o valor do salário mínimo deve ser compatível com um poder aquisitivo digno, e que o piso salarial deve ser proporcional à espécie de trabalho realizado. Na organização do Estado, a proporcionalidade está presente dentre os requisitos necessários à decretação de intervenção, uma vez que sua decretação depende do agravo cometido, conforme observa-se a partir da análise do § 3o. do artigo 36, que exclui a intervenção por considerá-la desarrazoada nas ocasiões ali explicitadas. Sua existência é ainda prevista no tocante à composição da Câmara dos Deputados (artigo 45, caput e §1o.), ao disciplinar dever esta ser realizada em razão da população. No âmbito administrativo, o princípio em pauta deve reger a contratação temporária de funcionários, a qual deve obedecer ao critério da necessidade (artigo 37, IX e XXI), assim como a aposentadoria dos servidores públicos, proporcional ao tempo de serviço (artigo 40, III, c e d). Em relação à utilização do erário público, em caso de irregularidade nas contas, aplicar-se-á, sem prejuízo de outras sanções, multa proporcional ao dano causado, consoante artigo 71, VIII. Na atuação do Ministério Público, o inciso II do artigo 129 assegura a tomada de medidas necessárias (proporcionais) destinadas a garantir o respeito dos direitos constitucionais pelos Poderes Públicos e serviços de relevância


20 pública. O inciso IX deste mesmo artigo reza ser função do Ministério Público o exercício de outras atividades que sejam compatíveis com sua finalidade, juízo este que encontra-se gerido pelo princípio em voga. Em face do Sistema Tributário, entende-se que a Constituição consagrou a proporcionalidade quando, por exemplo, proibiu a tributação com efeito de confisco[28] (artigo 150, IV), pois a carga tributária não pode ser onerosa a ponto de ocasionar ao particular sua perda. As alíquotas dos tributos devam, sempre que possível, ser proporcionais à capacidade econômica do contribuinte (artigo 145, §1o.). Nos termos “valorização” e “justiça” incutidos no caput do artigo 170 encontra-se imbutida a noção de proporcionalidade no âmbito dos princípios gerais da ordem econômica. Ainda dentro do Título VII, o tema ora em análise encontra-se delineado nos artigos 173, caput e § 3o., 4o. e 5o; 144, § 1o.; 175, IV. Uma vez abordados alguns exemplos de elaboração de normas que com maior clareza mostraram a presença do princípio em estudo na Constituição de 1988, cumpre lembrar que, em se tratando de princípio geral de direito, não está adstrito a atuar nas esferas acima elencadas. Ao revés, norteia a hermenêutica da Constituição em sua totalidade e, logo, permeia a interpretação de cada uma de suas normas. A

inobservância

ou

lesão

a

princípio

é

a

mais

grave

das

inconstitucionalidades[29], uma vez que sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há democracia nem Estado de Direito.[30] Portanto, o princípio da proporcionalidade é direito positivo e garantia de respeito aos direitos fundamentais, fluindo do espírito do §2o. do artigo 5o., o qual, consoante palavras de Paulo Bonavides, “abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência [28]

[SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, Malheiros, 1998, p.682.]

[29]

[ADIn no. 1458 - Medida Cautelar - Rel. Min. Celso de Mello, em 23/05/1996: “ (...) mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.”] [30]

[BONAVIDES, Paulo. Ob. Cit., p.396.]


21 impostergável do Estado de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável da unidade da Constituição.”[31]

XVI-) Subprincípios : a) Adequação: para alcançar o resultado, deve-se verificar se o ato legislativo alcançou o resultado almejado pelo constituinte, ou se foi além. Com esta exigência pretende-se salientar que a medida adotada para a realização do interesse público deve ser apropriada para a alcançar o fim ou fins a ele subjacentes. Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim, ou seja, exige-se que qualquer medida restritiva deve ser idônea à consecução da finalidade perseguida, pois se não for apta para tanto, há de ser considerada inconstitucional. O exame da idoneidade da medida restritiva deve ser feito sob o enfoque negativo: apenas quando inequivocadamente se apresentar como inidônea para alcançar seu objetivo é que deve ser anulada. A adequação deve ser aferida no momento em que o legislador tomou sua decisão, a fim de que se possa estimar se, naquela ocasião, os meios adotados eram apropriados aos objetivos pretendidos.

[31]

[BONAVIDES, Paulo. Ob. Cit., p.396.]


22 b) Necessidade ou utilidade: o resultado deve ser alcançado pelo meio menos gravoso e de melhor utilidade. Este requisito traz a idéia de que o cidadão tem o direito à menor desvantagem possível. Pode ser declarada inconstitucional a exigibilidade de um meio quando resta claro, desde logo, que se pode recorrer a outro igualmente eficaz, porém menos lesivo, ou quando se comprova ter sido possível alcançar o mesmo objetivo com um meio menos restritivo. É forçoso concluir que o princípio da necessidade traz em si o requisito da adequação. Só se fala em exigibilidade se o meio empregado pelo legislador for idôneo para alcançar a finalidade constitucional. .

c) Proporcionalidade em sentido estrito: deve haver equilíbrio entre benefício e prejuízo. Quando se chega à conclusão da necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, deve-se perguntar se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. A inconstitucionalidade ocorre, enfim, quando a medida é excessiva, injustificável, ou seja, não cabe na medida da proporcionalidade8


23

XVII-) Princípio da interpretação conforme a Constituição e da presunção da constitucionalidade das leis: Princípio de interpretação constitucional, e também instrumento situado no âmbito do controle da constitucionalidade, consubstancia essencialmente uma diretriz de prudência política, além de reforçar outros cânones interpretativos, como o princípio da unidade da constituição e o da correção funcional. Segundo esse princípio, os aplicadores da constituição, em face de normas infraconstitucionais de múltiplos significados, escolhem o sentido que as torne constitucionais,

e

não

aquele

que

resulte

na

sua

declaração

de

inconstitucionalidade. Por outras palavras, é a declaração de inconstitucionalidade das leis sem redução de seu texto. No dizer de Gomes Canotilho, "...no caso de normas polissêmicas ou plurisignificativas, deve-se dar preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição. Esta formulação comporta várias dimensões”. Assim, para que se obtenha uma interpretação conforme a constituição, o intérprete poderá conceder ou excluir determinada interpretação, a fim de compatibilizá-la com a Constituição ou declarar a inconstitucionalidade


24 parcial do texto normativo impugnado. Verifica-se, portanto as seguintes hipóteses: a) Interpretação conforme com redução do texto : o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só se deve escolher a interpretação que não seja contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais; b) Interpretação conforme sem redução do texto: o princípio da conservação das normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição. Pose ser feita de duas maneiras: b1) dando uma interpretação que lhe preserve a constitucionalidade ou b2) excluindo uma interpretação que lhe acarrete inconstitucionalidade.

c) Declaração de Inconstitucionalidade parcial sem redução de texto : é o mecanismo utilizado para atingir uma interpretação conforme, nesse sentido, a declaração e a interpretação conforme se completam, pois para se atingir a interpretação conforme deve-se declarar a inconstitucionalidade de algumas interpretações. Declara-se a inconstitucionalidade parcial do texto legal para salvar a constitucionalidade da lei ou do ato normativo, sem alterar seu texto. Esse cânone interpretativo, ao mesmo tempo em que valoriza o trabalho legislativo, aproveitando ou conservando as leis, previne o surgimento de conflitos, que se tornariam crescentemente perigosos, caso os juízes, sem o devido cuidado, se pusessem a invalidar os atos legislativos. Neste sentido, nas relações entre os juízes e a legislatura, deve presidir o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, que significa que toda lei, de início, é compatível com a constituição e assim deve ser considerada, até conclusão judicial em contrário.


25 VIII-) Preâmbulo constitucional: pode ser definido como o documento de intenções da Constituição que passa a vigorar, proclamando seus princípios. Apesar de não conter normas constitucionais autônomas propriamente ditas, o preâmbulo serve como elemento de interpretação e integração dos artigos da Constituição que lhe sucedem. O preâmbulo deve sintetizar sumariamente os grandes fins da Constituição, servindo de fonte interpretativa para dissipar obscuridades das questões práticas e do rumo para a atividade política do governo. [32] Este tema é controvertido, pois alguns autores, a maioria, afirmam a ausência de normatividade do preâmbulo e, portanto, impossível de ser paradigma para declaração de inconstitucionalidade. Outros autores, porém, admitem a existência de força normativa do preâmbulo constitucional, no entanto estão em minoria. XIX-) Competência para interpretar a Constituição : Para Peter Häberle [33] todo aquele que vive a Constituição está legitimado a interpretá-la. Assim, até mesmo o cidadão ativo poderia interpretar a Constituição como expressão do direito fundamental à cidadania. Propõe a seguinte tese: "no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição." Questão importante na sua teoria reside na proporcionalidade entre o controle de constitucionalidade da Corte Constitucional e a efetiva participação dos sujeitos: "Um minus de efetiva participação deve levar a um plus de controle constitucional." [32]

[ALBERDI, Juan Bautista. BasesY puntos para la organización política de la república argentina. Estrada: Buenos Aires, 1959. p. 295.]

[33]

[HÂBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional A Sociedade Aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental' da Constituição, tradução Gilmar Ferreira Mendes, Sergio Antonio Fabris editor, Porto Alegre, 1997]


26 Porém, para este autor, existe um adiferença entre a participação dos sujeitos e o controle de constitucionalidade efetuado pela suprema corte, tendo esta a última palavra sobre interpretação. José Alfredo de Oliveira Baracho[34] e Zagrebelsky[35] entendem que o sentido de uma constituição pluralista é de estimular a competição política e social, ou seja, de impedir que um movimento imponha seu modelo político e cultural e que exclua todos os demais. Esta posição é severamente criticada por aqueles que entendem que somente os intérpretes jurídicos e os participantes formais do processo constitucional estariam legitimados à interpretação. XX-) Jurisprudência : AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 2001002006582-5 Agravante - Luis Favre - Wermus Agravado - Cláudio Humberto Rosa e Silva Relatora - Desa. Ana Maria Duarte Amarante Primeira Turma Cível EMENTA PROCESSO CIVIL E CONSTITUCIONAL. CONFLITO DE NORMAS-PRINCÍPIOS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. DIREITO À INTIMIDADE E LIBERDADE DE IMPRENSA. 1. Os conflitos de normas-princípios, ao contrário do conflito entre normas-regras, são aclarados de acordo com o princípio da proporcionalidade, ou seja, basicamente com a ponderação de valores, mantendo-se o núcleo essencial da norma e verificando-se, sempre no caso concreto, seu âmbito de proteção. 2. Cotejando-se o direito à intimidade e a liberdade de imprensa, e verificando-se que, no caso concreto, não deve prevalecer, prima facie, o primeiro ao último, não se pode autorizar uma tutela específica no sentido de impedir o exercício da liberdade de imprensa, sob pena de cerceio de uma atividade assegurada constitucionalmente. ACÓRDÃO

[34]

[BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Hermenêutica Constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFMG n.0 18, Belo Horizonte, maio, 1977. -Princípio da Subsidiariedade, Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG (nova fase), Belo Horizonte, 1995.]

[35] [ZAGREBELSKY, Gustavo. La Corte Constitucional y la interpretación de la Constitución, Division de Poderes e ínterpretación - Hacia un Teoria de la Praxis Constitucional, edicion Antônio Lopes Pina, Tecnos, Madrid, 1996.]


27 Acordam os Desembargadores da Primeira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Ana Maria Duarte Amarante - Relatora, Waldir Leôncio Júnior e Antoninho Lopes - Vogais, sob a presidência do Desembargador Eduardo de Moraes Oliveira, em conhecer e desprover. Unânime, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas. Brasília-DF, 03 de junho de 2002. RELATÓRIO Trata-se de Agravo de Instrumento interposto contra a decisão proferida pelo MM. Juiz da 6ª Vara Cível que indeferiu o pedido de concessão de liminar em medida cautelar incidental, ao fundamento de que, dentre outros, para ser justo, deveria o agravante tentar calar todos os veículos de comunicação que veiculam notícias ou notas contrárias a sua pessoa. Pondera o Agravante que o agravado passou injustificadamente a agredir seu patrimônio moral em notícias veiculadas em seu site, tachando-o de “enrolão”, “espécie de 171 da esquerda”, dentre outras expressões de características ofensivas, além de expor aspectos de sua intimidade. Aduz que a cautelar ajuizada não tem o condão de calar um profissional de imprensa, mas, tão-somente, zelar pela integridade moral de uma pessoa que vem sofrendo uma pública campanha de desmoralização. Sustenta restarem presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris autorizadores da concessão da cautelar, vez que as publicações ofensivas persistem. Assevera que cabe, no presente caso, invocar a tutela antecipada, com caráter inibitório, com o fim de coibir os abusos perpetrados e evitar a proliferação da prática ilícita. Menciona doutrina que entende aplicável à espécie. Afirma que o site da internet que alberga as ofensas é visitado diariamente por um número considerável de pessoas, o que demonstra o potencial lesivo das ofensas perpetradas pelo veículo de comunicação. Pede seja concedido efeito suspensivo ativo com a retirada do conteúdo ofensivo do site mantido pelo agravado e para se abster de proferir novas ofensas. Pleiteia, ao final, seja dado provimento ao recurso. Preparo regular (fl. 76). Em decisão proferida às fls. 79/80, foi recebido o recurso em seu efeito devolutivo. Informações prestadas às fls. 84/86. Devidamente intimado, o agravado deixou transcorrer in albis o prazo para contra-razões. É o relatório. VOTOS Desa. Ana Maria Duarte Amarante (Relatora) - Cabível e tempestivo, conheço do recurso. No mérito não está a merecer provimento. Pede o agravante que seja concedida liminar em cautelar, com efeitos inibitórios, impedindo que o ora agravado continue a manifestar-se de forma pejorativa sobre sua pessoa. Ademais, pleiteia a exclusão do site de notícias dos pronunciamentos anteriormente dispostos. Trata-se, inicialmente, de conflitos de normas-princípios que, a contrário do conflito entre normas-regras, são aclarados com as regras do princípio da proporcionalidade, ou seja, basicamente com a ponderação de valores, mantendo sempre núcleo essencial da norma, verificando-se, sempre no caso concreto, seu âmbito de proteção. Portanto, a hipótese vertente, exige, antes de tudo, a ponderação dos interesses em conflito, requerendo do intérprete a concordância prática entre os direitos em jogo, impedindo, assim, o sacrifício de um em relação ao outro. Nesse procedimento, funciona o


28 princípio da proporcionalidade, no dizer de Suzana de Toledo Barros (in Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Editora Brasília Jurídica, 1ª edição, p. 26), como “parâmetro técnico: por meio dele verificam-se se os fatos de restrição tomados em consideração são adequados à realização ótima dos direitos colidentes ou concorrentes. Afinal, o que se busca é a garantia aos indivíduos de uma esfera composta por alguns direitos, tidos por fundamentais, que não possam ser menosprezados a qualquer título.” Assim, como bem anota a mencionada professora, citando J.J. Gomes Canotilho, (ob. cit. p. 27) “o princípio considerado significa, no âmbito das leis interventivas na esfera de liberdades dos cidadãos, que qualquer limitação a direitos feita pela lei deve ser apropriada, exigível e na justa medida, atributos que permitem identificar o conteúdo jurídico do cânone de proporcionalidade em sentido amplo: exigência de adequação da medida restritiva ao fim ditado pela própria lei; necessidade da restrição para garantir a efetividade do direito e a proporcionalidade em sentido estrito, pela qual se pondera a relação entre a carga da restrição e o resultado.” Portanto, para aferição do mencionado princípio, deve-se seguir um procedimento metódico, dividido em etapas próprias que nos levarão a inferir qual o direito que deve prevalecer à espécie em concreto. Assim resume o professor Paulo Gustavo Gonet Branco (in Princípio da proporcionalidade no controle da constitucionalidade das leis e a Constituição de 1988, site IDP), quanto aos referidos obstáculos: “Como é sabido, uma norma passará no teste do princípio da proporcionalidade se vencer os desafios dos subprincípios constitutivos deste. Esses subprincípios são o princípio da adequação dos meios, o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito. O princípio da adequação dos meios pode ser traduzido como a exigência de que a medida em estudo seja apta para atingir a finalidade perseguida. O princípio da necessidade é também conhecido como princípio da ‘menor ingerência possível’ e constitui uma decorrência do postulado do favor libertatis, que participa da essência mesma do Estado democrático de direito. Não se admite, no Estado democrático, que os cidadãos se vejam num status de sujeição generalizada ao Poder Público. A interferência sobre direitos fundamentais individuais deve ser tão reduzida quanto possível, limitando-se ao estritamente necessário para atingir a finalidade que a justifica. Por último, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, exige que o resultado que se pretende obter com a medida se justifique ante a carga coativa que ele provoca. Põe-se em confronto o objetivo projetado com os meios empregados. Há de ser recusado o remédio eficaz para curar a doença, mas que acarreta efeitos colaterais ainda mais danosos do que ela.” Com efeito, podemos vislumbrar que a restrição aos direitos da imprensa, impedindo, por meio de uma tutela específica denominada pela moderna doutrina de inibitória, o exercício de seu direito de criticar, neste particular de forma irônica, a postura de determinadas pessoas públicas, vem a esbarrar, no mínimo e prima facie, na última etapa do princípio da proporcionalidade, qual seja, a proporcionalidade em sentido estrito. Ausente se encontra, portanto, dentro da análise estreita permitida pelo presente recurso, o fumus boni iuris ensejador da concessão da liminar em cautelar. Cotejando-se, neste caso concreto, o direito à intimidade e a liberdade de imprensa (artigo 220, § 1º, da Carta Política), não deve prevalecer, prima facie, o primeiro ao último, mormente quando os fatos noticiados no site são pretéritos, não atuais. Somente o dano porventura suportado a sua imagem é que poderia ser passível de indenização. Não se autoriza, destarte, a exclusão das críticas passadas, porquanto os efeitos que já produziram, se é que produziram, foram no passado, não gerando qualquer efeito futuro. Ademais, muito menos poderia ser autorizada uma tutela específica no sentido de impedir, neste caso concreto, o exercício da liberdade de imprensa, sob pena de cerceio a uma atividade assegurada constitucionalmente. É escorreito que abusos devem ser impedidos, contudo não vislumbro, em princípio, motivos que poderiam ensejar a proibição de se divulgar bisbilhotices da vida de pessoas públicas. Dessa forma, dentro dos lindes estreitos do recurso ora interposto, deve prevalecer a decisão proferida pelo juízo a quo. ISTO POSTO, nego provimento ao recurso.


29 É como voto. Des. Waldir Leôncio Júnior (Vogal) - Com a Relatora. Des. Antoninho Lopes (Vogal) - Com a Turma. DECISÃO Conhecido e desprovido. Unânime.

XII-) Conclusão: A doutrina é unânime em ressaltar a importância do direito constitucional e sua influência em todos os segmentos do direito, em toda vida social e na resolução dos conflitos. Em conseqüência, a interpretação assume papel relevante para a concretização dos princípios constitucionais vigentes. Porém, há aqueles que, ainda influenciados pelo espírito positivista liberal, entendem terá interpretação constitucional um papel secundário de integração em caso de lacuna da lei, nos moldes da Lei de Introdução ao Código Civil ou como simples fonte de controle de constitucionalidade das normas jurídicas. A interpretação constitucional, portanto, é imprescindível ao ordenamento constitucional, pois, é através dela que se atribui efetividade ao texto constitucional. Os métodos de interpretação das normas jurídicas ordinárias são insuficientes para buscar expressar o sentido que a Constituição encerra. Desta maneira, apesar de não desprezar os métodos tradicionais., há uma metodologia própria para se interpretar a norma constitucional.


30 A doutrina está evoluindo para ampliar os legitimados à interpretação constitucional, como efetivação da Democracia, pois a participação no processo de interpretação é inerente ao direito fundamental de cidadania. Assim, a ampliação do elenco dos intérpretes da Constituição, contudo, não retira a autoridade da jurisdição constitucional, autêntico e supremo intérprete constitucional. Um Tribunal Constitucional, nos moldes existentes em países como Espanha, Itália e Alemanha, é de suma importância para a efetividade da constituição, principalmente quando estes Tribunais atribuem destaque aos princípios Constitucionais. Olhando a realidade brasileira, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal não tem alcançado de forma eficiente seu papel de guardião da Constituição, devendo ser pensada e discutida a possibilidade de criação de um Tribunal Constitucional na esteira dos Tribunais Constitucionais europeus. Alguns autores, como Antonie Garapon[36], ao mesmo tempo que ressaltam a importância do direito como elemento assegurador do processo democrático e dos princípios constitucionalmente garantidos, também alertam para o perigo da autonomia do direito vir a substituir o processo legislativo. Este é, portanto, um ponto para reflexão.

[36]

[GARAPON, Antoine. Le gardien des promesses. Justice et démocratie. Paris: Odile Jacob, 1996.]


31

XII-) Referências Bibliográficas: ALBERDI, Juan Bautista. BasesY puntos para la organización política de la república argentina. Estrada: Buenos Aires, 1959. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Hermenêutica Constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFMG n.0 18, Belo Horizonte, maio, 1977. -Princípio da Subsidiariedade, Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG (nova fase), Belo Horizonte, 1995. - Processo Constitucional, Forense, Rio Janeiro, 1984. - Teoria Gera/da Cidadania -A plenitude da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, Editora Sarava, São Paulo, 1995; BELAUNDE, Domingo Garcia. La lnterpretación Constitucional como Problema, Revista de Estúdios Políticos (Nueva Epoca), n.0 86, out/dez, 1994; BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta, 3ª edição, Forense, Rio Janeiro, 1993; BONIFACIO, Francisco P Las Motivaciones tras de inilexiones o no Alteración en los Critérios interpretativos de la jurisprudéncia Constitucional Division de Poderes e interpretación - Hacia un Teoria de La Praxis Constitucional, edicion Antônio Lopes Pina, Tecnos, Madrid, 1996;


32 CALAMANDREI, Piero e LEVI, Alessandro. Commentário Sistematico alla Costituzione italiana, G. Barbéra Editore, Firenze, 1950; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6ª edição, Almedina, Coimbra, 1995; CAPELLETTI, Mauro e BRYANI Garth. Acesso á Justiça, tradução Ellen Grade Northfleet, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988. -Juízes Legisladores?, tradução Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993. -O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado, tradução Aroldo Plinio Gonçalves, revisão, José Carlos Barbosa Moreira, 2a edição, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1992; CARVALHO, íris de. Critérios Valorativos de Interpretação Constitucional, Revista Forense n.0 291, Forense, Rio Janeiro, jul/set, 1985; CERNlCCHIARO, Luiz Vicente. Direito Alternativo, Revista Jurídica Consulex n.0 7, julho, Brasília, 1997; COELHO, Inocêncio Mártires. interpretação Constitucional, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997; COUTURE, Eduardo J. interpretação das Leis Processuais, tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, 4a edição, Forense, Rio de Janeiro, 1994; DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, tradução, Herminio A. Carvalho, Martins Fontes, São Paulo, 1996; DENNINGER, Erhard. Princípios Constitucionales y Derechos Fundamenta/es como normas abertas, divísion de poderes e interpretación - Hacia un teoria de La Praxís Constitucional, edicion Antônio Lopes Pina, Tecnos, Madrid, 1996; DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 3ª edição, Malheiros Editores, São Paulo, 1993; ENTERRIA, Eduardo Garcia de. Hermenêutica e Supremacia Constitucional E/principio dela Interpretación conforme a la Constitución de todo el Ordenamiento, revista de direito público n.0 77, revista dos tribunais, São Paulo, jan/mar; 1 986; FERRAZ, Sérgio. Manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução, Sergio Antonio Fabris editor, Porto Alegre, 1991; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo , Rio de Janeiro, Alde, 1992;


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1

A HISTÓRIA DA IDEOLOGIA

Maurício Crespo Rangel Mestre em Direito Especialista em Direito do Trabalho

I-) Introdução : A história da ideologia é relativamente curta, de aproximadamente 200 anos, porém muito complexa. Data do final do século XVIII, época da Revolução Francesa, tendo sido criada entre 1796 e 1798 pelo então filósofo francês Antoine Destutt de Tracy. A palavra “ideologia” surgiu do neologismo composto dos termos gregos “eidos” e “logos”, para designar uma nova ciência das idéias. O surgimento da ideologia coincide com o termo “ciência social” utilizado pelos iluministas, ambos buscavam entender e controlar através da razão as leis que governavam a vida social, tudo em nome da felicidade e da melhoria da vida humana. Inspirado pelos Iluministas e pelos pensadores Enciclopedistas franceses, Tracy acreditava que todas as áreas da experiência humana deveriam ser estudadas e compreendidas pela razão e não pela teologia. Para Tracy, a ideologia, como ciência das idéias, investigaria origem dessas idéias, que seriam sensações modificadas através de procedimentos científicos empíricos. As idéias seriam o resultado da interação entre o organismo vivo e a natureza com o meio ambiente, por isso ele considerava a ideologia como um ramo da zoologia. Acreditava que se a origem das idéias fosse compreendida poderia descobrir as raízes da ignorância e, assim, poderia ser utilizada na educação e para acabar com a ignorância humana. Tracy foi, portanto, o precursor do behaviorismo, método pelo qual deveria-se aprender (pela repetição) para não ser ignorante.


2 No início do século XIX, ao associarem-se ao liberalismo republicano secular, composto de uma elite erudita, os ideologistas passaram a ser vistos como um grupo de intelectuais ricos e liberais. Assim, a ideologia passou a ter um segundo sentido: o de “republicanismo liberal secular”. A subida de Napoleão foi apoiada pelos ideologista, acreditando que aquele iria seguir os princípios da burguesia revolucionária. Napoleão, porém, começou a buscar apoio da burguesia e da igreja, o que gerou críticas por parte dos ideologistas. A partir daí Napoleão passou a acusá-los de agitadores e de metafísicos teóricos, denunciandoos ao Conselho de Estado, em 1801, com “falastrões” e que estavam tentando retirar a autoridade política, em 1802 denunciou-os à igreja Católica como um colégio de ateus. Nesse momento, a ideologia passou a ser considerada como um radicalismo perigoso identificado politicamente ao liberalismo burguês.[1] O conceito de ideologia generalizou-se na linguagem científica. "Só ocasionalmente, escreveu há pouco Eduard Spranger, se fala agora de idéias e ideais políticos, e com muito mais freqüência de ideologias políticas"[2]. Assim, o significado de ideologia e do que são ideologias só pode ser compreendido se reconhecermos o movimento histórico desse conceito, que é, ao mesmo tempo, o da coisa.

[1]

[Cf. VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas, tradução Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro. Jorge Zahar: 1995.] [2] [SPRANGER, Eduard. Wesen und Wert Politischer Ideologien; em Vierteljalres Heft für Zeitgeschichte, Ano II, 1954, p. 119.]


3 II-) A Contribuição do Iluminismo e do Enciclopedismo : Prescindindo de algumas tendências da filosofia grega oposicionista, desacreditadas com o triunfo da tradição platônico-aristotélica e reconstituídas hoje, com dificuldade, pelos filósofos, as condições gerais da constituição de uma pseudoconsciência são enfatizadas no começo da moderna sociedade burguesa, entre fins do século XVI e começos do XVII. Os manifestos antidogmáticos de Francis Bacon, em prol da libertação da Razão, proclamam a luta contra os "ídolos", os preconceitos coletivos que preponderavam sobre os homens no começo da burguesia, tal como agora, em seu fim. As formulações de Bacon soam, como uma antecipação da moderna crítica positivista da linguagem, em sua esfera semântica. Ele caracterizou um tipo de ídolo no qual o espírito deveria se libertar, o dos idola fori, que poderíamos traduzir livremente como ídolos da sociedade de massa, "os homens associam-se entre si com a ajuda da linguagem; mas os nomes são atribuídos às coisas pelo arbítrio do vulgo. Por isso, o intelecto vê-se tolhido, de maneira singular, pelas denominações inadequadas...As palavras violentam o espírito e turvam todas as coisas"[3]. Em Bacon, a teoria dos ídolos pretendia dar uma base à emancipação da consciência burguesa da tutela eclesiástica e, para tanto, inseria-se na tendência progressista da filosofia de Bacon, considerada em seu todo. Mas, a perpetuação ideal das relações pensadas, quando muito, segundo o modelo das antigas cidades-Estados, que se queria imitar, e o subjetivismo abstrato que queria ignorar completamente a inverdade da categoria da subjetividade, isoladamente considerada, ao mesmo tempo já revela os limites dessa consciência. O impulso politicamente progressista da teoria da falsa consciência, delineada por Bacon, ressurgiu de uma forma muito mais clara com o Iluminismo do século XVII. Dois precursores do Enciclopedismo, como Helvécio e Holbath, afirmaram que os preconceitos atribuídos por Bacon aos homens, em geral, cumprem uma certa função social, na medida em que servem para a injustiça e impedir a construção de uma sociedade racional. "Os preconceitos dos grandes", lê-se em Helvécio, "são as leis dos pequenos"; e, numa outra obra: "[...] a experiência revela que quase todos os problemas [3]

[BACON, Francis. Novum Organum, em The Works of Francis Bacon, Londres: 1857, Vol.I, P.164, citado em BARTH, Hans. Wahrheit und Ideologie, Zurique, 1945, p.48. No trabalho de Barth, essa obra é considerada um dos principais documentos do desenvolvimento do conceito de ideologia.]


4 morais e políticos não são decididos pela razão, mas pela força. Se é certo que a opinião é soberana, ela só o é, em última instância, no reino dos poderosos, que fazem e governam a opinião”. Entretanto, nessa mesma época, Helvécio, que talvez tenha sido o intelecto mais poderoso do Enciclopedismo, já focalizara o caráter de necessidade objetiva daquilo a que os seus contemporâneos atribuíam ao "arbítrio maléfico de uma camarilha". "As nossas idéias são uma conseqüência necessária da sociedade em que vivemos"[4]. Esse elemento de necessidade reaparece no centro dos trabalhos investigativos da escola francesa que adotou o nome de ideólogos (lês ideólogues), ou seja, os estudiosos das idéias. A palavra ideologia deve-se a um dos principais expoentes dessa escola, Destutt de Tracy. Nem os próprios enciclopedistas, chegaram a uma concepção unânime sobre a origem objetiva da ideologia e das formas objetivas das suas funções sociais. Os preconceitos e a pseudoconsciência foram interpretadas na melhor das hipóteses, como maquinações dos poderosos. Disse Holbach: "de um modo geral, a autoridade vê o seu próprio interesse na conservação das idéias estabelecidas; os preconceitos e erros que consideram necessários para assegurar o seu poder são perpetuados pela força, que jamais se sujeita à Razão (qui jamais ne raisonne)"[5].

[4]

[HELVETIUS. Claude Adrien. De l’espirit; citado em tradução por Barth, op. cit., p.62; 65 e 66.] [HOLBACH, Paul Heinrich Dietrich Von. Sistème de la nature ou des lois du monde physique et du monde moral, citado em tradução por Barth.]

[5]


5 III-) As Idéias de Tracy : Tracy estava ligado ao empirismo filosófico, que atomizava o espírito humano para poder observar o mecanismo de conhecimento e reduzir a este os critérios da verdade e coerência intelectual. Mas a sua intenção não era gnosiológica, nem formal. Não procura no espírito as simples condições de validade dos juízos, mas quer conjugar a observação dos próprios conteúdos da consciência com os fenômenos ideais, decompondo-os e descrevendo-os como se fossem objetos naturais (um mineral e uma planta, por exemplo)[6]. Referindo-se ao sensualismo do espírito fortemente materialista de Condilla, de Tracy empenha-se em reduzir todas as idéias à sua origem nos sentidos. Já não lhe basta a refutação da falsa consciência e a denúncia dos objetos por ela servidos, o que ele quer agora é que toda e qualquer consciência, seja falsa ou verdadeira, seja reduzida às leis que as governam. Daí, à concepção da necessidade social de todos os conteúdos de consciência é apenas um passo. Os ideólogos compartilhavam tanto da tradição que os antecedeu como do positivismo do seu próprio tempo, cuja orientação mais recente era matemático-científica. Assim, Tracy também pôs em destaque o nascimento e formação da expressão lingüística, querendo estabelecer, depois do controle dos dados primordiais, uma gramática e uma linguagem matematizantes, na qual cada idéia deve corresponder, inequivocamente, a um único símbolo significante, de acordo com o também celebrado ideal de Leibniz e do antigo racionalismo[7]. Mas tudo isso devia servir agora para um objetivo prático-político. Destutt de Tracy ainda esperava poder impedir, mediante a prova de comparação com os dados sensíveis, a consolidação dos princípios falsos e abstratos, capazes de dificultar não só a compreensão entre os nomes, mas também a edificação da sociedade e do Estado. A sua ciência das idéias, ou seja, a ideologia, deveria conjugar a certeza e a segurança, como a matemática e a física. O rigor metódico da ciência deveria pôr fim, de uma vez para sempre, à arbitrariedade e à variabilidade indiferente das opiniões que a grande filosofia sempre censurou, desde Platão. Ante o método científico, a falsa consciência, ou seja, a ideologia, como se lhe chamará mais tarde, deve desaparecer.

[6] [7]

[TRACY, Destutt De. Elements Dídeologie, Bruxelas, 1826; cf. Barth, op. cit., p.15 e seguintes.] [TRACY, Destutt De. op. cit., vol. 1, p.12]


6 Com isso, restaura-se o primado das ciências e, portanto, do espírito. Entretanto, a escola dos ideólogos, cujas fontes ideais não eram só materialistas, mas também idealistas, mantém firme o seu empirismo, crente no princípio de que a consciência é que determina o ser. A ciência suprema deveria ser, segundo de Tracy, uma ciência dos homens, suprindo as bases para toda a vida política e social. Assim, a idéia do papel cientificamente dominante, de Comte – e, em definitivo, também socialmente dominante – da sociologia, já está presente nos "idéologues", de forma virtual. Originalmente, a sua teoria tinha um propósito progressista. Seria instaurado o domínio da razão e o mundo seria organizado em proveito do homem. Isto pressupunha um equilíbrio harmônico das forças sociais, em bases liberais, funcionando quando cada indivíduo atua segundo seu próprio interesse bem compreendido e que se lhe tornou claro. Neste sentido, o conceito de ideologia atuou, numa primeira fase, nas lutas políticas efetivas.


7 IV-) O Declínio da Ideologia : A Napoleão Bonaparte, apesar de tudo que vinculava sua ditadura à emancipação burguesa, fazia contra os ideologistas a mesma acusação de agentes da desintegração social que, depois, passou sempre a acompanhar, como uma sombra, a análise social da consciência. Numa linguagem fundada em elementos da teoria de Rousseau, valorizava justamente os momentos irracionais, aos quais se referirá depois de maneira constante, nos seus ataques ao chamado intelectualismo da crítica ideológica, ao passo que, por seu lado, a teoria da ideologia, numa fase subseqüente, funde-se em extremo irracionalismo. Foram essas as frases de Napoleão: "à doutrina dos ideólogos, essa tenebrosa metafísica que, investigando penetrantemente as causas primeiras, tem como objetivo estabelecer sobre as suas bases a legislação dos povos, em vez de ajustar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história, devem ser atribuídas todas as desgraças das nossas batalhas da França”. Napoleão percebeu

nos ideologistas um perigo para a "positividade", que lhe parecia mais

proveitosa. Em seu pronunciamento, Napoleão também prenunciou o futuro "ideologismo ingênuo" de que acusa os supostos utópicos abstratos, em nome da realpolitik, por isso passou a ridicularizá-los chamandos-os de ideólogos. Mas Napoleão ignorava que a análise da consciência, desenvolvida pelos ideólogues, não era inteiramente incompatível com os interesses do poder, porque já se fazia acompanhar de um elemento técnico manipulativo, do qual a teoria positivista da sociedade nunca se desligou. Para os ideólogues, o conhecimento da origem e formação das idéias é de domínio de especialistas e o que estes elaborassem deveria servir para os que fizessem as leis e governassem os Estados, a fim de assegurar a ordem por eles desejada, a qual ainda era identificada, sem dúvida, com a ordem racional. Mas já predominava a idéia de que com o correto conhecimento do quimismo seria possível dominar os homens; esta idéia põe de lado a questão da verdade e da apreensão objetiva das idéias, coerente com a atitude cética em que se inspirava a escola dos ideólogos e, em segundo lugar, também desaparece a investigação das tendências históricas objetivas de que a sociedade depende, tanto em seu cego desenvolvimento como processo "naturalista" como na potencialidade do seu consciente ordenamento racional. Esses elementos deveriam, precisamente, assumir uma função essencial na teoria clássica da ideologia.


8

V-) A Ideologia pós Napoleão : Depois, no meado do século XIX, Max Weber, como hoje toda a sociologia positivista, negou a existência, ou pelo menos, a possibilidade de reconhecimento de uma estrutura total da sociedade e de sua relação com os produtos espirituais, a ideologia para ele denota ineficácia prática e ilusão e perda de realidade; e, em contrapartida, propôs, com a ajuda de uma tipologia ideal não sujeita a um princípio geral, mas apenas adequada aos interesses imparciais da investigação, efetuar a distinção entre o momento primário e secundário[8]. Ao limitar a teoria da ideologia à demonstração de dependências isoladas, o que significava passar de uma teoria da sociedade, em seu conjunto, a uma hipótese sobre ligações individuais de dados, quando não a uma "categoria da sociologia da compreensão (Verstehen) , Max Weber chegava ao mesmo efeito obtido por Pareto, ampliando o conceito de ideologia em sua célebre teoria dos derivados, até eliminar toda e qualquer determinação específica[9]. Assim, a explicação social da falsa consciência converte-se em sabotagem teórica de qualquer forma de consciência. Para Max Weber, o conceito de ideologia atém-se a um preconceito que deve ser constantemente reexaminado; para Pareto, todo o produto do espírito é ideologia; em ambos os casos o conceito é neutralizado. O mundo espiritual, na medida em que é algo mais do que ciência natural mecanicista, perde todo o caráter de verdade para resolver-se numa simples racionalização múltipla de situações de interesse, que encontra em todos os grupos sociais quantas ratificações se quiser. A crítica da ideologia converte-se, assim, na lei da selva do mundo espiritual: a verdade não é mais do que uma função do poder em ocasiões impostas. Apesar do seu aparente radicalismo, Pareto aproxima-se da antiga teoria dos ídolos, pois que não tem, de fato, um conceito da História, e atribui as ideologias, como seus "derivados", aos homens em geral. E ainda que proclame, em termos positivistas, que a sua investigação ideológico-crítica é lógico-experimental, de acordo com o modelo de ciências naturais, e só se mostre fiel aos fatos – no que se mostra [8] [9]

[WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1922, p. 520 e seguintes.] [PARETO, Vilfredo. Traité de sociologie générale, Paris, 1933, vol. II, § 1413.]


9 inteiramente indiferente às preocupações gnosiológicas de Max Weber, no tocante à liberdade axiológica – Pareto emprega expressões como tout le monde (todo o mundo) ou les hommes (os homens). Ele mostra-se cego às variações a que estão sujeitas as condições sociais, o que lhe parece ser a natureza humana, e que influem, inclusive, na relação entre os motivos propulsores, em sentido estrito, os resíduos e o que deles surge, ou seja, os derivados ou ideologia. Neste aspecto, é característico um interessante trecho do Traité de Sociologie Génerale: os derivados são o material usado por todos. Até agora, as ciências sociais foram, freqüentemente, teorias constituídas por resíduos e derivados que tinham, aliás, um objetivo prático; persuadir os outros a atuarem de certa forma, considerada útil para a sociedade. A presente obra, pelo contrário, é uma tentativa de levar essas ciências, exclusivamente, para o campo lógicoexperimental, sem qualquer objetivo de utilidade prática imediata, com o único propósito de conhecer a uniformidade dos fatos sociais... Pelo contrário, quem é propenso a um estudo lógico-experimental, exclusivamente, deve abster-se, com o maior cuidado, de usar os derivados, que para ele serão objeto de estudo e nunca um meio de argumentação[10]. Ao referir-se desse modo aos homens e não às configurações concretas de sua socialização, Pareto volta a cair na velha posição, quase poderíamos dizer, no ponto de vista pré-sociológico, segundo a qual a teoria da ideologia é, em resumo, psicológica. Mantém-se apegado a uma concepção parcial, pela qual é necessário distinguir entre "o que um homem pensa e diz de si e o que ele realmente é e que faz", sem obedecer à exigência complementar dessa concepção e para a qual, "nas lutas históricas, é preciso distinguir ainda em maior grau a fraseologia dos partidos e o que sobre si mesmos presumem, sobre seus verdadeiros interesses, sua imaginação a respeito da realidade". De algum modo, Pareto repõe a investigação ideológica na esfera privada. O conceito de derivados de Pareto está em estreita ligação com o conceito psicanalítico de racionalização, na forma inicialmente proposta por Ernest Jones e depois aceita por Freud: o homem tem... uma forte tendência para unir os desenvolvimentos lógicos com ações não-lógicas...". O subjetivismo central de Pareto, que se relaciona com sua economia subjetiva, faz derivar a inverdade das ideologias pelo esforço realizado subseqüentemente pelos homens para fundamentar e justificar

[10]

[PARETO, Traité de sociologie générale, op. cit., vol. II, § 1403. 17- Op. cit., vol. 1, § 180. Barth, op. cit., p.345.]


10 racionalmente os seus verdadeiros motivos, e não das condições sociais e dos contextos fantasiosos objetivamente pré-estabelecidos. As ideologias esgotam-se em sua função antropológica. É válida, pois, a formulação de Hans Barth, ao descrever em Verdade e Ideologia que o mundo do espírito, enquanto queira ser algo mais do que um estudo das relações causais segundo o modelo mecanicista, não possuirá nem autonomia nem valor cognitivo[11]. A aparente constituição da teoria da ideologia em ciência implica, por conseguinte, na renúncia da ciência ante o seu próprio objeto. Ao proibir-se o conhecimento da razão nas ideologias, implícito no conceito de necessidade histórica, à maneira de Hegel, Pareto também renunciou ao direito de julgar, em geral, em questões de ideologia – direito ao qual só a razão pode aspirar. Essa doutrina da ideologia prestase muito bem, por sua vez, à ideologia dos Estados de poder totalitário. Quando todo o produto espiritual é subsomado, antecipadamente, numa finalidade de propaganda e autoritarismo, oferece-se ao cinismo uma boa consciência científica. São conhecidas as relações que existem entre algumas declarações de Mussolini e o tratado de Pareto. Entretanto, o liberalismo político tardio, cuja concepção da liberdade de opinião já tinha certas afinidades com o relativismo – qualquer pessoa pode pensar o que quiser, esteja ou não certo, visto que cada uma pensa, essencialmente, o que melhor lhe serve para progredir e permitir a sua afirmação – esse liberalismo, como dizíamos, não era certamente imune a tais perversões do conceito de ideologia. Isso confirma, inclusive, que o domínio totalitário não se opõe à humanidade de fora por obra de uns tantos desesperados nem é uma grande desgraça acidental na auto-estrada do progresso, o que ocorre, outrossim, é que no âmago da nossa cultura amadurecem forças destrutivas[12].

[11]

[Cf. Barth: op. cit., p. 21.] [Cf. para este ponto, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno: Dialetik der Aufklãrung, Amsterdã, 1947, p. 7 e seguintes, 22 e seguintes, 40 e seguintes, 45 e seguintes.]

[12]


11 VI-) A Idelogia no Século XX : No início do século XX, Lukács definiu ideologia como um materialismo dialético, tal como a ideologia burguesa, porém mais científico e mais ligado à vida política, econômica e social. Já Antônio Gramsci, afirmou que a dominação do capitalismo não ocorria pela simples coerção, mas através da hegemonia das idéias. A ideologia da classe dominante estaria disseminada no senso comum do cidadão médio. O poder seria exercido pelo domínio da linguagem, da moral, da cultura e do bom senso[13]. A ruptura da teoria da ideologia, em relação à teoria filosófica da sociedade, permite estabelecer uma aparência de ciência exata da ideologia que sacrifica, na verdade, o poder cognitivo desse conceito. Tal processo também se observa quando é a própria filosofia que, pelo contrário, absorve a concepção de uma ideologia, como aconteceu com Max Scheler, que empenhou-se em construir uma espécie de tipologia, para não dizermos uma ontologia das ideologias. Não são, portanto, preconceitos de classe, mas algo mais do que preconceitos, isto é, leis formais da constituição dos preconceitos, os quais, como leis formais das tendências predominantes para configurar certos preconceitos, fundamentam-se unicamente no status de classe – e totalmente independente da individualidade. No caso dessas leis serem inteiramente descobertas e entendidas em seu surgimento necessário da situação de classe, constituiriam uma nova disciplina teórica da sociologia do conhecimento, a que se poderia chamar, por analogia com a doutrina baconiana dos ídolos, uma teoria sociológica dos ídolos do pensamento, da instituição e dos valores. Esse modelo de classe superior e inferior de Scheler, que ele próprio considerou rudimentar demais, não chega a identificar a formação concreta da estratificação social nem da produção ideológica, e compartilha da posição filosófica, situada no pólo oposto de Pareto, quanto à ausência de consciência histórica. A oposição dos pensamentos estático-ontológico e dinâmico-nominalista é pobre e carente de diferenciações internas. E não só isso: é equívoca quanto à própria estrutura da produção ideológica.

[13]

[Op. Cit. VINCENT, Andrew. P. 18 e 19]


12 O que Scheler designa como "ideologia da classe superior" caracteriza-se, hoje, pelo seu caráter de nominalismo extremo. A ordem estabelecida é defendida mediante a afirmação de que a sua crítica é uma elaboração conceitual arbitrariamente imposta às coisas desde cima, uma "metafísica", e que a investigação deve limitar-se aos dados não estruturados, aos opaque facts; esta apologética ultranominalista tem seu exemplo no positivismo que hoje domina as ciências sociais, e seria difícil atribuir à classe inferior do esquema de Scheler uma manifestação com a mesma tendência. Pelo contrário, as mais importantes teorias que Scheler classificaria como ideológicas da classe inferior, têm se oposto nitidamente ao nominalismo. Elas partem da estrutura total e objetiva da sociedade e de um conceito objetivo da verdade em seu desenvolvimento, modelado pela concepção hegeliana. Quanto ao procedimento fenomenológico de Scheler, ao qual a filosofia queria se ajustar passivamente, renunciando à construção conceitual de supostas essências intuíveis, caiu em sua última fase numa espécie de positivismo de segundo grau, um positivismo que, em certa medida, poderíamos chamar espiritual. A renúncia do conceito a construir a coisa faz com que a própria coisa lhe escape[14]. Com Scheler e Mannheim, a doutrina da ideologia converteu-se no ramo acadêmico da sociologia do conhecimento. O nome é bastante significativo: todo o conhecimento, tanto o falso como o verdadeiro, o "conhecimento", em geral, deveria ter demonstrado aqui o seu condicionamento social.

[14]

[SCHELER, Max. Die Wissenformen um die Gesellschaft, Leipizig: 1926, p.204 e seguintes.]


13 VII-) Ideologia e Utopia : Em 1929 Karl Mannhein, discípulo de Lukács, crioou a sociologia do conhecimento, segundo a qual a ideologia serviria para defender determinada ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, definiu utopia como uma idéia projetada para o futuro, a fim de modificar a ordem estabelecida. Mannheim considerava-se o criador do conceito total de ideologia[15]; em sua principal obra, Ideologie und Utopie, lê-se o seguinte trecho: com a afirmação do conceito total de ideologia, em forma generalizada, entende-se que a simples teoria da ideologia dá lugar à sociologia do conhecimento. Para ele, a ideologia se dividiria em “ideologia total”, como sendo as idéias de grupos ou classes sociais e “ideologia particular” ou relativista, como sendo as idéias de indivíduos isolados. Nesse sentido, segundo Mannheim, Marks teria uma visão particular de ideologia, “visão relativista”, onde o observador tem uma percepção estática do mundo, ao contrário da ideologia total que teria em conta uma visão não histórica do mundo. Dessa forma, a sociologia do conhecimento teria uma “visão relacionista”, pois estudaria não só o conhecimento, mas também todos os conhecedores em um contexto histórico[16]. O conceito de ideologia adquire, assim, um novo significado. Duas possibilidades apresentam-se então. A primeira possibilidade consiste em renunciar, doravante, a investigação ideológica, a toda a intenção de "encobrimento"... limitandose a destacar, em cada caso, a correlação entre ser social e perspectiva social. A segunda possibilidade é a de voltar a vincular, subseqüentemente, essa visão ‘isenta de valores’ com uma visão gnosiológica. Isso pode conduzir a um relativismo ou a um relacionismo, em que uma forma não se confunde com a outra[17]. É difícil manter separadas essas duas possibilidades na aplicação do conceito total de ideologias que Mannheim quis propor. O segundo caminho, o do relativismo da teoria do conhecimento ou, em outras palavras mais nobres, o do relativismo gnosiológico, que Mannheim opôs ao primeiro, que é o do estudo isento de valores da relação entre ser social e perspectiva social, ou entre a infra-estrutura e a superestrutura, não se opõe, na verdade, ao outro, mas, em última instância, define a compreensão

[15]

[MANNHEIM, Karl. Ideologie und Utopie, 3ª edição, Frankfurt, 1952, p.53.] [Op. Cit. VINCENT, Andrew. p. 19-21] [17] [MANNHEIM, Karl . Op. cit., p. 70] [16]


14 teórica de quem quer oferecer uma proteção de raciocínios metodológicos aos procedimentos da sociologia positivista do conhecimento. Com efeito, não escapou a Mannheim que a validade específica do conceito de ideologia reside em sua definição como pseudoconsciência. Mas, já perdido nesse conteúdo, só pode postulá-lo em termos formais, como afirmação de uma possibilidade gnosiológica. A negação determinada é, assim, substituída pelo caráter genérico da mundivisão e, depois, no particular, segundo o modelo da sociologia da religião de Max Weber, pela revelação de correlações empíricas entre sociedade e espírito. Com isto, a teoria da ideologia fica fragmentada, por um lado, num esquema completamente abstrato da totalidade, a que escapa a riqueza das articulações concretas e terminantes; e, por outro, numa acumulação de estudos monográficos. Entre esses dois elementos fica um vácuo em que se perde o problema dialético da ideologia, que é falsa consciência e, entretanto, não só falsa. A cortina que se interpõe, necessariamente, entre a sociedade e a compreensão social da sua natureza expressa, ao mesmo tempo, essa natureza, em virtude do seu caráter de cortina necessária. Devido a sua complexidade, segundo Mannheim, a sociologia do conhecimento só poderia ser estudada por indivíduos desprovidos de classe social ou providos de uma inteligência socialmente descomprometida.


15 VIII-) O “Fim da Ideologia” : Em meados do século XX, Mannheim abriu caminho para a fase pós 1945, conhecida como “fim da ideologia”, onde ocorre a perda do debate ideológico natural e emotivo e do potencial utópico de mudanças, surge em seu lugar uma ciência sóciopolítica conduzida por especialista: os Sociólogos. Após a queda do muro de Berlim em 1989, marco simbólico do fim da guerra fria e passo inicial para a desagregação da União Soviética em 1991/1992, as nações ocidentais assumem historicamente a hegemonia política e ideológica para conduzir os destinos da humanidade neste fim de século e entrada do novo milênio. A escola “fim da ideologia” é fruto do período da guerra fria, seus adeptos chegam a se auto-atribuir a responsabilidade pelo colapso do comunismo e pela ascensão do neo-liberalismo. Argumentam que política e ideologia são coisas distintas, onde ideologia denota uma idéia totalitarista que impede qualquer outra discussão política. A política, ao contrário, só existe em sociedades racionais, tolerantes, livres e pluralistas. Nesse contexto, sustentou-se que a ideologia não mais existia nas avançadas sociedades democráticas industrializadas. A ideologia foi comparada à céptica ciência social de base empírica, onde esta era o caminho para o conhecimento político e aquela era somente ilusão. Nesse aspecto, Andrew Vincente reportou-se ao seguinte comentário de Edward Shils: “a ciência não faz e nunca fez parte de uma cultura ideológica.”. A ilusão ideológica correspondia ao prórprio marxismo. Porém, havia vários problemas com a perpectiva do “fim da ideologia”, tendo em vista que a ideologia foi associada às recordações de austeridade e falta de liberdade dos regimes comunistas, mas, na verdade, o “fim da ideologia” estava comprometido com um novo conceito de ideologia, uma nova forma de liberalismo pragmático: o neoliberalismo. Muitos dos que discutem ideologia reivindicam para si uma neutralidade ideológica. Os mais importantes são as ciências sociais, a filosofia e a teoria política.


16 IX-) A Ideologia na Sociedade de Massa : A sociologia está saturada nessa esfera de instrumentos próprios da chamada communication research (pesquisa de comunicação), o estudo dos meios de comunicação em massa, e dedica especial atenção às reações dos consumidores, assim como à estrutura das interações entre produtores e consumidores. Essas investigações, que não escondem a sua origem nas pesquisas de mercado, dão alguns frutos, sem dúvida. Entretanto, mais importante do que o simples fato de enfatizar a atividade dos meios de comunicação de massa terá a sua análise crítico-filosófica, tanto mais que o reconhecimento tácito concedido a essa atividade da investigação descritiva constitui também um elemento da ideologia . O estudo concreto do conteúdo ideal da comunicação de massa é tanto mais urgente quando se pensa na inconcebível violência que os seus veículos exercem sobre o espírito dos homens, em conjunto, diga-se de passagem, com o esporte, que passou a integrar, nos últimos tempos, a ideologia, em seu mais amplo sentido. Temos aqui a produção sintética da identificação das massas com as normas e condições que regem anonimamente a indústria cultural ou que a propagam – ou com ambas. Qualquer voz discordante é objeto de censura e o adestramento para o conformismo estende-se até às manifestações psíquicas mais sutis. Nesse jogo, a indústria cultural consegue se apresentar como espírito objetivo, na mesma medida em que readquire, em cada vez maior grau, tendências antropológicas em seus clientes. Ao apegar-se a essas tendências, ao corroborá-las e proporciona-lhes uma confirmação, pode simultaneamente eliminar ou até condenar, de forma explícita, tudo o que rejeitar a subordinação. A rigidez inexperiente do mecanismo de pensamento que domina a sociedade de massa torna-se ainda mais inflexível, se isso é possível, e a própria ideologia impede que se desmascare o produto oferecido, em sua qualidade de objeto premeditado para fins de controle social, em virtude de um certeiro pseudorealismo que, sob o aspecto da exterioridade, proporciona uma imagem permanentemente exata e fiel da realidade empírica. Quanto mais os bens culturais assim elaborados forem proporcionalmente ajustados aos homens, tanto mais estes se convencem de ter encontrado neles o mundo que lhes é próprio. Vemos nas telas da televisão coisas que querem se parecer com as mais habituais e familiares e é aí que reside o maior perigo.


17 X-) Conclusão : Atualmente, a ideologia continua a ser questionada, porém não mais como uma ciência das idéias. Para Andrew Vincent, o termo continua a ser usado pejorativamente significando alternadamente ilusão, um modo de vida limitado por valores, uma tendência política ou as idéias de um parido político. É preciso cuidado ao trabalhar o conceito de ideologia. Embora esse conceito pareça estar um pouco em desuso, não se pode negligenciar a sua dimensão atual, pois nunca estivemos tão aprisionados pelo poder ideológico, uma vez que, é inegável a existência de um discurso dominante trazido pelos produtos da mídia, que tendem a universalizar os padrões de gosto, estética e, principalmente de comportamento. Além disso, a dominação ideológica tomou novos contornos muito mais profundos e invisíveis; e, finalmente, é exatamente quando questionamos a existência do poder ideológico que se torna cada vez mais atuante. O estudo da comunicação de massa é mais urgente do que se pensa, devido à grande influência que seus veículos exercem sobre o espírito dos homens e ao mecanismo de pensamento que domina nossa sociedade de massa. O estudo dos meios de comunicação em massa, deve dedicar especial atenção às reações de consumo, assim como à estrutura das interações entre produtores e consumidores. Essas investigações, que não escondem a sua origem nas pesquisas de mercado, dão alguns frutos, sem dúvida. Entretanto, mais importante do que o simples fato de enfatizar a atividade dos meios de comunicação de massa será sua análise críticofilosófica, tanto mais que o reconhecimento fácito concedido a essa atividade da investigação descritiva constitui também um elemento da ideologia. O perigo da falta de uma outra ideologia de contraponto converte faz com que a realidade transforme-se em ideologia de si mesma.


18 XI-) Referências Bibliográficas :

ADORNO e HORKHEIMER. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973. BACON, Francis. Novum Organum, em The Works of Francis Bacon, Londres: 1857. BARTH, Hans. Wahrheit und Ideologie, Zurique, 1945. GEIGER, Theodor. Kritische Bemerkungen zunm Begriffe der Ideologie, em Gegenwartsprobleme der Sociologie, edição organizada por Gottifried Eisermann, Potsdam, 1949. HOLBACH, Paul Heinrich Dietrich Von. Sistème de la nature ou des lois du monde physique et du monde moral, citado em tradução por Barth. KENNEDY, A . Emmet, “Ideology from Destutt de Tracy to Marx”. Journal of history of Ideas, 40, 1979. MANNHEIM, Karl. Ideologie und Utopie, 3ª edição, Frankfurt, 1952. MARX, R. ENGELS, F., A Ideologia Alemã. Trad Fosé Carlos Bruni e Marco aurélio9 Nogueira. São Paulo: Hucitec, 1987. PARETO, Vilfredo. Traité de sociologie générale, Paris, 1933. SCHELER, Max. Die Wissenformen um die Gesellschaft, Leipizig: 1926. SPRANGER, Eduard. Wesen und Wert Politischer Ideologien; em Vierteljalres Heft für Zeitgeschichte, Ano II, 1954. TRACY, Antoine Destutt de. Elements Dídeologie, (adober Reader 2004). VINCENT, Andrew. Ideologias Políticas Modernas, tradução Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1922.


PROCESSO PENAL E GESTÃO DA PROVA – OS NOVOS ARTs. 155 e 156 DO CÓDIGO REFORMADO (LEI nº 11.690/08) Marcelo Lessa Bastos1

RESUMO: Os arts. 155 e 156 do Código de Processo Penal, recentemente alterados pela Lei nº 11.690/08, mantiveram o poder instrutório do Juiz no Processo Penal, embora o tenham retirado da condição de protagonista e o colocado na condição de coadjuvante, privilegiando a atuação das partes, como protagonistas principais, no duelo probatório. No entanto, o Juiz se mantém capaz de, subsidiariamente, buscar a verdade dos fatos que são levados ao seu conhecimento pelas partes e submetidos à sua decisão, sem que isto tenha o condão de comprometer o sistema acusatório, o princípio da inércia ou o princípio da imparcialidade do julgador, regras que estão preservadas, em que pese a alteração legislativa. O processo penal moderno não comporta a figura de um Juiz indiferente ao reflexo de sua sentença sobre os fatos da vida, mas exige um Juiz que busque aproximá-la, dentro dos meios lícitos de que dispõe, o mais que for possível do exato retrato do que realmente aconteceu. SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. SITUANDO A DISCUSSÃO. 3. OS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE E SUA INTERPRETAÇÃO. 3.1 A prova do estado das pessoas; 3.2 A formação do convencimento do Juiz a partir da prova produzida em contraditório; 3.3 Atuação de ofício do Juiz na produção de provas. 4. CONCLUSÃO. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. PALAVRAS-CHAVE: Sistema Acusatório – Poderes Instrutórios do Juiz – Reforma do Código de Processo Penal.

l. INTRODUÇÃO. Sem maiores pretensões, registram-se, neste primeiro ensaio, as catecúmenas impressões tiradas dos novos arts. 155 e 156 do Código de Processo Penal, com a redação trazida pela Lei nº 11.690/08.

1

Doutorando em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de Direito de Campos, Professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos, Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.


2

Uma breve análise dos mesmos e as repercussões que, segundo se imagina, irão produzir, é o que se pretende com este singelo trabalho, que se inicia situando os antecedentes das discussões doutrinárias que, felizmente, acabaram por não prevalecer, resultando na redação dos dispositivos que ora se comentam: tímida para aqueles que pretendiam ir extremamente longe na repartição da carga dinâmica da prova no curso do processo criminal; mas, no entanto, consoladora para aqueles que não pretendiam ver o Juiz do século XXI transformado em refém da atividade probatória das partes, preso à redoma de uma inércia levada às últimas conseqüências e amarrado em uma toga estilizada à moda “camisa de força”. 2. SITUANDO A DISCUSSÃO.

A Carta de 1988, ao redemocratizar o país, trouxe novas diretrizes no relacionamento do Estado para com o cidadão, diretrizes essas que hão de repercutir nas mais diversas esferas dessa relação, inclusive e, talvez principalmente, na relação processual, em especial de natureza penal. Ensina Raymundo Faoro, dissertando sobre a transição do capitalismo político para o que denomina capitalismo moderno: O indivíduo, de súdito, passa a cidadão, com a correspondente mudança de converter-se o Estado, de senhor a servidor, guarda da autonomia do homem livre. A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar, assume o primeiro papel, dogma de direito natural ou da soberania popular, reduzindo o aparelhamento estatal a um mecanismo de garantia do indivíduo. Somente a Lei, como expressão da vontade geral institucionalizada, limitado o Estado a interferências estritamente previstas e mensuráveis na esfera individual, legitima as relações entre os dois setores agora rigidamente separados, controláveis pelas Leis e 2 pelos Juízes.

2

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987, v. 2, p. 734.


3

Costuma-se dizer que o processo penal é o “sismógrafo” da Constituição, sendo natural que, em períodos de exceção, pautados pelo autoritarismo típico das ditaduras, a preocupação com a efetividade a qualquer preço sacrifique as garantias fundamentais inerentes ao devido processo legal, ao passo em que, em períodos de normalidade democrática, esses valores tendam a requerer certa primazia, ainda que, com isto, se possa sacrificar a aparente utilidade de um processo rápido e eficaz. O maior desafio do processualista dos dias atuais consiste em, exatamente, fazer a ponderação entre as garantias fundamentais inerentes a um processo penal democrático e a efetividade deste processo, não perdendo de vista que esta também é uma garantia fundamental, como componente do direito de acesso à Justiça e que, uma vez completamente sacrificada, pode conduzir a uma impunidade que, em última análise e a longo prazo, tende a comprometer a própria manutenção do regime democrático que se pretende preservar. Obnubilados pela messiânica tarefa de tornar o processo penal livre de qualquer ranço de inquisitorialismo, pecado que permeou a Idade Média, muitas vozes se levantaram na Doutrina, no escopo de levar a inércia do Juiz às últimas conseqüências, propondo uma figura passiva, de mero expectador, refém de uma espécie de jogo privado de interesses, tudo a pretexto de não corromper sua imparcialidade.

Assim, pretendia-se um Juiz

absolutamente alheio à busca da verdade dos fatos que eram postos à sua análise, completamente descompromissado com o retrato da vida que fosse representar a sua sentença, que não deveria passar de uma singela crítica literária a um roteiro escrito, protagonizado e dirigido pelas partes litigantes. Neste sentido: Jacinto Nélson de Miranda Coutinho3, Gilson Bonato4, Geraldo Prado5, Paulo Rangel6, dentre outros, sob os auspícios do grande Luigi Ferrajoli:

3

COUTINHO, Jacintho Nélson de Miranda. O papel do Novo Juiz no Processo Penal. Artigo publicado na obra coletiva Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001 4 BONATO, Gilson. Devido Processo Legal e Garantias Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 5 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. 6

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.


4

Do mesmo modo que ao acusador são vedadas as funções judicantes, ao juiz devem ser em suma vedadas as funções postulantes, sendo inadmissível a confusão de papéis entre os dois sujeitos (...) É nessas atividades que se exprimem os diversos estilos processuais: desde o estilo acusatório, em que é máximo o distanciamento do juiz, simples espectador do interrogatório desenvolvido pela acusação e pela defesa, ao estilo misto, em que as partes são espectadoras e o interrogatório é conduzido pelo juiz, até o estilo inquisitório, no qual o juiz se identifica com a acusação e por isso interroga, indaga, recolhe, forma e valora as provas (...) Igualmente os testemunhos, extorquidos pelo juiz e dotados de valor probatório legal na inquisição, são entregues no processo acusatório exclusivamente à interrogação pelas partes, submetidos ao seu exame cruzado, vinculados à espontaneidade e ao desinteresse das testemunhas, delimitados no objeto e na forma pelas proibições de perguntas impertinentes, sugestivas, indeterminadas ou destinadas a obter apreciações ou juízos de valor. De fato, representam resíduos inquisitórios o interrogatório (a oitiva) das testemunhas pelo juiz (...); a ditadura por parte dele nas atas de interrogatório; o poder ilimitado do juiz de admitir ou não admitir provas e, por fim, aquele substituto moderno da tortura, que é a advertência das testemunhas por meio de incriminação e 7 condenação por falso testemunho ou por silenciarem, salvo retratações.

Na linha do equilíbrio entre um processo garantista e, ao mesmo tempo, efetivo, tentou-se, sem embargo de dotá-lo do perfil de um processo penal de partes (o que implicaria na atribuição de encargos probatórios ao menos ao autor, eis que milita em favor do réu a presunção de não-culpabilidade8), resguardar ao Juiz a possibilidade de uma participação ativa, ainda que supletiva, mas com plenos e eficazes instrumentos para sair em busca da verdade dos fatos que lhes foram postos pelas partes, de modo que pudesse sobre eles pronunciar o direito realmente adequado à espécie (ao que efetivamente se imagina ter acontecido). Do processo civil vem, aliás, a idéia de que a ação é exercida contra o Estado e este, na medida em que assume o monopólio da jurisdição, vedando que se faça justiça com as próprias mãos, se responsabiliza em prestar a jurisdição de forma satisfatória e efetiva. Não qualquer tipo de jurisdição (como parecem imaginar os messiânicos que querem um Juiz pudico, envolto em uma redoma para não se contaminar com as chagas das partes litigantes); mas aquela que se mostrar adequada à satisfação do direito material posto nas 7

FERRAJOLI, Lugi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 489/490. 8 O estreito âmbito deste ensaio não permite aprofundar na discussão “não-culpabilidade” X “inocência”, o que demandaria um trabalho específico.


5

pretensões antagônicas que são submetidas à batuta do Juiz. Sem lhe conferir o poder de instruir o feito de modo a buscar formar seu convencimento o mais próximo possível da realidade dos fatos ocorridos, não se vê como se alcançar a expectativa de uma boa prestação jurisdicional, que do Juiz esperam as partes. Tais idéias são assim sintetizadas por Darci Guimarães Ribeiro:

El monopolio de la jurisdicción es el resultado natural de la formación del Estado que trae consigo consecuencias tanto para los individuos como para el proprio Estado. Para los primeros, alejó definitivamente la possibilidad de reacciones inmediatas por parte de cualquier titular, consecuentemente ellos se encuentran impedidos de actuar privadamente para la realización de sus intereses. Para el segundo, el monopolio creó el deber de prestar la tutela jurisdiccional efetiva a cualquier persona que lo solicite. (El monopolio no crea para el Estado el deber de prestar cualquier tutela jurisdiccional, sino la tutela jurisdiccional apropiada al derecho material que la parte trae a juicio, es decir, el Estado que es titular de la potestad jurisdiccional debe colocar a disposición de los ciudadanos un instrumento (proceso) capaz de amoldarse a los intereses en conflicto, para poder así proporcionar justicia em un tiempo adecuado a los consumidores de los servicios jurisdiccionales, en la feliz óptica de Cappelleti, “Acesso alla giustizia 9 come programma di riforma e come metodo di pensiero”).

Não há porque afastar o processo penal das idéias acima delineadas, sendo falsa a percepção de que processo civil e processo penal são sistemas em mão e contra-mão, num dualismo que nega a existência de uma teoria geral do processo. Mão e contra-mão esta que já havia sido objeto de destaque por parte de José Carlos Barbosa Moreira10. Dele, aliás, a crítica mais contundente a esta “nova” linha de pensamento doutrinário que, parecendo propor uma espécie de releitura do “Antropocentrismo” em um viés processual (“Reucentrismo Processual”?), despreza valores de igual dignidade constitucional como a segurança pública, tutelável somente com um processo efetivo, que busque a verdade dos fatos, para absolver quando tiver que absolver e, da mesma forma e sem nenhuma cerimônia, punir quando tiver que punir: 9

RIBEIRO, Darci Guimarães. La Pretensión Procesal y La Tutela Judicial Efectiva. Hacia una Teoría Procesal del Derecho. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 2004, p. 76/77. 10 Cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Processo Civil e Processo Penal: mão e contramão? Artigo publicado na Revista Direito e Cidadania, nº 7, jul/out 1999, p. 69/81.


6

Temos, no particular, a penosa impressão de ver materializar-se aos nossos olhos autêntico fantasma retardatário de um tipo de individualismo exasperadamente anti-social, que supúnhamos exorcizado há muito tempo e em definitivo. Custa-nos crer que assombrações do gênero possam fazer boa companhia na marcha para a construção de 11 uma sociedade mais civilizada.

Não havia, como efetivamente não há, a menor razão para se pretender imobilizar o Juiz no tocante à gestão da prova, papel que lhe há de ser reservado, senão como protagonista, ao menos como coadjuvante. Neste sentido, Afrânio Silva Jardim12 e Ada Pellegrini Grinover13, esta última exorcizando, de forma magistral, o fantasma de que a busca da prova por parte do Juiz, ainda que subsidiariamente, poderia comprometer-lhe a imparcialidade, a partir do singelo, porém suficiente argumento, de que isto se trata de um grande equívoco, pelo simples fato de que ele, Juiz, não poderia adivinhar o resultado da prova que eventualmente mandou produzir. A crença de que é possível um sistema acusatório que preserve os poderes do Juiz no que concerne à instrução probatória, inclusive como resultado de uma evolução desse próprio sistema acusatório ao longo do tempo, tem inspiração no magistério de Giovanni Leone: El origen del sistema acusatorio se vincula a una concepción democrática, y tan es así, que fue adoptado por los antiguos regímenes democráticos y republicanos. Carmignani hace notar que el proceso acusatorio tuvo como ‘causa natural e inmediata’ el concepto de que en una democracia ‘la autoridad soberana está en todos los miembros de la organización política’. (…) El advenimiento del Estado moderno y la necesidad cada vez más sentida de ajustar el proceso penal a la concepción del Estado de derecho, debían, efectivamente, llevar a separar en los dos precedentes sistemas la parte buena y todavía vital de la parte no ya aceptable; bosquejándose así, casi automáticamente, el sistema mixto, que se caracteriza por cualquier ‘combinación entre los caracteres del acusatorio y los caracteres del inquisitorio, combinaciones 11

Id. A Constituição e as Provas Ilicitamente Obtidas. Artigo publicado na Revista Forense, v. 337, jan/mar 1997, p. 134. 12 JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2001; e Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2001. 13 GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. Artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 68, jan/jun 1999, p. 13/25.


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que cabe realizar en los más variados modos’ (...) El sistema mixto, que es el vigente, se construye sobre los principios siguientes: a) el proceso no puede nacer sin una acusación; pero ésta sólo puede provenir de un órgano estatal. Del proceso acusatorio deriva la necesidad de la separación entre juez y acusador (y de ahí el principio ne procedat iudex ex officio); del proceso inquisitorio deriva la atribución del poder de acusación a un órgano estatal (ministerio público); b) el proceso, de ordinario, se despliega a través de dos fases correspondientes a los dos sistemas opuestos: instrucción, inspirada en el proceso inquisitorio (escritura y secreto); el juicio, inspirado, a su vez, en el proceso acusatorio (contradictorio, oralidad y publicidad); c) la selección de las pruebas, la adquisición y la crítica de ellas, quedan a la libre facultad del juez: nos hallamos, pues, en el campo del sistema inquisitorio.14

E total respaldo no grande Frederico Marques, que afasta categoricamente a preocupação de que conferir poderes instrutórios ao Juiz no curso do processo tenha o condão de comprometer o sistema acusatório: Norteado “no sentido de obter o equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual” (exp. de motivos, nº XVIII), o código de 1941 teve o cuidado de atribuir ao juiz o poder de “determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante” (art. 156) – de esclarecer primeiro que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer (art. 156); dessa forma, essa atribuição judiciária assume caráter apenas complementar e supletivo, conforme se lê logo no início do item VII, da exposição de motivos. Não importa que em seguida venha dito que, havendo “uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet”: em face do art. 156, e, tendo em vista a prioridade das normas constitucionais relativas à plenitude da defesa, tal atribuição judiciária tem natureza indiscutivelmente supletiva, não chegando assim 15 a infundir caráter inquisitório ao nosso procedimento.

3. OS DISPOSITIVOS EM ANÁLISE E SUA INTERPRETAÇÃO. Assim ficaram os dispositivos:

14

LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho Procesal Penal. Traduzido por Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1963, p. 23 e 26/27 (com grifos no original). 15 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. São Paulo: Millennium, 2001, p. 25.


8

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.” (NR) Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 16 (NR)

A redação anterior, dos então arts. 155, 156 e 157 do Código de Processo Penal, deste modo dispunha: Art. 155 - No juízo penal, somente quanto ao estado das pessoas, serão observadas as restrições à prova estabelecidas na lei civil. Art. 156 - A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. 17 Art. 157 - O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova.

Pode-se concluir, do cotejo entre a norma anterior e a atual, que as mudanças representaram, em primeiro lugar, uma frustração para os que pretendiam a equivocada “purificação” do sistema acusatório, tolhendo o Juiz de toda e qualquer atividade instrutória18. Ainda bem! 3.1 A prova do estado das pessoas.

16

BRASIL, Código de Processo Penal, arts. 155 e 156, com redação determinada pela Lei nº 11.690/08. BRASIL, Código de Processo Penal, em sua redação original. 18 Cf. COUTINHO, Jacintho Nélson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. Artigo publicado no IBCCrim, Boletim nº 188, de julho/2008. 17


9

Lamenta-se a manutenção do primitivo art. 155, agora sob a forma de parágrafo único. Não se concebe, nem quanto ao estado das pessoas, opor restrições a uma prova lícita, o que parece contrariar o comando que, a contrario sensu, emerge do art. 5o, LVI, da Constituição Federal19. Ora, ainda que diga respeito ao estado das pessoas, desde que a prova produzida nos autos tenha sido obtida de forma lícita, não há porque se reportar a eventual fórmula prevista na Lei civil que, por sua vez, também não se afina à inteligência do preceito Constitucional em destaque. O dispositivo processual não deveria ter sido reproduzido, de modo a se banir um resquício do antigo e indesejado sistema da prova legal que ainda teima em assombrar o Código de Processo Penal, em afronta ao sistema do livre convencimento, que tinha que reinar absoluto. 3.2 A formação do convencimento do Juiz a partir da prova produzida em contraditório. Por outro lado, em boa hora declara o caput do art. 155 que somente a prova produzida em contraditório judicial pode servir para a formação do convencimento do Juiz. O texto que se segue, ao afirmar que o juiz não poderá fundamentar sua decisão “exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”, pode deixar algum clima de suspense no ar, abrindo a brecha para que se venha a sustentar que o fundamento da sentença do Juiz não poderia ser “exclusivo” nos elementos da investigação, como destaca a Lei, mas poder-se-ia buscar “reforço” à prova produzida em contraditório judicial nesses elementos. Tal conclusão, contudo, seria equivocada. Há de primar a primeira parte do dispositivo, que consagra a exclusividade da formação do convencimento do Juiz com base na prova colhida em contraditório judicial (“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial”),

com a única ressalva de somente poderá se

valer, ainda que exclusivamente, das “provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” produzidas no curso da investigação. Logo, as provas, por assim dizer, ordinariamente produzidas na investigação, que não tenham natureza cautelar, não sejam irrepetíveis e nem 19

BRASIL, Constituição Federal, art. 5º, LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.


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antecipadas, não podem servir nem mesmo de reforço à formação do convencimento do Juiz, sendo nula a fundamentação de qualquer sentença que delas se socorrer, ainda que à guisa de complemento da fundamentação calcada na prova colhida em contraditório judicial. A esta conclusão se pode chegar, também, a partir da interpretação histórica do dispositivo que, na sua redação primitiva, limitava-se a declarar que o Juiz poderia formar sua convicção pela livre apreciação da prova, não especificando nada, sendo que, agora, especifica que prova é esta e quais as únicas ressalvas que são admitidas20. O ruim das reformas pontuais é que, quando parte delas entra em vigor e a outra parte não, sempre fica faltando um pedaço, como que numa colcha de retalhos. O art. 7o, parágrafo único, do Código de Processo Penal, na redação proposta pelo Projeto de Lei nº 4.209/0121, complementa o dispositivo em comento, de sorte a respaldar a linha aqui defendida, no sentido de que, em que pese o “exclusivamente” inserido de forma temerária ou pelo menos dúbia no novo art. 155 do Código de Processo Penal, certo é que a prova colhida na investigação, afora as ressalvas já apresentadas, jamais poderá servir de base à formação do convencimento do Juiz, ainda que venha somente a reforçar o convencimento já firmado com base na prova colhida no curso contraditório da instrução criminal. Do contrário, restaria arranhado o princípio constitucional do contraditório, evidentemente situado num plano muito superior ao que está situado o malfadado “exclusivamente”. E quais são essas ressalvas, em que se permite ao Juiz formar seu convencimento com base em provas colhidas no curso da investigação preliminar, muitas vezes sem a observância do princípio do contraditório? São as provas cautelares – aí incluídas, dentre outras, as interceptações telefônicas, cuja colheita, por razões óbvias, não se compatibiliza com o princípio do 20

Cf. o atual art. 155, caput, do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 11.690/08, em confronto com o antigo art. 157 do mesmo Código, em sua redação primitiva. 21 BRASIL, Projeto de Lei nº 4.209/01 – Art. 1o Os dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, a seguir mencionados, passam a vigorar com as seguintes alterações: (...) “Art. 7º Os elementos informativos da investigação deverão ser colhidos na medida estritamente necessária à formação do convencimento do Ministério Público ou do querelante sobre a viabilidade da acusação, bem como à efetivação de medidas cautelares, pessoais ou reais, a serem autorizadas pelo juiz. Parágrafo único. Esses elementos não poderão constituir fundamento da sentença, ressalvadas as provas produzidas cautelarmente ou irrepetíveis, que serão submetidas a posterior contraditório."(NR)


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contraditório em seu viés participativo22, mas está expressamente ressalvada e portanto possibilitada pelo art. 5o, XII23, da Constituição Federal, não havendo porque se questionar a validade como prova da conversa interceptada, apta, portanto, a formar o convencimento do Juiz, ainda que isoladamente considerada; as provas não repetíveis – aí incluídos os exames de corpo de delito ordenados durante a investigação, quando os vestígios documentados desaparecerem com o decurso do tempo, de sorte a não permitir que se possa pensar em repetir o exame24; e as provas antecipadas – aqui o legislador parece “chover no molhado”, porque estas, as provas antecipadas, cuja previsão no Código é antiga (art. 225 do Código de Processo Penal, na redação primitiva ainda), já serão produzidas em contraditório judicial, aplicando-se por analogia os arts. 846/851 do Código de Processo Civil, estando, portanto, perfeitamente compreendidas na primeira parte do novo art. 155 do Código de Processo Penal. Há de se combinar o art. 155, caput, parte final, no ponto em que se refere às provas antecipadas, com o art. 156, I, adiante examinado. Da análise das ressalvas especificadas de forma taxativa no dispositivo em questão se permite concluir que o exame de corpo de delito, feito na fase de investigação, quando puder ser repetido, uma vez não tendo desaparecidos os vestígios deixados pela infração penal (por exemplo: um membro mutilado, uma coisa que ainda permanece quebrada em local preservado, ou mesmo uma arma ainda apreendida cuja eficácia para produzir disparos se questiona), haverá de sê-lo, em contraditório judicial, garantindo-se a plena atuação das partes na formação da prova (contraditório prévio, participativo25), inclusive com indicação de assistentes técnicos (art. 159, § 5o, II, do Código de Processo

22

Cf. BASTOS, Marcelo Lessa, ORÇAI, Marcella Cordeiro. Exame de Corpo de Delito – o art. 158 do Código de Processo Penal e um releitura à luz do princípio do contraditório e das novas regras do interrogatório (Lei nº 10.792/03). In: XVI Congresso do CONPEDI, 2007, Belo Horizonte. Anais do XVI CONPEDI, 2007. 23 BRASIL, Constituição Federal, art. 5o, XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. 24 O que, de certa forma, não deixa de ser uma prova cautelar, ou pelo menos deveria ostentar esta natureza, para que pudesse se justificar como prova definitiva. Cf. nota 22 e, também, CORRÊA, Cristiane da Rocha. O Princípio do Contraditório e as Provas Irrepetíveis no Inquérito Policial. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 60. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 25 Cf. GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o Processo Justo. In: _____. Estudos de Direito Processual. Rio de Janeiro: editora Faculdade de Direito de Campos, 2005.


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Penal, com redação dada pela Lei nº 11.690/0826), não servindo o primeiro exame para a formação do convencimento do Juiz. 3.3 Atuação de ofício do Juiz na produção de provas. O atual art. 156 do Código de Processo Penal apresenta-se de modo tal que somente uma interpretação consentânea com o sistema acusatório, que deriva da Constituição Federal, poderá livrar-lhe das críticas que já se ensaiam, precipitadamente, dirigir27. Em que pese o caput do dispositivo (“A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício”)

generalizar a possibilidade de o Juiz agir de ofício

em ambas as situações que prevê – incisos I e II – parece evidente que, no caso do inciso I (“ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”),

o

juiz só pode agir quando provocado pelo titular do direito de ação (Ministério Público ou querelante, conforme de iniciativa pública ou privada), no resguardo de uma prova pertinente e importante, que esteja em vias de perecer, tendo por parâmetro os já citados arts. 225 do próprio Código de Processo Penal e 846/851 do Código de Processo Civil. Assim se estabelece em complemento, como também já destacado, ao art. 155, caput, parte final, do Código de Processo Penal, no ponto em que ressalva as provas antecipadas, que são essas que o Juiz pode determinar antes de iniciada a ação penal (art. 156, I, do Código de Processo Penal), mas não de ofício, como parece pretender o caput, o que contrariaria, aí sim, o princípio da inércia, inerente ao sistema acusatório, com o quê mostrar-se-ia incompatível, eis que ainda não iniciada a ação por quem de direito, não cabendo ao Juiz partir em busca da prova antes de ser exercido o direito de ação, posto que, se assim o fizesse, estaria investigando, adotando comportamento tipicamente inquisitivo (nos velhos moldes dos arcaicos Juizados de Instrução), o que lhe é vedado constitucionalmente. 26

BRASIL, Código de Processo Penal, art. 159, § 5o – Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia: (...) II - indicar assistentes técnicos que poderão apresentar pareceres em prazo a ser fixado pelo juiz ou ser inquiridos em audiência. 27 Cf. COUTINHO, Jacintho Nélson de Miranda. op. cit., nota 18.


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Sugere-se, pois, uma interpretação conforme a Constituição, de modo a, na hipótese do inciso I, não permitir que o Juiz aja de ofício, só podendo determinar a produção de prova antecipada se isto for requerido pela parte interessada. Chove no molhado o legislador, mais uma vez, quando, no inciso I em comento, manda observar a “necessidade, adequação e proporcionalidade” da medida, noções que já estão contidas nos conceitos de fumus boni juris e periculum in mora que são inerentes a este tipo de medida de produção antecipada de provas, cautelar que é. Despicienda, pois, a preocupação do legislador que, no entanto, não atrapalha, mas reforça a questão. O ponto principal dispositivo é o inciso II (“determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”).

Esta, sim, uma faculdade do Juiz, de ofício, como estabelece o caput, na busca da formação de seu convencimento, quando não julgar suficientes as provas produzidas pelas partes. Tal atividade por parte do Juiz não macula sua imparcialidade, posto que, como já ressalvado, não pode ele adivinhar o resultado das diligências ou das provas que mandou produzir. E muito menos compromete sua inércia, já que não está ele a propor fatos novos ou a trazer fatos novos o processo, mas, tão-somente, checar, com os instrumentos de que dispõe, a veracidade dos fatos trazidos e alegados pelas partes. Não se pode conceber um Juiz desinteressado com o acerto de sua decisão. O caráter publicista do processo, maxime aqueles em que a ação penal é de iniciativa pública, portanto obrigatória e indisponível, não condiz com um Juiz completamente alheio ao jogo probatório. O sistema acusatório não pressupõe, necessariamente, as partes como adversárias, livres para competirem segundo suas exclusivas expensas, ficando o Juiz numa posição de árbitro, passivo, à deriva da condução que as partes resolverem dar aos rumos da demanda, na posição clássica de “O Pensador” (Le Penseur) de Auguste Rondin.

O sistema

acusatório pode, perfeitamente, conviver com um processo de cunho publicista, tendo o Juiz uma postura ativa, de condutor do mesmo, agindo como timoneiro. É o inquisitorial


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system, em contraposição ao adversarial system, de que nos fala Ada Pellegrini Grinover28, ambos plenamente compatíveis com o sistema acusatório, ficando a opção por um ou outro sistema no âmbito discricionário do Legislador. Uma vez posta a demanda, o Juiz, que preside o processo, não pode ser passivo, preguiçoso, nem se contentar com a dúvida ao primeiro sinal de sua manifestação, simplesmente porque a finalidade do processo não é produzir a dúvida na cabeça do julgador. A dúvida – e, por conseguinte, o in dubio pro reu – é uma conseqüência inevitável e um resultado invencível, não o objetivo do processo. Assim, o Juiz pode e deve, usando seu poder instrutório supletivo, tentar vencer a dúvida e descobrir a verdade dos fatos postos em discussão. Somente se isto não for possível, é que deverá, por não poder presumir o réu culpado, absolvê-lo, declarando o in dubio pro reu. É o princípio da busca da verdade real, que propõe uma releitura do velho princípio da verdade real de outrora, distorcido infelizmente no passado e usado como arma terrorista pelos messiânicos que querem um Juiz puritano. Ora, é evidente que, ao se falar em verdade real nos tempos atuais, nem de longe se está a defender o que se chegou em nome deste princípio outrora. Ninguém defende tortura, é lógico! O que se quer, no entanto, é não engessar o Juiz, não mumificar o Juiz, como pretendem alguns, de sorte a permitir que ele parta em busca da verdade dos fatos que foram submetidos ao seu conhecimento, evidentemente com os meios lícitos de que dispuser, respeitados os direitos de ambas as partes, notadamente do réu, que não é obrigado a provar sua inocência e, muito menos, colaborar para a colheita das provas que poderão contra ele ser utilizadas, o que todo mundo sabe e ninguém está a contestar. Reconhece-se, no entanto, que a nova configuração processual, sobretudo em virtude da adoção do sistema do cross examination na coleta da prova oral, ante a nova redação dada pela Lei nº 11.690/08 ao art. 212 do Código de Processo Penal29, em

28

Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. op. cit., nota 13. BRASIL, Código de Processo Penal, art. 212 – As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.” (NR) 29


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substituição ao sistema presidencial de antes, tornou esta atividade instrutória do Juiz supletiva, subsidiária, “complementar” no dizer do parágrafo único do aludido dispositivo, cabendo às partes, inicialmente, se desincumbirem do ônus de provarem os fatos por elas alegados. Na verdade, cabendo ao autor o ônus desta prova, já que, como dito, para o réu, a prova é somente um direito, que pode exercer ou não, não lhe cabendo conferir nenhuma conseqüência negativa caso não se desincumba desta atividade, ou por não querer, ou por não poder. Mas, pelo menos, a preservação do poder instrutório do Juiz no curso do processo, que já constava da redação primitiva do art. 156 do Código de Processo Penal, além de seu art. 502, dentre outros, é uma vitória daqueles que desejam compatibilizar o processo garantista com o processo efetivo, e lutam para que esses conceitos não se antagonizem, como parecem querer alguns tantos, mas se complementem. Méritos para a professora Ada Pellegrini Grinover, grande responsável pela manutenção desta conquista de um processo justo. 4. CONCLUSÃO. De todo o exposto, pode-se concluir que o novo regramento geral da prova no processo penal tirou o Juiz da posição de protagonista, mas o manteve na de coadjuvante na tarefa de instruir o feito rumo ao julgamento final. Ante o que se pretendida e muitos ainda buscam – transformá-lo em refém, indefeso, frágil figura decorativa, Rainha da Inglaterra, “bobo da corte” – até que ficou de bom tamanho. O sistema acusatório, da mesma forma que comporta um Juiz Le Penseur, comporta também um Juiz ativo, que conduza e instrua, ainda que subsidiariamente, os processos que vai decidir, observados, apenas, os limites fáticos impostos pelas partes (naha me factum, dabo tibi jus). Antes de se criticarem eventuais posicionamentos assumidos pelo Legislador no uso de sua discricionariedade legislativa, é preciso que se tenha a humildade de reconhecer que nem todos os caminhos que contrariam determinados interesses são caminhos de pedra


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pelo simples fato de conduzirem a lugares que muitos não gostariam de ir. Afinal de contas, pela estrada ou pelo bosque, Chapeuzinho Vermelho conseguiu chegar na casa da Vovozinha, que foi salva do Lobo-Mau pelo valente Caçador. Uma coisa é uma Lei desviar-se da Constituição e, por esta razão, dever-se pugnar pela sua não aplicação, em respeito à Magna Carta, desde que se dê ao trabalho de apontar, concretamente, qual o dispositivo constitucional com o qual a referida norma efetivamente conflita; outra, bem diferente, é não querer aplicar a Lei, leia-se não querer respeitar as decisões discricionárias do Legislador, pelo simples fato de com elas não se concordar, como se “Ser” ou “Não Ser” constitucional fosse atributo de afago aos predicados que julga o intérprete possuir. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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Acusatório. Artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 68, jan/jun de 1999, São Paulo.


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Millennium, 2001. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. RIBEIRO, Darci Guimarães. La Pretensión Procesal y La Tutela Judicial Efectiva. Hacia una Teoría Procesal del Derecho. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 2004.


ALTERNATIVAS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO1

Imagine there’s no heaven, It’s easy if you try No hell below us, Above us only sky Imagine all the people, Living for today Imagine there’s no countries, It isn’t hard to do Nothing to kill or die for; And no religion too Imagine all the people, Living life in peace... (“Imagine” – John Lenon)

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Alternativas ao Direito Penal do Inimigo: 2.1 As idéias de Jakobs; 2.2 Críticas. Pertinência da discussão; 2.3 Propostas alternativas; 3. Conclusão; 4. Referências. PALAVRAS CHAVE: Direito Penal do Inimigo. Críticas. Propostas alternativas. KEY WORDS: The foes penal law. Critiques. Alternatives plans. RESUMO: o professor alemão Günther Jakobs sacudiu a Doutrina ao reformular sua proposta sobre o que denomina Direito Penal do inimigo. Inúmeras críticas foram dirigidas a Jakobs, rebatendo suas idéias, mas sem atentar para a pertinência de discutir suas premissas e, a rejeitar sua idéias, formular sugestões alternativas para o enfrentamento de uma situação que, não obstante o rigor jakobsiano na medida indicada de seu tratamento, é real e precisa ser combatida. A idéia deste trabalho consiste, exatamente, em analisar as premissas de Jakobs e apresentar alternativas para o enfrentamento das pertinentes questões levantadas. ABSTRACT: The German professor Günther Jakobs wiggled the doctrine to the reformulate his proposal above that is denominated Criminal law from the foes. So many criticisms have been against Jakobs, refuting his ideas, but without attempts for the pertinence as of discuss his premises and , the one break with his ideas, lay down cues alternatives to face from a state of affairs it would notwithstanding 1

Artigo escrito em janeiro de 2007.


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the Jakobs accuracy at the gauge flag as of your own handling , is actual and needs being fought out. The one idea of this work consists exactly, in analyzing the premises as of Jakobs and bring forward alternatives for the apropos questions risen.

1. INTRODUÇÃO.

O chamado Direito Penal do Inimigo, que tem no professor alemão Günther Jakobs, catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito da Universidade de Bonn, seu maior expoente, é um tema que não tem recebido a devida atenção da Doutrina brasileira, que prefere reservar a ele muitas críticas e algumas poucas notas de rodapé. Talvez nem tanto por suas conclusões, mas pelas premissas em que estão assentadas as idéias de Jakobs, o tema precisa ser discutido e debatido, de forma racional, pela Doutrina brasileira, que já passou da hora de reconhecer os problemas porque passa o sistema repressivo e formular propostas alternativas de solução. Infelizmente, viraram rotina no Brasil cenas de imolação de indefesos passageiros de ônibus, durante os ataques promovidos pelo crime organizado nas principais capitais do país, notadamente São Paulo e Rio de Janeiro, espalhando uma onda de terror na população que assiste, perplexa, os chefes dessas facções criminosas ordenarem esses ataques de dentro das prisões, através de telefones celulares e, não raras vezes, utilizando seus advogados como “pombos-correio”. Paralelamente a isto, ainda sobrevive na Doutrina, majoritariamente, o discurso da reeducação pela pena, humanização de sua execução etc. Algo definitivamente está errado. Alguma coisa precisa ser feita. O discurso penal precisa se amoldar à realidade dos fatos hoje vividos que, sem meias palavras, pode ser classificada como guerra civil e atentados terroristas.


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Este trabalho pretende, de forma sucinta e catecúmena, discutir o assunto e formular algumas propostas.

2. ALTERNATIVAS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO.

2.1 AS IDÉIAS DE JAKOBS.

Basicamente, propõe Jakobs a coexistência de um Direito Penal cercado de garantias, tal como hoje formatado, destinado exclusivamente aos cidadãos, concebidos como sujeitos de direito; e um Direito Penal rigoroso, de certa forma policialesco, destinado àqueles que, segundo afirma, não se comportam como cidadãos e, portanto, não podem usufruir do Direito Penal tradicional. A proposta de bifurcação do Direito Penal ou mesmo de coexistência de dois Direitos Penais, voltados para públicos diferentes – um para o cidadão, que é uma pessoa a ser reeducada; e outro para o inimigo, que seria uma “não-pessoa”, uma fonte de perigo que precisa ser neutralizada –, é formulada por Jakobs para, em última análise, não contaminar o Direito Penal do cidadão com as regras duras necessárias ao trato com o inimigo. Poder-se-ia dizer que, no pensamento Jakobsiano, ao menos do que se consegue compreender deste pensamento, o Direito Penal do cidadão seria a regra e o Direito Penal do inimigo a exceção, exceção esta que precisa existir exatamente para assegurar a permanência da regra. Cuando en el presente texto se hace referencia al derecho penal del ciudadano y al derecho penal del enemigo, ello es en el sentido de dos tipos ideales que díficilmente aparecerán llevados a la realidad de modo puro: aun en el enjuiciamiento de un hecho delictivo cotidiano que provoca poco más que tedio – derecho penal del ciudadano – se mezclará al menos una leve defensa frente a riesgos futuros – derecho penal del enemigo –, e incluso el terrorista más alejado de la esfera


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ciudadana es tratado al menos formalmente como persona, al concedérsele en el proceso penal los derechos de un acusado ciudadano. Por consiguiente, no puede tratarse de contraponer dos esferas asiladas del derecho penal, sino de describir dos polos de un solo mundo o de mostrar dos tendencias opuestas en un solo contexto jurídico-penal. Tal descripción revela que es perfectamente posible que estas tendencias se superpongan, es decir, que se solapen aquellas conducentes a tratar al autor como persona y aquellas otras dirigidas a tratarlo como fuente de peligro o como medio para intimidar a otros. Quede esto dicho como primera consideración.2

Quem melhor sintetiza o pensamento de Jakobs é Luis Greco, que destaca os dois momentos deste pensamento. O primeiro, em 1985, quando Jakobs introduziu o conceito de Direito Penal do inimigo em tom crítico, para fixar limites à criminalização de estágios prévios de lesão a bem jurídico, partindo do pressuposto de que o inimigo, ao contrário do cidadão, como fonte de perigo que é, não dispõe de uma esfera privada imune ao Direito Penal, a qual somente poderia ser perturbada quando exteriorizado seu comportamento. Ao contrário, por não dispor desta esfera privada, é possível ao Direito Penal criminalizar condutas ainda não exteriorizadas pelo inimigo. Mas isto só poderia ocorrer, na primeira versão do pensamento de Jakobs, em situações emergenciais e em caráter excepcional. Em 1985 tentou Jakobs fixar limites materiais a “criminalizações no estagio prévio à lesão a bem jurídico” por meio do par conceitual direito penal do cidadão e direito penal do inimigo. Para Jakobs, é possível caracterizar o direito penal segundo a imagem de autor da qual ele parte. O direito penal pode ver no autor um cidadão, isto é, alguém que dispõe de uma esfera privada livre do direito penal, na qual o direito só está autorizado a intervir quando o comportamento do autor representar uma perturbação exterior; ou pode o direito penal enxergar no autor um inimigo, isto é, uma fonte de perigo para os bens a serem protegidos, alguém que não dispõe de qualquer esfera privada, mas que pode ser responsabilizado até mesmo por seus mais íntimos pensamentos. “O direito penal do inimigo optimiza proteção de bens jurídicos, o direito penal do cidadão optimiza esferas de liberdade”. (...) O artigo de 1985 cunha, portanto, o conceito de direito penal do inimigo com propósitos primariamente críticos (...). O direito penal do inimigo “só se mostra legitimável com um direito penal de emergência, vigendo em caráter excepcional, e deve ser também visivelmente segregado do direito penal do cidadão, para reduzir o perigo de contaminação.3

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JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del Enemigo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005, p. 17/18. 3 GRECO, Luís. Sobre o Chamado Direito Penal do Inimigo. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 81/87.


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O segundo, mais recentemente, quando se acendeu verdadeira polêmica na Alemanha e no resto do mundo, ao retornar Jakobs ao assunto, desta vez relativizando o tom crítico e procurando justificar largamente o emprego do Direito Penal do Inimigo. Jakobs repete a antiga exigência de que o direito penal do cidadão e do inimigo sejam visivelmente separados, pois só assim se pode evitar que o direito penal do inimigo penetre no direito penal do cidadão. Mas agora Jakobs sublinha que a distinção serve apenas a fins descritivos, e não críticos. Em seu estudo mais extenso, realiza Jakobs uma incursão à história da filosofia política iluminista, de Hobbes até Kant, apresenta diversas fundamentações para um tratamento diferenciado para cidadãos e inimigos, e em seguida formula a sua própria explicação. A seu ver, normas são, em primeira linha, parâmetros de interpretação, que fazem do mundo da natureza um mundo de sentido ou de comunicação. É a norma que faz da causação de uma morte um homicídio, é ela que fundamenta a expectativa e a confiança em que tais fatos não serão cometidos pelos outros, possibilitando, assim, a orientação num mundo complexo, e é ela que faz de um sistema psicofísico uma pessoa, que pode ser autor ou vítima de um delito. Tais atribuições não ocorrem no plano da natureza, e sim no da comunicação, não sendo, portanto, falsificáveis em razão de contingências relativas aos dados naturais ou fáticos – elas vigoram, portanto, também contra a natureza, contra os fatos: contrafaticamente. Mas apesar desta estrita separação entre natureza e sentido, o plano do sentido não é tão independente do plano da natureza quanto se poderia à primeira vista imaginar. Por ex., se homicídios fossem cometidos repetidamente, em algum momento estaria afetada a confiança na vigência da proibição do homicídio. E o mesmo vale para a personalidade do autor. Pessoa, em Jakobs, é um termo técnico, que designa o portador de um papel, isto é, aquele em cujo comportamento conforme a norma se confia e se pode confiar. “Um indivíduo que não se deixa coagir a viver num estado de civilidade, não pode receber as bênçãos do conceito de pessoa”. Inimigos são “a rigor não-pessoas”, lidar com eles não passa de “neutralizar uma fonte de perigo, como um animal selvagem”. Características do direito penal do inimigo são uma extensa antecipação das proibições penais, sem a respectiva redução da pena cominada, e a restrição das garantias processuais do estado de direito, tal qual é o caso principalmente nos âmbitos da delinqüência sexual e econômica, do terrorismo e da chamada legislação de combate à criminalidade. (...) “Quem não garante de modo suficientemente seguro que se comportará como pessoa, não só não pode esperar ser tratado como pessoa, tampouco tendo o estado o direito de trata-lo como pessoa, pois doutro modo estaria violando o direito à segurança das outras pessoas”.4

Este segundo momento do pensamento Jakobsiano se assemelha às idéias de Hobbes que, aliás, é citado expressamente por Jakobs5. Hobbes, em “Do Cidadão”, classificava como traidor aquele súdito que se voltava contra o seu soberano ou contra a 4 5

Ibidem. JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. op. cit., p. 22/26.


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sua cidade, declarando não mais obedecê-lo total ou parcialmente (renegando, por exemplo, seu direito de declarar guerra, impor tributos, legislar, nomear funcionários públicos e magistrados, etc). Apenas isto já era considerado traição. Considerava, também, traidor o que pegasse em armas contra a cidade, o que debandasse para o lado inimigo durante a guerra, ou o que cometesse algum ato de violência contra o soberano ou alguém sob suas ordens.

Sustentava que a traição era uma violação não das leis

civis, mas das leis naturais (aquelas que nasceram com os homens, declarada por Deus em sua palavra eterna, como exposto acima). Por conta disto, concluía Hobbes que os traidores deveriam ser punidos não pelo direito civil, dos homens, mas pelo direito natural, ou seja, pelo direito de guerra, por que eram inimigos das cidades. Veja-se por suas próprias palavras: Os rebeldes, traidores e todas as outras pessoas condenadas por traição não são punidos pelo direito civil, mas pelo natural: isto é, não como súditos civis, porém como inimigos ao governo – não pelo direito de soberania e domínio, mas pelo de guerra.6

Jakobs vai ainda mais longe do que Hobbes no que concerne tanto ao alvo deste Direito Penal do inimigo, o inimigo em si, como no que concerne às restrições de cidadania a que está sujeito. O traidor de Hobbes era identificado pelo tipo de crime cometido – aquele que se volta contra o soberano (por palavras, como renegando sua autoridade total ou parcialmente, ou por ações, como praticando alguma violência contra ele ou quem executa suas ordens) ou a cidade (pegando em armas ou se debandando para o lado do inimigo em caso de guerra). E se definia que seria punido segundo o direito de guerra, o direito natural. Já Jakobs não diz quem é o inimigo, limitando-se a indicá-lo como sendo aquelas “não-pessoas” incapazes de inspirarem confiança acerca de se deixarem “coagir a viver num estado de civilidade”. E também não precisa que restrições esta “não-pessoa” está sujeita em seus direitos de cidadão. A possibilidade de se trabalhar com dois Direitos Penais, ou melhor, a possibilidade de excluir determinadas pessoas das “bênçãos” do Direito Penal dito do cidadão, por qualquer que seja a razão, é o desafio que se pretende enfrentar adiante. Jakobs adverte que é melhor trabalhar estas duas perspectivas, bem delimitadas e separadas, do que contemplar num único Direito Penal, o Direito Penal do cidadão, 6

HOBBES, THOMAS. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 233.


7

instrumentos aptos ao enfrentamento do inimigo. E concluí serem legítimas ambas as vertentes propostas, estabelecendo um paralelo entre o direito à segurança dos cidadãos e o direito de, em nome desta segurança, excluir das bênçãos do Direito Penal do cidadão o inimigo. O Direito Penal do inimigo se legitima, então, na visão de Jakobs, a partir do direito à segurança dos cidadãos. En el derecho penal del ciudadano, la función manifiesta de la pena es la contradicción, en el derecho penal del enemigo la eliminación de un peligro. Los correspondientes tipos ideales prácticamente nunca aparecerán en una configuración pura. Ambos tipos pueden ser legítimos. (...) Quien por principio se conduce de modo desviado no ofrece garantía de un comportamiento personal; por ello, no puede ser tratado como ciudadano, sino debe ser combatido como enemigo. Esta guerra tiene lugar con un legítimo derecho de los ciudadanos, en su derecho a la seguridad; pero a diferencia de la pena, no es derecho también respecto del que es penado; por el contrario, el enemigo es excluido. (...) Un derecho penal del enemigo claramente delimitado es menos peligroso, desde la perspectiva del Estado de derecho, que entremezclar todo el derecho penal con fragmentos de regulaciones propias del derecho penal del enemigo.7

O discurso de Jakobs choca. No entanto, precisa ser debatido. E, se for o caso, é preciso que se ofereçam alternativas às propostas de Jakobs, eis que uma coisa é certa: o atual modelo de Direito Penal está ultrapassado para enfrentar os desafios do Estado contemporâneo. Uma vez identificado o inimigo, Jakobs admite, em relação a ele, basicamente, a criminalização de condutas em estágio prévio de lesão ao bem jurídico, antes mesmo que se exteriorize em ação (por não possuir este inimigo uma esfera de privacidade a ser tutelada), a majoração desproporcional da reprimenda (sem levar em conta o iter criminis percorrido), e a flexibilização de garantias processuais. A não se aceitar esta proposta, é preciso se formular outra proposta, que se desincumba de dar ao cidadão o bem que mais clama na sociedade contemporânea, que é a segurança. Não se pode mais fingir que não existam aqueles a quem Jakobs classifica como “inimigos”; o que se pode, e se deve, é buscar alternativas para tratar a situação, independente das pessoas, de forma mais adequada e efetiva sob o ponto de vista da garantia da segurança pública, que também é um direito constitucional de todos.

2.2 CRÍTICAS. PERTINÊNCIA DA DISCUSSÃO. 7

JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. op. cit., p. 40.


8

Bem formulada crítica à proposta de Jakobs é feita pelo professor espanhol Manuel Cancio Meliá, da Universidade Autônoma de Madrid. Para ele, o chamado Direito Penal do inimigo é o resultado da união entre o que denomina “Direito Penal simbólico” e “punitivismo”. Chama de “Direito Penal simbólico” não tanto um grupo definido de infrações penais caracterizados por sua inaplicação, pela falta de incidência real, mas o resultado de um movimento de faturamento legislativo, em que se leva em conta os aspectos de comunicação política de curto prazo, que denomina “estratégias mercadotécnicas de conservação de poder político”, chegando até mesmo a se referir a “populismo na legislação penal”, que consistira na exploração dos efeitos simbólicos da aprovação de normas penais destinadas à regulação dos diversos setores das relações sociais, somado ao endurecimento desregrado das sanções penais cominadas às normas penais efetivas, que denomina “punitivismo”. A soma disto resulta no “Direito Penal do inimigo”, segundo Cancio Meliá, com o qual se busca a construção de uma determinada imagem de identidade social a partir da definição dos autores desses crimes – simbólicos no furor legislativo e graves no “punitivismo” que impele à constante majoração de suas penas – como figuras não integradas a esta identidade8. Sin embargo, en cuanto derecho positivo, el derecho penal del enemigo sólo forma parte nominalmente del sistema jurídicopenal real: “derecho penal del ciudadano” es un pleonasmo, “derecho penal del enemigo” una contradicción en los términos.9

Conclui Cancio Meliá que a proposta de Jakobs consiste em endemonizar um grupo de criminosos (traficantes de drogas, terroristas e outras formas de criminalidade organizada) que, em verdade, estão em dissonância com os paradigmas sociais adotados. Chega a ponto de comparar este criminoso a Lúcifer, lembrando que este não passa de um anjo decadente e que um dos nomes que usa é exatamente o de “inimigo”10. Depois, de forma mais centrada, destaca que o Direito Penal do inimigo é um direito penal do autor, não um Direito Penal do fato, não sendo legítimo ao excluir a qualificação como pessoa do cidadão:

8

Cf. JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. op. cit., p. 48/53. JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio, op. cit., p. 42. 10 JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio, op. cit., p. 59. 9


9

El derecho penal del enemigo no estabiliza normas (prevención general positiva), sino demoniza determinados grupos de infractores; (...) En consecuencia, el derecho penal del enemigo no es un derecho penal del hecho, sino de autor. (...) La pretendida autoexclusión de la personalidad por parte de éste – manifestada en la adhesión a la “sociedad” mafiosa en lugar de a la sociedad civil, o en el rechazo de la legitimidad del Estado en su conjunto... – no debe estar a su alcance, puesto que la cualidad de persona es una atribución [que concretamente en nuestras sociedades (Estados de derecho actuales) en lo esencial – y, desde luego, en lo que se refiere a su posición en cuanto posibles infractores de normas penales – corresponde a todos los seres humanos en virtud de su condición humana; por ello, no puede haver “exclusión” sin ruptura del sistema]. Es el Estado quien decide mediante su ordenamiento jurídico quién es ciudadano y cuál es el status que tal condición comporta: no cabe admitir apostasías del status de ciudadano. 11

Outra crítica, bem mais contundente, vem de Luís Greco, à guisa de conclusão, após expor detidamente o pensamento Jakobsiano: O conceito de direito penal do inimigo não pode pretender lugar na ciência do direito penal. Ele não serve nem para justificar um determinado dispositivo, nem para descrevê-lo, nem para criticá-lo. Como conceito legitimador-afirmativo, ele é nocivo; como conceito descritivo, inimaginável; como conceito crítico, na melhor das hipóteses desnecessário. A discussão sobre o direito penal do inimigo está se mostrando demasiado emocional. Neste estudo, tentou-se, através de precisão analítica e de diferenciações conceituais, lidar racionalmente com um conceito sobremaneira irracional, porque carregado de emoções. Não se pode estranhar, portanto, que as distinções um tanto óbvias que aqui se realizam estejam sendo propostas tão tardiamente na discussão: o conceito de direito penal do inimigo não convida de modo algum à racionalidade. Mas lá onde se trata de punir – isto é, de impor coativamente sofrimento ou juízos de reproche pelo estado – mostra-se necessária mais do que nunca uma atitude de objetividade, de sobriedade, de racionalidade. Uma tal atitude não é de modo algum favorecida pelo direito penal do inimigo, em quaisquer de seus três significados. Se quisermos que a razão mantenha o seu lugar no direito penal, não resta nele lugar algum para o direito penal do inimigo.12

A discussão se mostra pertinente, em que pese a ferocidade das críticas. Ninguém menos do que Canotilho a encampa, ainda que com certa ambigüidade. Fazendo um paralelo entre o Direito Constitucional e o Direito Penal, destacando suas raízes e o que chama de “cumplicidade” entre esses dois ramos do Direito, chega a dizer Canotilho:

11 12

JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. op. cit., p. 62/66. GRECO, Luís. op. cit., p. 112.


10

Os custos constitucionais e penais do hipergarantismo não devem subestimar-se. Por um lado, radica na cultura hipergarantística o longo e dramático processo das “desvitimizações”. Só nos tempos mais recentes se conseguiu a “redescoberta da vítima” e se ousou falar da carta dos direitos das vítimas de atos criminosos. Conseqüentemente, também não é de admirar que o giro antropológico, quer no direito constitucional quer no direito penal, seja paradoxalmente tributário da “consciencialização cidadã” provocada pela criminocracia, ou seja, pela criminalidade organizada ostensivamente aniquiladora do sistema de direito do Estado de direito democrático-constitucional. (...) Deve dar-se prioridade à tutela da vítima em relação à proteção do criminoso; deve afirmar-se como teleologia intrínseca do direito pena e processual a tutela do inocente (“das vítimas inocentes”) e não do autor considerado culpado. A condensação normativoconstitucional e normativo-penal dos direitos do argüido não é cautelosamente posta em causa, mas insiste-se na injustiça da absolutização dos direitos dos réus culpados quando eles extravasam da tutela da inocência ou da aquisição da verdade e se traduzem, em último termo, na infra-valoração da tutela primária das vítimas (essas, sim, os “verdadeiros inocentes”). (...) O “direito penal contra o inimigo”13 que hoje exerce profunda influência sobre alguns sistemas penais, designadamente o norte-americano e o europeu, tem testado o acerto das suas propostas constitucionais e penais em três setores das políticas e legislações criminais – a legislação antiterrorista, a criminalidade organizada e a delinqüência sexual (...) O “inimigo” nega-se a si próprio como pessoa, aniquila a sua existência como cidadão, exclui-se de forma voluntária e a título permanente da sua comunidade e do sistema jurídico que a regula. Mas não só isto. Agora, o fim da pena já não é o de uma função geral preventiva socialmente integradora ma sim o da repressão expiatória através da segregação e neutralização do criminoso que, pelo seu comportamento, desestabilizou as expectativas normativas condivididas pelos cidadãos, colocando-se em guerra contra o Estado e a comunidade. (...) A pressão recai sobre as Constituições obrigando-as a rever os respectivos textos sobretudo no âmbito das liberdades e das garantias, transformando as regras em exceções e as exceções em regras (...) O Estado de direito democrático-constitucional volta a albergar o estado de exceção como estado de necessidade sem as restrições do “direito de necessidade”14

Mais à frente, o renomado constitucionalista português ameniza o discurso: Uma coisa é falar-se dos problemas de risco típico da civilização tecnológica (riscos químicos, atômicos, medicamentosos e ambientais) e das questões jurídicas a eles associadas (“nova” definição de novos bens jurídicos, nova dogmática da ilicitude, da culpa e do nexo de causalidade) e outra, muito diferente, é articular o risco com dimensões psicológicas e ideológicas de forma a poder falar-se do risco 13

Expressão que o autor prefere, ao invés de “Direito Penal do Inimigo”, usada por Jakobs, segundo Canotilho em virtude do genitivo “de” sugerir sentidos contraditórios. 14 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Justiça Constitucional e Justiça Penal. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 58. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 330/334.


11

existencial causado pelo outro (o “inimigo”, o da outra “tribo” política, religiosa ou ideológica) e legitimadora do recurso a ações preventivas e repressivas constitucionalmente legitimadas e instrumentalmente concretizadas por um “direito penal de risco”. (...) É possível que o direito constitucional e o direito penal tenham de abrir-se a novos paradigmas, ou porque os cânones clássicos se revelam hoje inadequados ou porque se revela inútil a tentativa da sua adaptação aos novos pressupostos de fato. Mas também estaremos de acordo que o princípio da precaução e da prevenção hoje erguidos a princípios constitucionais e jus-internacionais estruturantes do direito ao ambiente e à qualidade de vida não correspondem à antecipação da tutela através da formatação de crimes de perigo abstrato, de crimes de perigo hipotético e de “crimes de tentativa”. (...) Se as observações anteriores estão corretas, então talvez se pudesse dizer que a articulação da sociedade de risco com o “sentimento de insegurança”, como faz Jakobs para forçar, em termos sistêmico-funcionais, a reorientação do direito constitucional e do direito penal, outra coisa não é senão uma abusiva translação das angústias tecnológicas para as angústias civilizacionais causadas pelas dialéticas paranóides dos terroristas humanos.”15

Canotilho deixa transparecer sua sensibilidade ao problema de insegurança das sociedades contemporâneas, cujas expressões de maior vulneração estão na chamada criminalidade organizada, no terrorismo e nos crimes sexuais, o que parece ser consenso até entre os críticos de Jakobs. No entanto, Canotilho procura se manter dentro da racionalidade, ao conter sua irresignação e moderar o tom do discurso inicial, admitindo, no final, apenas a abertura do Direito Constitucional e do Direito Penal a novos paradigmas, desde que estes paradigmas orientem uma transformação racional de suas normas, o que, sem dúvidas, é o grande desafio que se tem hoje pela frente. Winfried Hassemer entra na discussão em tom bem mais conservador, pendendo para a recuperação das tradições iluministas das garantias penais e denunciando o que chama “fragilização” das formas protetoras que o Direito Penal edificou através de um instrumento formalizado de persecução penal, em virtude do que denomina de “bagatelização” das intervenções na esfera jurídica dos acusados ou envolvidos em determinados delitos, em nome da prevenção contra a criminalidade16.

Merece

destaque, sem qualquer objeção, a advertência que Hassemer faz à atuação do Estado em suposto pé de igualdade com as organizações criminosas: Não existe “igualdade de armas” entre a criminalidade e o Estado que combate a criminalidade, no sentido de que ao Estado deveria ser permitido a utilização daqueles meios aos 15 16

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., p. 337/338. Cf. HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p.127/128.


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quais a criminalidade possui acesso. O Estado precisa, também em face da população, possuir uma superioridade moral sobre o crime, a qual não se fundamenta normativamente, mas também se revela na forma prática-simbólica. Ele não pode se utilizar de métodos criminosos, porque senão põe em perigo essa superioridade e, com isso, a longo prazo, também arrisca a sua credibilidade e a confiança da população na ordem jurídica estatal.17

No entanto, não há como cerrar os olhos às transformações do mundo que está à volta do observador.

É fato público e notório o fortalecimento das organizações

terroristas, só para ficar no mais significativo exemplo. Pouco importa discutir eventual legitimidade de suas bandeiras (religiosas, políticas ou o que quer que seja); seus métodos – de matar dezenas e centenas de inocentes a cada atentado – são suficientes para atrair o reproche e exigir uma pronta resposta por parte do Estado Democrático de Direito.

Não é mais possível se tolerar que vidas de cidadãos inocentes, que

absolutamente nada têm a ver com a “causa” da organização terrorista, sejam utilizadas como instrumento de manobra para qualquer tipo de reivindicação. Não há como fugir do novo paradigma de segurança imposto ao mundo após e em virtude dos atentados de 11 de setembro de 200118. E não há como o Direito Penal se esquivar disto. Tudo isto aconteceu, estava desenhado que iria acontecer, e vai acontecer de novo – não se trata mais de ficção científica! O Brasil se insere neste contexto de forma ainda mais dramática, porque os recentes atentados terroristas praticados por facções criminosas de São Paulo e Rio de Janeiro19 não se prenderam a nenhuma causa propriamente dita, senão a uma articulação dessas organizações criminosas com vistas a negociar com o Estado a manutenção de privilégios espúrios para os seus líderes. Não bastassem as ações terroristas das organizações criminosas, a sociedade brasileira assiste, perplexa, a uma escalada sem precedentes da corrupção, infiltrada nos

17

HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 145. “– Não sei como isso vai terminar. Mas, do lado de fora da janela, o céu está lindo”. Honor Elizabeth (Liz) Wainio, 27 anos, a bordo do Boeing da United Airlines, vôo UAL93, que caiu num bosque da Pensilvânia, sem atingir seu alvo, que era o Capitólio, falando no celular com sua madrasta Esther Heymann; “– Só quero dizer que te amo. Estou num vôo para São Francisco, tem uns caras a bordo. Eles seqüestraram o avião e estão ameaçando a gente com uma bomba”. Mark Bingham, empresário e ex-jogador de rúgbi, falando do mesmo vôo, através do “airphone” (telefone público existente em cada grupo de três assentos), com sua mãe, Alice Hoglan. Cf. SANT’ANNA, Ivan. Plano de Ataque. A história dos vôos de 11 de setembro. Rio de Janeiro: editora Objetiva, 2006, p. 14, 25/26 e 214/215 19 Fatos públicos e notórios, amplamente repercutidos em todos os meios de comunicação, nacionais e internacionais. 18


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mais diversos setores da vida pública e das Instituições e Poderes da República. Escalada esta que precisa ser contida, por comprometer o coração do Estado Democrático de Direito, representado pelas Instituições e Poderes que, em última análise, são responsáveis por sua manutenção. Isto sem falar na criminalidade econômica, outra espécie de organização criminosa que, embora de “mãos limpas” e “colarinho branco”, produzem resultados muitas das vezes tão ou mais danosos do que aqueles outros já mencionados. A sensação que se tem hoje é uma só e pode ser resumida em uma só palavra: impunidade. Os modelos até então vigentes de Direito Penal e Processo Penal, infelizmente, têm conduzido ou, para dizer o menos, não têm se mostrado eficazes para minimizar esta sensação de impunidade que povoa as mentes de todos os brasileiros, para ficarmos somente por aqui. Daí a pertinência da discussão que neste trabalho se ensaia e a necessidade de se abrirem os ouvidos às discussões sobre o Direito Penal do Inimigo, tema que precisa ser debatido, sob todas as venias, até para que se consiga, racionalmente, encontrar alternativas que substituam a estagnação penal que se vive hoje, sem precisar, necessariamente, experimentar os riscos de um Estado policialesco e discriminador que propõe Jakobs. Neste sentido parece ser a lição de Jesús-María Silva Sánchez que, tratando da expansão do Direito Penal, vê no chamado Direito Penal do inimigo o que denomina de “terceira velocidade” do Direito Penal. A “primeira velocidade” do Direito Penal, segundo o autor, se daria no âmbito do por assim dizer clássico Direito Penal, das penas privativas de liberdade, que precisa ser cercado de garantias. No entanto, vislumbra o autor a “segunda velocidade” do Direito Penal, aí agrupando os delitos não punidos com a privação da liberdade, mas com penas restritivas de direitos, que o autor chama de “Direito Penal reparador”, em relação ao qual seriam admitidas flexibilizações das clássicas garantias do Direito Penal, na proporção da gravidade de sua sanção. Definido o que seriam as “duas velocidades” do Direito Penal, que poderiam coexistir perfeitamente, ainda admite Silva Sánchez uma “terceira velocidade” do Direito Penal,


14

que combinaria o Direito Penal da prisão com a flexibilização de garantias (a “primeira” e a “segunda” “velocidades” do Direito Penal, na classificação do autor), em caráter excepcional, para enfrentar fenômenos de criminalidade capazes de desestruturar o Estado de Direito20. Assim se expressa Silva Sánchez: Em casos dessa natureza (criminalidade de Estado, terrorismo, criminalidade organizada) surgem dificuldades adicionais de persecução e prova. Daí porque, nesses âmbitos, em que a conduta delitiva não somente desestabiliza uma norma em concreto, senão todo o Direito como tal, se possa discutir a questão do incremento das penas de prisão concomitantemente a da relativização das garantias substantivas e processuais. Porém, em todo o caso convém ressaltar que o Direito Penal da terceira velocidade não pode manifestar-se senão como o instrumento de abordagem de fatos “de emergência”, uma vez que expressão de uma espécie de “Direito de guerra” com o qual a sociedade, diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo qualificado a suportar os custos da liberdade de ação. Constatada a existência real de um Direito Penal de tais características – sobre o que não parece caber dúvida alguma –, a discussão fundamental versa sobre a legitimidade do mesmo. Certamente ela teria que se basear em considerações de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia, em um contexto de emergência. (...) Tratando-se de reações ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não ofereçam perigo de contaminação do Direito Penal “da normalidade”, seria certamente ocaso de admitir que, mesmo considerando o Direito Penal da terceira velocidade um “mal”, este se configura como um “mal menor”. Mas é evidente que essa justificativa obriga uma revisão permanente e especialmente intensa da concorrência dos pressupostos de regulação dessa índole. Pois bem, em minha opinião isso não está se verificando, senão que os Estados, ao contrário, vêm gradativamente acolhendo comodamente a lógica, que Moccia criticara com agudeza, de perenne emergencia. À vista de tal tendência, não creio que seja temerário prognosticar que o círculo do Direito Penal dos “inimigos” tenderá, ilegitimamente, a estabilizar-se e a crescer.21

2.3 PROPOSTAS ALTERNATIVAS.

20

Sempre as mesmas hipóteses levantadas por Jakobs (crime organizado, terrorismo, delinqüência sexual etc). 21 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. A Expansão do Direito Penal. Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150/151.


15

Situada a discussão e entrando na etapa conclusiva do presente ensaio, é chegado o momento de se tentar apresentar propostas alternativas ao Direito Penal do inimigo, que se reconhece difícil de aceitar num panorama de Estado de Direito, porquanto inimaginável dividir as pessoas em duas classes – uma de “cidadão” ou “pessoa”; e outra de “não-cidadão” ou “não-pessoa” – quando é certo que a Constituição Brasileira, assim com as demais, proclama e impõe a igualdade do seres como cláusula pétrea, sem distinção de qualquer natureza22. Tão somente este dispositivo já é suficiente como obstáculo intransponível às idéias de Jakobs, sem contar a infinidade de Tratados e Convenções Internacionais que reproduzem a regra, em que pese serem idéias, também não se pode deixar de reconhecer, sedutoras quanto à perspectiva de êxito, ao menos simbólico, na tarefa de contenção do nicho de criminalidade a que se destina, cujo refreio é também reconhecidamente imperativo. As primeiras propostas vêm de Hassemer e são um tanto óbvias.

Após

diferenciar o que denomina de “prevenção normativa” – assim definida como sendo o “desmonte dos direitos fundamentais do cidadão e a ampliação da autorização da intervenção estatal”23, referindo-se às mudanças legislativas recrudescentes do Direito Penal e flexibilizadoras das garantias processuais penais, que o autor condena – e “prevenção técnica” – assim definida como a imposição ao crime organizado de “obstáculos fáticos, organizacionais ou econômicos e o que desonera, de qualquer modo, a prevenção normativa e, parcialmente, pode substitui-la”24, que o autor estimula, embora reconheça como utópica e de difícil obtenção – apresenta ele as suas sugestões: Obstruções de estradas contra furto e tráfico clandestino de automóveis; estancamento do mercado negro e da base econômica para o tráfico de drogas; impedimento de relações corruptivas na Administração por meio de regras organizacionais da capacidade e da ocupação; administração transparente e melhor participação dos cidadãos (liberdade de informação entre nós); troca de informações regulamentada sobre suspeitos em situação de corrupção; realização técnica e organizacional das associações de comunicação, as quais juridicamente já são possíveis; acordos, que funcionem, na esfera internacional sobre pressupostos de prevenção e 22

Cf. BRASIL, Constituição Federal, art. 5o, caput: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”. 23 HASSEMER, Winfried. op. cit., p. 142. 24 HASSEMER, Winfried. loc. cit.


16

persecução criminal, por exemplo, na esfera da lavagem de dinheiro.25

A grande questão é saber se trabalhar apenas com as “prevenções técnicas” é o bastante para enfrentar, de forma adequada, a criminalidade organizada, ou se é preciso e legítimo, ao lado deste tipo de prevenção, que deve sempre ser estimulado sem dúvida alguma, trabalhar-se também com a “prevenção normativa”, não em termos rotulares como pretende Jakobs destinando-a somente ao inimigo, mas em termos gerais, de forma racional e sem descurar-se dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, tanto no que concerne ao tão criticado, porém às vezes necessário, recrudescimento penal, como no que concerne à suposta flexibilização das garantias processuais que, em verdade, ao que se proporá a seguir, não passa de racionalização na interpretação e leitura, feita até então com grande utopia em favor dos acusados, dessas garantias. Bernd Schünemann, professor catedrático da Universidade Ludwig-Maximilians de Munique, na Alemanha, sinalizou, em tom crítico às idéias de Jakobs, no sentido da instrumentalização da Justiça Penal como alternativa ao Direito Penal do inimigo, através da neutralização de um dos principais vetores das organizações criminosas, que é o fluxo de informações e sua rede de comunicação. Em palestra proferida em 02 de outubro de 2006, promovida pela EMARF (Escola de Magistratura Regional Federal da 2a Região), no auditório do Tribunal Regional Federal da 2a Região, com propriedade afirmou Schünemann: O Estado deve encontrar formas de combater o terrorismo, mas sem abandonar as conquistas do Estado de Direito Penal; (...) frente ao delito organizado, se deve reforçar a força instrumental da chamada Justiça Penal, mas sem anular a condição de “sujeito” do chamado inimigo; (...) o Direito Penal do século XXI terá como tarefa primordial desenvolver instrumentos contundentes, porém, controláveis (por novas instituições que permitam o controle da legalidade) contra o terrorismo, respeitando, acima de tudo, o chamado Estado de Direito”.26

Com efeito, este parece ser um dos caminhos – o uso da tecnologia (“prevenção técnica”) contra a criminalidade organizada moderna.

25

HASSEMER, Windried. op. cit., p. 143 SCHÜNEMANN, Bernd. Palestra proferida no auditório do TRF/2a Região, promovida pela EMARF (Escola de Magistratura Regional Federal da 2a Região), no dia 02 de outubro de 2006. O texto ainda não está publicado em idioma diferente do alemão. Dados extraídos da INTERNET, no sítio www2.trf2.gov.br/noticias/materia.aspx?id=1308, acessado em 19 de janeiro de 2007, às 02:11h. 26


17

No entanto, é necessário se insistir no recrudescimento das sanções penais para determinados ilícitos, na tipificação de novos ilícitos à medida em que surjam fatos sociais que assim o sugiram, e na releitura racional de garantias processuais, o que a seguir se pontua. Inicia-se desmistificando as críticas que sempre surgem logo que são criados novos tipos penais, à guisa de uma suposta inconveniente hipertrofia das normas punitivas. E socorre-se do magistério de Miguel Reale para tanto: Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica); e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça). Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há sempre e necessariamente um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram. (...) Isto posto, podemos completar a nossa noção inicial de Direito, conjugando a estrutura tridimensional com a nota específica da bilateralidade atributiva, neste enunciado: Direito é uma realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítica: Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos e valores.27

Ora, se o Direito é fato, valor e norma, como propugna sua teoria tridimensional defendida por Miguel Reale, nada mais natural do que sempre que surja um novo comportamento humano ou sempre que recrudesça determinado comportamento, de forma recorrente, a ponto de despertar a atenção do Direito Penal – “fato” –, seja ínsito

27

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 65/67 (os grifos são do original).


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ao corpo social valorar tal comportamento, de sorte a aprová-lo ou reprová-lo – “valor” –, surgindo daí, na segunda hipótese, de forma mais do que legítima, a “norma” penal que tipifica aquele comportamento como crime. Isto nada mais é do que subsumir o Direito Penal à estrutura tridimensional do Direito, não havendo qualquer justificativa que imponha deixar este ramo do Direto à margem dessas considerações filosóficas de Miguel Reale. O mesmo raciocínio pode ser empregue no que tange às novas valorações – “valor” – que imponham majorar as sanções penais cominadas a velhos comportamentos criminosos – “norma” –, diante de sua recorrência – “fato” –, a evidenciar, ou pelo menos sugerir, que a reprimenda original não estava se prestando adequadamente a sua função de prevenção geral negativa. Resta cuidar da instrumentação da Justiça Penal, o que perpassa, também, pela releitura ou da leitura adequada das garantias processuais. O primeiro alvo é a presunção de inocência, que aqui se prefere chamar de presunção de não-culpabilidade, seguindo Mirabete28. Aliás, fazendo a leitura adequada do art. 5o, LVII, que se refere à não presunção de culpa29, e não à presunção de inocência, como tem sido insistido pela doutrina atual, percebe-se que o que se proclamou foi a impossibilidade de tratar o réu como culpado, submetendo-o à restrições de direitos que não digam respeito à apuração dos fato e ao cumprimento da lei penal30. Não se trata de um mero jogo de palavras, porque uma coisa é dizer que o réu não pode ser tratado com culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como fez a Constituição Federal; outra, completamente diferente, é dizer que o réu tem que ser tratado como inocente até então, o que tem levado a doutrina a cometer imperdoáveis equívocos. Exemplo de tal equívoco é o raciocínio, extremado e de bases falsas, de que o Juiz não pode ter mais gestão da prova no processo penal, em decorrência do sistema acusatório, que impõe toda a missão probatória ao Ministério Público, o qual deve se desincumbir de desconstituir, através da produção probatória, o status de inocência que o réu ostenta deste o início do processo. Se não o faz, dentro 28

Cf. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2001, p. 42. BRASIL, Constituição Federal, art. 5o, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 30 Cf. BATISTA, Weber Martins. Direito Penal e Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 232/233. 29


19 deste raciocínio, só restaria ao Juiz resgatar este status e absolver o réu31.

Tal

raciocínio, com o devido respeito, incompreensivelmente reduz o papel do Juiz no processo penal ao de “bobo da corte”, não podendo ser admitido. Como defende Weber Batista, citando Garófalo: “o acusado, diz Garófalo, só é acusado porque existem razões pelas quais o magistrado que o envia a julgamento acredita que seja culpado”32. Não se pretende ir tão longe quanto Weber Batista vai, ao dizer que “é evidente que o réu deve presumir-se culpado antes da decisão condenatória com trânsito em julgado”33; o que se sustenta aqui é que o réu não é, ao contrário do que tem sido dito, presumido inocente até o trânsito em julgado da sentença – tão somente não se pode presumi-lo culpado até então, nos exatos termos do dispositivo constitucional34. Colocando-se no seu devido lugar a presunção dita de inocência – nãoculpabilidade, para ser mais técnico e racional, como acima demonstrado – está sendo oferecida uma alternativa processual ao Direito Penal do inimigo, eis que não será 31

Cf., dentre outros, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. O papel do novo Juiz no processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 31/32. 32 BATISTA, Weber Martins. loc. cit. 33 Ibidem. 34 Poder-se-ia objetar argumentando que o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992), ao tratar das garantias judiciais, em seu art. 8o, “2”, estabelece que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa...”. E que esta regra teria assento constitucional, a teor do disposto no art. 5o, § 2o, da Constituição Federal. No entanto, este dispositivo simplesmente se refere a outros direitos e garantias individuais não tratados expressamente no art. 5o. E, como demonstrado, o art. 5o da Constituição Federal, em seu inciso LVII, trata da questão da culpa e da inocência do réu de maneira diversa da qual trata o Pacto, havendo de prevalecer, ao que se acredita, o Direito interno. Isto sem falar nas controvérsias que cercam o próprio status legislativo das normas decorrentes de tratados e convenções internacionais, maxime após a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, o que, por não ser o propósito deste ensaio, aqui não vai se abordar, para não se perder o fio condutor do trabalho. Continuando a divagar: a regra do Pacto, tal como concebida, sequer impede a gestão da prova pelo Juiz, porque, ainda que proclame o status de inocência do réu durante o processo, ressalva que este status perdura “enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. Ora, nos termos do vigente Código de Processo Penal, o Juiz possui amplos poderes de produção de prova no processo, consoante regra expressa de seu art. 156 dentre outros. Assim, usando esses poderes, o Juiz estaria comprovando “legalmente sua culpa”, nos exatos termos do Pacto, ao que não é empecilho o proclamado status de inocência do réu. Nem se diga que a postura ativa do Juiz iria ofender o sistema acusatório, ao passo em que produzir prova não significa deduzir qualquer imputação, mas, somente, no uso dos poderes conferidos pela legislação, aferir a veracidade das imputações formuladas pela parte autora da ação penal. Muito menos se diga que isto iria comprometer a imparcialidade do Juiz, ao passo em que este não teria como adivinhar qual o resultado das provas que mandou produzir (neste sentido, cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do Juiz no processo penal acusatório. Artigo publicado no sítio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, disponível na INTERNET, em www.ibccrim.org.br, acessado em 20/01/07, às 21:00h: “a - O processo penal acusatório, ou processo de partes (em contraposição ao inquisitório), deve ser entendido, sinteticamente, como aquele em que as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos diversos, daí decorrendo os seguintes corolários: a1 - os elementos probatórios colhidos na investigação prévia servem exclusivamente para a formação do convencimento do acusador, não podendo ingressar no processo e ser valorados como provas; a2 - o exercício da jurisdição depende de acusação formulada por órgão diverso do juiz; a3 - todo o processo deve desenvolver-se em contraditório pleno, perante o juiz natural; b - O conceito de processo penal acusatório não interfere com a iniciativa instrutória do juiz no processo...”).


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preciso rotular acusado algum, tratando-se todos, indistintamente, como não-culpados até que transite em julgado a sentença penal condenatória. Com isto, muitos equívocos que, infelizmente, têm sido cometidos na Doutrina processual penal dos dias atuais, seriam evitados, contribuindo para a boa instrumentalização da Justiça Criminal, sem se descuidar uma vírgula dos Direitos Fundamentais dos acusados. Outro alvo é a escuta telefônica, como forma de desarticular as organizações criminosas e, investigando suas potenciais infrações penais, ainda que em seus atos preparatórios, permitir ao aparelho de segurança pública se antecipar e impedir a consumação de seus delitos, além de colher os elementos necessários à comprovação da culpa dos agentes. É preciso que se definam novos parâmetros legislativos sobre a interceptação telefônica, de sorte a pacificar controvérsia que ainda grassa na Doutrina, malgrado recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no que tange ao prazo máximo de duração da medida cautelar que, na literalidade do art. 5o da Lei nº 9.296/9635, não poderia ultrapassar trinta dias (quinze dias, prorrogável por mais quinze), tendo o conspícuo sodalício firmado posicionamento no sentido de que, desde que fundamentadas e justificadas as decisões concessivas da medida, podem haver sucessivas prorrogações, enquanto perdurar a necessidade do meio de investigação, sem limitação temporal36.

Ora, a investigação das ações das organizações criminosas,

dependendo de sua complexidade e conexões, não raras vezes em mais de um Estado e nos Exterior, demanda persistência e continuidade, não se podendo prever prazo para a colheita do fluxo de informações que interessam efetivamente às investigações. O que se deve combater não é a persistência da interceptação que, por si só, não há de violar os princípios constitucionais de intimidade e da privacidade, a não ser que se pretendam opô-los à descoberta de infrações penais, o que seria, para dizer o menos, irracional. O que se deve combater é o mau uso das informações colhidas e seu vazamento indevido para os meios de comunicação, responsabilizando-se e punindo-se quem, ao invés de cumprir com seus deveres de guarda do sigilo das informações que coletou, o divulgar indevidamente. 35

BRASIL, Lei nº 9.296/96, art. 5o: “a decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”. 36 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Habeas corpus nº 83.515, julgado em 16/09/04, Tribunal Pleno, Relator Min. Nélson Jobim, maioria (vencido o Min. Marco Aurélio): “É possível a prorrogação do prazo de autorização para a interceptação telefônica, mesmo que sucessivas, especialmente quando o fato é complexo a exigir investigação diferenciada e contínua. Não configuração de desrespeito ao art. 5º, caput, da Lei nº 9.296/96...”. Julgado extraído da INTERNET, do sítio do Supremo Tribunal Federal, disponível em www.stf.gov.br, acessado em 20 de fevereiro de 2007, às 23:04h.


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Outro alvo que precisa ser desmistificado é a interceptação ambiental de sinais acústicos e audiovisuais. Percorrendo-se o art. 5o da Constituição Federal, nenhum dispositivo faz referência expressa a tal instrumento investigatório. É incompreensível o esforço doutrinário que se faz ao buscar, no princípio da proteção à intimidade e à vida privada37, óbice a tal medida. Cuida-se de uma ginástica interpretativa feita em prol da impunidade, que precisa ser revista, para que não se agrave o quadro de demandas favoráveis ao Direto Penal do inimigo. Nesta linha, seria de bom alvitre a revogação imediata do art. 2o, IV, da Lei nº 9.034/95, com redação dada pela Lei nº 10.217/0138. O dispositivo em comento, bom nas intenções, foi infeliz nos potenciais resultados. Isto porque introduziu a necessidade de autorização judicial num tema que, ainda que então controverso na doutrina e jurisprudência, admitia-se como válido independente desta autorização. Para aqueles que não admitiam e se socorriam do princípio constitucional da proteção à intimidade e à vida privada, não faria diferença a previsão legislativa, ao passo em que o art. 5o, X, da Constituição Federal não abriu exceção a esta proteção, sendo, segundo este raciocínio, inconstitucional Lei que o abrisse, de sorte que de nada adiantou a previsão legislativa expressa para esta corrente de pensamento. Além deste inconveniente e da apontada inutilidade tomando em conta o pensamento contrário, a Lei, como prevê métodos de investigação para os crimes decorrentes de organizações criminosas, dá margem ao entendimento de que, em não sendo o caso de organização criminosa, esta medida não ser possível, nem mesmo com autorização judicial, dada sua excepcionalidade e a ressalva dizer respeito exclusivamente ao crime organizado. Pelo fio do exposto, melhor seria a revogação do dispositivo, deixando à Doutrina resolver, o que se espera de forma racional, pela aceitação da medida, à vista de inexistência de óbice constitucional expresso, independente de autorização judicial e qualquer que seja o delito e seus agentes. Outro a ser repensado é o sigilo bancário, no que concerne ao cadastro de dados e à movimentação financeira. Tal garantia não pode continuar a servir de cobertura para o fluxo de capitais ilicitamente, o que abastece e aparelha materialmente as organizações criminosas, servindo, inclusive, para a lavagem do dinheiro obtido como 37

BRASIL, Constituição Federal, art. 5o, X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. 38 BRASIL, Lei nº 9.034/95, art. 2o: “em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: (...) IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial ”.


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proveito das infrações penais por seus membros praticadas. A discussão de tal matéria, inclusive, se situa no plano infraconstitucional, eis que o art. 5o da Constituição não a contempla, e nem seu art. 192, que se limita a determinar que Lei Complementar disponha sobre e regule o sistema financeiro nacional. Logo, não há razão para se proteger com sigilo o fluxo de capitais tidos por suspeitos, cujo acesso às operações poderia ser desburocratizado, permitindo-se-o à própria Polícia e ao Ministério Público, independente de autorização judicial. É tímida, neste sentido, a regulamentação feita pela Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, que poderia avançar mais. É certo que há outros alvos a serem mirados, não se pretende esgotar com este ensaio o rol de sugestões de medidas efetivas em alternativa à proposta de Direito Penal do inimigo.

Cuidou-se, até então, de viés material e processual dessas sugestões.

Cumpre, agora, derradeiramente, cuidar de um estágio onde não há mais que se falar em presunção de inocência ou não-culpabilidade, como já debatido: a referência se faz ao trato dos presos condenados que, paradoxalmente, têm montado seus quartéis-generais dentro dos locais onde deveriam estar somente cumprindo suas penas. Tem-se, neste momento, um indivíduo condenado em definitivo, que já pode ser tratado como culpado, sem nenhum arranhão à Constituição Federal ou mesmo a qualquer tratado ou convenção internacional. Não é crível como tais pessoas conseguem comandar seus negócios de dentro das prisões e, pior, como aqui já destacado, ordenar ataques às Instituições do Estado e atos terroristas contra populações civis. Tais fatos, amplamente divulgados e, portanto, públicos e notórios, independendo, portanto, de qualquer referência formal para sua abordagem acadêmica, são indicativos de que algo está errado no sistema de execução de penas no Brasil. Medidas de “prevenção técnica”, no dizer de Hassemer, já abordado neste ensaio, precisam ser implantadas ou intensificadas com urgência: bloqueadores eletrônicos de telefones celulares no interior de estabelecimentos prisionais; barreiras físicas que impeçam o contato dos presos com seus visitantes, inclusive seus advogados (vidro e interfone); revistas mais rigorosas quando da distribuição de alimentos e


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pertences pessoais; instalação de detectores de metal nos presídios; etc. São medidas simples, que independem de qualquer ato normativo. No entanto, neste ponto ainda são necessárias as medidas de “prevenção normativa” repudiadas por Hassemer. A começar pela manutenção e aperfeiçoamento do chamado “RDD” (“Regime Disciplinar Diferenciado”), introduzido no plano legislativo pela Lei nº 10.792/03. Não se consegue compreender as críticas doutrinárias que são endereçadas ao isolamento absoluto de presos líderes de organizações criminosas, após se terem informações seguras de que continuam a comandar seus negócios. O isolamento é imperativo e é a única medida efetiva que se dispõe para neutralizar a ação dessas pessoas. Isto visa a enfraquecer a liderança da organização, contribuindo para dispersar o seu comando.

Não há que se opor ao isolamento

argumentos no sentido da função educadora da pena, porque tais pessoas, ainda que não possam perder este status de pessoas, ao contrário do que crê Jakobs, demonstram cabalmente que não estão querendo se ressocializar. Resta, pois, como forma legítima de proteção dos cidadãos, que igualmente têm o direito constitucional à segurança pública, isolar essas pessoas, pelo tempo necessário para neutralizar sua influência na organização a que pertença, nem que isto leve todo o tempo restante de sua pena. Sinceramente, as críticas endereçadas ao “RDD” não são racionais, são emotivas, e não resistem à análise cotidiana da escalada da criminalidade organizada, liderada de dentro das prisões. Só falta vir alguém sustentando que, como o condenado perdeu somente o direto de liberdade, há de conservar o direito subjetivo de trabalhar e, como o trabalho dele era na organização criminosa, é direito seu continuar a comandar seus negócios, o que seria um agudo e freudiano caso de desequilíbrio intelectual. Uma outra medida de “prevenção normativa” interessante seria a restrição de visitas de Advogados que, infelizmente, têm, em muitos casos, se prestado a servirem de “pombos-correio” da organização criminosa, outro fato público e notório e amplamente noticiado. Não há dúvidas de que todo criminoso precisa ter a assistência de Advogado, antes e depois de sua condenação: antes, para velar por sua ampla defesa; depois, para velar pela correta observância dos princípios gestores da execução da penal.

No entanto, nisto não se compreende a missão de integrar organizações

criminosas, fatos que não podem se enquadrar no conceito de exercício profissional,


24 constituindo, ao revés, em infrações penais, tratáveis pelo art. 28839 ou pelo art. 2940 do Código Penal, conforme o caso. Não há absolutamente nenhum argumento convincente que justifique a necessidade de contato físico entre o Advogado e o preso. Eles podem, perfeitamente, conversar separados por um vidro e um interfone, sem que esta medida prejudique, em absolutamente nada, o exercício profissional e os direitos inerentes ao princípio constitucional da ampla defesa. Não consta que na profissão de Advogado estejam previstos procedimentos como abraço, toques corporais, apertos de mão, etc, porque não parece necessário nenhum tipo de exame físico para o diagnóstico das causas criminais e a definição de seu tratamento jurídico. O contato direto, corporal, com o preso é tão importante para o Advogado como é, para o Médico, o conhecimento da natureza jurídica dos espaços em cemitério. Inúmeras outras medidas de prevenção no que concerne à execução penal podem ser pensadas, fugindo ao propósito deste ensaio esgotá-las. Uma última contribuição vem, dentre nós, de Carlos Eduardo Adriano Japiassú e diz respeito à vigilância eletrônica41. Cuida-se de importante instrumento de aparelhamento da Justiça Criminal, mostrando-se como eficaz medida de substituição da pena de prisão ou mesmo da prisão cautelar em determinadas situações, em que o condenado ou acusado concordar em utilizar algum aparelho localizador, que permita a vigilância eletrônica de seus passos. É a única forma de tornarem efetivas as medidas de despenalização (tais como sursis, livramento condicional, o próprio regime aberto, autorizações temporárias de saída da prisão, etc.) ou as medidas alternativas ao encarceramento cautelar (liberdade provisória ou restrições provisórias de direitos, a exemplo das previstas na Lei nº 11.340/06, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras providências). Não se compreende a polêmica resistência à adoção desta tecnologia, que é plenamente acessível está plenamente disponível. Uma coisa é o discurso da despenalização ou da necessidade de serem criados mecanismos alternativos ou substitutivos da prisão42. Cuida-se de um

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BRASIL, Código Penal, art. 288: “associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”. 40 BRASIL, Código Penal, art. 29: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. 41 Cf. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito em debate: a crise do sistema penitenciário: a experiência da vigilância eletrônica. Artigo publicado no Boletim nº 170, de janeiro de 2007, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 42 Estes últimos fazem parte, inclusive, de projeto de reforma do Código de Processo Penal.


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discurso correto. Outra coisa, incompreensível, é o discurso da fraude em que, hoje, consistem essas medidas, pois se sabe que nenhum tipo de vigilância é exercida e nem é possível materialmente exercer sobre os beneficiários do sursis, da suspensão condicional do processo, de algumas penas restritivas de direitos como limitação de fim de semana, do livramento condicional, do regime aberto, etc, no que concerne às restrições que lhes foram impostas pelo Juiz. O mesmo se diga em relação à adoção de medidas que evitem o encarceramento cautelar, ao que não se tem nenhuma objeção, desde que sejam medidas efetivas, o que seria viabilizado pela vigilância eletrônica. Essas são, despretensiosamente, algumas sugestões que se afiguram alternativas ao Direito Penal do inimigo, proposto por Jakobs. Crê-se que nenhum óbice há em sua implementação e que seu acolhimento ajudaria a reduzir, ou pelo menos conter, o crescimento desenfreado da criminalidade como um todo, especialmente a criminalidade organizada, bem como reduzir a sensação de impunidade que está corroendo, lentamente, as bases do Estado Democrático de Direito pelo qual tanto se lutou e se pretende deixar como legado às futuras gerações. 3. CONCLUSÃO.

O tema “Direito Penal do inimigo” deve suscitar profundas reflexões, ao invés de crítica e mais críticas, desacompanhadas de propostas alternativas de solução para um problema que só não enxerga quem não quer – o recrudescimento da criminalidade organizada, notadamente nos vetores do terrorismo, tráfico de drogas, corrupção etc. Não importa a distinção “cidadão” ou “inimigo”, o que se conclui não ser possível fazer, dentro de um Estado Democrático de Direito, do qual não pode destoar o Direito Penal. Importa oferecer soluções racionais, proporcionais e efetivas para fatos graves, que se repetem à cada dia, semeando o terror na população mundial, com a disseminação do sentimento de impunidade que, a médio e longo prazos, acabam por


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ruir um dos pilares do próprio Estado de Direito Democrático, que é a segurança pública. Foi o que se buscou neste ensaio, especialmente em seu item 3. Discursos como o de que o Direito Penal é “etiquetador”, promove a “exclusão social através da punição”, “só existe para punir o preto, o pobre e a prostituta”, “se preocupa mais com a propriedade do que com a própria pessoa” etc., ainda recorrentes na Doutrina, mostram-se, nos dias atuais, obsoletos e ultrapassados, não mais espelhando a realidade do mundo que nos cerca. Os inimigos de hoje existem e são reais; não são mais imaginários. O público alvo do Direito Penal de hoje não é mais o contraventor, o boêmio, o jogador de ronda, o vadio, o artista, o “maluco beleza”, como nos “saudosos” tempos dos Anos Dourados, na década de 60, em que este discurso experimentou seu apogeu.

Os inimigos de hoje

são traficantes de drogas, homicidas, terroristas, funcionários públicos corruptos, que se espalham feito metástases pelas células sociais e se reproduzem feito ratazanas. Naquela época, o Direito Penal se dedicou a perseguir inimigos imaginários, com indisfarçável e hediondo viés político, como forma de controle social, o que muito envergonha o cultor do Direito Penal. No entanto, como já dito, os tempos são outros e não se pode mais viver de passado. Quem insiste em não abrir os olhos à sociedade que o cerca, está fadado a perder o bonde da história, repetindo, obnubilada e psicoticamente chavões já corroídos pelas teias de aranha do passado. Há quem já teve a oportunidade de colocar em prática, no governo de um Estado, essas idéias ultrapassadas. E até hoje a população deste Estado colhe os frutos dessas sementes talvez ingenuamente plantadas, talvez com a melhor das intenções, mas com resultados efetivamente desastrosos no plano da segurança pública. O Acadêmico que insiste em viver, anacronicamente, o romantismo de uma década deslocado para o século seguinte, está fadado a devanear qual nefelibata, caminhando sobre cúmulo-nimbos, de mãos dadas com Alice nos País das Maravilhas.


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4. REFERÊNCIAS.

BATISTA, Weber Martins. Direito Penal e Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Justiça Constitucional e Justiça Penal. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 58.

São Paulo: editora

Revista dos Tribunais, 2006. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. O papel do novo Juiz no processo penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. FERRAJOLI, Lugi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002. GRECO, Luis. Sobre o Chamado Direito Penal do Inimigo. Artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56.

São Paulo: editora Revista dos

Tribunais, 2005. GRINOVER, Ada Pellegrini.

A iniciativa instrutória do Juiz no processo penal

acusatório. Artigo publicado no sítio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, disponível em www.ibccrim.org.br, acessado em 20/01/07, às 21:00h HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______________ . Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002.


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JAKOBS, Günther e MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del Enemigo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005. JAPIASSU, Carlos Eduardo Adriano. O Direito em debate: a crise do sistema penitenciário: a experiência da vigilância eletrônica. Artigo publicado no Boletim nº 170, de janeiro de 2007, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2001. PIZÓN, José Martinez de. Las Transformaciones del Estado: del Estado Protector al Estado de Seguridad.

Artigo publicado no livro La Tensión Entre Liberdad y

Seguridad. Una aproximación socio-jurídica, coordenado por BENEITEZ, Maria José Bernuz, e CEPEDA, Ana Isabel Pérez, Colección Jurídica nº 22, da Universidade de La Rioja, 2006. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1987. SANT’ANNA, Ivan. Plano de Ataque. A história dos vôos de 11 de setembro. Rio de Janeiro: editora Objetiva, 2006. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A Expansão do Direito Penal. Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002. SCHÜNEMANN, Bernd.

Palestra proferida no auditório do TRF/2a Região,

promovida pela EMARF (Escola de Magistratura Regional Federal da 2a Região), no dia 02 de outubro de 2006. O texto ainda não está publicado em idioma diferente do alemão.

Dados

extraídos

da

INTERNET,

no

sítio

www2.trf2.gov.br/noticias/materia.aspx?id=1308, acessado em 19 de janeiro de 2007, às 02:11h. ______________________________________________________

MARCELO LESSA BASTOS Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos Doutorando pela Universidade Gama Filho Professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos


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Promotor de Justiรงa no Estado do Rio de Janeiro.


A Verdadeira Independência Um Dia Há de Chegar Hélio Coelho

Se analisarmos bem, com espírito crítico e base científica, observaremos que a grande constante em toda a história do Brasil é a crônica situação de dependência. O que tem variado, historicamente falando, é o grau dessa dependência e a forma de nossa inserção nos quadros desse processo. Assim é que podemos dizer que ela se expressa com maior ou menor intensidade dependendo dos fatores internos e da dinâmica do sistema capitalista internacional. Tal situação de dependência vem, há séculos, comprometendo seriamente as possibilidades de nossa afirmação e desenvolvimento enquanto Povo, enquanto Nação. Ainda agora, apesar da propaganda em contrário, continuamos assistindo revoltados, apreensivos e indignados a obsessão pelo superávit primário como “dever de casa” imposto pelos credores internacionais e as famigeradas negociações com o FMI, cujas conseqüências são terríveis para o povo trabalhador brasileiro e para a soberania nacional. Em outras palavras, continuamos dependentes, inebriados pela ilusão dos neons coloridos e pelo burburinho espetacular dos shoppingcenters. E tem mais: todos sabemos que as empresas multinacionais continuam sugando as nossas riquezas e empobrecendo cada vez mais o nosso povo tão sofrido. Povo sofrido pelo desemprego, pela fome, pelos baixos salários, pela falta de moradia e por tantas carências geradas por esse modelo de capitalismo perverso, tão selvagem que, com sua fúria tributária impede a plena expansão do próprio empresário nacional que se vê humilhado pelas “benesses” concedidas aos que vêm de fora. Não podemos e não devemos nos iludir em relação a nossa dura realidade. Não podemos confundir desenvolvimento pleno, sustentável, com crescimento econômico mascarado por aquilo que chamamos de “modernização conservadora” que se renova no movimento das relações assimétricas advindas da globalização. Somos parte integrante de uma das áreas mais exploradas do mundo, ou seja, América Latina, terceiro mundo. Conforme escreveu Galeano, há mais de quinhentos anos que as nossas veias vêm sendo abertas pelos vampiros estrangeiros e o nosso sangue transferido para os centros do sistema capitalista. Nosso sangue alimenta e revigora os países ricos, enquanto nós crescemos enfraquecidos, raquíticos, subnutridos. É sempre oportuno dizer que é muito importante não termos uma falsa idéia do que fomos e do que realmente somos. Sem ufanismo lírico e sem negativismo pessimista, temos o dever de assumir uma atitude crítica diante da realidade, pois só se pode transformar para melhor aquilo que se conhece bem e corretamente. O perigo da dominação ideológica consiste exatamente nisso: o dominado/alienado, privado da consciência crítica, não consegue compreender/perceber a realidade como ela é. Por isso, além de tornar-se objeto de manipulação, chega a beijar a mão do próprio dominador. Assim, o sistema se reproduz. Sei que não é fácil adotar uma atitude pautada por essa consciência crítica, uma vez que o próprio ensino da História do Brasil encarregou-se de, por muitos anos, mascarar as dimensões da verdadeira História. Assim é que a história oficial está cheia de mitos deformadores, sendo apresentada sempre como uma sucessão de episódios, “vultos brilhantes” e um rosário de datas para decorar. Só recentemente estão surgindo alguns livros didáticos que colocam as coisas nos seus devidos lugares. No mais das vezes, a história acaba se tornando caudatária da “formação moral e cívica” que mais interessar a uma determinada estrutura de poder. Os anos de autoritarismo ostensivo vividos recentemente deixaram amarga herança nesse sentido. É fácil constatar como as pessoas, mesmo depois de vários anos de estudo, só conseguiram fixar “grandes momentos” marcados pela ação de “grandes vultos”, reproduzidos nas “grandes telas”. Por conseguinte, ficam com uma outra visão distorcida e fragmentada de nossa formação e dos nossos problemas, aumentando assim a legião dos alienados, impotentes e incapazes de qualquer ação transformadora sobre a sociedade. E o pior que isto não se dá por acaso, pois tal quadro de alienação certamente interessa a alguns setores do Poder, uma vez que um povo alienado aceita até com docilidade as mais diferentes formas de submissão, de dominação, de exploração. Os leitores já repararam como as camadas populares, suas lutas, seus heróis e seus anseios dificilmente aparecem nos livros de História? Já notaram a omissão quanto à problemática de nossa dependência anterior e posteriormente ao 7 de setembro de 1822? Será que as pessoas chegaram mesmo a perceber a íntima relação entre o enfraquecimento do Brasil e o fortalecimento de outras áreas do mundo? Até que ponto temos realmente consciência das camuflagens coloridas com que tentam encobrir a persistente sobrevivência de nossos problemas estruturais? Até que ponto o que vêm fazendo com o Brasil desde 1964 tem contribuído para aprofundar essa dramática situação? Enfim, em que contexto devemos pensar e situar o 7 de setembro de 1822? Tem sentido ficarmos com a idéia de que a independência já foi feita, reduzida a uma simples manifestação de vontade, num grande dia, por um “grande homem”?


Na verdade, o 7 de Setembro significou apenas um passo nos quadros de um processo ritmado a partir de fins do século XVIII com a conjuntura das conjurações (a mineira em 1789 – 92, a do Rio de Janeiro de 1794, a Baiana oudos Alfaiates em 1798 e a dos Suassunas em 1801), acelerando o ritmo durante o período de D. João com a instalação do Estado Português no Brasil e as medidas que liquidaram o “pacto colonial” (1808 – 1821) e asseguraram a hegemonia Inglesa aqui dentro, tomando o processo rumo irreversível pela separação durante a regência de D. Pedro e a política recolonizadora das Cortes Portuguesas (1821 – 22) rompendo-se a contradição com o episódio do dia 7, e desdobrando-se em lutas, conchavos e apreensões durante todo o primeiro reinado até alcançar a sua maturação com a queda (abdicação) de D. Pedro I em 7 de Abril de 1831. E como pano de fundo, agindo como impulsionador do processo em sua dinâmica externa, temos que levar em conta a emergência do capitalismo industrial (Revolução Industrial Inglesa). O capitalismo industrial acelera a crise do Antigo Sistema Colonial – do que éramos parte periférica – em virtude da necessidade de mercados, surgindo assim uma incompatibilidade estrutural entre a dinâmica do capitalismo industrial e a permanência ou restabelecimento do monopólio que caracterizara a nossa condição colonial. A independência (separação de Portugal) aparece assim como uma maneira de ajustar ou reajustar amplos mercados aos interesses do capital industrial inglês, centro da nossa dependência econômica até as primeiras décadas do século XX. Pensar dessa forma não exclui o reconhecimento da existência de homens e mulheres movidos por nobres ideais de liberdade e transformações sociais num Brasil independente. No entanto, estes patriotas sinceros não foram os que tiveram a hegemonia na dinâmica interna do processo. Assim, é claro que muitas pessoas participaram do desenrolar do processo em si, tanto os precursores como os que efetivamente o conduziram. Nossas classes dominantes (internamente dominantes, externamente dominadas) articulam com precisão os seus novos interesses no quadro das possibilidades que se abririam, como de fato se abririam, sem a presença de uma metrópole de intermediação leonina em suas transações. Perceberam o espírito da coisa? E, mais: para garantir o controle político sobre a nação, depois do 7 de setembro mantiveram a escravidão, o latifúndio, e estabeleceram que só poderiam votar ou ser votados aqueles que tivessem uma determinada renda anual resultante dos bens de raiz... Como se vê, os homens simples do Povo que participaram das lutas pela Independência (separação...) ficaram completamente excluídos, marginalizados, logo depois. Afinal, muito embora tenha significado um avanço em relação a nossa condição anterior, é bom lembrar que a independência (?) não foi feita para povo como um todo, mas, sim, para assegurar e ampliar privilégios das minorias dominantes como acontece geralmente em todos os movimentos “vitoriosos” no Brasil. Em outras palavras, o povão sempre ajuda a fazer mas na hora de participar dos benefícios da mudança e posto de lado e se vê sempre obrigado a suportar o maior arrocho por parte dos que sobem ao poder. Prezados leitores: em meio a uma conjuntura político-eleitoral apática e marcada por desvios éticos e desavergonhado cinismo, assolados por uma situação quase que de anomia pelo esgarçamento do tecido social respingado pelo sangue da violência e pelo fantasma do desemprego, estressados pela insegurança e tensos com o recrudescimento das questões da terra no país a fora, e por que não dizer? também felizes por alguns avanços sociais e pela conquista da auto-suficiência de petróleo pelos trabalhadores da PETROBRÁS, estamos comemorando o 7 de Setembro. São 184 anos de independência nos quadros de dependência! Porque me considero um patriota sincero, mais uma vez consegui colocar ao alcance público essas reflexões críticas para demonstrar, sem “patriotadas”, o meu profundo amor pelo Brasil. Às vezes é duro enfrentarmos a realidade. Mas não podemos viver de ilusões quanto ao presente e nem quanto ao passado, idealizando situações que nem sempre correspondem à realidade. Temos que ficar atentos para separarmos o joio do trigo com bastante clareza: o novo nome da dependência é o neoliberalismo! Por último, em meio a tantas estórias, é preciso que cada um seja capaz de assumir a sua condição de sujeito para renegar a condição imposta de objeto da História. A História é Vida. E por ser vida, exige que cada um tenha coragem de dedicar a sua própria vida ao trabalho de construção e conquista da verdadeira Independência do Brasil que um dia há de chegar adornada de encanto sob o Sol de nova primavera, perfumada pelo vento da liberdade e da igualdade social, e conquistada pelas mãos de um povo tão cansado de sofrer, mas que sobrevive e resiste porque ainda conserva a Esperança de viver numa PÁTRIA LIVRE.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A NOVA LEI DO MANDADO DE SEGURANÇA (LEI Nº 12.016./2009)1 Cristiano Simão Miller2 RESUMO O presente trabalho tem como finalidade a análise de algumas modificações introduzidas ao mandado de segurança por meio da Lei nº 12.016/2009. Na realidade, o texto consiste em apontamentos iniciais acerca da nova legislação, que disciplina uma das mais relevantes ações do ordenamento jurídico brasileiro, verdadeira garantia expressamente prevista na Constituição Federal. PALAVRAS-CHAVE Mandado de segurança. Legislação. Atualidade ABSTRACT The present work aims at the analysis of some modifications to the writ of mandamus by Law nº 12.016/2009. In fact, the initial text consists of notes about the new legislation, which governs one of the most relevant actions of the Brazilian legal system, true guarantee in the Constitution expressly provided. KEY-WORDS Writ of mandamus. Legislation. Present SUMÁRIO 1.Considerações introdutórias. 2.Legitimação ativa. 3.Legitimação passiva. 4.Liminar e as restrições à sua concessão. 5.Possibilidade de o mandado de segurança envolver ato omissivo. 6.Atuação do Ministério Público. 7.Apelação e recurso ordinário. 8.Coisa julgada. 9.Sanções para o caso de descumprimento da ordem judicial. 10. Mandado de segurança coletivo. 11.Referências

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Artigo publicado na Revista InterScience Place, v. 15, p. 1-9, 2010 e na Revista Sapientia, v. 3, p. 1-8, 2011. Doutorando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos. Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário Fluminense (UNIFLU) - Direito de Campos, nos cursos de graduação e pós-graduação (lato sensu). cristianomiller@milleradvocacia.com.br. 2


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1. Considerações introdutórias Para que se inicie essa breve exposição acerca do mandado de segurança, em especial na nova legislação que disciplina a matéria, importante passarmos, ainda que de forma extremamente sucinta, algumas considerações históricas acerca de tão importante instrumento. Assim é que, lançando-se os olhos ao passado, é possível perceber que a origem do mandado de segurança reside na necessidade de se ter uma medida judicial capaz de colocar o particular em igualdade de condições diante do Estado. Com efeito, como o Estado possui atos auto-executórios que se presumem legítimos, e que, portanto, podem interferir na vida do particular com extrema rapidez e violência, razoável seria supor que o particular também tivesse à sua disposição uma ação, com a qual pudesse contrastar, com igual agilidade, uma eventual ilegalidade, abusividade ou arbitrariedade da administração pública. E, assim, surgiu o mandado de segurança, instrumento criado pelo direito brasileiro com o objetivo de exercer o controle da atividade estatal, com idêntica proporção ao controle exercido pelo poder público sobre o particular. Atualmente, inúmeras medidas podem ser utilizadas com a finalidade de se exercer, em maior ou menor grau, o controle da atividade estatal. Mas, tradicionalmente, a necessidade desse controle justificou o surgimento do mandado de segurança. O mandado de segurança, em verdade, tem a sua origem no habeas corpus, que se trata de uma ação penal, mas que, inicialmente, também fazia as vezes do que hoje pode ser obtido por intermédio do mandamus. A título de registro, vale mencionar que a nossa primeira constituição (1891), previa em seu art. 72, §22, um habeas corpus extremamente amplo, por meio do qual poderia se atacar qualquer ilegalidade ou abusividade praticada pelo poder público. Desse modo, por intermédio de um esforço de adaptação realizado pela jurisprudência, passou-se a conferir ao habeas corpus uma maior abrangência, para que não se deixasse sem remédio certas situações jurídicas que não recebiam guarida nas ações então existentes no ordenamento jurídico brasileiro3.

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Sobre os antecedentes históricos do mandado de segurança, cf. NUNES, José de Castro. Do mandado de segurança. 9ª ed. (atualizada por José de Aguiar Dias). Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 1-12.


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No entanto, como tal utilização ampla do habeas corpus não agradava as autoridades da época, em 1926 houve uma emenda constitucional, por meio da qual ficava limitada a utilização do habeas corpus aos casos de liberdade de locomoção. Assim é que, com a referida emenda constitucional, ficaram os particulares sem uma ação judicial que lhes protegesse das ilegalidades e abusividades praticadas pelo poder público. Diante de tal situação, os estudos começaram a ser desenvolvidos, até que se chegou à Constituição de 1934, quando, então, o mandado de segurança foi, pela primeira vez, expressamente previsto em nosso ordenamento jurídico. A Constituição de 1937, por sua vez, não previu o mandado de segurança, que, entretanto, passou a ser disciplinado dentro do Código de Processo Civil de 1939, como uma simples ação de procedimento especial4. A Constituição de 1946, a seu turno, voltou a prever o mandado de segurança, no que foi seguida pelas demais constituições posteriores, até a Constituição de 1988 (art. 5º, LXIX), que ampliou o mandado de segurança, passando também a definir a sua utilização na proteção de direitos coletivos (art. 5º, LXX). O mandado de segurança, então, após voltar a ser previsto constitucionalmente (1946), passou a ser regulamentado pela Lei nº 1.533/51, cuja vigência se deu até o ano passado, quando entrou em vigor da nova Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009). E, como se verá adiante, a nova Lei do Mandado de Segurança não tem, em verdade, quase nada de novo. Ela praticamente repetiu a legislação anterior. Quando inovou foi para piorar, na medida em que se mostrou muito mais restritiva do que a anterior. Antes, porém, de tecermos qualquer comentário acerca da nova legislação, cabe aqui observar que o mandado de segurança, por se tratar de um direito fundamental, sequer precisaria de legislação infraconstitucional que o regulamentasse. Dessa forma, qualquer leitura que se faça da nova lei do mandado de segurança deve estar devidamente comprometida com o fato de ser o mandado de segurança um direito fundamental expressamente previsto na Constituição Federal. Passemos, então, a fazer breves comentários acerca do mandado de segurança, em especial de sua nova legislação.

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E, como observação do paralelo existente em relação ao habeas corpus, cabe registrar que o Código de Processo Penal de 1941, que ainda vige, prevê o habeas corpus dentro dos seus procedimentos especiais.


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2. Legitimação ativa Pode impetrar mandado de segurança aquele que, em tese, possua direito líquido e certo violado por um ato ilegal ou abusivo praticado pela autoridade pública. De imediato, então, surge a indagação: no que consiste um direito líquido e certo? Não obstante e polêmica que ainda envolve o assunto5, direito líquido e certo, considerando-se os restritos fins aqui propostos, é aquele cujos fatos que o constituíram podem ser demonstrados documentalmente. Não significa, necessariamente, a ausência de complexidade, mas sim a possibilidade de os fatos narrados na inicial (e consequentemente o direito dali oriundo) poderem ser escancarados por intermédio apenas de prova documental previamente constituída. Exige-se, portanto, no mandamus, a chamada prova pré-constituída, na medida em que o rito do mandado de segurança não comporta qualquer dilação probatória. Especificamente quanto à legitimação ativa, a nova legislação não trouxe nenhuma alteração mais substancial, sendo certo que o cabimento do mandado de segurança (assim como já dispõe a Constituição Federal acerca do ponto) dá-se por exclusão. Em outras palavras, será o caso de se impetrar o mandado de segurança quando o ato a ser atacado não puder desafiar habeas corpus ou habeas data. Desse modo, poderá impetrar mandado de segurança tanto as pessoas físicas como as pessoas jurídicas, sendo irrelevante, a despeito do silêncio da nova lei, a nacionalidade do impetrante6. Em que pese seja o mandado de segurança (assim como as ações de uma forma geral) normalmente impetrado pelo efetivo titular do direito violado ou ameaçado (legitimado ordinário), não se deve olvidar da possibilidade de o mandamus ser impetrado, em algumas situações expressamente previstas em lei, por legitimado extraordinário (substituição processual).

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Sobre toda a discussão envolvendo o tema, vale conferir BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 82-106; FERRAZ, Sergio. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 25-52. 6 Como expõe Cassio Scarpinella Bueno, “a despeito do silencio da nova lei, outrossim, é irrecusável o entendimento de que a nacionalidade do impetrante, pessoa física ou jurídica, seja indiferente para a impetração, garantida, indistintamente, pelos incisos LXIX e LXX do art. 5º da Constituição Federal” (BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança: comentários sistemáticos à Lei n. 12.016, de 7-8-2009. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 10). Sobre a legitimação ativa no mandado de segurança, inclusive com a abordagem da possibilidade de impetração por estrangeiro, cf. FERRAZ, Sergio. Mandado de segurança, cit., p. 60-64.


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É o que ocorre na hipótese do §3º, do art. 1º, da Lei 12.016/2009, que manteve a previsão legal anterior de que “quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança” 7. Outra hipótese de legitimação extraordinária (substituição processual) encontra-se prevista no art. 3º da nova lei do mandado de segurança8, que também permite a impetração do mandado de segurança por terceiro prejudicado. Assim é que, em uma típica situação de substituição processual, o terceiro poderá impetrar mandado de segurança em favor do direito alheio, desde que o seu direito (direito do terceiro) decorra de direito não exercido no momento adequado pelo seu titular originário. Observe-se que, na hipótese, o terceiro não estará no mandado de segurança postulando diretamente a defesa do seu direito, de modo que a situação deve ser encartada dentre aquelas que dizem respeito à substituição processual, por se tratar de legitimação extraordinária. Ainda quanto à legitimação ativa, cabe a observação de que, em decorrência de previsão contida no art. 10, §2º, da Lei nº 12.016/2009, passou a ser expressamente vedada a formação do litisconsórcio ativo ulterior. Por evidente, nada obsta haja a formação de litisconsórcio ativo em sede de mandado de segurança. Todavia, tal litisconsórcio deve ser formado desde a impetração do mandamus, sendo proibida a sua posterior constituição, para que, com isso, seja preservado o princípio do juiz natural. 3. Legitimação passiva Ponto também de destaque da nova lei – em que pese tal aspecto já viesse sendo abordado pela doutrina e jurisprudência há algum tempo – envolve o pólo passivo no mandado de segurança. A pergunta é: quem é réu no mandado de segurança? Isso porque, em verdade, o impetrante visa atacar por meio do mandado de segurança um determinado ato (supostamente ilegal ou abusivo) praticado por uma autoridade pública. Tal autoridade é denominada de 7

Tal dispositivo legal, aliás, não obstante seja pouco utilizado na prática, deu origem à Súmula nº 628 do Supremo Tribunal Federal, que possui a seguinte redação: “Integrante de lista de candidatos a determinada vaga da composição de tribunal é parte legítima para impugnar a validade da nomeação de concorrente”. 8 Que, nesse ponto, praticamente repete o art. 3º da antiga Lei nº 1.533/51. A única diferença é que a nova lei passou a prever expressamente o prazo certo de 30 dias para que o titular do direito originário impetre o mandado de segurança, sendo certo que a antiga legislação apenas se referia a “prazo razoável”.


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autoridade coatora. Mas, enfim, é ela (autoridade coatora) ré no mandado de segurança? Ou será réu a pessoa jurídica a ela vinculada? O entendimento que prevalecia era de que a autoridade coatora não era ré, sendo tal papel desempenhado pela pessoa jurídica de direito público. Não se tinha, portanto, um litisconsórcio passivo. A nova legislação, em seu art. 6º, para alguns9 teria alterado tal posicionamento, de modo que a autoridade coatora seria, a partir de agora, considerada ré juntamente com a pessoa jurídica. Não é esse, porém, o posicionamento que se tem visto na maioria da doutrina que vem se encarregando de comentar a nova lei do mandado de segurança10. Em outras palavras, continua a prevalecer o entendimento de que a autoridade coatora não é ré no mandado de segurança, embora alguns direitos tenham lhe sido agora expressamente garantidos – como se constata no direito de recorrer, previsto no art. 14, §2º11. Aliás, ponto difícil, na prática, envolvendo o mandado de segurança diz respeito à identificação da autoridade coatora. Pode ser que, em determinada situação, tenha-se dificuldade em identificar quem efetivamente praticou determinado ato coator. E, aqui, a lei nova perdeu uma grande oportunidade de melhor enfrentar a questão. Isso porque o art. 6º, §4º, que expressamente previa a possibilidade de se corrigir a autoridade coatora acabou vetado. Com isso, o problema prático continua, ou seja, eventual indicação equivocada da autoridade coatora ensejará a extinção do processo sem a resolução do mérito – a não ser que se aplique subsidiariamente, como parece ser recomendável, o art. 284, do CPC, permitindose, com isso, da mesma forma, a emenda da inicial. Sobre o ponto – e com o objetivo de evitar a extinção do processo por indicação equivocada da autoridade coatora – o STJ vem entendendo pela aplicabilidade da chamada teoria da encampação no âmbito do mandado de segurança12. 9

É o que pensa, por exemplo, BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança, cit., p. 37-38. Cf., por todos, MEDINA, José Miguel Garcia e ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de Segurança Individual e Coletivo: comentários à Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 45-48. 11 Mas que, na hipótese, decorre da legitimação recursal do terceiro prejudicado. 12 “MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. MINISTRO DE ESTADO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO. SECRETÁRIO DE RECURSOS HUMANOS DO REFERIDO MINISTÉRIO. SUBORDINAÇÃO HIERÁRQUICA. TEORIA DA ENCAMPAÇÃO. APLICAÇÃO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. REAJUSTE DE 28,86%. 1. Se o Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, autoridade hierarquicamente superior ao Secretário de Recursos Humanos do Ministério, defende o mérito do ato impugnado ao prestar informações nos autos do mandado de segurança, torna-se legitimado para figurar no pólo passivo do writ. Precedentes. 2. A jurisprudência deste 10


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Por meio de tal teoria, caso a autoridade coatora se diga ilegítima, mas, ao mesmo tempo, venha a defender o ato, dizendo que tem posição hierárquica para a sua prática – e caso isso não venha a significar modificação de competência –, considerar-se-á superado o problema. 4. Liminar e as restrições à sua concessão Ponto importante em se tratando de mandado de segurança é a possibilidade de se ter a concessão da liminar. Aliás, a liminar está intimamente ligada a todo e qualquer caso de mandado de segurança, de modo que, em regra, sempre se pede a concessão de liminar em mandado de segurança – e, mesmo quando não se pede (o que é raro, na prática), fica o juiz autorizado a conceder a liminar de ofício, conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência. E aqui a lei nova piorou o que antes existia. Isso porque, em seu art. 7º, III, incluiu, na parte final, a possibilidade de o juiz condicionar o deferimento da liminar ao oferecimento de caução, fiança ou depósito pelo impetrante. Trata-se de dispositivo legal de constitucionalidade ao menos discutível, na medida em que, por meio de legislação infraconstitucional, impõe verdadeira condição à concessão da segurança, restrição que não condiz com o status de garantia constitucional do mandado de segurança13. Ainda quanto à liminar, surge outro ponto inovador, desta vez de forma benéfica. É que o legislador passou a prever, de maneira expressa (art. 7º, §1º), o cabimento de agravo de instrumento contra a decisão judicial que conceder ou negar a liminar (e, sendo caso de Superior Tribunal de Justiça assentou-se no sentido de que, em se tratando de mandado de segurança contra ato omissivo continuado, que se renova seguidamente. 3. Os impetrantes, servidores públicos federais do quadro do extinto Território de Roraima, que exercem cargos da Polícia Civil do atual Estado Membro da Federação, e foram equiparados aos Policiais Federais, têm direito ao reajuste de 28,86%, em atenção ao disposto na Medida Provisória nº 1.704, de 30 de junho de 1998. 4. Apenas os aumentos concedidos pelas Leis nºs 8.622/93 e 8.627/93 podem ser compensados com o reajuste de 28,86%, de modo que os aumentos posteriores, a título de progressão funcional ou reorganização da carreira dos servidores, não devem ser considerados para eventual compensação com o mencionado reajuste. 5. Segurança concedida.” (MS 12230 / DF – 3ª Seção do STJ, relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgamento em 23.06.2010, DJe de 02.08.2010). 13 Assim não pensa, contudo, Cassio Scarpinella Bueno, para quem “o que o inciso III do art. 7º da Lei n. 12.016/2009 quer é que o magistrado, consoante as peculiaridades do caso concreto, possa impor a caução para assegurar eventual resultado infrutífero se, a final, o pedido do impetrante for rejeitado”, o que, para o autor, estaria inserido no “poder-dever de cautela”, que também teria, para ele, estatura constitucional (BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança, cit., p. 42).


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competência originária do Tribunal, o recurso a ser interposto contra a decisão monocrática do relator é o agravo interno, nos termos do art. 16, parágrafo único). Embora tal aspecto da recorribilidade parecesse óbvio – em razão da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao mandado de segurança – o certo é que vários tribunais vinham se posicionando (ainda na vigência da lei anterior) pela irrecorribilidade da decisão liminar14, pelo frágil argumento de que a lei do mandado de segurança não previa recurso para tal situação. Desse modo, a lei nova serviu para deixar indiscutível o cabimento de recurso contra decisão liminar (seja positiva ou negativa). Outra absurda restrição à concessão da liminar é observada no §2º, do art. 7º, que veda a concessão da liminar em casos de compensação, entrega de mercadorias e bens vindos do exterior e pagamento de funcionário público. Trata-se de artigo que igualmente se apresenta como inconstitucional15, vez que afronta flagrantemente o art. 5º, XXXV, da CF (a lei não excluirá do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça ao direito), na medida em que retira a possibilidade de o Judiciário apreciar determinadas questões em sede de liminar. Todavia, cabe registrar que o STF, ao julgar a ADC nº 416, considerou constitucional o art. 1º, da Lei nº 9.494/97 – que, da mesma forma, trazia hipóteses em que se restringia a concessão de liminar (no caso, tutela antecipada). Destarte, em que pese a inconstitucionalidade acima apontada, já é possível prever como se posicionará o STF na ADIN nº 429617, que foi proposta pelo Conselho Federal da OAB, em setembro de 2009, atacando este e outros dispositivos da nova lei do mandado de segurança.

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“MANDADO DE SEGURANÇA - LIMINAR - FGTS - RECURSO - AGRAVO DE INTRUMENTO. I NÃO CABE AGRAVO DE INSTRUMENTO CONTRA DECISÃO QUE CONCEDE LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA, SOBRETUDO POR HAVER OUTRO MEIO PARA EVITAR QUALQUER ABUSO NA CONCESSÃO. II - AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO CONHECIDO.” (AI 93.02.09741-2 – 1ª Turma do TRF da 2ª Região, relator Juiz Júlio Cézar Martins, julgamento em 08.09.1993, DJ de 05.10.1993). 15 Vicente Greco Filho sustenta que “não se pode dizer que a norma seja inconstitucional, mas se, no caso concreto, vier a obstar a garantia do instrumento constitucional da tutela de direitos não pode ser exigida, como, por exemplo, se o impetrante for pobre e não puder prestar caução, fiança ou fazer depósito de qualquer quantia” (GRECO FILHO, Vicente. O novo mandado de segurança: comentários à lei n. 12.106, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 31). 16 Em julgamento que, embora tenha sido concluído em 01.10.2008, não teve o seu acórdão publicado até o momento da presente palestra. Foi a ADC julgada procedente, por 10 votos contra 1 (voto vencido do Min. Marco Aurélio). 17 Cuja liminar não foi deferida.


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5. Possibilidade de o mandado de segurança envolver ato omissivo Ainda a respeito do art. 7º, III, antes referido para abordar o tema da liminar, cumpre observar que o legislador – repetindo falha já existente na legislação anterior – continuou a tratar apenas da possibilidade de a decisão judicial vir a “suspender” o ato coator, esquecendo-se, portanto, das inúmeras situações em que a ilegalidade ou abusividade por parte do Poder Público encontra-se exatamente na ausência da prática de um ato que deveria ser praticado. Todavia, inobstante a inexistência de previsão expressa, é importante destacar que dúvidas não restam de que o mandado de segurança serve tanto para atacar ato comissivo como ato omissivo18 – sem se esquecer do mandado de segurança preventivo, por meio do qual se pretende evitar que o ato seja praticado19. 6. Atuação do Ministério Público A atuação do Ministério Público, na ação de mandado de segurança, não sofreu maiores modificações com a legislação nova. Todavia, o art. 12 da Lei nº 12.016/2009 trouxe duas pequenas alterações quanto a tal ponto: i) o prazo para a manifestação passou de 5 para 10 dias; ii) tornou expresso na lei um entendimento que já vinha se sedimentando na doutrina e na jurisprudência, segundo o qual, para afastar a nulidade, basta que o Ministério Público seja intimado, não se exigindo, portanto, a sua efetiva atuação, mormente naqueles casos em que eventualmente não for identificado interesse público envolvido. Com efeito, obrigatória é apenas a intimação no Ministério Público, para que o parquet, caso entenda ser necessário (havendo interesse público) intervenha no feito 20.

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Cf., dentre outros, MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 16ª ed. (atualizada por Arnoldo Wald). São Paulo: Malheiros, 1995, p. 26; BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança, cit., p. 114-115. 19 Cf. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 78-79. 20 Sobre o ponto, vale mencionar que a Recomendação nº 16/2010 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é no sentido de que é “desnecessária” a intervenção ministerial, dentre outros casos, em mandados de segurança. Tal recomendação, aliás, merece elogio, vez que a atuação do Ministério Público, após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, passou a ficar voltada para a defesa da sociedade, naquelas hipóteses em que haja interesse público primário. Dessa forma, mostra-se pertinente a interpretação do art. 12, da Lei nº 12.016/2009, de modo a não tornar obrigatória a efetiva participação do Ministério Público em todos os casos de mandado de segurança.


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7. Apelação e recurso ordinário Nesse ponto, a única novidade é a prevista no art. 14, §2º, que estabelece a possibilidade de a autoridade coatora recorrer. Trata-se de dispositivo que, na verdade, aborda tema que consagra posicionamento que há muito era defendido na doutrina. Aliás, sobre tal dispositivo legal, cabe registrar que também há ADIN atacando a sua inconstitucionalidade. Com efeito, encontra-se em andamento a ADIN nº 440321, proposta pelo Conselho Federal de OAB, em abril de 2010, sustentando, em síntese, que, ao se estender o direito de recorrer para a autoridade coatora, estará sendo usurpada uma função indispensável do advogado na administração da justiça (art. 133, da CF). Mas, afora a expressa autorização para que a autoridade coatora possa recorrer (art. 14, §2º) – o que o fará, repita-se, na condição de terceiro prejudicado, vez que não é ela (autoridade coatora) parte no mandado de segurança –, não houve modificação significativa envolvendo os recursos interpostos contra a sentença ou contra o acórdão (nos casos de competência originária do tribunal) no mandado de segurança. Todavia, acerca da recorribilidade contra o julgamento final no mandado de segurança, aqui merecem ser lembrados dois aspectos importantes: 1) Os efeitos da apelação variam de acordo com o resultado da sentença. Assim é que, sendo a sentença concessiva da ordem, o recurso que vier a ser apresentado pela autoridade coatora ou pelo pessoa jurídica a ela vinculada somente terá efeito devolutivo (podendo a sentença, portanto, ser executada de imediato). Quando o recurso for interposto pelo impetrante, será recebido tanto no efeito devolutivo quanto no efeito suspensivo22-23. 2) O recurso ordinário somente pode ser interposto pelo impetrante. Nos termos do art. 18 (que é reforçado pelo art. 539, do CPC), somente haverá possibilidade de se 21

Aqui também a liminar não foi deferida. Nesse sentido, firme é a posição defendida por Cassio Scarpinella Bueno, que, após sustentar que a ausência de efeito suspensivo (prevista no §3º, do art. 14, da Lei nº 12.016/2009) apenas se refere à sentença concessiva da ordem, afirma que, em virtude da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, deve haver, na hipótese de denegação da segurança, integral aplicação da regra prevista no caput do art. 520, do Código de Processo Civil, sendo, assim, conferido efeito suspensivo ao recurso (BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança, cit., p. 81-82). 23 Todavia, não pode ser omitida a existência de forte posicionamento em sentido contrário. Na verdade, a dúvida surge em decorrência do fato de a sentença denegatória possuir natureza declaratória negativa. Assim, segundo argumenta a doutrina, não há que se falar em suspensão de efeitos negativos. Em outras palavras, para boa parte da doutrina, ao se suspender a eficácia da sentença, estará sendo, da mesma forma, tido como legal e não arbitrário (portanto, absolutamente válido e executável) o ato inicialmente apontado como coator. Sobre o ponto, vide Nelson Nery Jr., para quem o recurso ordinário “não necessita de efeito suspensivo, já que cabível apenas do acórdão que denega mandado de segurança, decisão essa de caráter declaratório negativo, insuscetível de terem esses efeitos negativos suspensos” (NERY JR., Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 449). 22


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interpor recurso ordinário quanto o julgamento denegar a ordem pleiteada pelo impetrante, de modo que tal via recursal não se põe à disposição da autoridade coatora e nem da pessoa jurídica de direito público a ela vinculada. 8. Coisa julgada Quanto à coisa julgada, a nova lei, em seu art. 6º, §6º, assim como no art. 19, deixou a questão mais clara, em que pese não tenha trazido efetivamente nenhuma novidade. Assim é que, da mesma forma como acontece com as demais ações, havendo julgamento do mérito no mandado de segurança, será alcançada a coisa julgada material, vedando-se, por conseguinte, seja a matéria novamente discutida no futuro. Mas, por outro lado, caso não seja julgado o mérito – sendo, portanto, prolatada uma sentença terminativa no mandado de segurança –, nada impede que se tenha a propositura de uma nova ação para a discussão da mesma matéria. Registre-se, ademais, que, em tal hipótese, a nova ação a ser proposta pode, inclusive, ser um novo mandado de segurança, desde que, para tanto, ainda se esteja dentro do prazo decadencial de 120 dias. 9. Sanções para o caso de descumprimento da ordem judicial Outra novidade da Lei nº 12.016/2009 refere-se à previsão expressa, no art. 26, da configuração do crime de desobediência para a hipótese de não cumprimento das decisões proferidas em sede de mandado de segurança. Inobstante seja boa a alteração ora referida, deve ser salientado que, além de tal sanção, mostram-se perfeitamente possíveis de aplicação quaisquer das medidas previstas no art. 461, do CPC, inclusive a multa pecuniária, sempre com o intuito de se conferir maior efetividade às decisões judiciais, em especial aquelas proferidas em sede de mandado de segurança24. 24

Nesse sentido tem se posicionado de forma tranquila a jurisprudência, podendo ser mencionado a título de exemplo o AgRg no REsp 1046283/RS, 2ª Turma do STJ, relator Ministro Castro Meira, julgado em 19.06.2008, DJe 06.08.2008, com a seguinte ementa: “DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL.FORNECIMENTO DE REMÉDIOS. APLICAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. POSSIBILIDADE.ART. 461, CAPUT E § 5º, DO CPC. 1. As medidas previstas no § 5º do art. 461 do CPC foram antecedidas da expressão "tais como", o que denota o caráter não-exauriente da enumeração. Assim, o legislador deixou ao prudente arbítrio do magistrado a escolha das medidas que melhor se harmonizem com as peculiaridades de cada caso concreto.2. É cabível, inclusive contra a Fazenda Pública, a aplicação de multa diária (astreintes) como meio coercitivo para impor o cumprimento de medida antecipatória ou de sentença definitiva de obrigação de fazer ou entregar coisa, nos termos dos artigos 461 e 461-A do CPC.3. Agravo regimental não provido.”


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10. Mandado de segurança coletivo Como últimas observações, destacamos a inserção, na nova lei do mandado de segurança, de regras acerca do mandado de segurança coletivo (art. 21 e 22). São regras, em geral, bastante ruins. E podemos destacar três pontos específicos para demonstrar tal equivocidade da lei: 1) A lei, sem qualquer justificativa, excluiu a possibilidade de se impetrar mandado de segurança coletivo para a defesa de interesses difusos (art. 21, parágrafo único). Por evidente, a legislação não pode impor uma limitação que não existe no texto constitucional. Dessa forma, e por uma interpretação conforme a constituição, não resta dúvida de que o mandado de segurança coletivo pode tanto envolver direitos difusos, coletivo stricto sensu e individuais homogêneos. 2) Outra falha envolve a definição dos legitimados à impetração do mandado de segurança coletivo (art. 21). O legislador aqui repetiu o art. 5º, LXX, da CF. Todavia, já estava pacificado o entendimento de que a CF trazia a previsão mínima dos legitimados para a impetração do mandado de segurança coletivo. Assim é que, por exemplo, ponto que já se encontrava bem tranquilo era a legitimação do Ministério Público para a impetração do mandado de segurança coletivo. E a lei nova não inclui o Ministério Público como legitimado. 3) Outro ponto negativo envolvendo o mandado de segurança coletivo é a regra prevista no art. 22, §1º. Trata-se de regra que aborda a existência simultânea de mandado de segurança coletivo e individual. Tal dispositivo exige que o impetrante de writ individual, caso queira se beneficiar de eventual coisa julgada no mandamus coletivo, desista do seu mandado de segurança. Ou seja, aqui, diferente do que se vê nas ações coletivas de uma forma geral, a ação individual não ficará suspensa (aguardando o desfecho da ação coletiva), mas sim será extinta, tendo em vista a desistência. Desse modo, caso, por exemplo, o impetrante individual desista da sua ação (para aderir ao julgamento da ação coletiva) e vindo a ser denegada a ordem no mandado de segurança coletivo (com julgamento do mérito), terá ele sofrido os efeitos negativos da coisa julgada, sem poder dar continuidade à sua ação individual. Vê-se que se tem, na hipótese, uma verdadeira armadilha.


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11. Referências BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança: comentários sistemáticos à Lei n. 12.016, de 7-8-2009. São Paulo: Saraiva, 2009. BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1989. GRECO FILHO, Vicente. O novo mandado de segurança: comentários à lei n. 12.106, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Saraiva, 2010. FERRAZ, Sergio. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros, 2006. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros, 1996. MEDINA, José Miguel Garcia e ARAÚJO, Fábio Caldas de. Mandado de Segurança Individual e Coletivo: comentários à Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 16ª ed. (atualizada por Arnoldo Wald). São Paulo: Malheiros, 1995. NERY JR., Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. NUNES, José de Castro. Do mandado de segurança. 9ª ed. (atualizada por José de Aguiar Dias). Rio de Janeiro: Forense, 1987.


O FORMALISMO PROCESSUAL EM SEDE RECURSAL COMO OBSTÁCULO AO ACESSO À JUSTIÇA1 Cristiano Simão Miller2 RESUMO O direito processual civil sofreu enormes modificações ao longo dos anos, notadamente por conta da sua identificação como ramo da ciência independente do direito material. Busca-se construir um processo como sendo um instrumento capaz de promover a pacificação social, com o intuito de proporcionar às partes uma segurança jurídica, advinda de um julgamento justo, ocorrido no mais curto tempo possível. Mas o avanço percebido é ainda insuficiente para que se tenha o processo como um efetivo meio de se obter a justa composição dos litígios. O trabalho, ao se referir a tais pontos falhos, direciona-se para a equivocada maneira como os tribunais pátrios vêm “criando” obstáculos processuais ilegítimos, com o único propósito de “encerrar processos”, sem a mínima preocupação com a qualidade do julgamento promovido. Por evidente, o acesso à justiça não pode ser visto tão somente como a possibilidade de a parte mover a ação judicial, ter acesso ao Judiciário. Assim é que, no presente estudo, é analisado o formalismo no processo civil, verificando o seu real objetivo em cotejo com a necessidade de proporcionar aos litigantes o justo resultado na solução do conflito posto em julgamento. Analisa-se a importância do formalismo para o processo civil atual, diferenciando-o do formalismo exagerado. Em seguida, lança-se luz sobre a efetiva presença de formas a serem respeitadas no sistema recursal brasileiro, fazendo-se, ao final, o apontamento de diversos casos em que o formalismo processual é levado ao extremo, fazendo com que os tribunais deixem de julgar o direito material em razão de sutilezas formais. PALAVRAS CHAVES: FORMALISMO – PROCESSO EFETIVO – ACESSO À JUSTIÇA.

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Artigo publicado nos anais do XVIII Congresso Nacional do Conpedi (novembro/2009) e na Revista InterScience Place, v. 16, p. 144-164, 2011. 2 Doutorando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos. Professor de Direito Processual Civil do Centro Universitário Fluminense (UNIFLU) - Direito de Campos, nos cursos de graduação e pós-graduação (lato sensu). cristianomiller@milleradvocacia.com.br.


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ABSTRACT PROCEDURAL FORMALISM ON APPELATE COURTS AS OBSTACLES TO THE ACCESS TO JUSTICE The civil procedural law has been enormously changed over the years, notably on its identification as a scientific branch independent from substantive law. The aim is to build a process as an instrument to promote social peace, intended to propitiate legal security to the parties involved, resulting from a fair trial, in a timely manner. But the perceived progress is still insufficient to have the process as an effective means of obtaining a just settlement of disputes. This work, as referring to such pitfalls, is directed at analyzing the way the Brazilian Higher courts have been "creating" illegitimate procedural obstacles for the sole purpose of "ending the process" without the slightest concern for the quality of the trial promoted. Clearly, the access to justice can not be seen only as the possibility of the parties to sue, to have access to the judiciary. That’s how, in the present study, the formalism in civil procedure is analyzed, verifying its real objectives in conjunction with the need to promote to the parties a just result in the solution of the conflict brought to trial. It analyzes the importance of formalism to the current civil procedure, differentiating it from excessive formalism. Then, it casts light onto the actual presence of forms to be respected by the appellate system in Brazil, pointing out, at the end, to several cases in which the procedural formalities are taken to the extreme, making the courts no longer appreciate the substantive law on grounds of formal subtleties. KEY-WORDS: FORMALISM – EFFECTIVE PROCESS – ACCESS TO JUSTICE

1. INTRODUÇÃO O direito processual civil sofreu enormes modificações ao longo dos anos, notadamente por conta da sua identificação como ramo da ciência independente do direito material. Buscou-se, assim, construir um processo como sendo um instrumento capaz de promover a pacificação social, com o intuito de proporcionar às partes uma segurança jurídica, advinda de um julgamento justo, ocorrido no mais curto tempo possível. Em que pese o eterno conflito entre as proposições acima, o certo é que o direito processual civil alcançou, hodiernamente, inegáveis avanços na busca pela justa composição dos litígios.


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Mas o avanço percebido é ainda insuficiente para que se tenha, de modo concreto, o processo como um meio para se obter a solução dos conflitos de uma forma efetiva. E, diga-se desde logo, aqui não se faz referência as deficiências legislativas, que demandariam um outro enfoque no presente estudo. O que se pretende abordar no trabalho ora desenvolvido não são as falhas e as carências da legislação, mas sim a equivocada maneira como os tribunais pátrios vêm “criando” obstáculos processuais ilegítimos, com o único propósito de “encerrar processos”, sem a mínima preocupação com a qualidade do julgamento promovido. Sob os cansados (porém, verdadeiros) argumentos de que os trâmites processuais são morosos3 e que os tribunais estão entupidos de processos, vê-se, com frequência assustadora, julgamentos que supervalorizam determinadas formalidades processuais – que em nada contribuirão para o melhor desfecho da demanda – em flagrante prejuízo da avaliação do direito material discutido na lide e, por conseguinte, desrespeitando a garantia do acesso à justiça. Por evidente, o acesso à justiça não pode ser visto tão somente como a possibilidade de a parte mover a ação judicial, de ter acesso ao Judiciário. É preciso garantir ao litigante o resultado mais justo possível da demanda posta em julgamento. Não se olvida o fato de que, por vezes, mostra-se imperiosa a valorização da celeridade processual4, até mesmo para que tenha respeitada a garantia constitucional da razoável duração do processo5. Mas tal celeridade não pode ser obtida por vias impróprias6, como a que se observa em diversos julgamentos ocorridos em sede recursal, que apenas consideram filigranas processuais – que, muitas vezes, sequer estão lastreadas em normas legais – em detrimento do direito material em discussão.

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João Batista Lopes, retratando problema notório, observa que “a despeito dos resultados alcançados até agora, é inquestionável a persistência de um mal endêmico, que vem comprometendo a boa imagem da Justiça: a morosidade processual” (LOPES, João Batista. Efetividade do processo e reforma do código de processo civil: como explicar o paradoxo processo moderno – justiça morosa? Revista de Processo, ano 27, nº 105, jan/mar de 2002, p. 128). 4 Aliás, a nosso sentir, mostra-se oportuna (em que pese sejam necessários alguns ajustes em sua aplicação prática) a possibilidade de se ter o julgamento dos processos repetitivos tendo por referência determinado precedente judicial. 5 Como observa Augusto Morello, processo justo é aquele que se realiza de modo a dar ao conflito de interesses uma solução tempestiva, ou seja, dentro de um espaço temporal tido como razoável (MORELLO, Augusto Mario. El proceso justo. La Plata: Libreria Editora Platense S.R.L., 1994, p. 225 e ss.). 6 Salienta Barbosa Moreira que “se uma justiça lenta demais é decerto uma Justiça má, daí não se segue que uma Justiça lenta muito rápida seja necessariamente uma Justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não contudo, a qualquer preço” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: alguns mitos. In: Temas de Direito Processual – 8ª série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 5)


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Assim é que, no presente estudo, buscar-se-á analisar, ainda que de forma breve, o formalismo no processo civil, verificando o seu real objetivo em cotejo com a necessidade de proporcionar aos litigantes o justo resultado na solução do conflito posto em julgamento. Será feita, num primeiro momento, a abordagem da importância do formalismo para o processo civil atual. Como contraponto, será ainda alvo de análise a ideia de formalismo exagerado, que distorce a finalidade das formas no processo civil, em flagrante agressão à garantia do acesso à justiça. Em seguida, será lançada a luz sobre a efetiva presença de formas a serem respeitadas no sistema recursal brasileiro, mormente para que se tenha o preenchimento dos requisitos de admissibilidade, com vistas a se alcançar o julgamento do mérito recursal (uma vez sendo positivo o juízo de admissibilidade). E, por fim, serão apontados diversos casos em que o formalismo processual é levado ao extremo, fazendo com que os tribunais deixem de julgar o direito material em razão de certas sutilezas formais (que, em algumas hipóteses, sequer encontram previsão legal), em indiscutível afronta ao acesso à justiça. 2. O FORMALISMO NO PROCESSO CIVIL O formalismo processual – ou a forma vista em seu sentido amplo7 – deve ser encarado como algo capaz de organizar e definir limites no desenvolvimento dos processos judiciais, colocando termo a uma eventual desordem que a pura liberdade na prática dos atos processuais poderia acarretar. Nas palavras de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, o formalismo diz respeito à totalidade formal do processo, compreendendo “especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais”8, para que sejam atingidos os objetivos centrais de cada ação. E, inobstante a clássica dúvida existente entre a valorização da forma em prol da segurança ou a supremacia da liberdade na busca na justiça, o certo é que o formalismo processual se apresenta como um instrumento que jamais pode ser desprezado, pois, como

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A forma em sentido estrito “é o invólucro do ato processual, a maneira como deve este se exteriorizar; cuidase portanto do conjunto de signos pelos quais a vontade se manifesta e dos requisitos a serem observados na sua celebração” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6). 8 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Op. cit. p. 8.


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bem observa Antônio do Passo Cabral, “as formalidades proporcionam segurança, ordenação e previsibilidade ao procedimento”9. É preciso, desse modo, seja o formalismo processual considerado como um elemento capaz de propiciar às partes a segurança e a certeza na maneira como o processo será desenvolvido, o que jamais seria alcançado caso se estivesse diante de um procedimento livremente construído em cada hipótese concreta. Aliás, as próprias partes, entre si, necessitam da existência de formas na prática dos atos processuais para que, com isso, sejam lançados freios contra eventuais atos abusivos cometidos por um litigante em relação ao outro. Busca-se, com tal formalismo, conferir observância ao próprio princípio do contraditório10, que restaria absolutamente desprestigiado caso não houvesse entre as partes uma garantia quanto à previsibilidade na forma de serem praticados dos atos processuais. Ademais, deve ser ainda considerado que a ideia de formalismo visa afastar o arbítrio por parte dos julgadores, que, diante de regras expressamente impostas pelo legislador, sentem-se (ou pelo menos deveriam se sentir) impedidos de cometer atos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Destarte, e ao contrário do que a primeira vista poderia parecer, a ausência de uma delimitação formal para a prática dos atos jamais propiciaria às partes o pleno controle no bom desenvolvimento do processo, vez que sempre ficariam sujeitas aos abusos que poderiam ser cometidos em cada caso concreto – seja pela parte contrária, seja pelo próprio julgador – em razão da liberdade existente. Mas, por outro lado, evidente se mostra que a forma do ato não tem por escopo atingir um fim próprio e independente. Ela é vista como um mero meio (o mais idôneo, e até por isso deve ser exigido o seu cumprimento) para que se consiga alcançar um determinado resultado, externo ao ato processual praticado. Em síntese, e aqui valendo-se das lições de José Roberto dos Santos Bedaque, a “técnica processual”11 possui dois grandes objetivos: um, seria garantir a segurança do

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CABRAL, Antônio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 8. 10 Sobre o tema, interessante reflexão é posta por Bruno Silveira de Oliveira, que, ao analisar o confronto existente entre “rigidez procedimental e lealdade processual – e, em sentido inverso, flexibilidade procedimental e chicana”, pondera que “a associação entre a rigidez do procedimento e o aumento das probabilidades de um contraditório leal é uma ilação, no mínimo, insegura”, pois, para tanto, deveria o argumento “partir de um cenário de presumida chicana”, o que, na visão do autor, não é sempre conveniente (OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Conexidade e efetividade processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 271. 11 Termo utilizado pelo autor, mas que, para fins propostos no presente estudo, equipara-se ao “formalismo processual”.


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instrumento, proporcionando a igualdade de tratamento às partes do processo, possibilitandolhes influir substancialmente no resultado; e o outro, seria assegurar que a tutela jurisdicional seja, dentro do possível, uma resposta idêntica à atuação espontânea da regra de direito material, seja sob o prisma da justiça da decisão, seja do ponto de vista da tempestividade.12 No entanto, como será visto adiante, a visão de formalismo acima exposta jamais pode ser confundida com a supervalorização da forma em detrimento do objetivo central do processo, que seria proporcionar às partes o devido acesso à justiça, com a finalidade de se alcançar o justo resultado do litígio. Em outras palavras, não se pode transformar o formalismo em um verdadeiro fetiche, a ponto de jogar por terra toda a finalidade que se busca atingir com o regular desenvolvimento de um processo judicial. 3. OS MALES DO FORMALISMO EXAGERADO Como contrapondo ao que acima se expôs encontra-se o formalismo excessivo, exagerado, desvirtuado, que, deixando de ver a forma como algo capaz de contribuir para a realização do direito, serve para sufocar a pretensão13 da parte14. Tal tipo de formalismo em nada contribui para que se tenha um desfecho digno da lide posta para apreciação diante do Judiciário. Pelo contrário, com o exagero na valorização das formas dos atos processuais tem-se a inacessibilidade da justiça. Parece desnecessário, mas, diante da assiduidade com que se vê a aplicação do formalismo excessivo pelos tribunais, não é demais salientar que o “acesso à justiça” não se caracteriza pela simples “permissão” ou “facilitação” de propositura de ações judiciais por aqueles que se sentem lesados ou ameaçados de sofrer algum tipo de lesão em seu direito. Mais do que isso, estará sendo respeitada a garantia do “acesso à justiça” quando for assegurado às pessoas estar em juízo em igualdade de condições com a parte adversa, bem

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BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 77-78. 13 Aqui referida em seu sentido amplo, de modo a abarcar também a “pretensão” do réu, que seria aquela consistente em ver julgado improcedente o pedido do autor. 14 Anota Carlos Alberto Alvaro de Oliveira que “neste caso o formalismo se transforma no seu contrário: em vez de colaborar para a realização da justiça material, passa a ser o seu algoz, em vez de propiciar uma solução rápida e eficaz do processo, contribui para a extinção deste sem julgamento do mérito, obstando a que o instrumento atinja a sua finalidade essencial” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. Revista de Processo, ano 31, nº 137, jul./2006, p. 19)


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como quando viabilizada a obtenção de um resultado justo15-16, através de um processo efetivo17. É ponto indiscutível que os tribunais de um modo geral, e em especial os tribunais superiores, encontram-se abarrotados de processos (o que, aliás, é mal comum em todas as demais instâncias). No entanto, tal volume exagerado de processos não pode servir de carta branca para que os tribunais passem a considerar o formalismo exagerado em detrimento da garantia do acesso à justiça18. Em sua clássica obra sobre o tema, Mauro Cappelletti destaca que, considerando a evolução do conceito de “acesso à justiça”, impõe-se sejam respeitados dois pontos centrais: i) deve ser garantido às pessoas a reivindicação dos seus direitos, tendo-se um sistema igualmente acessível a todos; ii) os resultados produzidos nas ações devem ser individual e socialmente justos. Somente assim será possível se ter um acesso efetivo à justiça19. E, por evidente, quando se lança mão do formalismo de maneira distorcida, pondo-o acima de sua própria finalidade, esmaga-se, por conseguinte, a garantia do acesso à justiça, na medida em que o resultado da ação será obtido por meio de valorização de filigranas processuais em detrimento do direito material efetivamente colocado em discussão. 4. O SISTEMA RECURSAL BRASILEIRO E A FORMA DOS ATOS PROCESSUAIS - JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE DOS RECURSOS Diante do que acima foi visto, mostra-se imprescindível o respeito ao formalismo processual – por óbvio, não em sua forma excessiva –, para que, com isso, tenha-se segurança e previsibilidade no desenvolvimento dos processos.

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Como destaca Leonardo Greco, ao tratar da ação como direito ao processo justo, “mesmo que o processo seja extinto sem julgamento do mérito, ainda que afinal a prestação jurisdicional não seja entregue ou ainda que o direito material não seja tutelado, a iniciativa do autor terá desencadeado a instauração da relação processual que deve ter observado todos os requisitos de formação e desenvolvimento válido e regular, através da sua subordinação aos pressupostos processuais, que têm por escopo assegurar a marcha ordenada do processo em direção aoseu fim, com o pleno respeito de todas as garantias fundamentais do processo, como o contraditório, a ampla defesa, a imparcialidade do juiz, entre outras” (GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. São Paulo: Dialética, 2003, p. 11) 16 Cf. KLIPPEL, Bruno Ávila Guedes. Os meios de impugnação às decisões judiciais e o processo justo. Revista de Processo, ano 33, nº 155, jan/2008, p. 52-75. 17 Cf. CARVALHO FILHO, Ronaldo Brêtas de. Direito à jurisdição eficiente e garantia da razoável duração do processo na reforma do judiciário. Revista de Processo, ano 30, nº 128, out/2005, p. 164-174. 18 Embora trate especificamente das restrições impostas ao recurso de agravo, cf. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O novo recurso de agravo, na perspectiva do amplo acesso à justiça, garantido pela constituição federal. Revista de Processo, ano 31, nº 134, abr/2006, p. 97-109. 19 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 8-9.


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E o sistema recursal pátrio não foge à regra, na medida em que, pouco importando a espécie de recurso que se esteja diante, o certo é que, para que seja alcançado o julgamento do mérito recursal, necessariamente terão que ser preenchidos diversos requisitos processuais, que se encontram ligados ao formalismo do ato, para que seja possível ao tribunal o exame do mérito do recurso. Por evidente, sempre que se interpõe um determinado recurso, o objetivo central é exatamente o julgamento do mérito recursal, alcançando-se, com isso, a reforma, o aclaramento, a invalidação, a integração, enfim, a alteração em maior ou menor grau do ato judicial atacado. No entanto, impossível se mostra o julgamento do mérito do recurso (que, destaque-se, não guarda necessariamente relação com o mérito da causa) sem que, preliminarmente, sejam enfrentados e satisfeitos os requisitos de admissibilidade do recurso interposto. Em outras palavras, de nada adianta o recorrente ter todos os motivos para obter a alteração da decisão judicial recorrida se, por exemplo, deixa de interpor o recurso no prazo adequado. Ou ainda, de nada adianta pretender modificar determinada decisão se, ao interpor o recurso, o recorrente deixou de recolher as custas devidas pelo ato praticado. Nesse diapasão, como destaca a doutrina20, apresentam-se como requisitos a serem apreciados no juízo de admissibilidade de cada recurso o seu cabimento, a legitimidade, o interesse recursal, a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, a tempestividade, a regularidade formal e o preparo. Para os restritos fins do trabalho ora desenvolvido, será feita uma abordagem apenas dos requisitos da tempestividade, da regularidade formal e do preparo, que mais claramente se apresentam como atos submetidos a regras formais expressamente estabelecidas em lei. Pela tempestividade, então, entende-se como sendo a necessidade de que o recurso seja interposto no prazo estabelecido pelo legislador. Impõe-se o respeito ao prazo recursal – e eis aqui a justificativa para tal norma – para que não se tenha, de maneira ainda mais categórica, a eternização dos processos judiciais. Por evidente, não faria nenhum sentido que o legislador deixasse sempre à disposição da parte sucumbente, a qualquer tempo, a possibilidade de recorrer contra a decisão que lhe foi desfavorável. Agir dessa maneira seria desconsiderar o regime da preclusão, o que,

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Por todos, cf. NERY JR., Nelson. Teoria geral dos recursos. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


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mormente sob o ângulo da garantia constitucional da razoável duração do processo, não se coloca como uma alternativa a ser seguida21. Destarte, o formalismo exigido quanto à tempestividade do ato mostra-se pertinente, desde que, é claro, não se tenha o formalismo excessivo e rigoroso, hipótese que, conforme será abordado em tópico adiante, configuraria o abuso de forma, em flagrante prejuízo do recorrente. Outro requisito a ser satisfeito, para que se tenha o juízo de admissibilidade positivo, é a regularidade formal. Com isso, fica definido que, dependendo do recurso, a lei não apenas estabelece regras gerais como também exige o cumprimento de requisitos específicos para que seja possível se adentrar no mérito recursal. Assim, por exemplo, em se tratando de agravo de instrumento (tanto aquele interposto contra a decisão interlocutória proferida em primeiro grau de jurisdição, como também aquele interposto contra a decisão que inadmitiu o recurso especial ou o recurso extraordinário), o legislador exige que o instrumento seja formado por determinadas peças obrigatórias, sem as quais o recurso será de imediato inadmitido. Ainda no campo dos exemplos, quando o legislador exige da parte recorrente a apresentação, na peça recursal, dos devidos fundamentos da impugnação, nada mais está fazendo do que lançar mão de uma regularidade formal a ser respeitada. Do contrário, não se terá o conhecimento do recurso. Ao regular o recurso especial, por sua vez, o legislador colocou, como requisito da admissibilidade, a necessidade de se fazer a efetiva demonstração da divergência existente entre os tribunais acerca da matéria posta em discussão, inclusive com a juntada dos acórdãos comprobatórios de tal divergência. Trata-se de mais uma regularidade formal, específica para os casos de recurso especial. E, sem o seu cumprimento, inviabiliza-se o julgamento do mérito do recurso. Por fim, e dentro dos singelos limites do presente trabalho, apresenta-se o preparo como mais um requisito de admissibilidade. É certo que nem todos os recursos exigem o pagamento de custas processuais para que se consiga adentrar no mérito recursal. Mas, para aqueles que possuem custas a serem recolhidas, a ausência do pagamento do preparo implicará na deserção. 21

Ao dispor sobre as graves conseqüências que adviriam de um sistema em que houvesse a plena liberdade de forma na prática dos atos processuais (inclusive quanto ao tempo), observa Babosa Moreira que “logo se percebem as conseqüências negativas que semelhante liberdade traria. Basta atentar ao tópico atinente ao tempo: imagine-se o que representaria como fator de insegurança a eventualidade de ficar indefinidamente em aberto a matéria que constitui objeto da impugnação” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Restrições ilegítimas ao conhecimento do recurso. In: Temas de Direito Processual – 9ª série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 269).


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O legislador, mostrando-se sensível aos problemas decorrentes do recolhimento equivocado das custas recursais, passou a permitir22 o complemento do preparo naquelas situações em o mesmo fosse feito a menor. Deve ser observado que tal regra, interpretada de forma literal, somente se aplica às hipóteses de insuficiência do valor pago a título de preparo, e não naqueles casos em que o recorrente deixa de recolher integralmente as custas devidas. Dessa forma, é possível perceber que o sistema recursal está impregnado de formalismos, que se colocam como fundamentais para que se tenha a segurança almejada. No entanto, o formalismo precisa ser visto dentro dos seus exatos fins, e não pode ser colocado como o principal objetivo no bojo de qualquer processo, visto que o formalismo em excesso gera a ilegitimidade, a arbitrariedade, proporcionando inaceitável obstáculo ao acesso à justiça. No entanto – e como será abordado adiante – o que se tem visto nos julgamentos dos tribunais (por meio da chamada “jurisprudência defensiva”) é a supervalorização dos formalismos, sem a esperada e desejada preocupação com a boa e justa composição do litígio. Parece indiscutível que – embora sempre se deseje uma solução que aprecie o mérito (da causa ou do recurso, como aqui interessa) – estando os tribunais diante de casos em que efetivamente não foram preenchidos os requisitos de admissibilidade, devem negar conhecimento ao recurso. Essa foi a opção do sistema processual pátrio, e deve ser respeitada. Mas tal maneira de agir não se confunde com o formalismo excessivo, em que a forma do ato é colocada acima de tudo e de todos, com o simples e injustificável propósito de eliminar o processo judicial a qualquer custo. 5. O FORMALISMO EXEGERADO DOS TRIBUNAIS E O DESRESPEITO AO ACESSO À JUSTIÇA Como foi até o momento salientado, o formalismo do ato é algo cujo distanciamento do processo civil não se consegue vislumbrar. E, frise-se, não se pretende com as breves linhas aqui expostas defender a desconsideração da forma no processo civil. Tal pretensão importaria num verdadeiro retrocesso. Todavia, não se pode aceitar seja o formalismo colocado num pedestal e passe a ser considerado o que há de mais importante em todo e qualquer processo judicial. Não se pode

22

Com a reforma promovida pela Lei nº 9.756/98, que inseriu o §2º ao art. 511, do CPC.


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aceitar o formalismo exagerado, pois ele significa o desrespeito à garantia constitucional do acesso à justiça. E, nas considerações abaixo, buscar-se-á demonstrar como os tribunais vêm exagerando no apego à forma. Mínimos detalhes, absolutamente irrelevantes e perfeitamente superáveis, vêm merecendo tratamento de destaque, a ponto de estarem motivando diretamente o desate da lide. Voltando aos três requisitos de admissibilidade anteriormente abordados, abre-se a sessão dos formalismos exagerados com os abusos frequentemente cometidos no tocante à tempestividade recursal. Na verdade, dois aspectos têm mais chamado a atenção nos julgamentos dos tribunais, relativamente ao equivocado excesso de forma que vem sendo sustentado quanto à tempestividade do recurso. O primeiro aspecto diz respeito ao entendimento, estranhamente encontrado na jurisprudência, de que, uma vez interposto o recurso antes de a parte ser intimada da decisão contra a qual recorre, seria o mesmo considerado intempestivo por prematuridade. Ora, com o devido respeito, como considerar o recurso intempestivo em tais situações? Estaria o recorrente, então, sendo punido por querer se antecipar e, com isso, buscar promover maior celeridade ao feito? O Supremo Tribunal Federal, em algumas oportunidades, já se manifestou nesse sentido, como pode ser observado, a título de exemplo, no julgamento ocorrido no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 558.168, cujo relator foi o Min. Cézar Peluso23. Em tal julgamento foi afirmado que, embora tivesse o recorrente tomado conhecimento da decisão antes de sua publicação (via acompanhamento eletrônico), não teria ela tido acesso às “razões de decidir, sem cujo conhecimento não se concebe o recurso adequado”24. Parece muito evidente que, uma vez tendo a decisão (aqui abordada em sentido amplo) se tornado pública (e, para isso, basta que esteja assinada e anexada aos autos), nada impede que a parte que se sinta prejudicada com tal ato judicial queira interpor desde logo o seu recurso25.

23

Ag. Reg no AI nº 558.168, 1ª Turma do STF, relator Min. Cézar Peluso, publicado no D.J. de 24.03.2006. No caso em apreço, pareceu agir o tribunal com excessivo rigor também quando condenou o recorrente na multa por deslealdade processual, em virtude de sua insistência em ver apreciado o recurso “intempestivo”. 25 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Tempestividade dos recursos. Revista Dialética de Direito Processual, nº 16, jul/2004. 24


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O Superior Tribunal de Justiça, em que pese o julgamento havido nos Embargos de Divergência nº 522.24926, continua entendendo que o recurso interposto antes do prazo deve ser considerado intempestivo por prematuridade, como pode ser observado no julgamento dos Embargos de Declaração nº 1.016.32727. Não há que se exigir, na hipótese, a efetiva intimação da parte (normalmente, via publicação em Diário Oficial) para que se tenha a comprovação de que houve a adequada ciência da decisão judicial, e, somente com isso, permitir-se a interposição do recurso. Ainda na seara da intempestividade por prematuridade, merece destaque o posicionamento bastante difundido nos tribunais superiores, acerca da interposição de recurso (especial ou extraordinário) antes do julgamento dos embargos de declaração28. Em tal hipótese, tem sido reconhecida a intempestividade do recurso (em razão da sua interposição antes do prazo), ao argumento de que “o acórdão dos aclaratórios passa a integrar o aresto embargado, formando, assim, a decisão de última instância, prevista na Constituição Federal”29. Ocorrendo a situação acima narrada, tem sido exigido do recorrente (para que não se tivesse o juízo de admissibilidade negativo por intempestividade), diante da intimação do julgamento dos embargos de declaração, a ratificação dos termos do recurso anteriormente interposto.

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EAg nº 522.249, Corte Especial, relator Min. José Delgado, publicado no D.J. de 04/04/2005, cuja ementa é a seguinte: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. RECURSO INTERPOSTO ANTES DE PUBLICADA A DECISÃO RECORRIDA. INTEMPESTIVIDADE. PUBLICAÇÃO, ATO INDISPENSÁVEL. EXTEMPORANEIDADE. PRECEDENTES. ENTENDIMENTO DO RELATOR. NOVA POSIÇÃO DA CORTE ESPECIAL DO STJ. TEMPESTIVIDADE DO RECURSO. 1. A extemporaneidade de um recurso não se caracteriza apenas por sua interposição após o término do prazo recursal, mas, também, pela apresentação em data anterior à efetiva intimação das partes interessadas a respeito do teor da decisão a ser combatida. 2. A publicação da decisão que se pretende recorrer é ato indispensável para ensejar e justificar a interposição de novo recurso, sendo intempestivo o recurso manejado antes da publicação das conclusões do aresto no Diário da Justiça (STF, AG nº 187448-1/SP e AGAED nº 242842/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa). Precedentes de todas as Turmas e da Corte Especial deste Tribunal Superior. Entendimento deste Relator com base em precedentes desta Casa Julgadora. 3. No entanto, embora tenha o posicionamento acima assinalado, rendo-me, ressalvando meu ponto de vista, à posição assumida pela maioria da Corte Especial deste Sodalício, pelo seu caráter uniformizador no trato das questões jurídicas no país que, com base em recente decisão (EResp 492461/MG), datada de 17/11/2004, consignou que a interposição de recursos contra decisões monocráticas ou colegiadas proferidas pelo STJ pode, a partir de agora, ser realizada antes da publicação dessas decisões na imprensa oficial. 4. Embargos de divergência acolhidos.” 27 EDcl no AgRg no Ag nº 1016327, 5ª Turma do STJ, relator Min. Jorge Mussi, publicado no D.J. do dia 10/11/2008, que possui a seguinte ementa de julgamento: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.OPOSIÇÃO ANTES DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. EXTEMPORANEIDADE. 1. É entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que os embargos de declaração opostos antes da publicação do acórdão recorrido é intempestivo. 2. Embargos de declaração não conhecidos.” 28 Cf. SICA, Heitor Vitor Mendonça. Recurso intempestivo por prematuridade? In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins – vol. 11 (coordenação Nelson Nery Jr. , Teresa Arruda Alvim Wambier). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 29 Resp nº 706.998, 4ª Turma do STJ, relator Min. Cesar Asfor Rocha, publicado no D.J. de 23.05.2005.


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Aqui também se constata uma situação em que a forma se coloca como verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça. Somente se consegue vislumbrar algum sentido na exigência de “ratificação” posterior nas hipóteses em que a própria parte opôs embargos de declaração e, antes do julgamento deste, já interpôs, por exemplo, o recurso especial. E, ainda assim, a pertinência da ratificação apenas seria constatada quando o resultado do julgamento dos embargos vier a provocar alteração na parte anteriormente atacada pelo recurso excepcional. É o que Nelson Nery Jr. denomina de “princípio da complementaridade”30. Todavia, quando a parte que opôs os aclaratórios não foi aquela que desde logo apresentou o recurso para os tribunais superiores – mormente quando o resultado do julgamento dos embargos de declaração não provocou qualquer alteração no conteúdo atacado previamente – não há que se falar em exigência de “ratificação” e nem, obviamente, em intempestividade por prematuridade. E ainda relativamente à tempestividade, outro ponto que chama a atenção no excesso de formalismo praticado pelos tribunais, em flagrante prejuízo do acesso à justiça, pode ser constatado naqueles casos em que o recurso deixa de ser admitido em razão de estar o carimbo de sua interposição supostamente ilegível. Os argumentos utilizados por aqueles que prestigiam tal formalidade excessiva é de que, em suma, deve o recorrente zelar para que as formalidades sejam devidamente cumpridas, incluindo-se aí a devida atenção quanto à “legibilidade”31 do carimbo protocolo32. E, mais uma vez, a supremacia do formalismo se apresenta de maneira extremamente negativa, jogando por terra a adequada apreciação do direito material envolvido na demanda, seguindo na contramão dos atuais propósitos do direito processual moderno. O pior é que tais julgamentos, além de mostrarem-se equivocados no instante em que jogam sobre o recorrente a incumbência de “fiscalizar” o cumprimento das formalidades (como se “checar o carimbo” fosse sua obrigação), bem como o dever de diligenciar para provar que cumpriu com tais formalidades, sequer conferem à parte a oportunidade de demonstrar a inexistência de qualquer irregularidade. Preferem simplesmente não julgar o 30

NERY JR., Nelson. Op. cit. p. 182. Como destaca Barbosa Moreira, “o conceito mesmo de ‘legibilidade’ é relativo: dependendo da acuidade visual do observador, e até a atenção com que este o mira, será possível qualificar de legível ou de ilegível determinado documento” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Op. cit. p. 276). 32 Em recente acórdão acerca da matéria, proveniente de julgamento ocorrido no Superior Tribunal de Justiça, o relator do caso, Min. João Otávio de Noronha, sustentou que “incumbe à parte recorrente fiscalizar para que os atos sejam praticados com respeito às formalidades exigidas ou diligenciar no sentido de obter as informações necessárias ao exame de sua pretensão, inclusive por meio de requerimento de certidões aos cartórios” (Ag. Reg. No AI nº 1139065, 4ª Turma do STJ, relator Min. João Otávio Noronha, publicado no D.J. de 15.06.2009). 31


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mérito recursal, tomando por base mera suposição de intempestividade, como se isso fosse possível para se chegar ao juízo negativo de admissibilidade do recurso33. É recomendável, outrossim, por se tratar de matéria relativa a “prazo”, que o julgador oriente-se pela interpretação mais flexível, buscando sempre conferir ao processo maior efetividade, de modo que certas formalidades nunca devem ser utilizadas para impedir a proteção de um dado direito. Problema que também se mostra como um exemplo frequente do equivocado prestígio conferido ao formalismo ocorre relativamente ao requisito da regularidade formal do recurso de agravo de instrumento, seja aquele interposto contra as decisões interlocutórias de primeiro grau, seja aquele manejado contra a decisão que inadmite o recurso especial ou o recurso extraordinário. Como bem se sabe, a legislação exige, para a devida formação do instrumento, sejam juntadas determinadas peças “obrigatórias”, que são taxativamente estabelecidas pelo legislador nos artigos 525 e 544, §1º, ambos do Código de Processo Civil, respectivamente quanto ao agravo contra decisões de primeira instância e contra decisões de inadmissibilidade de recurso especial e/ou extraordinário. Todavia, os tribunais vêm exigindo, ao arrepio da lei – o que acaba causando forte insegurança nas partes – sejam também juntadas pelo recorrente, sob pena de inadmissibilidade do recurso, algumas peças “necessárias”, que são aquelas que, sujeitando-se ao puro arbítrio do julgador, mostram-se como importantes para a compreensão e julgamento da matéria. O Superior Tribunal de Justiça vem se posicionamento seguidamente acerca inadmissibilidade do agravo quando não instruído com as tais “peças necessárias”. Assim é que, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 1.111.496, foi 33

E como normalmente se constata em tais situações, a “ilegibilidade do carimbo” não apenas serve de motivo para a não admissão do recurso por intempestividade, como também para que se tenha considerada descumprida a norma que impõe a juntada de peças obrigatórias para a formação do agravo de instrumento contra a decisão que inadmitiu o recurso. Para tanto, basta ver a seguinte ementa de julgamento, que retrata o problema: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. PETIÇÃO DE INTERPOSIÇÃO DO ESPECIAL. AUTENTICAÇÃO MECÂNICA OU CARIMBO DO PROTOCOLO ILEGÍVEL. APLICAÇÃO DA MULTA DO ARTIGO 557, § 2º DO CPC. 1. Agravo de instrumento. Protocolo do recurso especial ilegível: revela-se deficiente o instrumento do agravo dirigido ao Superior Tribunal de Justiça quando do traslado da petição de interposição do recurso especial não consta, ou está ilegível, a autenticação mecânica ou carimbo do protocolo, impedindo, assim, a aferição da tempestividade do apelo. 2. Formação do agravo de instrumento. Obediência ao artigo 544, § 1º do CPC: a juntada posterior de peça obrigatória, ausente no instrumento do agravo, não supre a deficiência deste, competindo ao agravante zelar por sua correta formação ante a ocorrência da preclusão consumativa. O juízo de admissibilidade do Recurso Especial está sujeito a duplo controle. Assim, a aferição da tempestividade do apelo pela instância a quo não vincula este Superior Tribunal de Justiça. 4. Embargos declaratórios recebidos como agravo regimental ao qual se nega provimento.” (EDcl no Ag. nº 850.836, 4ª Turma do STJ, relator Min. Luiz Felipe Salamão, publicado no D.J. de 15.06.2009)


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sustentado que o recurso “deve ser instruído com as peças constantes no artigo 544, § 1º, do Código de Processo Civil, bem como aquelas essenciais à compreensão da controvérsia, inclusive as necessárias para a aferição da tempestividade recursal”34. O Supremo Tribunal Federal há muito segue no mesmo sentido, tanto que duas de suas súmulas tratam especificamente sobre o tema. A primeira (Súmula 288) prevê que “nega-se provimento a agravo para subida de recurso extraordinário, quando faltar no traslado o despacho agravado, a decisão recorrida, a petição de recurso extraordinário ou qualquer pela essencial à compreensão da controvérsia”35. Ainda no STF, a Súmula 639 estabelece que “aplica-se a súmula 288 quando não constarem do traslado do agravo de instrumento as cópias das peças necessárias à verificação da tempestividade do recurso extraordinário não admitido pela decisão agravada”. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não discrepa do entendimento anteriormente exposto e, por meio de sua Súmula 104, pacificou a sua jurisprudência no sentido de que “o agravo de instrumento, sob pena de não conhecimento, deve ser instruído, no ato de sua interposição, não só com os documentos obrigatórios, mas também com os necessários a compreensão da controvérsia, salvo justo impedimento”. Por se tratar de requisito de admissibilidade, indispensável se mostra que a matéria venha expressamente regulada em lei, sob pena de se colocar a parte em posição de extrema insegurança. Ademais, é extremamente subjetivo saber quais são, em cada caso concreto, as “peças necessárias” ou “essenciais”. Deixar que o julgador as defina livremente em cada hipótese é conferir-lhe indevido arbítrio, que em nada contribui para que se alcance o justo resultado da demanda. Como alento, já se verifica que, em alguns casos (isolados, é certo) os tribunais vêm permitindo, em prol do direito da parte, uma flexibilização da regra que exige a juntada das peças obrigatórias. Assim é que, bem andou o Superior Tribunal de Justiça, quando decidiu que “embora a certidão de publicação da decisão agravada constitua peça obrigatória na

34

Ag. Reg. no Ag. nº 1111496, 3ª Turma do STJ, relator Min. Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), publicado no D.J. de 10.06.2009. 35 Além da exigência descabida, peca ainda a referida súmula ao estabelecer que ao recurso será “negado provimento” caso se constate a falta de alguma peça essencial. Como se sabe, trata a hipótese de juízo de admissibilidade, de modo que sendo o mesmo negativo, não há que se falar em ser “negado provimento” (que corresponde ao julgamento de mérito do recurso), mas sim de “não conhecimento” ou “inadmissibilidade”.


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instrução do agravo de instrumento (art. 525 do CPC), a sua ausência pode ser relevada quando patente a tempestividade do recurso”36. Ainda no campo do requisito da regularidade formal – analisando-se hipóteses em que os tribunais, de forma equivocada e inaceitável, vêm deixando de conhecer o recurso por exigir o respeito a certos formalismos exagerados – cumpre destacar a situação em que tal inadmissibilidade decorre da ausência de assinatura do advogado na petição de recurso. Não se discute que todas as petições formuladas no processo precisam ser devidamente assinadas pelo advogado, sob pena de invalidade (ou inexistência, como querem alguns) do ato processual praticado. Por evidente, não se está aqui pregando a desconsideração de tal regra, ou de tal formalismo. Todavia, o que não pode ser aceito é que, uma vez sendo interposto um recurso sem a devida assinatura do advogado do recorrente, seja em tal hipótese inadmitido o referido recurso de plano, sem ser conferida à parte a oportunidade de sanar o vício até então existente. Trata-se de caso em que o vício pode ser perfeitamente sanado, sem que isso esteja causando qualquer tipo de prejuízo ao bom andamento do processo e ao direito de defesa da parte contrária, de modo que agir com tal rigor apenas serve para que o direito discutido na ação seja aniquilado pelo formalismo exagerado. No entanto, mostrando-se insensíveis com a situação acima exposta, a maioria dos julgados vem se posicionando no sentido de que, em sede de recursos para os tribunais superiores, não há que se admitir (em hipótese alguma) a interposição de recurso sem que a petição esteja devidamente assinada. Apenas a título de ilustração, vale mencionar acórdão recente, oriundo do Superior Tribunal de Justiça, em que foi expressamente reconhecida a possibilidade da correção da irregularidade apenas enquanto o processo se encontrar em primeiro grau ou diante do julgamento na instância ordinárias. Em outras palavras, caso o processo já se encontre nas instâncias extraordinárias, não há mais qualquer possibilidade de ser corrigido o vício em apreço37. Aliás, o próprio Superior Tribunal de Justiça já uniformizou a sua jurisprudência acerca do tema, sendo certo que a Súmula 115 estabelece que “Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos”.

36

REsp nº 573.065, 4ª Turma do STJ, relator Min. Fernando Gonçalves, publicado no D.J. de 26.04.2004. AgRg no REsp 1091955, 2ª Turma do STJ, relator Min. Mauro Campbell Marques, publicado no D.J. de 18.08.2009. 37


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No entanto, não há qualquer razão para que se tenha um julgamento dessa forma. Não há explicação, minimamente razoável que seja, para que se tenha a possibilidade de sanar o vício até quando o feito se encontrar em segundo grau de jurisdição e, por outro lado, seja retirada tal possibilidade quando o processo já se encontrar diante dos tribunais superiores. A punição imposta ao recorrente que cometeu o vício é absolutamente desproporcional, mormente se for levado em consideração que tal irregularidade foi incapaz de causar qualquer prejuízo para a parte contrária. Por fim, merece destaque os casos em que o rigor formal excessivo provoca um juízo de admissibilidade negativo em razão do não recolhimento do preparo (inclusive do porte de remessa e de retorno) devido pela interposição do recurso. Como se sabe, diante da redação do caput do art. 511, do Código de Processo Civil, o preparo deve ser comprovado no ato de interposição do recurso, sob pena de se ter configurada a deserção, na medida em que o ato de recorrer engloba também a comprovação do pagamento do preparo. No entanto, o próprio Código de Processo Civil promoveu uma flexibilização em tal norma ao permitir, no §1º do mesmo art. 511, que o preparo seja complementado na hipótese de ter sido feito de forma insuficiente. Assim, não se mostram acertadas – por supervalorizarem o formalismo processual – as reiteradas decisões que consideram que o preparo feito após a interposição do recurso, ainda que dentro do prazo recursal, não impede a ocorrência da deserção38. Com efeito, não é razoável que se tenha a possibilidade de promover a complementação das custas nos casos de insuficiência do pagamento do preparo (art. 511, §1º, Código de Processo Civil), e não se tenha a mesma garantia nas hipóteses em que o comprovante do preparo é apresentado após a interposição do recurso, porém dentro do prazo recursal. Na verdade, em termos de retardamento do feito, muito mais prejudicado ficará o andamento do processo com a intimação do recorrente para promover o complemento das custas do que nos casos em que se aceite a juntada do comprovante do preparo após a interposição do recurso, desde que dentro do prazo recursal. Aliás, nesta última hipótese, sequer haverá retardamento no andamento do processo, vez que o prazo que a parte teria para recorrer estará apenas sendo devidamente respeitado em sua integralidade. 38

Como exemplo, cf. AgRg no REsp nº 417.510, 3ª Turma do STJ, relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito, publicado no D.J. de 02/09/2002. Ademais, mesmo para aqueles recursos interpostos no período de férias forenses, entende-se que o comprovante do preparo deve ser apresentado no ato da interposição, como observa, a título de exemplo, no julgamento do REsp nº 556.967, 3ª Turma do STJ, relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito, publicado no D.J. de 17/12/2004.


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Destarte – e embora tenha ocorrido ainda sob a vigência da anterior redação do art. 511, do Código de Processo Civil – com muito mais atenção à garantia do acesso à justiça posicionou-se o julgado em que se reconheceu não ser possível que “o ato administrativo que se reveste o preparo se sobreponha ao direito ao recurso, cujo prazo a lei processual não diminuíra”39. Eis aí um entendimento que, sem demonstrar excessivo apego à forma, apoiouse no formalismo de maneira acertada, preservando, ao mesmo tempo, a segurança e a previsibilidade na prática dos atos, bem como o garantia do acesso à justiça. 6. CONCLUSÃO Diante do que foi visto no presente estudo, algumas conclusões podem ser alcançadas: 1)

O formalismo processual deve ser encarado como algo capaz de organizar e definir limites no desenvolvimento dos processos judiciais, colocando termo a uma eventual desordem que a pura liberdade na prática dos atos processuais poderia acarretar.

2)

O formalismo processual se apresenta como um instrumento que jamais pode ser desprezado, pois, na medida em que proporciona segurança, ordenação e previsibilidade ao procedimento.

3)

Todavia, tal ideia de formalismo não pode ser distorcida, vista e aplicada de maneira exagerada, pois, assim, estará sendo diretamente afrontada a garantia do acesso à justiça.

4)

A necessidade de se respeitar o formalismo no processo civil também é constatada em sede recursal, com a existência de inúmeras regras que visam manter organizado o procedimento, bem como objetivam propiciar segurança e igualdade de tratamento aos litigantes.

5)

Não pode ser desconsiderado o fato de que, por vezes, mostra-se imperiosa a valorização da celeridade processual, até mesmo para que tenha respeitada a garantia constitucional da razoável duração do processo. Mas tal celeridade não pode ser obtida por vias impróprias.

6)

No entanto, o que se percebe é que os tribunais, mormente quanto a questões de forma dos recursos, têm agido de maneira absolutamente equivocada. Em muitos

39

julgamentos

são

extremamente

valorizadas

certas

REsp nº 94204, 3ª Turma do STJ, relator Min. Waldemar Zveiter, publicado no D.J. de 26/05/1997.

filigranas


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processuais – que, muitas vezes, sequer estão lastreadas em normas legais – em detrimento do direito subjetivo em jogo. 7)

Com isso, os tribunais pátrios vêm “criando” obstáculos processuais ilegítimos, com o único propósito de “encerrar processos”, sem a mínima preocupação com a qualidade do julgamento promovido.

8)

Em prol da melhor solução do litígio, é necessário que o formalismo não seja valorizado de maneira exagerada, devendo, em certas hipóteses, ser permitida a flexibilização da forma para que se alcance um justo resultado da demanda posta em julgamento.

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COMENTÁRIO CONTEXTUAL AO PARECER DO PROFESOR JOSÉ AFONSO DA SILVA A RESPEITO DO ARTIGO 4º., INCISO V E § 6º., DA LEI COMPLEMENTAR Nº. 80/1994, MODIFICADA PELA LEI COMPLEMENTAR Nº. 132/2009 Rogério Nunes de Oliveira

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I – PREMISSAS E CONCLUSÕES INICIAIS DO PARECER

O Conselho Federal da OAB arquitetou ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº. 4636/DF, de 01.08.2011, Rel. Min. Gilmar Mendes) para ver fulminada a valia constitucional de parte do inciso V (com interpretação conforme, suprimindo-se da redação original o lexema “jurídicas”) e da totalidade do § 6º. da Lei Complementar nº. 80/1994, com alterações introduzidas pela Lei Complementar nº. 132/2009. A ação constitucional foi instruída com parecer encomendado ao festejado Professor José Afonso da Silva, e, em essência, reproduz as mesmas impressões hermenêuticas e postulações teóricas reivindicadas pelo ilustre parecerista. Proponho-me a avaliar, contextual e criticamente, a opinião esboçada para embasar a arguição concentrada de inconstitucionalidade, de modo a pluralizar o debate acerca da matéria e ofertar uma singela contribuição para melhor equacioná-la. Observe-se que o opinante, já nas primeiras linhas do parecer, estabeleceu liminarmente duas premissas reputadas indispensáveis às conclusões que visou a alcançar. Tais premissas, de que realmente dependem as inferências postuladas, são as seguintes: 1ª. premissa. A Defensoria Pública teria destinação específica e predeterminada constitucionalmente, qual fosse a de prestar orientação jurídica e defesa judicial e extrajudicial aos “necessitados”, ex vi dos artigos 5º., inciso LXXIV, e 134 da Constituição da República, de sorte que qualquer atribuição ou função que lhe fosse cometida “fora desse parâmetro” revelar-se-ia incompatível com sua missão constitucional. Isso, palavras do parecerista, seria dizer que “se não houvesse necessitados, também não haveria Defensorias Públicas”, donde ver-se que a primeira premissa é menos tautológica do que retórica. Afinal, ponderou Feu Rosa: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV)”, o que equivale a dizer: obrigação de prestar assistência jurídica gratuita ‫٭‬

Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Relações Privadas e Constituição Federal. Especialista em Direito Civil-Constitucional e em Direito Processual Civil. Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da UNIFLU.


2 integral a noventa e cinco por cento da população brasileira, pois se noventa por cento não têm recursos nem para a subsistência, os restantes cinco por cento não possuem recursos suficientes para promoverem ações judiciais.1

Nota-se, de pronto, que a primeira premissa não é tanto aquilo que devia, e que se dispôs a ser (“algumas considerações, a título de premissa”) do que uma conclusão predisposta, subjacente à superfície textual do parecer, que se pretende universalmente aceita e de elementar e difuso conhecimento. Em outras palavras, supôs-se como incontroversa uma asserção teórica polêmica e nada consensual, que tem suscitado diversas opiniões dissidentes.2 Tem-se, assim, que o preclaro parecerista pressupôs como provado in limine algo de que deveria se desincumbir de demonstrar para apoiar suas conclusões. 2ª. premissa. A proposição final, apresentada, por igual, “a título de premissa”, proclama que “os Defensores Públicos são advogados”, e deveriam “ficar sob a disciplina da Advocacia estabelecida em seu Estatuto”, pois não seria dado a ninguém, “por princípio, procurar em juízo sem a devida inscrição na Entidade da Advocacia”. A última premissa, ao lado de lançar mão do mesmo expediente usado na primeira – considerar aceita, “por princípio”, a tese que deveria ser provada para fundamentar as conclusões pretendidas – veiculou uma ilação fortemente extrema, capaz de deflagrar um variado rosário de dúvidas. Ora, se “os Defensores Públicos são advogados”, seria correto afirmar que: (a) “os advogados são Defensores Públicos”? Em caso negativo, somente uma dedução surpreender-se-ia compatível com a premissa: (b) “todos os Defensores Públicos são advogados, mas nem todos os advogados são Defensores Públicos”. Na segunda al-

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ROSA, Antônio José Miguel Feu. Curso de Direito Constitucional – Constituição de 1988, 1ª. Edição. Rio de Janeiro: Didática Científica, 1990, p. 257. 2 Cf., por exemplo, entre muitos outros: SOUZA, Rogério de Oliveira. A Hipossuficiência. Texto disponibilizado no Banco de Conhecimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 18.07.2008 (www.tjrj.jus.br. Acesso em 18.02.2009); SILVA, Ticiano Alves e. Procedimento para a concessão do benefício da justiça gratuita às pessoas jurídicas com e sem fins lucrativos (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp. Acesso em 17.07.2009); GRINOVER, Ada Pellegrini. Acesso à Justiça e o Código de Defesa do Consumidor. O Processo em Evolução. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 116; SOARES, Fábio Costa. Acesso do Hipossuficiente à Justiça. A Defensoria Pública e a Tutela dos Interesses Coletivos Lato Sensu dos Necessitados. Acesso à Justiça. Raphael Augusto Sofiati de Queiroz (organizador) et al... Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 69-107; GARCIA, José Augusto. Solidarismo Jurídico, Acesso à Justiça e Funções Atípicas da Defensoria Pública: A aplicação do Método Instrumentalista na Busca de Um Perfil Institucional Adequado. Revista de Direito da Defensoria Pública. Rio de Janeiro, ano 15, nº. 19, 2004, p. 215-258; MUNIZ, Cibele C. Baldassa Muniz. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, nº. 77, mar/abr. 2009, p. 331-341.


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ternativa, os advogados desfrutariam de todas as funções e prerrogativas dos Defensores Públicos, embora o contrário não fosse verdadeiro.3 A ilustração dessas alternativas, que se excluem mutuamente, é esta:

(a)

(b)

advogados e

advogados OU

Defensores Públicos

Defensores Públicos

A pressuposição de que “os Defensores Públicos são advogados” não toleraria qualquer alternativa diferente, pois de duas uma: (a) “os advogados são Defensores Públicos”, de forma que ambos seriam espécies do mesmo gênero; ou (b) “todos os Defensores Público são advogados, mas nem todos os advogados são Defensores Públicos”, hipótese em que estes seriam subespécies ou espécies de um gênero mais amplo, munido de prerrogativas e funções caracteristicamente mais abrangentes. A aceitação da última premissa predisposta, por razões mais lógicas do que propriamente jurídicas, obrigaria a escolha de uma, e somente uma das alternativas: (a) advogados e Defensores Públicos pertencem à mesma classe, e não há qualquer diferença entre uns e outros; ou (b) os Defensores Públicos são espécies ou subespécies contidas na classe continente dos advogados. Não é ocioso relembrar que aquele que porventura sentir-se inclinado a perfilhar integralmente e sem ressalvas a segunda premissa do parecer – “os Defensores Públicos são advogados” – não poderá joeirar simultaneamente as alternativas (a) e (b), pois a escolha de uma implica logicamente a exclusão da outra. As alternativas (a) e (b) podem ser falsas, mas ambas não podem ser verdadeiras. É que qualquer opção diferente elidiria a segunda premissa formulada pelo parecer, e, de quebra, acarretaria resultados de plausibilidade rarefeita, quando não para-

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Utilizo as designações “Defensores Públicos” e “advogados” com letras maiúsculas e minúsculas, respectivamente, pelo fato de o parecer também tê-las utilizado assim.


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doxais, sintetizados na alternativa seguinte: (c) os “Defensores Públicos são ao mesmo tempo advogados e Defensores Públicos”. É o que ilustra o diagrama abaixo:

Defensores Públicos e advogados

Defensores Públicos

A tentativa de condensar as alternativas (a) e (b) causaria a desarrazoada conclusão (c), segundo a qual os Defensores Públicos seriam ao mesmo tempo gênero e espécie, de que se seguiria uma indefensável violação aos princípios da identidade e da não-contradição. Tenho para mim razões bastante convincentes para afirmar, de antemão, que os Defensores Públicos, posto comunguem de funções e prerrogativas assemelhadas às dos advogados, constituem gênero essencialmente distinto. Mais à frente, em tópico próprio, demonstrarei o porquê dessa asserção, e em que fundamentos ela se baseia. Interessa mais, neste passo, expor outra incorreção de que padece a segunda e última premissa do parecer, apontada como crucial para as conclusões que pretendeu alcançar. Sem embargo das inevitáveis e tenebrosas consequências lógicas da radical afirmação de que “os Defensores Púbicos são advogados”, a argumentação trançada para sustentá-la não passa de uma petição de princípio, já que a conclusão reivindicada (“os Defensores Públicos são advogados”) foi utilizada como fundamento dela própria (“advogado é a pessoa que tem capacidade postulatória, em juízo” e “só o advogado pode postular em juízo”).4 Em outras palavras, a dedução formulada tenta provar-se com um raciocínio circular, que pretende validar-se apelando à mesma inferência deduzida, sem “nenhum outro fundamento além da própria conclusão que dela se quis tirar e para a qual essa 4

COPI, Irving Marmer. COPI, Irving Marmer. Introdução à Lógica. Tradução de Álvaro Cabral. 2ª. Edição. São Paulo: Mester Jou, 1978, p. 84.


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premissa constituiria um elo indispensável para o raciocínio”.5 Em caso de dúvida, ou de ceticismo, basta comparar o argumento apresentado no parecer com outro estritamente similar, cujas premissas, todavia, sejam abertamente inaceitáveis. Por exemplo:

Os Defensores Públicos têm asas Todos os que têm asas podem voar Logo, os Defensores Públicos podem voar

Os Defensores Públicos têm capacidade postulatória Todos os que têm capacidade postulatória são advogados Logo, os Defensores são advogados Não por menos o circulus in demonstrando6 é um recurso retórico utilíssimo, ao qual, desde os primórdios da civilização, tem-se recorrido em debates judiciários e julgamentos públicos. Górgias, em seu afamado Discurso de Helena, valeu-se de estratagema similar no afã de provar, per fas et per nefas, a inocência da beldade grega: Pois, ou por desígnio da Sorte, decisão dos deuses e decreto da Necessidade ela fez o que fez, ou foi por força raptada, ou então por discurso persuadida, ou por amor conquistada. Se foi pelo primeiro motivo, é digno de ser acusado o que a acusa; pois um divino propósito com humana providência é impossível impedir. Pois o natural não é o mais forte pelo mais fraco ser impedido, mas o mais fraco pelo mais forte ser governado e conduzido, o mais forte conduzir e o mais fraco seguir. Ora, deus é mais forte que homem, em força, em sabedoria e em outras coisas. Se portanto à Sorte e à divindade se deve atribuir a acusação, deve-se absorver da infâmia Helena.

Enfim, o fato é que são essas – e somente essas – as premissas que ofertam subsídios teóricos ao parecer que serviu de motivo e pretexto para o ajuizamento da ADI nº. 4636/DF, que visa à declaração de inconstitucionalidade de parte do inciso V e da totalidade do § 6º., ambos do artigo 4ª. da Lei Complementar nº. 80/1994, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº. 132/2009.

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PERELMAN. Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 127. 6 O qual, segundo Douglas Walton, é o raciocínio “que persegue o próprio rabo” (WALTON, Douglas N. Lógica Informal. Tradução de Ana Lúcia R. Franco e Carlos A. L. Salum. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72).


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II – INCONSTITUCIONALIDADE CALCADA EM VIOLAÇÃO REFLEXA DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL?

É muito estranho, convenha-se, inquinar de inconstitucional uma norma por supô-la em aparente contradição com outra norma de igual estatura infraconstitucional. Mas, em essência, a fundação teórica da alardeada inconstitucionalidade do artigo 4º., inciso V e § 6º., da Lei Complementar nº. 80/1994 não remonta a outra coisa que não à pretensa incompatibilidade desses dispositivos com a Lei nº. 8.906/1994, e, por via reflexa, com os artigos 5º., inciso LXXIV, 133 e 134 da Constituição Federal, nos termos pontuados pelas premissas fixadas ab initio pelo parecer em comento. Sinto-me embaraçado por dizer o óbvio, apesar de ver-me constrangido a fazêlo, doa em quem doer. Afinal, como ponderou Hubert Humphrey, “o direito a ser ouvido não inclui o direito de ser levado a sério”. Desse modo, é ponto consensual, senão intuitivo, que, na acepção material: O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição.7

Dito de outro modo, “a ação direta de inconstitucionalidade não é instrumento hábil para controlar a compatibilidade de atos normativos infralegais em relação à lei a que se referem”,8 por tratar-se de “uma finalidade de legislador negativo do Supremo Tribunal Federal, nunca de legislador positivo”.9 Em tais condições, a arguição de inconstitucionalidade pressupõe ofensa direta ao texto constitucional, o que, no mais, e de resto, é de uma obviedade pungente. Muito bem. Os artigos da Lei Complementar nº. 80/1994 que o parecer reputa padecentes do ranço de inconstitucionalidade são os seguintes: Art. 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor das pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordiná7

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª. Edição. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 49. 8 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2002, p. 612. 9 Ibidem, p. 618.


7 rias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses; § 6º. A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público.

E os dispositivos constitucionais que se crêem ofendidos são estes: Art. 5º. (...) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º., LXXIV. § 1º. Lei Complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. § 2º. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

Nesse contexto, primeiramente, o opinante proclama convictamente que o inciso V do artigo 4ª. da Lei Complementar nº. 80/1994 “vai para além das funções constitucionais da Defensoria Pública, havendo aí nítida inconstitucionalidade sem possibilidade de saneamento”, porquanto, palavras dele, “não é preciso muito esforço para concluir que o conceito de pessoa necessitada só se aplica a pessoa natural, jamais a pessoa jurídica” (SIC). Consequentemente, “a amplitude como está formulado o dispositivo com certeza vai para além das balizas em que se situam as funções constitucionais das Defensorias Públicas” (SIC), de sorte que “só as pessoas naturais necessitadas que comprovarem insuficiência de recurso para pagar custas processuais e honorários advocatícios, sem prejuízo do próprio sustento e do sustento de sua família, têm o direito à


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prestação dos serviços das Defensorias” (SIC), daí resultando maltrato aos artigos 5º., inciso LXXIV, e 134 da Lei Fundamental do Brasil. Relativamente ao § 6º. da Lei Complementar nº. 80/1994, o parecer acentua que “temos que partir daquela premissa posta no início deste parecer, ou seja, os Defensores Públicos são advogados e, como tal, ficam sujeitos à disciplina da Advocacia em seu Estatuto” (SIC). Mas, afinal, por que “os Defensores Públicos são advogados”? O parecer assegura que “a resposta não requer grandes cogitações, porque basta dizer: o advogado é a pessoa que tem capacidade postulatória em juízo”. Assim, esse dispositivo da Lei Complementar nº. 80/1994 seria falto de valia constitucional “porque ofende princípios universais do direito de postular em juízo, princípio universal em dois sentidos: porque em todo o mundo é assim, e porque ninguém pode exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal sem inscrição em sua entidade de classe”. Não obstante a resoluta opinião esboçada no parecer, muito esforço e colossais cogitações são necessárias para entender de que modo o inciso V e o § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 contrariam diretamente a Constituição Federal. É que os artigos 5º., inciso LXXIV, 133 e 134 da Lei Fundamental não jungiram o exercício válido e constitucionalmente autorizado das funções institucionais da Defensoria Pública exclusivamente à orientação e defesa das “pessoas naturais necessitadas”. O que fez o texto constitucional foi garantir assistência jurídica integral e gratuita aos que “comprovarem insuficiência de recursos”, e incumbir a Defensoria Pública do múnus de orientar e defender os “necessitados”. O que não requer esforço algum é perceber que a flexão “aos” – empregada na redação do artigo 5º., inciso LXXIV, da Constituição Republicana – vale ali por “àqueles” (contração da preposição “a” com o pronome demonstrativo neutro “o”), com conotação semântica claramente associada ao pronome indefinido “todos”. Bem pesado e bem medido, nenhum dos dispositivos constitucionais conjurados restringe expressamente a execução das funções institucionais da Defensoria Pública unicamente em prol dos interesses das “pessoas naturais necessitadas”, ilação igualmente desautorizada pela interpretação sistemática do texto magno. O alicerce teórico em que se apóia a alardeada inconstitucionalidade do § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 é ainda mais frágil, porquanto a matéria de que se ocupa o texto legal questionado não entremostra, sequer por via reflexa, ofensa alguma à Constituição Republicana.


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A fragilidade da tese apregoada deve-se ao fato de que – como não houvesse princípio ou regra constitucional que condicionasse a inscrição dos Defensores Públicos nas fileiras da OAB para a execução válida de suas funções – o parecer simplesmente pressupôs e assumiu como aceita e comprovada uma premissa duvidosa, pouco plausível e de insinuante incoerência (“os Defensores Públicos são advogados”). Mas é muito difícil entender por que, e à conta de que fundamentos, a afirmação de que “os Defensores Públicos são advogados” é realmente aceitável, designadamente pelo fato de a Constituição da República dispensar a ambas as carreiras (ou profissões) tratamentos normativos distintos, com encargos, funções e prerrogativas dessemelhantes, proclamando a primeira “instituição essencial à função jurisdicional do Estado”, e a última “indispensável à administração da justiça”. Assim, dado que a proposição “os Defensores Públicos são advogados” não é axiomática, não se poderia tê-la como evidente a priori, sem mais e maiores explicações acerca de seu conteúdo. É claro que certas premissas dispensam explicações para a compreensão das conclusões que delas se pretendem tirar, como “o sol é amarelo”, “o fogo é quente” e “todo homem é mortal”. Porém, quando se cuida de proposições não evidentes, ou que não desfrutem de aceitação universal, o proponente não pode negligenciar o ônus de demonstrá-las e de definir com clareza os conceitos envolvidos em seu raciocínio. O parecer em questão, não obstante, contentou-se em propor, “a título de premissa”, e sem quaisquer explicações, ou “grandes cogitações”, que “os Defensores são advogados”. Como a elaboração de semelhante explicação fosse algo demasiadamente trabalhoso, é bem possível que a solução encontrada tenha sido dá-la como provada in limine, apostando na credulidade passiva do leitor, embora seja mais provável e sensato acreditar que a premissa não tenha sido explicada pela excelente razão de não haver fundamentos plausíveis para fazê-lo. Em tais condições, à míngua de esclarecimentos minimamente coerentes acerca da correção e adequação da premissa “os Defensores Públicos são advogados”, as quais, por igual, não decorrem expressa ou implicitamente da normativa estampada nos artigos 133 e 134 da Constituição Federal, o que resta, na melhor das hipóteses, é a arguição de inconstitucionalidade por aparente violação reflexa do texto constitucional, e, na pior, a alegação de virtual incompatibilidade do artigo 4º., § 6º., da Lei Complementar nº. 80/1994 com regras veiculadas por lei de estatura infraconstitucional – mais precisamente com os artigos 1º., caput, e 3º., § 1º, do Estatuto da OAB.


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III – PESSOA JURÍDICA NÃO É PESSOA?

Julgo ter ficado bastante claro no tópico anterior que o artigo 5º., inciso LXXIV, da Constituição Federal, ao estatuir o dever estatal de prestar assistência jurídica integral aos hipossuficientes, não toldou o exercício do correspectivo direito exclusivamente pelas “pessoas naturais necessitadas”. Todavia, a despeito da clareza do texto constitucional, o parecer inferiu que “o conceito de pessoa necessitada só se aplica a pessoa natural, jamais a pessoa jurídica”. Assim, como se vê, a inconstitucionalidade apontada basear-se-ia em uma interpolação hermenêutica, refratária ao conteúdo normativo do caput do artigo 5º. da Lei Fundamental, e cuja aceitação solaparia, numa só tacada, a eficácia de dezenas de direitos e garantias fundamentais, particularmente daqueles de que cuidam os incisos XXXV, LIV e LV. A ordem jurídico-constitucional brasileira, ao menos por ora, não se compraz com as franquias interpretativas que campeiam em alguns círculos teóricos de análise textual da Europa Ocidental, os quais, a título de “desconstrução” ou “relativismo”, afiançam liberdade absoluta para o intérprete atribuir todo e qualquer significado aos textos que tem à vista, mesmo que contrário ao próprio fio textual de que é retirado. Como enfatizou Umberto Eco, “entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor está a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustentável”,10 o que significa dizer que o intérprete não pode, sponte sua, conferir a uma norma jurídica um sentido incompatível ou desautorizado por seu plano textual, tampouco decretar, de modo aleatório, o significado hermenêutico que afigurar-se mais conveniente e oportuno a seus propósitos. Quer dizer: Nunca é demais repetir que há limites no processo hermenêutico. Ao contrário do que pensam alguns doutrinadores, o processo de atribuição de sentido não é arbitrário, “segundo as íntimas convicções do intérprete”. Que norma e texto são coisas diferentes, não é novidade. Mas isto nem de longe pode significar que o intérprete esteja autorizado a atribuir sentidos arbitrariamente, sob os ventos do pragmatismo ou de eventuais “sentimentos do justo”. Nunca é demais trazer a lição de Gadamer: se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto lhe diga algo. O problema é que, às vezes, os textos jurídicos nos dizem coisas das quais não gostamos.11 10

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução de Mônica Stahel. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fortes, 2005, p. 93. 11 STRECK, Lenio Luiz. A concepção cênica da sala de audiência e o problema dos paradoxos. Extraído do site www.amperj.org.br. 2007.


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É inviável assentir com a opinião de inconstitucionalidade de uma norma que não conflagra, sequer reflexamente, o texto constitucional, sobretudo quando a tese apregoada contrasta abertamente com os objetivos e valores que integram o conteúdo normativo do próprio dispositivo que se reputa maltratado. Afinal, é ponto de consenso doutrinário que o artigo 5º., inciso LXXIV, da Constituição Federal assegura o exercício do direito fundamental á assistência jurídica gratuita tanto pelas “pessoas naturais necessitadas” quanto pelas pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins econômicos,12 enquadráveis no conceito de hipossuficiência: É preciso que o interessado esteja numa situação econômica que não lhe permita custear o processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Não é preciso que as duas circunstâncias se cumulem; logo, o fato de a pessoa jurídica não ter família não impede que ela fique em dificuldades para prover à sua própria manutenção, e em tais condições não vejo nenhum obstáculo a que ela requeira e que se lhe conceda o benefício da gratuidade.13 As pessoas jurídicas de direito privado são entes coletivos constituídos voluntariamente por pessoas físicas, com o objetivo de obter determinados resultados na ordem econômica, cultural, esportiva, religiosa etc. e, como tais, são projeções dos próprios sujeitos que as compõem. Os sucessos ou fracassos ocorrentes na vida desses entes coletivos repercutem econômica, social ou moralmente na vida dos sócios ou associados. Por isso, fechar as portas da Justiça a elas significaria, em ultima ratio, fechá-la a seus próprios integrantes.14

O assunto, por igual, já foi pacificado pelos tribunais superiores, cujos precedentes admitem a outorga do direito à gratuidade de justiça e a prestação de assistência jurídica gratuita às pessoas jurídicas de direito privado, contanto que provada a falta de recursos para o custeio da demanda,15 caracterizada por uma “situação inviabiliza-

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Augusto Tavares Rosa Marcacini, diferentemente, considera que o direito à gratuidade de justiça só é deferível às pessoas jurídicas sem fins lucrativos (MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 89-90). 13 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica. Revista de Direito da Defensoria Pública, nº. 5, 1991, 122-137. 14 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume II. 3ª. Edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 677. 15 Nesse sentido: STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Raul Araújo Filho – REsp. nº. 1.064.269/RS, julg. em 19.08.2010 e publ. em 22.09.2010; STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Fernando Gonçalves – AgRg no Ag nº. 945153/SP, julg. em 04.11.2008 e publ. em 17.11.2008; e STJ – Ac. unân. da 3ª. Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – AgRg no REsp. nº. 1043790/SP, julg. em 02.10.2008 e publ. em 15.10.2008; STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – REsp. nº. 258174/RJ, publ. em 25.09.200; TJ-DF – Ac. unân. da 1ª. Turma Cív. – Rel. Des. Vera Andrighi, Ap. Cív. nº. 20070310391248, julg. em 21.01.2009 e publ. em 09.02.2009; TJ-MG – Rel. Des. Afrânio Vilela, Agr. nº. 1.0702.07.406131/9/001(1), julg. em 05.09.2008 e publ. em 15.10.2008; TJ-MG – Rel. Batista de Abreu, Agr. nº. 1.0024.06.305651-9/002(1), julg. em 12.11.2008 e publ. em 05.12.2008; e Súmula nº. 121 do


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dora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo”,16 ou seja, que acarrete a “impossibilidade de custear as despesas inerentes ao exercício da jurisdição”.17 Porém, admitida essa extremada interpretação do texto constitucional – de que resultaria a impossibilidade de as pessoas jurídicas exercerem o direito fundamental à assistência jurídica gratuita, ou, em todo caso, de que não seria incumbência da Defensoria Pública prestá-lo –, chegar-se-ia a conclusões aterradoras, senão paradoxais, e de todo modo inaceitáveis. Por exemplo: (a) as pessoas jurídicas de direito privado “necessitadas” que figurassem como rés em processos criminais seriam obrigadas a contratar advogados para o patrocínio de suas defesas

(b) a restrição imposta pelo texto constitucional não se estenderia aos entes coletivos desprovidos de personalidade jurídica – espólios, condomínios ou sociedades de fato, por exemplo –, os quais teriam intocados os direitos à assistência jurídica gratuita e à defesa e orientação prestadas pela Defensoria Pública

(c) as pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, “necessitadas” ou não, chamadas ao processo por edital ou com hora certa,18 não fariam jus à nomeação de curador especial (função que toca à Defensoria Pública desempenhar),19 eis que “só as pessoas naturais necessitadas que comprovarem insuficiência de recurso para pagar custas processuais e honorários advocatícios, sem prejuízo do próprio sustento e do sustento de sua família, têm o direito à prestação dos serviços das Defensorias”

TJ-RJ (“A gratuidade de justiça a pessoa jurídica não filantrópica somente será deferida em casos excepcionais, diante da comprovada impossibilidade do pagamento das despesas processuais”). 16 STF – Pleno – Rel. Min. Marco Aurélio, Rcl-AI-ED nº. 1905/SP, julg. em 15.08.2002 e publ. em 20.09.2002. 17 STF – Ac. unân. da 2ª. Turma – Rel. Min. Gilmar Mendes, AI-ED nº. 646099/RJ, julg. em 11.03.2008 e publ. em 18.04.2008. 18 Artigo 9º., inciso II, do Código de Processo Civil. 19 Curiosamente o inciso XVI do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 não foi acusado de inconstitucional, muito embora preveja a atuação da Defensoria Pública no exercício da curadoria especial nos casos previstos em lei, na qual se inclui, evidentemente, a defesa, por meio de substituição processual, das pessoas jurídicas chamadas fictamente ao processo.


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A lista de problemas não é taxativa, embora se afigure suficiente para divisar que a inconstitucionalidade que se quer ver reconhecida, ao lado de não transparecer de ofensa direta ou indireta ao texto constitucional, significaria, em última análise, um temerário retrocesso hermenêutico e uma autêntica captio diminutis no plano de efetividade dos direitos fundamentais. Custa, e muito, acreditar que, caso chancelado o impedimento constitucional da prestação do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita às pessoas jurídicas pela Defensoria Pública, a digna e altaneira Ordem dos Advogados do Brasil empunhará a bandeira de defesa da cidadania e do texto constitucional 20 para desincumbir-se graciosamente desse ônus, por mera liberalidade e sincero desinteresse, notadamente nos casos de intervenção obrigatória da curadoria especial. IV – ADVOGADOS QUE POR DISPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL EXPRESSA SÃO PROIBIDOS DE ADVOGAR?

Como enfatizado nos parágrafos precedentes, o parecer que acusou a inconstitucionalidade do artigo 4º., § 6º., da Lei Complementar nº/ 80/1994, introduzido pela Lei Complementar nº. 132/2009, simplesmente se esquivou do ônus de demonstrar ou de esclarecer previamente as fianças teóricas que dariam garantia à premissa de que “os Defensores Públicos são advogados”. Presumo que a rarefeita plausibilidade de tal proposição tenha sido suficientemente demonstrada acima. Mesmo assim, por cautela, julgo de bom tom assomar outros comentários ao assunto. Em termos estritamente jurídicos, a primeira objeção que, à vista desarmada, sobrepõe-se a essa premissa é que o § 1º. do artigo 134 proibiu os Defensores Públicos de exercerem a advocacia privada. A par dessa categórica interdição veiculada pelo texto constitucional, aguça a curiosidade saber por quais motivos os Defensores Públicos devem dispor de inscrição “em sua entidade de classe”, apesar de proibidos de “exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”. Ademais, o Título IV, Capítulo IV, Seção III, da Lei Fundamental, trata da “ADVOCACIA E DA DEFENSORIA PÚBLICA”, de maneira que, se a ratio legis do texto constitucional fosse mesmo compatível com a asserção de que “os Defensores Públicos são advogados”, não teria sentido algum escalonar normas diferentes para a disciplina de duas “profissões”, ou instituições, idênticas.

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Artigo 44, inciso I, da Lei nº. 8.906/1994.


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É verdade consabida que as leis não contêm preceitos inúteis, máxima que, por razões mais do que evidentes, também é aplicável à lei constitucional,21 tornando inevitável concluir, ainda que a contragosto de muitos, que a Constituição da República, ela mesma, não se compadece com a proposição de que “os Defensores Públicos são advogados”. Dizer o contrário importaria submeter o texto magno a glosas e interpolações que, por si sós, seriam ilegítimas, máxime numa invulgar hipótese de arguição de inconstitucionalidade calcada na violação de lei de envergadura infraconstitucional. Também não convence o teorema de que os Defensores Públicos, posto que não exerçam advocacia privada, devam ser considerados integrantes da Advocacia Pública. É que o artigo 132 da Constituição Republicana – encartado na Seção II, Capítulo IV, Título IV – estipula categoricamente que a Advocacia Pública é composta exclusivamente pela Advocacia-Geral da União, Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal e Procuradorias dos Municípios, donde inferir-se que os Defensores Públicos também não exercem advocacia pública, Pelo fato de os Defensores Públicos não se dedicarem a atividades típicas da advocacia privada, nem da advocacia pública, os princípios da economia e da simplicidade22 recomendam, a esta altura, que se veja aquilo que já se afigurava desconcertantemente óbvio: os Defensores Públicos são Defensores Públicos, como resulta da interpretação dos artigos 132 usque 135 da Lei Fundamental. Nada obstante, o parecer teima em apregoar que “os Defensores Públicos são advogados e, como tal, ficam sujeitos à disciplina da Advocacia em seu Estatuto” (SIC), assegurando que “o dispositivo legal que confere o direito aos Defensores Públicos de postular em juízo, só com a simples nomeação par ao cargo e sem inscrição na entidade de classe, é inconstitucional, porque ofende princípios universais do direito de postular em juízo”. De toda sorte, as no que consistiriam os tais “princípios universais”, que, ofendidos, causariam ofensa indireta à Constituição Federal? A resposta, segundo o parecer, seria esta: “princípio universal em dois sentidos: porque em todo o mundo é assim, e porque ninguém pode exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal sem inscrição em sua entidade de classe. Mas é inconstitucional, porque só o advoga21

Celso Ribeiro Bastos adverte que “de outra parte figura o postulado segundo o qual, sempre que possível, deverá o dispositivo constitucional ser interpretado num sentido que lhe atribua maior eficácia. O que efetivamente significa esse axioma é o banimento da idéia de que um artigo ou parte dele possa ser considerado sem efeito algum, o que equivaleria a desconsiderá-lo mesmo” (BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 63), ou seja, “todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade” (MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 45). 22 Sintetizados na fórmula da navalha de Occam: non sunt multiplicanda entia praeter necessitatem.


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do, ou seja, só a pessoa inscrita na Ordem dos Advogados, pode postular em juízo nos termos do art. 133 da Constituição.” Cumpre-me advertir, antes do mais, que não disponho de conhecimento suficiente para aquilatar a veracidade da ilação de que a inscrição em entidades de classe é uma exigência corrente “em todo mundo”. Tudo que posso dizer é que aqui, entre nós brasileiros, o exercício de trabalho, ofício e profissão é livre, e que nenhum trabalhador ou profissional (liberal ou não) é obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado. É o que se vê estampado, às escâncaras, na Lei Fundamental do Brasil: Art. 5º. (...) XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas às qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; (...)

Porém, para chegar tão longe, seria preciso consentir com a proposição de que os Defensores Públicos exercem “uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”, conquanto não seja viável, sequer por hipótese, aceitá-la ou tê-la com plausível. É porque a Defensoria Púbica é instituição permanente que integra, com autonomia funcional e administrativa, no âmbito estadual e distrital, o Poder Executivo, organizada em cargos de carreira providos por concurso público de provas e títulos,23 de forma que – por meio de interpretação a contrario sensu do argumento invocado – os Defensores Públicos não precisam de “inscrição em sua entidade de classe”, por não exercerem “uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”. Aliás, por ocasião do julgamento da ADI nº. 3.043-4/MG, o Supremo Tribunal Federal declarou que a Constituição Federal repudia “o desempenho, pelos membros da Defensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada”. Confira-se: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 137 DA LEI COMPLEMENTAR N. 65, DE 16 DE JANEIRO DE 2003, DO ESTADO DE MINAS GERAIS. DEFENSOR PÚBLICO. EXERCÍCIO DA ADVOCACIA À MARGEM DAS ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAIS. INCONSTITUCIONALIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 134 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O § 1o do artigo 134 da Constituição do Brasil repudia o desempenho, pelos membros da Defensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada. Improcede o argumento de que o exercício da advocacia pelos Defenso23

Artigo 134, caput e § 1º. da Constituição Federal.


16 res Públicos somente seria vedado após a fixação dos subsídios aplicáveis às carreiras típicas de Estado. 2. Os §§ 1o e 2o do artigo 134 da Constituição do Brasil veiculam regras atinentes à estruturação das defensorias públicas, que o legislador ordinário não pode ignorar. 3. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do artigo 137 da Lei Complementar n. 65, do Estado de Minas Gerais.24

Durante a sessão plenária de julgamento, a Corte Suprema acentuou: O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – Impressiona-me, também, a par dos fundamentos do voto do eminente Relator, o fato de que essa proibição aos defensores públicos para o exercício da advocacia também figura do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. É interessante: o ADCT, ao dispor sobre a Defensoria, insiste nas proibições. E entre as proibições do art. 134 da Constituição Federal está o exercício da advocacia. É o art. 22. (...) O Sr. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE (Presidente) – Os ex-defensores aqui não conseguiram aquele acordo do Ministério Público na Constituição: a possibilidade de trocar as garantias pelas vedações. O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – Entre as vedações está o exercício da advocacia. O Sr. Ministro MARCO AURÉLIO – Mesmo assim, não é? O Sr. Ministro GILMAR MENDES – Pois é. O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – O que reforça o voto do eminente Relator.

Os caracteres e feições típicas da Defensoria Pública, que a tornam inassimilável às classes da advocacia pública e da advocacia privada, foram realçados pelo preclaro Ministro Carlos Ayres Britto no alentado voto proferido no julgamento da ADI nº. 3.643-2/RJ, designadamente nos trechos citados abaixo: É que as defensorias públicas, se não são órgãos do Poder Judiciário, são, no entanto, aparelhos genuinamente estatais ou de existência necessária. Mais que isso, unidades de serviço que se inscrevem no rol daquelas que desempenham função essencial à jurisdição (art. 134 e inciso LXXIV do art. 5º da CF/88). Mas função essencial à jurisdição, acresça-se, do ângulo da assistência às pessoas carentes de possibilidades materiais para a contratação de advogados. Logo, são elas, as defensorias públicas, 24

STF – Pleno – Rel. Min. Eros Grau, ADI nº. 3.043/MG, julg. em 26.04.2006.


17 que verdadeiramente democratizam o acesso às instâncias judiciárias, efetivando o valor constitucional da universalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88). (...) A jurisdição e os órgãos que lhe são essenciais a se imbricar, portanto, sem que se possa dizer onde começa uma e terminam os outros. De sorte que, bem aparelhar as defensorias públicas é servir, sim, ao desígnio constitucional de universalizar e aperfeiçoar a própria jurisdição como atividade básica do Estado e função específica do Poder Judiciário.25

O Ministro Ricardo Lewandowski, na mesma oportunidade, assinalou que: Sua Excelência, o Relator observou de forma bem pertinente – eu estava consultando a Constituição – que há uma diferença muito interessante entre o que diz o artigo 134 e o 133 da Carta Magna. O artigo 134 diz: “A Defensoria Pública é” – ou constitui – “instituição essencial à função jurisdicional” (...) Portanto integra-se ao aparato da prestação jurisdicional, sendo quase um órgão do Poder Judiciário. Não avanço tanto, mas integra, sem dúvida nenhuma, esse aparato. E o artigo 133, quando fala do advogado, não usa essa expressão, mas diz: “O advogado é indispensável à administração da justiça” (...) Embora ele faça parte do tripé, no qual se assenta a prestação jurisdicional, ele se aparta um pouco desta categoria especial, desse status especial que se dá à Defensoria Pública.

Em tais condições, e sem embargos das considerações já expendidas, é certo que os precedentes do Excelso Pretório descredenciam o teorema jurídico arquitetado no parecer em análise, razão por que é forçoso repetir: os Defensores Públicos não são advogados, mas Defensores Públicos. V – “SÓ O ADVOGADO PODE POSTULAR EM JUÍZO”? Não gostaria de incorrer no erro em que acredito tenha incorrido o parecer comentado, razão pela qual julgo necessário explicar mais detidamente a conclusão de que “os Defensores Públicos não são advogados, mas Defensores Públicos”, de que modo ela se impõe, e quais as normas e princípios que lhe dão solidez. É suficiente, para tanto, enfrentar a asserção de que “a Constituição não disse que a pessoa titular de um diploma de direito é indispensável à administração da justiça. Disse que o advogado é que é indispensável à administração da justiça e isto significa: só o advogado pode postular em juízo”. 25

STF – Pleno – Rel. Min. Carlos Ayres Brito, ADI nº. 3.643/RJ, julg. em 08.11.2006 e publ. em 12.02.2007.


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Em outras palavras, se “Defensores Públicos são Defensores Públicos”, a questão diz com aquilatar a correção da tese de que “sem inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, nenhuma pessoa, só por ser formada em direito, tem legitimidade para o exercício do ius postulandi“. E essa proposição teórica estará correta se, e somente se: (a) todos os que postularem em juízo dispuserem de inscrição na OAB; (b) não houver qualquer instituição ou pessoa que exerça o ius postulandi sem estar inscrito na OAB. Penso que a solução do problema não esteja em decidir “quem é um advogado”, mas em saber no que consiste “advogar”. Diogo Figueiredo Moreira Neto responderia que o exercício da advocacia, quer dizer, o ato de advogar, é uma prerrogativa ínsita às “instituições de provedoria de justiça”, que atuam a serviço dos valores cívicos da nação, seja diretamente (advocacia privada e advocacia dos necessitados), seja indiretamente (Ministério Público e advocacia pública): Esse complexo de advocacias, as funções essenciais à justiça, atuando como órgãos técnicos, no interesse direto ou indireto da cidadania, é que garante, em última análise, a provocação dos órgãos de atuação legislativa, administrativa e jurisdicional do Estado para as providências de suas respectivas competências. (...) Advogar, ou seja, falar ao lado, ou melhor, falar em lugar de alguém, é a substituição da voz do leigo pela do técnico na sustentação de interesses juridicamente protegidos, é função de provedoria de justiça nas relações humanas, segundo os padrões adotados na ordem jurídica. Os interesses, em geral, de pessoas físicas e jurídicas, podem ser providos por advogados privados, sob regime contratual civil ou trabalhista (art. 135, CF). Os interesses da sociedade, como um todo, ou de certos segmentos, notadamente os difusos e os legalmente indisponíveis, inclusive o interesse geral na zeladoria da ordem jurídica, devem ser providos pelo Ministério Público, sob regime estatutário (arts. 127 a 130, CF).26

O ato ou efeito de “advogar” é a “função de orientar e patrocinar aqueles que têm direitos ou interesses jurídicos a pleitear ou defender em juízo”,27 donde concluir-se que a “devida inscrição na Entidade da Advocacia” não é requisito sine qua non para o exercício legítimo do ius postulandi. Afinal, os integrantes do Ministério Público, também eles, exercem a advocacia, por se qualificarem na definição de “pessoa que tem capacidade postulatória, em Juízo”, vale dizer, de “profissional habilitado para o exercício do ius postulandi”, apesar de não disporem de “inscrição na Entidade da Advocacia”, assunto que, por sinal, não desperta controvérsias, como demonstram as opiniões correntes da literatura jurídica: 26

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. A Defensoria Pública na Construção do Estado de Justiça. Revista de Direito da Defensoria Pública. Rio de Janeiro, ano 6, nº. 7, 1995, p. 15-41. 27 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil.Vol. I. 16ª. Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 167.


19 Conforme o caso, o Ministério Público assume no processo a tutela do direito objetivo ou a defesa de uma pessoa; com base nessa distinção é que se pode fazer uma classificação cientificamente correta das funções dos promotores e curadores do processo. Ele defende alguma pessoa em juízo (ligado, portanto, a um dos interesses substanciais em causa e atuando parcialmente em seu favor): a) como parte principal (autor, réu, substituto processual); b) como assistente.28 O Ministério Público atua como procurador judicial do litigante, como acontece nas ações de acidente do trabalho, em que o órgão funciona como assistente judiciário do trabalhador, e na ação de execução civil da sentença condenatória penal, em que ele pode representar a vítima na demanda de ressarcimento de dano.29 Também possuem capacidade postulatória aqueles que exercem funções análogas à de advogado, mas apenas quando no exercício de tais funções. Assim, por exemplo, um promotor de justiça tem capacidade postulatória, podendo, por exemplo, dirigir ao Estado-juiz uma petição inicial de “ação civil pública”.30

Vistas essas coisas, tem-se que a proposição de que “sem inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, nenhuma pessoa, só por ser formada em direito, tem legitimidade para o exercício do ius postulandi“ não constitui regra absoluta, tampouco deriva de “princípios universais do direito de postular em juízo”. Do contrário – admitido o caráter geral e absoluto da tese reivindicada – seria forçoso concluir que os membros do Ministério Público igualmente deveriam filiar-se à OAB, de vez que “ninguém pode, por princípio, procurar em juízo sem a devida inscrição na Entidade da Advocacia”. Ora, se é, ou se deveria ser assim, por que os Defensores Públicos estariam sujeitos ao ônus de se inscreverem na OAB, ao passo que os integrantes dos Ministérios Públicos, similarmente proibidos de exercer a advocacia privada,31 ficariam isentados de observar a mesma regra para o exercício válido do ius postulandi? A resposta a essa questão – bem como à premissa de que “os Defensores Públicos não são advogados, mas Defensores Públicos” – consiste no fato de a proposição “os Defensores Públicos são advogados” não ser inteiramente equivocada, senão quando assumida de forma geral, sem distinguir as peculiaridades e dessemelhanças das Defen-

28

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 13ª. edição. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 301-302. 29 SILVA, Ovídio A. Batista da; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo civil. 2ª. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 144. 30 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 243. 31 V. artigo 128, § 5º., inciso II, alínea “b”, da Constituição Federal.


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sorias Públicas em relação às carreiras propriamente definidas pela Carta Política como investidas de funções típicas da advocacia, pública ou privada. Uma ilação referente às características de casos particulares não deve (e não pode) ser transposta abruptamente para a condição de regra geral sem levar em conta outros casos cujas singularidades e diferenças excluem a extensão generalizada daquilo que se quer estabelecer como padrão normativo.32 Em certas situações, raciocínios fundados em premissas tiradas de inferências indutivas – que visem a incluir ou excluir espécies em gêneros ou classes – levam a conclusões com que poucos concordariam:

As aves caracterizam-se como animais com habilidade para voar Os pingüins são aves Logo, os pingüins são animais que têm habilidade para voar

As aves caracterizam-se como animais com habilidade para voar Os morcegos não são aves Logo, os morcegos não têm habilidade de voar

Todos os peixes nadam As baleias nadam Logo, as baleias são peixes

Em tais condições, a prévia inscrição nas fileiras da OAB não é, e jamais foi requisito inalienável e indisponível para o cometimento de capacidade postulatória, pois, de outro modo, todos aqueles incumbidos da execução de funções afetas ao ius postulandi deveriam submeter-se a igual e necessária providência, consubstanciada na “devida inscrição na Entidade da Advocacia”. Afinal, diria Aristóteles, “se de duas coisas semelhantes uma é possível, então a outra também o é. Se o mais difícil de duas coisas é possível, então o mais fácil também o é”.33 Por conseguinte, vê-se que o ato de advogar, ou de “procurar em juízo”, não constitui prerrogativa exclusiva da “pessoa formada em direito inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil”, porquanto a Constituição Republicana outorgou a outras instituições – que não se enquadram nos conceitos de advocacia pública ou privada – capa32

Caso exemplar do erro argumentativo da composição, isto é, da atribuição generalizada dos predicados de uma ou de alguma das espécies a todos os integrantes da classe (V. WALTON, Douglas. Op. cit.. p. 179-186 e PERELMAN. Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit,p. 262-274). 33 ARISTÓTELES. Retórica. Livro II, cap. 19.


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cidade postulatória plena e legítima para se desincumbirem de suas funções independentemente de filiação prévia ou subseqüente nos quadros da OAB. Nesse sentido, a propósito, a ponderação do Ministro Carlos Brito no voto que proferiu quando do julgamento da ADI nº. 2.581/SP: Porém, ocorre-me que a Constituição tem outras razões, tem outras lógicas. E, quando a Constituição separa, destaca, isola uma instituição, é para prestigiá-la, assim como a Ordem dos Advogados do Brasil, os advogados em geral, as universidades, os sindicatos, os partidos políticos, as Procuradorias de Estado. A Constituição não isola uma instituição senão para conferir a ela um “status”, uma dignidade maior. É o modo pelo qual a Constituição revela o seu especial apreço por essa instituição. E essas instituições, das quais o Poder Judiciário faz parte e o Ministério Público também, refogem do âmbito, estão excluídas do âmbito de incidência chapado, imediata, clara do processo legislativo. Elas obedecem a regras próprias.34

A questão que se põe em discussão, assim, depende mais de bom senso do que de critérios de interpretação jurídica ou do apelo extremo a “princípios universais”, pois como os Defensores Públicos não exercem advocacia pública ou privada, a única explicação plausível é ver que o ius postulandi de que desfrutam não está condicionado à “devida inscrição na Entidade da Advocacia”, senão à fonte derivada de mandamento constitucional expresso,35 designadamente à norma do § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994, que dispensa a “inscrição na Entidade da Advocacia”. VI – OS DEFENSORES PÚBLICOS SÃO DEFENSORES PÚBLICOS E, COMO TAIS, SE SUBMETEM A REGIME JURÍDICO PRÓPRIO Tenho para mim, a par de todo o exposto, ser lícito afirmar que “os Defensores Públicos são Defensores Públicos”, sem o risco de ser acusado de reivindicar proposições desprovidas de explicações e de invocar conceitos faltos de prévia definição. As nada desprezíveis diferenças entre as instituições (Defensorias Públicas e Ordem dos Advogados do Brasil) e as dessemelhanças entre as funções de seus integrantes (Defensores Públicos e Advogados) são tais e tantas que não é possível falar, sequer como figura de retórica, que “os Defensores Públicos são advogados”. 34

Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto na ADI nº. 2.581-SP (STF – Pleno – Rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, julg. em 18.08.2007). 35 Artigo 134, § 1º., da Constituição Federal.


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E, pois, se o exercício constitucionalmente autorizado de suas funções não é condicionado à inscrição nos quadros da OAB, os Defensores Públicos, por evidente, igualmente não se sujeitam às normas disciplinares tipicamente inerentes à carreira da advocacia, e muito menos, por razões ainda mais fortes e intuitivas, ao poder de polícia consubstanciado na assim chamada “fiscalização ético-disciplinar”. Ao que parece, a extrapolação ao absurdo do raciocínio em que se equilibra a pretendida “fiscalização ético-disciplinar” implicaria dizer que os Defensores Públicos sujeitarse-iam a ônus redobrados (poder de polícia da OAB, fiscalização concomitante das corregedorias-gerais e das ouvidorias e pagamento de anuidades), recolhendo, todavia, bônus partidos.36 Isto é: os Defensores Públicos ficariam submetidos aos deveres impostos pela Lei nº. 8.906/1994, posto que privados das vantagens asseguradas pelo mesmo diploma legal aos integrantes de “uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”. Tudo isso porque – embora os Defensores Públicos não sejam advogados, nem públicos, nem privados – os artigos 1º. e 3º. do Estatuto da OAB prevêem que a postulação perante qualquer órgão do Poder Judiciário e dos Juizados Especiais constituem “atividades privativas da advocacia” e que os integrantes das Defensorias Públicas exercem “atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei”. Há, todavia, duas razões fortíssimas para concluir que as disposições normativas da Lei nº. 8.906 não são aplicáveis às Defensorias Públicas e aos seus respectivos seus órgãos de execução, os Defensores Públicos. Primeiramente porque o § 1º. do artigo 134 da Constituição Federal reservou à lei complementar a incumbência da organização e prescrição, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, de normas gerais relativas às Defensorias Públicas. Daí inferir-se que nenhuma lei ordinária poderia estabelecer diretrizes acerca da organização e/ou ditar normas gerais sobre a atuação das Defensorias Públicas. Não se afigura difícil, nem demanda “grandes cogitações”, reconhecer que uma matéria cuja disciplina a Lei Fundamental reservou à lei complementar não pode ser regulada, revogada ou acrescida por lei ordinária, como observou Celso Ribeiro Bastos:

Entendemos, pois, por lei complementar a espécie normativa autônoma, expressamente prevista no inc. II do art. 59 da Constituição Federal, que versa sobre matéria subtraída ao 36

É porque, ao lado da proibição categórica do exercício da advocacia privada (artigo 134, § 1º., da Constituição Federal), os Defensores Públicos igualmente são proibidos de praticar, em juízo ou fora dele, atos colidentes com as funções de seu cargo, receber, a qualquer título ou pretexto, honorários, vantagens ou custas em razão de suas atribuições, e exercer atividades empresariais e políticopartidárias quando em atuação na Justiça Eleitoral (artigo 130, incisos II-V, da Lei Complementar nº. 80/1994).


23 campo de atuação das demais espécies normativas do nosso direito positivo, demandando, para a sua aprovação, um quorum especial de maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas de que se compõe o Congresso Nacional. A lei complementar tem, por conseguinte, matéria própria – o que significa que recebe tratamento normativo um campo determinado de atuação da ordem jurídica e só dentre deste ela é validamente exercitável –, matéria essa perfeitamente cindível ou separável da versada pelas demais normações, principalmente pela legislação ordinária.37

Manoel Gonçalves Ferreira Filho diria que essas restrições impostas à lei ordinária decorreriam menos da reserva legislativa da matéria, afeta a lei complementar, do que à própria preponderância hierárquica desta relativamente àquela:

É de sustentar-se, portanto, que a lei complementar é um tertium genus interposto, na hierarquia dos atos normativos, entre a lei ordinária (e os atos que têm a mesma força que esta – a lei delegada e o decreto-lei) e a Constituição (e suas emendas). Não é só, porém, o argumento de autoridade que apóia essa tese; a própria lógica o faz. A lei complementar só pode ser aprovada por maioria qualificada, a maioria absoluta, para que não seja, nunca, o fruto da vontade de uma minoria ocasionalmente em condições de fazer prevalecer sua voz. Essa maioria é assim um sinal certo da maior ponderação que o constituinte quis ver associada ao seu estabelecimento. Paralelamente, deve-se convir, não quis o constituinte deixar ao sabor de uma decisão ocasional a desconstituição daquilo para cujo estabelecimento exigiu ponderação especial. Aliás, é princípio geral de Direito que, ordinariamente, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obedecido à mesma forma.38

Aos meus olhos, porém, não é preciso avançar tanto, até porque a precedência hierárquica das leis complementares sobre as leis ordinárias é assunto controverso e prenhe de polêmicas. Basta ver que a questão refere-se à aparente antinomia entre uma lei especial e posterior gerada por sua desarmonia com lei geral e anterior, de maneira que os critérios da especialidade e cronológico são suficientes para resolver a questão. Ora, a argüição de inconstitucionalidade retira sua força da alardeada incompatibilidade do § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994, introduzido pela Lei Complementar nº. 132/2009, com os artigos 1º. e 3º. da Lei nº. 8.906/1994. Assim, como as alterações da Lei Complementar nº. 80/1994 são posteriores à entrada em vigor do Esta-

37

BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 359. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 236-237. 38


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tuto da OAB (Lei nº. 8.906/1994), é forçoso concluir que todas as normas precedentes incompatíveis com as disposições normativas subsequentes foram derrogadas.39 Ao demais, haja vista que a lei especial prepondera sobre a lei geral,40 também seria impossível concluir outra coisa senão que a Lei Complementar nº. 80/1994 – lei especial de organização das Defensorias Públicas – não poderia ser sobrepujada pelas disposições de índole geral aplicáveis unicamente àqueles que exercem atividades típicas das carreiras da advocacia pública e privada. Aliás, bem ao contrário, o que ostenta claros indícios de inconstitucionalidade, credenciando-se a futura e oportuna argüição em sede própria, são os dispositivos do artigo 1º., caput, e 3º., caput e § 1º., da Lei nº. 8.906/1994, tanto do ponto de vista formal quanto material, por ofenderem diretamente o artigo 134, caput e § 1º, da Lei Fundamental. VI – CONCLUSÃO No que pesem a habitual erudição e a incontrastável argúcia retórica do subscritor do parecer em que se embasou a ADI nº. 4636-DF, assestada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, os dispositivos legais acusados de inconstitucionalidade (inciso V e § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994) não violam ou toldam, direta ou indiretamente, o texto constitucional, consoante enfatizado à exaustão nos parágrafos precedentes, cujas conclusões ficam aqui reiteradas.

39

E nem se diga que a obrigatoriedade de inscrição na OAB teria previsão no artigo 26 da Lei Complementar nº. 80/1994, pois, igualmente pelo critério cronológico para a solução de conflito interno de normas, não há duvidas de que esse dispositivo foi derrogado pela Lei Complementar nº. 132/2009. 40 Princípio há muito consagrado entre nós, sintetizado no brocardolLex especialis derrogat Lex generalis.


1 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO

Paulo André Morales Arêas*

INTRODUÇÃO

O tema da responsabilidade civil do Estado, certamente, é apresentado como um dos mais estimulantes no direito, principalmente pelos diversos aspectos de análise que envolve. Dentro desse tema de tão ampla magnitude que abarca não só a responsabilidade da administração como, também, a do Estado Juiz e a do Estado Legislador, a responsabilidade por comportamentos omissivos atrai bastante a atenção dos estudiosos pelas diversas considerações que admite. Esta obra, contudo, com vistas a impedir que haja uma confusão conceitual e uma apreciação superficial sobre o tema, se limitará ao estudo da disciplina da responsabilidade da Administração por comportamentos omissivos, pois que as omissões legislativas e judiciais, por merecerem considerações específicas, seriam melhor estudadas em obras diversas e separadas. Em verdade, o estudo da responsabilidade da Administração por comportamentos omissivos, traz consigo um amplo campo de debate jurídico, sobretudo no que diz respeito à aplicação da teoria objetiva de responsabilização que, a cada dia, vem alcançando maior acolhida no ordenamento jurídico. Aliás, como comprovação de tal afirmação, basta uma análise das mais diversas decisões judiciais e do novo Código Civil, que estabeleceu como *

Advogado. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos e professor desta mesma instituição.


2 regra de responsabilização extracontratual a teoria objetiva. Contudo, há de se salientar que, a despeito das considerações civilísticas serem de grande proveito, importante ter em mente que a presente proposta deve levar, principalmente, em conta conceitos de ordem publicística, conforme se poderá observar, por envolver tema constante das lições de Direito

Administrativo.

Trata-se,

contudo,

de

uma

apreciação

a

respeito

da

responsabilidade extracontratual do Estado, visto que não se pretende aqui envolver o estudo das atividades estatais de natureza contratual. Assim, com vistas e essas considerações iniciais, para melhor compreensão do presente desafio doutrinário, esta obra será dividida em três partes. A primeira delas, cuidará de apresentar breves considerações gerais acerca da responsabilidade da administração pública, inclusive sua evolução histórica. Na segunda parte, far-se-á um estudo específico e limitado à responsabilidade civil da administração pelos comportamentos omissivos. Por fim, procurar-se-á traçar pontos importantes a respeito da teoria da faute du service frente às, já, então, abordadas linhas mestras da responsabilidade por comportamentos omissivos.


3

1. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO

A responsabilidade civil do Estado, conforme demonstram os mais variados estudos a respeito do tema, sobretudo por tocar a várias disciplinas do direito, é tema que se submeteu a uma enorme evolução histórica, tudo conforme o grau evolutivo de conscientização política do Estado que a seguir poder-se-á observar. A princípio, em uma época em que os Estados firmavam sua existência em governos de ordem absolutista e despótica, era comum o entendimento de que o monarca, como figura que refletia a correção de governo e se confundia até mesmo com o a imagem da soberania, não era passível de cometer erros de modo a permitir que qualquer pessoa prejudicada por um ato estatal pudesse se valer dos meios cabíveis para se ver ressarcida. Desse período, portanto, surgiram as seguintes expressões que evidenciavam a absoluta irresponsabilidade do Estado, quais sejam: “’O rei não erra’ (The King can do no wrong), ‘O Estado sou eu’ (L’État c’est moi), ‘O que agrada ao príncipe tem força de lei’”1. Ressalve-se, todavia, que em tal período, a despeito de não ser permitida a responsabilização do Estado, era possível que se responsabilizasse o funcionário atuante2. 1

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 157 e 158. 2 GASOS, Iara Leal. A Omissão Abusiva do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1994, p 70.


4 Conforme ressalta o prestigiado Hely Lopes Meirelles3, encontra-se totalmente ultrapassada a teoria da irresponsabilidade, pois que os últimos países que a acolhiam, os Estados Unidos e a Inglaterra, a abandonaram por completo. Os Estados Unidos pelo Federal Tort Claims Act, em 1946. Já, a Inglaterra se liberou desse antigo pensamento por intermédio do Crown Proceeding Act, de 1947. Numa segunda etapa da evolução da responsabilidade passou-se a entender o Estado como responsável pelos atos culposos que seus agentes, nessa condição, praticassem em detrimento dos administrados. Abandonou-se, assim, a teoria da irresponsabilidade, mas permitiu-se a responsabilização do Estado por culpa. Nesse período, portanto, para fins de responsabilidade do Estado, era corrente a distinção entre os atos estaduais de gestão e os de império4. No primeiro caso, seria totalmente possível a responsabilização civil do Estado, enquanto no segundo caso, por se tratar de ato regulamentado por normas essencialmente de direito público e protetoras da figura estatal, o Estado não poderia se ver responsabilizado. Assim, dadas as não raras dificuldades de se verificar na prática se determinado ato seria de gestão ou de império, não prosperou tal forma de responsabilização

estatal,

sobretudo

pelas

constantes

insatisfações

geradas

aos

administrados. O insucesso da segunda etapa evolutiva da responsabilidade estatal, qual seja, a da teoria da responsabilização com culpa, fez surgir no cenário jurídico uma nova proposta. Passou-se, nesse sentido, à adoção da teoria da culpa administrativa que, a despeito de basear-se numa responsabilização de ordem subjetiva – culpa ou dolo do agente estatal – como a anterior, não mais fazia distinção, para fins de responsabilidade, entre os atos de 3

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 610. CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p 381. 4


5 império e de gestão praticados pelo Estado. Foi aqui que se desenvolveu a idéia de culpa anônima e de responsabilização pela falta do serviço. Propôs-se, assim, que não seria necessário identificar a culpa individual do agente estatal, uma vez que as noções de cunho civilístico foram abandonadas em prol dos princípios publicísticos advindos do Direito Administrativo. Bastava a mera prova do autor da ação judicial de que o serviço não funcionara, funcionara mal ou em atraso, portanto, da culpa, sendo desnecessário, repita-se, a identificação individual do agente estatal responsável pela conduta. Por fim, o último momento da evolução da responsabilidade do Estado, apesar de algumas nuances admitidas pelos diversos ordenamentos jurídicos, foi o da aceitação da teoria da responsabilidade objetiva, desprovida de qualquer avaliação de culpa (dolo ou culpa em sentido estrito) sobre o ato administrativo praticado. Ressalte-se, todavia, que tal teoria passou a ter acolhida no direito pátrio mediante a interpretação que se dava ao art. 194 da Constituição Federal de 1946 que, comparado ao art. 15 do antigo Código Civil, não se referiu aos pressupostos da conduta contrária ao direito e da inobservância de dever legal. No mesmo sentido caminharam as Constituições posteriores5, sendo que a atual disciplinando a matéria no seu art. 37, § 6º, previu a seguinte redação: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de culpa ou dolo”. Assegura, assim, a doutrina pátria que, uma vez admitida a responsabilidade civil objetiva da administração pública, o legislador optou pela teoria do risco administrativo que, sendo uma das diversas teorias acerca da responsabilização objetiva, propõe como única saída admitida para a administração a comprovação por parte desta da ausência do 5

Idem, p. 384.


6 fato administrativo, do dano ou do nexo causal entre a conduta do agente público e o dano causado. Daí afirmar-se que neste último caso a administração somente não responderá pelos danos existentes se conseguir provar que o dano fora ocasionado por caso fortuito ou força maior, ou que decorrera de fato exclusivo de terceiro ou da vítima. Observe-se que, apesar de muitos se referirem a esta última hipótese de excludente da responsabilidade estatal como de culpa exclusiva da vítima, trata-se de uma grave impropriedade terminológica, vez que em sede de responsabilidade objetiva, como não há análise da culpa, mais apropriado é utilizar-se da expressão “fato exclusivo da vítima”. Outrossim, não é pretensão da presente obra traçar distinções entre caso fortuito e força maior, mas ao contrário, consoante grande parte da doutrina administrativista, a proposta é que sejam ambos analisados sob um único foco, principalmente pela infindável divergência dos estudiosos que pretendem diferencia-los. São, todavia, três os pressupostos configuradores da responsabilidade civil da administração: o fato administrativo, o dano (que pode ser patrimonial ou moral) e, por fim, a existência do nexo de causalidade entre o fato administrativo e o dano existente.


7

2. A

RESPONSABILIDADE

CIVIL

DA

ADMINISTRAÇÃO

POR

COMPORTAMENTOS OMISSIVOS

Considerações especiais merece a análise da responsabilidade civil do Estado decorrente de omissão. Ora, teria ela acolhida normativa no art. 37, § 6º da CRFB? Seria a responsabilidade por omissão de ordem objetiva ou dependeria da verificação de culpa do agente público? Por força de tais questionamentos far-se-ão a seguir alguns comentários com o fito de melhor esclarecer as indagações decorrentes do tão interessante estudo. Primeiramente, importante destacar que em sede de responsabilidade por omissão esta sempre decorrerá de um comportamento ilícito, pois que somente será possível a verificação da omissão quando existir uma norma legal impondo um comportamento positivo, ou seja, um agir. Sem a presença de tal norma não há meio viável de se imputar ao Estado um comportamento inerte, sobretudo porque o princípio da legalidade que circunda a administração somente permite a atuação desta quando tal comportamento encontre previsão no ordenamento jurídico6. Assim, sem norma impositiva de conduta não está a administração apta a agir e, no mesmo sentido, impossível verificar o dever de agir nas hipóteses de omissão.

6

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 8 ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 61.


8 Ainda, por questão de ordem lógica, a afirmação de que a responsabilidade estatal por omissão é sempre uma responsabilização por comportamento ilícito, acaba por trazer implícito a conclusão de que, em última análise, é necessária a prova de culpa. Observe-se, contudo, que não se está a afirmar que toda a responsabilidade por ato ilícito seja de ordem subjetiva, mas que, diante da necessidade de comprovar o dever de agir da administração frente a determinadas condições fáticas, necessariamente, implicará na análise do aspecto subjetivo do fato administrativo, qual seja, a culpa. Não há, portanto, como verificar o dever de agir da administração sem adentrar na análise da culpa, uma vez que ambas se confundem. Ora, permanecendo inerte a administração quando presente um dever de agir, estará ela agindo culposamente, violando um comando normativo impositivo de comportamento positivo. Importante, contudo, ressaltar que Sergio Cavalieri Filho7, destoando da visão extremamente majoritária na doutrina, entende ser possível a responsabilização objetiva da administração nos comportamentos omissivos. Para tanto, se vale o renomado autor do argumento de que é necessário, em primeiro plano, verificar se a omissão administrativa é genérica ou específica. Sendo, portanto, caso de omissão genérica, a responsabilidade da administração pública seria subjetiva. De outro lado, sendo hipótese de omissão específica, a responsabilidade seria objetiva, pois que aqui estaria configurado um dever individualizado de agir. Nesse sentido diz o referido autor, in verbis:

[..] “em nosso entender, quando o dano resulta da omissão específica do Estado, ou, em outras palavras, quando a inércia administrativa é causa direta e imediata do não impedimento do evento, o Estado responde objetivamente, como nos casos de morte de detento em penitenciária e acidente com aluno de colégio público durante o período de aula”8. 7 8

CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit., p. 169. Idem. p. 169.


9

Apresentadas as razões que, consoante Sergio Cavalieri Filho, fundamentam a possibilidade de responsabilização objetiva da administração por comportamento omissivo, demonstrar-se-ão agora as razões críticas a esse posicionamento que, repita-se, deverão ser trabalhadas no meio acadêmico. De início, vale a observação de que os exemplos acima citados para demonstrar hipóteses de omissão específica do Estado, talvez, em verdade, não sirvam para a defesa do argumento apontado, uma vez que, ao invés de se enquadrarem como casos de omissão estatal, mais se aproximam de casos de danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória. Aliás, conforme aponta Celso Antônio Bandeira de Mello9, três são os tipos de situação ensejadora de responsabilização da administração: por ação, hipótese que, como visto, exige responsabilização objetiva; por omissão, em que se exige, majoritariamente, a responsabilização subjetiva da administração; por último, por danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória, que se equipara à conduta comissiva da administração. Ora, tanto o caso de morte de detento em penitenciária, como o caso de acidente em colégio público durante o período de aula, são exemplos claros de danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória. Trabalha-se aqui, portanto, a idéia de risco suscitado. Em verdade, quando o Estado assume o dever de manter detentos sob a sua custódia ou quando presta ensino escolar, ele está se colocando na situação de garantidor daqueles que passaram a estar sob a sua vigilância. Daí falar-se em culpa in vigilando, mas que, por 9

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, 893.


10 questão de ordem lógica, aqui há de ser chama da responsabilidade in vigilando, uma vez que no campo da responsabilização objetiva não há lugar para qualquer análise do elemento culpa. Aliás, parte da jurisprudência parece ter caminhado nesse sentido conforme se pode observar a seguir através dos respectivos acórdãos, in verbis:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Acórdão: Apelação cível 2003.004595-3 Relator: Des. Vanderlei Romer. Data da Decisão: 16/10/2003. EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO C/C DANOS MORAIS. MORTE DE DETENTO NO INTERIOR DE PRESÍDIO EM CONSEQÜÊNCIA DE DESCARGA ELÉTRICA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DE ZELAR PELA INTEGRIDADE FÍSICA DAQUELES QUE ESTÃO SOB SUA CUSTÓDIA. CULPA IN VIGILANDO. DANOS MORAIS. CABIMENTO. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS E MATERIAIS. PENSÃO MENSAL DEVIDA. REDUÇÃO DO LIMITE DE 70 ANOS DE IDADE DA VÍTIMA PARA A DATA EM QUE ESTA COMPLETARIA 65 ANOS. MINORAÇÃO DO QUANTUM DA PENSÃO ARBITRADA PARA 1/3 DO SALÁRIO MÍNIMO A PARTIR DO DIA EM QUE O DE CUJUS ATINGIRIA 25 ANOS, HAJA VISTA EXISTIR A PRESUNÇÃO DE QUE A CONTAR DESTA IDADE ELE CONSTITUIRIA FAMÍLIA. DESPESAS COM O FUNERAL COMPROVADAS. JUROS LEGAIS CONTADOS DA CITAÇÃO. ADEQUAÇÃO DA VERBA HONORÁRIA E ISENÇÃO DO PAGAMENTO DE CUSTAS PELO ENTE ESTATAL. REMESSA PARCIALMENTE PROVIDA.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Acórdão: Apelação e reexame necessário 70002262053 Relator: Antônio Corrêa Palmeiro Da Fontoura EMENTA: DANO MORAL. INCENDIO EM PRESÍDIO, MORTE E LESOES EM DETENTOS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. PENSIONAMENTO. E RESPONSAVEL O ESTADO PELA MORTE E LESOES DE APENADOS QUE ESTAO SOB SUA CUSTODIA. QUANTIFICACAO DA INDENIZACAO ANTE AS CONDICOES DAS VITIMAS E A INTENSIDADE DA DOR DOS ATINGIDOS. PENSIONAMENTO. FIXACAO. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO REJEITADA. APELO DO ESTADO DESPROVIDO. APELO DOS AUTORES PROVIDO, EM


11 PARTE. SENTENCA MANTIDA, NO MAIS, EM REEXAME NECESSARIO. (APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO Nº 70002262053, SEXTA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: ANTÔNIO CORRÊA PALMEIRO DA FONTOURA, JULGADO EM 11/12/2002).

Demais disso, mesmo que se possa argumentar que na prática não seja fácil a distinção dos casos de omissão dos de danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória, ainda, assim, não há que ser admitida a responsabilização objetiva do Estado quando da presença de comportamentos omissivos específicos. Pois bem, a quem caberia o ônus de provar que no caso levado a exame do Judiciário teria ocorrido uma omissão específica? Conforme reza a disciplina geral do ônus probandi, ao autor cabe o ônus de provar fato constitutivo de seu direito (CPC, art. 333, inc. I)10. Nesse sentido, tendo o autor de provar os fatos constitutivos de seu direito, deveria ele, ao menos, demonstrar a existência de uma omissão específica do Estado para fins de responsabilização civil. Nesse momento, todavia, uma vez provada a omissão específica já terá o autor demonstrado a omissão culposa da administração. Ora, a prova da omissão específica, nada mais é do que a prova da existência de um dever individualizado de agir violado, portanto, a verdadeira demonstração de culpa da administração. Por mais curioso que possa parecer aqui, então, estar-se-á provando da mesma forma que nos casos de omissão genérica que, sem sombra de dúvidas, aponta para uma responsabilização de cunho subjetivo, em outras palavras, com análise da culpa. Outrossim, não se argumente aqui com a culpa presumida, uma vez que, por mais que esta possa ser aceita na discussão de responsabilidade civil do estado por omissão, não há de ser confundida com a responsabilidade objetiva esculpida nos termos do art. 37, § 6º 10

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 24 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, pp. 419 e 420.


12 da CRFB. Conforme se sabe, mesmo que se admita que, por construção pretoriana, em determinadas hipóteses deva prevalecer a culpa presumida em prol de uma das partes, esta impõe uma mera presunção relativa de culpa, o que quer dizer que é admitida prova em contrário a respeito da sua inexistência em determinado caso concreto. Já, no caso de responsabilidade pela teoria objetiva, algo diferente parece ocorrer, posto que, como nesse caso não se discute sobre a existência ou inexistência de culpa, esta sofre uma presunção absoluta de existência. O que se quer dizer com isso é que, diante de tal presunção absoluta, portanto, iuris et de iure da culpa, a discussão jurídica nesse caso se limitaria à verificação da presença ou não do nexo de causalidade. Todavia, como já demonstrado, em sede de responsabilização, por uma questão de ordem lógica, não seria possível a admissão da teoria objetiva de responsabilidade, mas, em todo caso, o máximo que se poderia permitir seria uma presunção relativa de culpa da administração, o que faria com que o debate permanecesse sempre na seara da culpa. Muitas vezes, conforme é cediço, por construção pretoria, é permitida a admissão da culpa presumida em determinados casos em que, mediante o balanceio de princípios jurídicos, se verifica a fragilidade de uma das partes em relação a outra. Tudo em prol da igualdade substancial das partes e de um processo com uma efetividade qualitativa maior. Em arremate, diz Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a admissibilidade da culpa presumida:

“Tal presunção, entretanto, não elide o caráter subjetivo desta responsabilidade, pois, se o Poder Público demonstrar que se comportou com diligência, perícia e prudência – antítese da culpa -, estará isento da obrigação de indenizar, o que jamais ocorreria se fora objetiva a responsabilidade”11.

11

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 887.


13

3. A TEORIA DA FALTA DO SERVIÇO (FAUTE DU SERVICE) E A RESPONSABILIDADE POR COMPORTAMENTO OMISSIVO

A teoria da falta do serviço (faute du service) trabalha, basicamente, em cima de três possíveis situações ocasionadas pela falha do serviço, quais sejam: quando o serviço não funcionou (devendo funcionar), quando funcionou atrasado ou quando funcionou mal. Esses são os três pilares básicos de sustentação da mencionada teoria. Nesse sentido, o que se pode constatar é que todos os pilares mencionados evidenciam casos de verdadeira omissão estatal, ou seja, hipóteses em que, havendo um dever legal de agir do Estado, este se manteve inerte, ainda que se possa admitir uma inércia parcial que tenha contribuído para o evento danoso. Assim, a teoria da falta do serviço encontra espaço justamente no debate da responsabilidade do Estado por comportamentos omissivos, mesmo embora, como demonstrado anteriormente, tal teoria advenha de um período histórico em que a responsabilidade do Estado era totalmente encarada sob o aspecto subjetivo. Destarte, há de se registrar, que, de acordo com as idéias já trabalhadas nesta obra, na seara da responsabilidade por omissão deve prevalecer, a despeito da nobre redação do art. 37, § 6º da CRFB, a verificação de culpa da administração, uma vez que aqui necessário se faz provar, diante das circunstâncias do caso concreto, o dever de agir ao qual estava vinculado o Estado. Desse modo, não haveria possibilidade de se permitir aqui a


14 incidência da teoria objetiva de responsabilidade da administração, uma vez que a prova do dever de agir, que se faz necessária, é, conseqüentemente, verdadeira prova de culpa do Estado. É, de fato, a demonstração de que o Estado deveria agir, mas que não o fazendo, sua omissão fora condição para a existência do dano. É importante, portanto, aqui consignar que a expressão falta do serviço poderia gerar confusões a ponto de ser interpretada como modo de responsabilização objetiva do Estado. Tal confusão, como ressalta Celso Antônio Bandeira de Mello12, advém da defeituosa tradução da palavra francesa faute. Ora, em França, o seu real significado é o de culpa. Restando por demais comprovado que a expressão falta do serviço fora fruto de uma incorreta tradução, trazendo a idéia de algo objetivo. Seguindo essa linha de raciocínio, como nos casos de responsabilidade por omissão se exige uma análise objetiva do ato administrativo, tal análise também não deve ser confundida com a teoria objetiva da responsabilidade. Quando se fala em análise objetiva do ato administrativo, em verdade, está-se referindo à verificação do ato administrativo frente aos padrões normais de conduta na prestação do serviço público. Aliás, meramente à titulo exemplificativo, guardando as diferenças básicas das disciplinas do direito, tal concepção seria o que no Direito Penal se chama de dever objetivo de cuidado13, que encontra respaldo também no estudo da culpa. Assim, como a análise objetiva do ato administrativo impõe um caminho que se envereda pelo estudo da culpa (negligência, imperícia e imprudência), esta não deve ser confundida com a teoria objetiva de responsabilidade, que se prende somente à apreciação do fato administrativo, do seu resultado e do respectivo nexo causal, sem adentrar ao aspecto subjetivo, a culpa.

12 13

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 887. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 23 ed. v. 1. Saraiva: São Paulo, 1999, p. 293.


15 Por fim, outro fator importante, diz respeito ao nexo de causalidade na omissão. Em verdade, nos casos de omissão, esta não deve funcionar como causa de qualquer resultado, haja vista que se a omissão é o não agir, obviamente nada poderia surgir naturalisticamente de um comportamento inerte. Em outras palavras, nada poderia surgir do nada. Nesse sentido, há de se considerar que a omissão não funciona como causa de qualquer resultado, mas como verdadeira condição de existência de um determinado evento lesivo. Assim, no tocante à análise omissão estatal, melhor seria falar em nexo condicional do que em nexo causal.


16

CONCLUSÃO

Diante das já esboçadas considerações, é possível afirmar que o estudo da responsabilidade administrativa por comportamentos omissivos, pelas infindáveis discussões possíveis, apresenta-se como um tema que desperta bastante a atenção dos estudiosos do direito. Aliás, diga-se de passagem, a partir do momento em que se passou a admitir a responsabilidade objetiva do Estado, o tema cresceu em importância, sobretudo pelas diversas discussões doutrinárias e divergências jurisprudenciais que passaram a debater sobre a aplicação da teoria objetiva de responsabilidade no tocante às omissões estatais. Em verdade, consoante demonstrado, a responsabilidade por omissão evidencia uma inércia administrativa ilícita, portanto, enquadrando-se dentro dos modelos de responsabilização do Estado por comportamento ilícito. Tal afirmação decorre do fato de que, para se demonstrar a responsabilidade do Estado nessas situações, é preciso que haja um comando normativo indicando que, diante de circunstâncias apresentadas em concreto, seja implementada uma conduta positiva do Estado, ou seja, impondo um agir. Demais disso, por força da necessidade de se comprovar o a violação de um dever de agir importo pela norma, a conclusão alcançada é que nos casos de responsabilidade estatal por comportamento omissivo, deverá sempre ter lugar a verificação da culpa. Nesse


17 passo, a despeito de respeitáveis posicionamentos que insistem em admitir a responsabilidade objetiva nas hipóteses de omissão, ficou comprovado neste estudo que em tais casos não se poderá fugir da apreciação do elemento subjetivo da conduta administrativa, qual seja, a culpa. Não se argumente que na presente modalidade de responsabilidade administrativa deva se separar os casos em há omissão específica, dos de omissão genérica. Ora, como citado, alguns defendem a tese de que quando houver uma omissão específica da administração, esta deverá sofrer os ônus de uma responsabilização pela teoria objetiva, portanto, independentemente da presença da culpa. Contudo, tal posicionamento não merece acolhida dentro da sistemática jurídica brasileira por duas razões básicas: a primeira, por necessidade técnica de melhor orientação no sistema de responsabilização e, a segunda, pela exigência de ordem lógica de compreensão do sistema de probatório admitido no Brasil. Quanto ao primeiro ponto crítico, os exemplos comumente encontrados para demonstrar hipóteses de omissão específica, não se enquadram exatamente nessa modalidade de responsabilização estatal. Antes, ao invés de evidenciarem comportamentos omissivos, se encaixam numa terceira forma de responsabilização, qual seja, de danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória. Ora, nesta terceira modalidade de responsabilização, justamente por ela trabalhar com a idéia de risco suscitado, deve haver aplicação da teoria objetiva, pois que o Estado passa a se colocar numa situação propiciatória ao dano, não por omissão. No entanto, partindo ao segundo ponto, pode-se afirmar que, a despeito de, muitas vezes, a distinção da omissão dos casos de danos dependentes de situação produzida pelo Estado diretamente propiciatória, ser difícil, o problema pode ser resolvido através do


18 estudo do onus probandi. Aliás, conforme reza a disciplina processual civil, ao autor cabe o ônus de provar fato constitutivo de seu direito (CPC, art. 333, inc. I). Nesse sentido, o autor deveria, ao menos, demonstrar a existência de uma omissão específica do Estado para alcançar a tão almejada responsabilização civil objetiva. Nesse momento, todavia, uma vez provada a omissão específica já terá o autor demonstrado a omissão culposa da administração. Observe-se, porém, que a prova da omissão específica, nada mais é do que a prova da existência de um dever individualizado de agir violado, portanto, a verdadeira demonstração de culpa da administração. Por mais curioso que possa parecer aqui, então, estar-se-á provando da mesma forma que nos casos de omissão genérica que, sem sombra de dúvidas, aponta para uma responsabilização de cunho subjetivo, em outras palavras, com análise da culpa. Como resultante do exposto, conclui-se que a teoria da falta do serviço permanece aplicável em sede de responsabilidade por omissão, valendo, portanto, nesse aspecto, a apreciação de culpa na atividade administrativa lesiva. Assim, apesar da possibilidade de muitos confundirem a teoria da falta do serviço com a responsabilidade objetiva da administração, ela tem lugar que se circunscreve á verificação da culpa. Em verdade, a expressão francesa faute du service, não encontra correta tradução para o português, pois que tradução de faute é indicativa de culpa. Ainda, por fim, há de se sustentar que na omissão do Estado, esta não funciona, propriamente, como causa de qualquer resultado, pois nada pode surgir da ausência de comportamento. Dessa sorte, na seara da análise do comportamento omissivo, mais apropriado se falar em nexo condicional do que em nexo causal, visto que a omissão não é causa, mas verdadeira condição do evento lesivo.


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REFERÊNCIAS CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. GASOS, Iara Leal. A Omissão Abusiva do Poder de Polícia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1994. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 23 ed. v. 1. Saraiva: São Paulo, 1999. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001. PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 8 ed. São Paulo: Atlas, 1997. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 24 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998.


CARTA ÀS ESTRELAS Elmar Martins Escrevo. Porque, Professor, não estive presente em dia, hora e lugar quando outros formalizaram sentimento de dor e adeus por sua partida precoce. E é sempre precoce a viagem de quem, após oito décadas, vai-se embora sendo ainda imprescindível. Não estive presente. As correntes da vida me empurraram para outro lugar onde eu era ( diziam e erraram) mais necessário e ( diziam e exageraram) indispensável. .Não fui presente como lhe devia naquele seu tempo maior, na sua hora absoluta. Não respondi à chamada para somar-me, de corpo e alma, ao pranto unânime. Pode-se averbar isso de ingratidão do discípulo que ficou, para com o mestre que se foi. Não me importaria que assim julgassem. Mas talvez seu olhar de pastor, sobre a vasta sala de aula que seria a sua estação de partida tenha notado, em busca do menor dentre os inúmeros discípulos presentes e agradecidos ( a maioria deles ilustres), a ausência mínima desta ovelha quanto a isso tresmalhada. Razão bastante para que tente justificar-me.

Escrevo.

Quando eu o conheci, Professor... quanto tempo faz? Sei é que foi

num tempo em que ambos estávamos atados ao mesmo tempo que ainda me cerceia e atordoa. Àquele tempo mutante, absurdo, dificilmente aceitável porque sem permanência, que encadeia, algemando,

todos os mortais. E anuncia, enquanto dura, logo que começa, o angustiante

paradoxo de seu próprio fim.. Tempo assim finito do qual um de nós agora se liberta. Sei é que quando eu o conheci, Professor, em verdade não o estava conhecendo naquele então. Como poderia fazê-lo o jovem aluno cheio de sonhos e cabelos na cabeça, incapaz de identificar naquele professor dele afastado pela muralha do saber, do terno e da gravata, e pela data de nascimento, alguém que era, no coração, bem mais jovem do que ele? Até porque havia em você – já havia, precoce embora, em sua não ostensiva juventude - aquela tranqüilidade , aquela paz, imperturbável suavidade gemelar da inércia apenas aparente que, em nossa turbulência liceísta, não entendíamos. Mas que, talvez secretamente ( e eu me pergunto agora) desejávamos que nos fosse ensinada, colada em nós, adesiva, como tabuada, como beabá, como alfabeto ou vacina. Mas a lição de vida ( começa-se a perceber depois), não pode ser memorizada, decorada, mecanizada. Ela há de ser mostrada e demonstrada, testemunhada, de um lado, sim, mas só a


aprende quem aceita recebê-la, menos fruto prestes ao consumo que semente para laboriosa germinação.... Escrevo. Como quem não tem o hábito de escrever cartas. Recebo algumas que sistematicamente arquivo em pasta própria, por ordem cronológica e alfabética. Depois, com igual e meticulosa metodologia, esqueço-me de respondê-las. Mas , Professor, nossos caminhos tiveram intercessões singulares. Já advogado, comecei a lecionar História no mesmo Liceu, antes da sua aposentadoria.

Depois, beneficiou-me o acúmulo de tarefas incompatível com seu

inexistente dom da ubiqüidade. E me surpreenderam com o convite de responsabilizar-me, no seu temporário e longo impedimento, pela sua cadeira de História Contemporânea para a quarta série da Faculdade de Filosofia. Aceitei. Vale muito - seja qual for o tamanho de quem for dele portador – o título de ter sido seu discípulo. Depois, o olhar benevolente do mestre, como asa protetora e invisível sobre o discípulo, agraciou-me com o convite para prefaciar seu primeiro livro sobre Direito Romano. E para fazer a apresentação oral no lançamento do segundo livro. Voltaríamos a coincidir no magistério na Faculdade de Direito de Campos. Carta, minhas cartas, temo que digam de menos ou escrevam demais. Esta não sei a que endereço nem a quem remeta. Há de ser muito distante o País da Vida , destino final de todos os bons, lugar repleto de História, mas sem geografias. Sei é que fica muito além dos cometas, planetas e sóis. Tão distante que, por mais perto que dele se esteja, é impossível vê-lo sem o lume da glória. Mas tão próximo que os bons, quando partem, o alcançam logo num instante de tempo que dura menos que o agora. Ignoro endereços no País da Vida. Sei é que é – e você ensinou- para cima, não no rumo que a ambição ou o e-mail indica, mas no sentido que as árvores vetorizam após realizarem o humilde milagre das raízes. Muito além das estrelas a quem neste momento recorro, como no tempo em que eu era oficialmente criança. Então, diziamme, em cada estrela habitava um anjo cuja única função era acendê-la e apagá-la a intervalos precisos.

Nunca ninguém me deu motivo para deixar de acreditá-lo. Até porque já não se

considera racional – e o Professor me ensinou isto – quem só acredita no que vê ou entende. Ativando relembranças, remeto minha carta sem destinatário ou endereço, aos cuidados das estrelas. Em alguma delas há de haver um anjo-estafeta, talvez aquele mesmo que acende a luz


da esperança no coração dos seres humanos. E ele, por certo, haverá de entregá-la a quem de direito . Talvez esta nem seja uma carta, mas alguma coisa em que eu tenha pensado com o coração, manifestando, nos desvãos da minha saudade, a gratidão por saber que o Professor Aldano esteve entre nós e a alegria por sentir que chegou, como prêmio, ao País da Vida. Não é carta. Mas disse que não sabia mesmo escrever carta... E o que eu penso com o coração há de chegar, certamente, porque seja agradecimento formatado em prece, igual como chega a voz de santos e mártires, mas também a dos pecadores ,. Porque toda oração verdadeira vai e chega , até sem intermediários, com asa própria, varando num instante o espaço de estrelas, cometas e sóis, brilhando mais do que eles, muito além, ao País da Vida, onde a receberá e ouvirá a onisciência de Deus.


JURISPRUDÊNCIA Wladimir Flávio Luiz Braga Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais Professor de Deontologia Jurídica e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito de Campos Membro da Ordem dos Advogados do Brasil - Conselho Seccional de Minas Gerais

Entende-se por Jurisprudência o conjunto de decisões, uniformes e repetidas, de um tribunal, sobre casos semelhantes. A uniformização das decisões judiciais ou sistematização da jurisprudência é feita através de súmula (também chamada enunciado), publicada no órgão de imprensa oficial (Diário Oficial) e no site do respectivo tribunal. A súmula resume a posição adotada pelo tribunal depois de reiteradas decisões sobre um mesmo assunto; registra a “opinião” do tribunal sobre o tema específico recorrente, a partir de sua interpretação pacífica ou majoritária. Serve, assim, de importante orientação para a comunidade jurídica. Mesmo não sendo estritamente obrigatória, é altamente recomendável que se considere seu direcionamento. As súmulas integram o ordenamento legal porque reproduzem decisões dos tribunais (acórdãos), classificadas estas, na hierarquia das normas, como normas jurídicas individuais. Têm, por isso, peso muito próximo ao da lei. Ex.: Súmula nº 161 / STF: Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar. Súmula nº 19 / STJ: A fixação do horário bancário, para atendimento ao público, é da competência da União.

_______________________________________________________ A súmula vinculante foi criada em 30/12/2004, com a Emenda Constitucional n° 45, que adicionou o artigo 103-A à Constituição. Esta súmula, quando aprovada pelo STF (por 2/3 de seus ministros), se torna um entendimento a ser seguido, obrigatoriamente, por todos os tribunais e juízes do País, bem como por toda a Administração Pública. Na prática, adquire força de lei, criando um vínculo jurídico e possuindo efeito sobre todos (erga omnes). A referida espécie de súmula não vincula o Poder Legislativo que, por ser o legislador em caráter típico, não pode sofrer engessamento de sua função. Também não vincula o próprio Supremo Tribunal Federal. Este pode, a qualquer tempo – e desde que pelo mesmo quórum (2/3) –, alterar ou revogar a súmula vinculante editada. Ex.: Súmula Vinculante nº 02 / STF: É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias.


GARANTIAS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO Wladimir Flávio Luiz Braga Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais Professor de Deontologia Jurídica e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito de Campos Membro da Ordem dos Advogados do Brasil - Conselho Seccional de Minas Gerais

DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL a) Tutela constitucional: a.1- Dos princípios fundamentais da organização judiciária: Normas constitucionais sobre os órgãos da jurisdição, suas competências e garantias; Poder Judiciário (arts. 92 a 126 / CR); Órgãos auxiliares: MP (arts. 127 a 130-A / CR); advocacia/adv. pública/defensoria pública (arts. 131 a 135 / CR). a.2- Do direito de acesso à justiça Garantias da ação e da defesa: - Discussão sobre direitos: obrigatoriedade de apreciação pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV / CR); - Ampla defesa: art. 5º, LV / CR; - Assistência jurídica do Estado aos pobres: art., 5º, LXXIV / CR. a.3- Do processo: - Competência para legislar sobre Direito Processual: União (art. 22, I / CR); - Competência (concorrente) para legislar quanto a procedimentos em matéria processual: União, Estados e DF (art. 24, XI / CR); -Garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV); - Juiz natural (art. 5º, XXXVII / CR) e competente (art. 5º, LIII); - Contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV / CR); - Igualdade: buscar o equilíbrio entre os litigantes (art. 5º, I / CR); - Publicidade dos atos processuais: regra geral (arts. 5º, LX e 93, IX / CR); - O juiz deve fundamentar suas decisões (art. 93, IX / CR); - Inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito (art. 5º, LVI / CR); - Presunção de não-culpabilidade do acusado (art. 5º, LVII / CR); - Inviolabilidade do domicílio: restrições legais nos casos de flagrante (art. 5º, XI); - Vedada a identificação criminal dos já identificados civilmente, com as ressalvas legais (art. 5º, LVIII / CR); - Prisão: só em flagrante delito ou por mandado judicial (art. 5º, LXI / CR); - Comunicação da prisão à família e ao juiz (art. 5º, LXII / CR); - Vedada a incomunicabilidade do preso; permitida assistência do defensor e da família; desejando, o detento pode permanecer calado (art. 5º, LXIII / CR); - Relaxamento imediato da prisão, se ilegal (art. 5º, LXV / CR); - Direito à identificação dos responsáveis pela prisão e pelo interrogatório (art. 5º, LXIV / CR); - Liberdade provisória, com ou sem fiança, assegurada (art. 5º, LXVI / CR); - Indenização pelo erro judiciário e tempo de prisão adicional à condenação (art. 5º, LXXV / CR); - Celeridade processual (art. 5º, LXXVIII / CR).

b) Jurisdição constitucional: b.1- Controle repressivo ou judicial de constitucionalidade das leis em tese (leis em sentido formal e material: normas jurídicas oriundas dos três Poderes da República): b.1.1- Controle concentrado / abstrato: “erga omnes”: ADPF (art. 102, §1º / CR e Lei nº 9.882, de 03/12/1999); ADIN (arts. 102, I, “a”, 1ª parte; 97 e 103, caput / CR e Lei 9.868, de 10/11/1999); ADECON (arts. 102, I, “a”, 2ª parte e 103, caput / CR e Lei 9.868, de 10/11/1999). b.1.2- Controle difuso / concreto: “inter partes”: ARGUIÇÃO INCIDENTAL (arts. 102, III e 52, X / CR). b.2- Jurisdição das liberdades, sobretudo pelo uso dos “remédios” constitucionais-processuais: habeas corpus (art. 5º, LXVIII / CR), mandado de segurança – inclusive coletivo – (art. 5º, LXIX e LXX / CR), mandado de injunção (art. 5º, LXXI/CR), habeas data (art. 5º, LXXII / CR) e ação popular (art. 5º, LXXIII / CR).


O MINISTRO FUX, FICHA LIMPA E SUA APLICAÇÃO?

A discussão cada vez mais acalorada impulsionada pela mídia sob o palio da iniciativa popular, direcionada no sentido de pugnar por ética na política é sem dúvida digna de aplausos e merece o apoio de todos. No entanto é preciso que se estabeleçam critérios que não ofendam a Carta Constitucional, pois podem atentar contra garantias que foram conquistadas após anos de sucessivos governos ditatoriais. O açodamento na maioria das vezes faz com que o emocional se sobreponha ao racional e ao contrário de legitimar as ações fazem com que a mesma possa acontecer subvertendo a ordem das coisas, muito mais sério quando se trata da possibilidade de subverter a ordem jurídica emanada do texto constitucional. A nossa constituição agasalha como princípios o devido processo legal, o contraditório revestido de ampla defesa com presunção de inocência e o respeito aos seus preceitos. Acontece que diversas vezes se constatam na pratica atropelos a esses princípios que são basilares e inalienáveis para existência plena do Estado Democrático de Direito. O ministro do STF, Luiz Fux, recém empossado no STF votou contra a aplicação da Lei da Ficha Limpa para as eleições de 2010. Com o voto do Ministro a questão restou decidida, pois representa o desempate diante do impasse da última votação. Gilmar Mendes, relator do processo, votou contra a aplicação da Lei com o mesmo argumento que o princípio da anualidade, previsto no artigo 16 da Constituição Federal, segundo o qual uma lei que modifica o processo eleitoral só pode valer no ano seguinte de sua entrada em vigor. Contrariando a ótica daqueles que pretendem que o judiciário se torne uma mão da mídia, o texto adiante transcrito mostra que : “1O guardião da ordem constitucional parece haver esquecido que a história é pródiga de julgadores que seguiram o clamor, e não deixaram saudade ou exemplo a ser seguido. O Ministro Cezar Peluso bem que advertiu que um tribunal que assim julga “não merece nem o respeito do povo”. O ministro Celso de Mello, relator da ADPF 144, em brilhante e densamente fundamentado voto, sentenciou: “O que se mostra importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, é que, não obstante golpes desferidos por mentes autoritárias ou por regimes autocráticos, que preconizam o primado da idéia de que todos são culpados até prova em contrário, a presunção de inocência, legitimada pela idéia democrática, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana”.2 “Ainda segundo o ministro Celso de Mello “a repulsa à presunção de inocência, com todas as conseqüências e limitações jurídicas ao poder estatal que dela emanam, mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos, restrições não autorizadas pelo sistema constitucional”3


Como se vê a Corte maior estava dividida, o que demonstra que o tema não detém a pureza e a leveza que pretende lhe outorgar a mídia, alavancando a iniciativa popular. Em artigo assinado por Christhian Naranja4 sob o título “Doutor, e a imprensa?” - Em certa ocasião apresentei um pedido de liberdade para um magistrado. Era um caso grotesco de ilegalidade, visto à olho cru, olho daquele que não é do meio jurídico. O magistrado analisou atentamente, de olhos arregalados, e soltou: - Isso é um absurdo. Este rapaz está preso de forma inadmissivel! Quando eu imaginei que ele decidiria pelo relaxamento da prisão, decidiria por sanar a ilegalidade, ele disse: - Doutor, e a imprensa? Um inocente estava preso, o juiz havia constatado isto e… hesitou, marchou para trás, tudo por receio de, no dia seguinte, virar manchete de jornal, ser visto como a fatia capenga do velho ditado “A policia prende e a justiça solta!’. Eu não acreditava. Via nascer ali, na minha frente, mais um refém da imprensa que muitos chamam de marrom e que eu chamo de maldita.” “O exercício da liberdade de expressão influencia não só a opinião pública, mas também interfere nas decisões do Poder Judiciário”, conclusão da jornalista e advogada Bianca Zanardi, 26, em sua monografia Imprensa e a liberdade de expressão no Estado Democrático de Direito: análise da concepção de justiça difundida pelos meios de comunicação de massa.5. Ao decidir com livre convencimento que deve nortear as decisões do judiciário, o ministro Fux não fez diferentemente daqueles que votou a favor da imediata aplicação da lei ficha limpa, porque cada um o fez, na certeza de que a interpretação que deu ao texto constitucional seria aquela que mais se coadunava com os preceitos emanados da Carta maior. O Judiciário não pode ficar atrelado com suas decisões para as interpretações que se lhe pretende impor a mídia, pois senão teremos não um judiciário independente, mas um judiciário midiático, o que significa rasgar a constituição da república, negar o devido processo legal, a ampla defesa, a presunção de inocência e a aplicação das normas constitucionais, sonegando desse poder a sua independência na prestação da jurisdição que é de sua exclusiva atribuição. “É preciso não esmorecer” 100% contra a corrupção 100% a favor da apuração. 1

http://www.conjur.com.br/2010-set-27/ficha-limpa-subverte-principios-essenciaisestabilidade-direitos. EricK Wilson Pereira. 22 http://www.osconstitucionalistas.com.br/a-inconstitucionalidade-do-projeto-de-leificha-limpa%E2%80%9D-o-pais-da-hipocrisia-parte-i - RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO* 3

Ibdem. http://diariodeumadvogadocriminalista.wordpress.com/2011/03/04/doutor-e-aimprensa/ 5 http://www.abert.org.br/site/index.php?/Todas-Noticias/monografia-premiadaconclui-que-imprensa-interfere-nas-decisoes-do-poder-judiciario.html 4


JUSTIÇA ITINERANTE CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

1 - A relevante questão do acesso à Justiça. Um dos maiores desafios dos operadores do Direito sempre foi e será o de tornar efetivo o princípio do acesso à Justiça. É que, se hoje se reconhece a proeminência da atuação do Poder Judiciário visando à defesa dos direitos dos cidadãos, há que se adotar mecanismos que viabilizem a concreta fruição da jurisdição por parte dos mesmos cidadãos. Não é mais possível ouvir sem indignação aquela antiga e conhecida zombaria inglesa, segundo a qual as portas da Justiça estariam abertas a todos, assim como as portas do Hotel Ritz estão. Extrai-se do artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88 o princípio do acesso à Justiça, na medida em que estabelece que não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou a ameaça a direito. Corolários deste mandamento são os que, igualmente em nível constitucional, determinam que o Estado prestará assistência jurídica integral – e portanto judicial – aos necessitados (artigo 5º, inciso LXXIV), e que a todos será garantida a razoável duração do processo, bem como a celeridade de sua tramitação (artigo 5º, inciso LXXVIII). O que pretende o pacto constitucional, portanto, é que não haja empecilhos desnecessários à fruição da jurisdição. A Justiça deve estar disponível e ser rápida, sob pena de se tornar injusta a sua dicção. Com vistas à consecução destes objetivos no âmbito da Justiça Estadual é que a Emenda Constitucional 45/2004, entre outras medidas, acrescentou ao artigo 125 da CF/88 o parágrafo 7º, nos seguintes termos: “O Tribunal de Justiça instalará a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários”. Vale a pena, assim, tecer algumas brevíssimas considerações sobre a experiência da Justiça Itinerante, especialmente no Estado do Rio de Janeiro1.

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Ressalte-se que o objetivo destas linhas não é, nem de longe, o de esgotar o tema atinente à Justiça Itinerante como mecanismo fomentador do princípio do acesso à Justiça. Sem minimizar a profundidade do tema, o que se pretende, aqui, é tão-somente apresentar algumas idéias e fatos que o tangenciam, como meros pontos de partida para a identificação de eventuais controvérsias e notadamente à luz de sua experiência prática no Estado do Rio de Janeiro. Para o estudo mais aprofundado do tema, sugere-se a leitura da obra de MARCO ANTONIO AZKOUL, intitulada “Justiça Itinerante” e publicada pela Editora Juarez de Oliveira em 2006, como resultado de sua tese de doutorado pela PUC de São Paulo.


2 - O que é a Justiça Itinerante? Como se viu, a Justiça Itinerante, por mandamento constitucional expresso, nada mais representa do que a descentralização dos serviços judiciários no âmbito dos Estados, ainda que para tanto seja necessária a utilização de infra-estrutura já existente no âmbito público local e da comunidade. O vocábulo itinerante serve, segundo a autorizada lição de HOUAISS e VILLAR, à identificação daquilo que “se desloca de lugar em lugar no exercício de uma função”2. Ou seja: Justiça Itinerante significa a prestação jurisdicional descentralizada, de modo a fazer com que o cidadão a receba nas proximidades do local em que vive, em sua comunidade, e não em lugares longínquos, no prédio do Fórum, como é tradicional que aconteça. Isto mesmo: utilizando-se dos meios disponíveis e móveis, servidores públicos passam a se deslocar aos locais mais distantes, para oferecer a prestação jurisdicional. O cidadão não vai até o Juiz. É o Juiz quem vai até o cidadão. Trata-se, evidentemente, de medida que, se tornada efetiva, fomentará o acesso à Justiça. Os cidadãos que até então não reclamavam ou que tinham dificuldades para reclamar por seus direitos - especialmente porque distantes da sede dos detêm a jurisdição –, têm, doravante, a possibilidade de exercer aquela parcela da cidadania em sua comunidade, por mais distante que seja. Visando à facilitação da implementação da Justiça Itinerante, estão os Tribunais de Justiça autorizados a se valer da estrutura móvel que houver para o deslocamento de seus servidores, ainda que isto implique a utilização de serviços e bens que componham a realidade da Administração Pública municipal ou comunitária, tais como prédios, escolas, veículos, praças etc. Cuida-se, ademais, de projeto a ser implementado, segundo o texto constitucional, diretamente pelos Tribunais de Justiça, o que indica a desnecessidade da edição de lei infraconstitucional. Vale, portanto, desde logo, a descentralização da competência dos órgãos fixos do Poder Judiciário que já existem, de molde a torná-los itinerantes. Desde a Emenda Constitucional 45/2004, vários Estados já implementaram a Justiça Itinerante, cada qual a seu modo e de acordo com as suas peculiaridades, por ato normativo emanado do respectivo Tribunal de Justiça.

3 - Experiência no Estado do Rio de Janeiro.

No Estado do Rio de Janeiro, a Justiça Itinerante foi consagrada por meio da Resolução 10/2004, de 24/06/2004, e tem como objetivo, segundo o seu artigo 1º, “assegurar a entrega da prestação jurisdicional nos segmentos de direito civil, de família, de infância e juventude, dos juizados especiais

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HOUAISS, Antonio, e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.660.


cíveis e criminais e matéria relativa ao registro civil de pessoas naturais (...)”3. Cuida-se, como visto, da extensão, em determinadas matérias, da competência de órgãos jurisdicionais tradicionalmente estáticos, tanto na seara cível quanto no campo penal. Ainda segundo a Resolução 10/2004, desta feita em seu artigo 4º, os módulos da Justiça Itinerante deveriam, num primeiro momento, funcionar nos Municípios que não fossem sede de Comarcas (Tanguá, Macuco, Aperibé, São José de Ubá, e Varre-Sai), e, depois, em distritos mais distantes do centro dos Municípios sedes de Comarcas e com grande extensão territorial, bem como, finalmente, nas regiões periféricas da Capital com grande densidade demográfica 4. De fato, passados vários anos desde a edição da Resolução 10/2004 e até o final de 2010, a Justiça Itinerante já era uma realidade nas seguintes localidades do Estado do Rio de Janeiro: Areal, Carapebus, Levy Gasparian, Macuco, Mesquita, Tanguá, São Gonçalo, Duque de Caxias e Campos dos Goytacazes (Tocos e Santo Eduardo)5. As unidades móveis da Justiça Itinerante fluminense funcionam em ônibus dotados de estrutura para adequado atendimento à população, inclusive com a realização de audiências (equipamentos de informática, de telefonia, mesas, cadeiras, banheiros etc), além de estarem dotadas de dedicados servidores especialmente designados para tal finalidade, inclusive por parte da Defensoria Pública e do Ministério Público6. Do ponto de vista estatístico, vê-se que a Justiça Itinerante no Estado do Rio de Janeiro tem atendido, em sua maioria, ao público feminino e com renda familiar de um a dois salários mínimos por mês, bem como, também em sua maioria, ao público que não tem ensino superior. Houve, nos anos de 2009 e 2010, cerca de 38.000 atendimentos em todas as regiões do Estado 7. Ainda à guisa de estatística, pode-se dizer que mais da metade dos casos registrados dizem respeito ao direito de família, além de outras parcelas referentes, em ordem decrescente de demanda, à expedição de documentos, ao direito civil em geral, ao registro civil e pessoas naturais, às infrações penais de menor potencial ofensivo e à infância e juventude 8.

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Conforme experiência profissional do autor destas linhas, como Promotor de Justiça que, ao lado de outros, tem sido designado pelo Ministério Público fluminense desde o ano de 2009 para atuar, em Tocos e Santo Eduardo, na Comarca de Campos dos Goytacazes, junto ao Projeto Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 7

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4 - Conclusões. A sensibilidade de MILTON NASCIMENTO e FERNANDO BRANT deixou gravada na conhecida canção “Nos Bailes da Vida” uma sábia recomendação àqueles que buscam a realização de um ideal: “todo artista deve ir aonde o povo está”. Pois bem. Mesmo que longe da sensibilidade dos músicos mineiros, o legislador da Emenda Constitucional 45/2004 realçou o prestígio do princípio do acesso à Justiça e determinou que os agentes dotados de jurisdição, como se fossem artesãos da aplicação do direito, vão até o cidadão, independentemente do quão longe esteja, justamente para a realização do sonho da cidadania plena. Parece que a experiência levada a efeito no Estado do Rio de Janeiro tem sido alvissareira, já que os dados estatísticos demonstram que o Poder Judiciário está “colocando o pé na estrada” e se adaptando à realidade social. A Justiça deve ter as suas portas sempre bem abertas, ainda que elas tenham que ser levadas ao cidadão que se encontra distante. Se a distância é empecilho para a provocação da função jurisdicional, a iniciativa de fazer itinerante a Justiça tende a minimizar esse obstáculo. Trata-se de romper com modelos tradicionais e tornar mais democrático o direito à jurisdição, sempre em atenção ao que determina a CF/88.

Victor Santos Queiroz Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro Professor da Faculdade de Direito de Campos Junho de 2011


ARTIGOS CIENTÍFICOS

Mini-implante como ancoragem absoluta: ampliando os conceitos de mecânica ortodôntica Absolute anchorage with mini-implants: improving the concepts of the orthodontic mechanics Leonardo Alcântara Cunha LIMA1, Célia LIMA2, Viviane LIMA3, Vinícius LIMA4

RESUMO Um novo conceito de ancoragem e direcionamento de força foi introduzido na Ortodontia, a partir do emprego do miniimplante ortodôntico. Seu reduzido tamanho e sua grande resistência à força horizontal são, sem dúvida, a combinação ideal para sua indicação nas mais diversas mecânicas ortodônticas, possibilitando uma ancoragem segura, livre da cooperação do paciente. A clínica diária tem demonstrado a importância da integração entre implantodontistas e ortodontistas, viabilizando a utilização do referido método de ancoragem com excelência, eliminando efeitos colaterais e diminuindo o tempo de tratamento. O objetivo deste trabalho é apresentar diversas indicações clínicas para o uso dos mini-implantes, oferecendo subsídios que resultem em melhor desempenho na questão da distribuição das forças ortodônticas. Palavras-chave: Implantes dentários. Procedimentos de ancoragem ortodôntica. Biomecânica.

ABSTRACT A new concept of anchorage and force direction was introduced in orthodontics from the application of orthodontic miniscrew. Its reduced size and its big resistance in relation to the horizontal force are, absolutely, the ideal match for its indication in the most different orthodontic mechanics, enabling a safe anchorage, free of the pacient cooperation. The daily clinic has been demonstrating the importance of the integration among implant dentists and orthodontists, making viable the utilization of the mentioned anchorage method with honours, eliminating the side effects and reducing the time of the treatment. The objective of this work is to present several clinical indications, offering subsídies which result in a better development about the issue of distribution of the orthodontic forces. Key words: Dental implants. Orthodontic anchorage procedures. Biomechanics.

Endereço para correspondência: Leonardo Alcântara Cunha Lima Rua Visconde de Alvarenga, 143 Parque Universitário 28055-000 - Campos dos Goytacazes – Rio de Janeiro – Brasil E-mail: leo_orto@hotmail.com Recebido: 05/03/2010 Aceito: 09/04/2010 1. Doutorando em Ortodontia. Coordenador do Curso de Especialização em Ortodontia, UNIFLU – Centro Universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. 2. Doutoranda em Ortodontia. Coordenadora do Curso de Especialização em Ortodontia, UNIFLU – Centro Universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. 3. Aluna do Curso de Especialização em Ortodontia, UNIFLU – Centro Universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. 4. Mestrando em Ortodontia.

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Mini-implante como ancoragem absoluta: ampliando os conceitos de mecânica ortodôntica

INTRODUÇÃO Fatores como harmonia facial, oclusão funcional, estética aceitável e estabilidade pós-tratamento, são primordiais para o sucesso da clínica ortodôntica. Para que possamos alcançar tais resultados, um rigoroso e criterioso planejamento deve ser elaborado, permitindo uma movimentação dentária com o mínimo de efeitos colaterais. O deslocamento de um determinado grupo de dentes, sem alteração do correto posicionamento dos elementos de resistência do sistema, sempre foi desejado pelos ortodontistas. Os mini-implantes ortodônticos vieram estabelecer de maneira definitiva, a união entre a Ortodontia e a Implantodontia, constituindo um eficiente método de ancoragem, livre da necessidade de cooperação do paciente resultando em diminuição do tempo de tratamento, além de tornar os movimentos mais previsíveis e controlados4,9-10,19. O presente trabalho apresenta algumas sugestões de posicionamento e sua relação direta na realização de diversos movimentos dentários. MINI-IMPLANTE ORTODÔNTICO AUTO-PERFURANTE São fabricados em titânio grau V, podendo variar entre 4 a 12 mm de comprimento, por 1,2 a 2 mm de diâmetro15-17. Apresentam um formato cônico, com maior espessura do perfil transmucoso e uma ponta ativa mais fina. Este desenho inovador propõe-se a descartar a necessidade de perfurações prévias, simplificando consideravelmente o procedimento de instalação do mesmo. Este dispositivo apresenta maior estabilidade primária, oferecendo maior resistência à aplicação de carga imediata8 (Figuras 1 e 2).

PRINCIPAIS INDICAÇÕES A movimentação de um dente depende da intensidade e do direcionamento das forças sobre ele aplicadas. Este estímulo mecânico induz uma resposta celular sob forma de inflamação branda, que se resolve a cada ciclo de ativação do aparelho ortodôntico, culminando com a remodelação alveolar que estabiliza o dente em sua nova posição11. O reduzido tamanho do mini-implante possibilita sua instalação em pontos estratégicos, resultando em considerável redução dos efeitos colaterais nos dentes que anteriormente serviriam como ancoragem, permitindo uma maior previsibilidade da movimentação, reduzindo o tempo de tratamento e possibilitando a execução de movimentos difíceis, como a intrusão. Diversas mecânicas serão descritas, esclarecendo algumas aplicações do mencionado dispositivo na rotina diária do ortodontista. RETRAÇÃO INICIAL DE CANINO O canino possui uma grande área radicular, podendo influenciar negativamente outros dentes se sua posição for desfavorável18. A retração inicial de canino é um movimento realizado no início da mecânica com extrações para aliviar o apinhamento na região anterior, possibilitando o alinhamento sem aumento do comprimento do arco7. A direção, intensidade e o ponto de aplicação de uma força, definem o tipo de deslocamento de um dente. Quando aplicamos uma força biologicamente compatível, capaz de atingir o centro de resistência do canino, obtemos o movimento de translação, neutralizando as inclinações indesejadas. Desenvolvemos uma alça vertical adaptada ao braquete do canino, estabelecendo uma conexão bastante favorável entre o aparelho ortodôntico e o dispositivo de ancoragem. O resultado é uma retração de corpo, com o máximo de controle por parte do profissional (Figura 3).

Figura 1 - MPO auto-perfurante para utilização de fio ortodôntico.

Figura 3 - A força passa diretamente pelo centro de resistência do dente 13.

Figura 2 - MPO auto-perfurante para utilização de fio de amarrilho, mola ou elástico.

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RETRAÇÃO EM MASSA Este tipo de mecânica reduz a protrusão, melhorando a estética facial e a função, sendo descrita por diversos

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ARTIGOS CIENTÍFICOS

Lima LAC, Lima C, Lima V, Lima V

autores3,5-6. Diferentes resultados podem ser obtidos de acordo com o ponto de aplicação de força14. Quando a força passa pelo centro de resistência dos seis dentes anteriores, conseguimos um movimento de translação. Ao mesmo tempo, o mini-implante elimina a necessidade da utilização de dentes posteriores como ancoragem, descartando a mesialização dos mesmos e possibilitando a geração de um sistema de forças equilibrado. Os resultados são a diminuição do tempo de tratamento, maior controle da mecânica, eliminação de efeitos colaterais e maior recuo do perfil, melhorando o aspecto facial. Alguns locais de instalação foram ilustrados nas Figuras 4 e 5.

Figura 6 - Posicionamento dos mini-implantes por vestibular (distal) e por palatino (mesial). Um elástico em cadeia é ligado às duas estruturas de ancoragem, passando sobre a oclusal do dente em questão. Os pontos de contato devem ser separados, evitando desta maneira o atrito durante o movimento.

Figura 4 - Vista lateral direita. Ativação realizada com mola de NiTi de 12 mm. A força passa fora do centro de resistência dos seis dentes anteriores, promovendo retração e discreta intrusão.

Figura 5 - Vista lateral esquerda. Ativação semelhante a demonstrada na figura anterior. Observar a localização do mini-implante entre as raízes do dente 36 (apresentaram acentuada divergência).

INTRUSÃO DE MOLAR A intrusão de dente posterior é um movimento difícil de ser obtido1-2. Geralmente, é indicada na correção pré-protética para nivelar o plano oclusal, ou para tratamento da mordida aberta esquelética. A forma de intrusão descrita e ilustrada na Figura 6, permite a resolução de problemas oclusais, funcionais e até mesmo estéticos de forma simples e segura12.

DISTALIZAÇÃO DE MOLAR A ancoragem absoluta obtida com o emprego do miniimplante mudou o panorama deste tipo de mecânica. Sua versatilidade abriu o horizonte para uma série de possibilidades clínicas. Quando posicionamos a unidade de ancoragem entre as raízes dos primeiros molares e segundos pré-molares superiores, podemos distalizar com auxílio de sliding jig ou mola aberta5, conforme demonstrado nas Figuras 7 e 8.

Figura 7 - Distalização com cursor adaptado. Observar resultado obtido após 2 meses de ativação.

VERTICALIZAÇÃO DE MOLAR A inclinação mesial de molar é um problema resultante de diversos fatores, podendo ser observada com uma certa frequência na clínica diária do ortodontista. Na nossa opinião, a associação do arco segmentado e o mini-implante, diminuiria consideravelmente o tempo de tratamento, eliminando até mesmo a necessidade de montagem total do aparelho. Uma alternativa foi descrita (Figuras 9 e 10), aumentando o leque de Innov Implant J, Biomater Esthet, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 85-91, jan./abr. 2010

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Mini-implante como ancoragem absoluta: ampliando os conceitos de mecânica ortodôntica

Figura 8 - Distalização com arco segmentado empregando molas abertas e fechadas. O mini-implante foi instalado acima da raiz do canino decíduo, permitindo uma movimentação posterior de todo segmento, sem a necessidade de alteração da posição da unidade de ancoragem durante toda a mecânica.

convencional, resulta geralmente em lingualização dos incisivos, e inclinação mesial do molar. A ancoragem proveniente do uso do mini-implante, permite um adequado direcionamento do vetor de força, resultando em movimento de corpo7,18, ou seja, livre de inclinação (Figura 11). Outro fator positivo observado a partir do emprego deste tipo de ancoragem é a eliminação da inclusão de outros dentes na mecânica, excluindo qualquer possibilidade de movimentação indesejada da bateria anterior de dentes. Uma outra alternativa seria o emprego de um arco retangular com alça em T, estabilizado por um segmento de arco unido ao mini-implante, evitando a lingualização dos incisivos (Figuras 12 e 13).

soluções para este tipo de casuística. Um cuidado especial deve ser tomado durante a confecção do arco, prevenindo eventuais lesões futuras13.

Figura 11 - Mesialização ativada com mola de NiTi fechada.

Figura 9 - Mecânica de verticalização empregando arco segmentado e mini-implante. Observar a ativação do dispositivo, sem qualquer envolvimento dos dentes anteriores. O resultado é a eliminação de efeitos colaterais e agilidade de tratamento.

Figura 12 - Mesialização utilizando um arco retangular com alça em T, estabilizado por um segmento de arco unido ao mini-implante.

Figura 10 - Mecânica de verticalização empregando arco segmentado e mini-implante. Observar a adaptação do arco segmentado e cabeça do mini-implante.

MESIALIZAÇÃO DE MOLAR Este tipo de movimento, quando realizado de forma

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Figura 13 - Fotografia aproximada do sistema de ancoragem.

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ARCO DE TORQUE Torção é o trabalho mecânico de torcer o fio retangular (dobra de 3ª ordem). Torque é o trabalho executado no dente pelo fio, resultante da torção. Na ausência dos dentes posteriores, mini-implantes podem servir de apoio para a instalação e utilização de arcos segmentados de torque, promovendo um correto posicionamento da coroa e raiz. As Figuras 14 a 17 demonstram o protocolo de ativação de um arco retangular, promovendo torque vestibular dos dentes anteriores, sem apoio dos dentes posteriores.

Figura 17 - Arco de torque ativo (lado esquerdo).

CORREÇÃO DA LINHA MEDIANA Mini-implantes podem ser indicados durante a correção do desvio da linha média dentária, principalmente em pacientes que apresentam ausência de dentes posteriores1. As Figuras 18 e 19 demonstram a correção da linha média superior, acompanhado do movimento de mesialização dos dentes posteriores.

Figura 14 - Arco de torque vestibular (lado direito).

Figura 18 - Correção da linha média superior, acompanhado de perda de ancoragem. Figura 15 - Arco de torque vestibular (lado esquerdo).

Figura 19 - Vista lateral da mecânica anterior.

Figura 16 - Arco de torque ativo (lado direito).

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Mini-implante como ancoragem absoluta: ampliando os conceitos de mecânica ortodôntica

HYRAX MODIFICADO Problemas clássicos como a inclinação indesejada dos dentes de apoio, estão diretamente envolvidos em procedimentos de expansão maxilar18. Realizamos uma modificação no aparelho expansor de Hyrax (Figura 20), empregando quatro miniimplantes como ancoragem para neutralizar possíveis inclinações dentárias. As Figuras 21 e 22 demonstram o aparelho instalado. Vale destacar que o paciente foi submetido ao procedimento de expansão cirurgicamente assistida unilateral apenas do lado esquerdo. O dispositivo eliminou a resposta dentária, resultando em correção da discrepância esquelética.

PROXIMIDADE ENTRE RAÍZES A proximidade entre algumas raízes pode inviabilizar uma excelente instalação. Uma alternativa clínica de grande simplicidade para aumentar o espaço disponível, é a utilização da dobra Z (Figura 23), possibilitando um diferenciado controle das angulações radiculares, favorecendo um posicionamento ideal do dispositivo de ancoragem1.

Figura 23 - Dobra Z angulando para distal a raiz do dente 12. Dobra Z angulando para mesial a raiz do dente 43.

Figura 20 - Visão do aparelho modificado.

CONCLUSÃO Além de fornecer uma ancoragem eficiente, novos vetores de força foram inseridos no cotidiano da clínica ortodôntica diária, possibilitando esplêndidas possibilidades mecânicas. Diversos movimentos podem ser realizados com o mínimo de efeitos colaterais, diminuindo consideravelmente o tempo de tratamento.

Figura 21 - Visão oclusal do aparelho.

Figura 22 - Fotografia final da instalação. Observar que as conexões foram cobertas com resina foto.

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Otimização de projeto de parafusos ortodônticos visando aumento de resistência mecânica Optimization design of orthodontic screws aiming at increasing the mechanical strength Nelis Evangelista LUIZ1, Athos JACOMINI FILHO2, Leonardo Alcântara Cunha LIMA3, Ricardo Luiz CIUCCIO4, Michel Aislan Dantas SOARES5, Lucas Lima COUTINHO6

RESUMO Parafusos ortodônticos são usados para movimentar os dentes nas mais diversas direções durante tratamento odontológico ortodôntico. As forças envolvidas durante a inserção e durante o serviço dos parafusos ortodônticos merecem especial atenção, uma vez que podem ocasionar a fratura dos mesmos levando ao insucesso do tratamento. Os esforços suportados pelos parafusos ortodônticos durante seu uso podem ser divididos em esforços de inserção e esforços de ativação. Dentre estes dois grupos, os esforços de inserção são os mais significativos, devendo ser levados em consideração para o dimensionamento do produto. O objetivo deste artigo é a otimização da resistência mecânica dos parafusos ortodônticos no que diz respeito aos esforços que os mesmos são submetidos durante o ato cirúrgico de inserção. Este artigo relata ações de melhoria contínua aplicadas para melhorar o desempenho mecânico de parafusos ortodônticos. Foram fabricadas três configurações diferentes de parafusos ortodônticos sendo que a diferença entre elas era o posicionamento do furo do slot. A resistência mecânica do produto foi medida através de ensaio de carregamento oblíquo. As modificações de projeto propostas permitiram um ganho de até 54% na resistência dos modelos de parafuso analisados. Palavras-chave: Ortodontia. Implantes dentários.

Movimentação

ABSTRACT Orthodontic screws are used to move teeth in several directions during orthodontic dental treatment. The forces involved during insertion and during the service of the orthodontic screws deserve special attention because they can lead to fracture of the same leading to treatment failure. Loads supported by orthodontic screws can be divided into insertion loads and activation loads. Among these two groups insertion loads are the most significant and should be taken into consideration for the product design. This paper is about optimization of the mechanical strength of orthodontic screws with regard to the efforts that they are subjected during the surgical insertion. This article reports continuous improvement actions implemented to improve the mechanical performance of orthodontic screws. The design modifications proposed allowed a gain of up to 54% in flexural strength of screw models analyzed. Key words: Orthodontics. Tooth movement. Dental implants.

dentária.

Endereço para correspondência: Nelis Evangelista Luiz Rua Cesário Ramalho, 237 - Apto. 111 - Torre 2 Cambuci 01521-000 - São Paulo - São Paulo - Brasil E-mail: nelis_evangelista@hotmail.com Recebido: 05/04/2010 Aceito: 01/07/2010 1. Doutor em Engenharia Mecânica. Gerente de Engenharia, SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil. 2. Graduado em Desenho Industrial. Técnico de Desenvolvimento, SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil. 3. Doutorando em Ortodontia. Coordenador do Curso de Especialização em Ortodontia, UNIFLU – Centro Universitário Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. 4. Graduado em Engenharia Mecânica. Engenheiro de Produto, SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil. 5. Graduando em Tecnologia Mecatrônica, Universidade Nove de Julho. Projetista, SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil. 6. Graduando em Engenharia Mecânica, Universidade São Judas Tadeu. Assessor de Controle da Qualidade, SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil.

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Luiz NE, Jacomini Filho A, Lima LAC, Ciuccio RL, Soares MAD, Coutinho LL

INTRODUÇÃO Parafusos ortodônticos são usados para movimentar os dentes nas mais diversas direções durante tratamento odontológico ortodôntico. Suas diversas aplicações bem como as vantagens em relação a sistemas de movimentação ortodôntica tradicionais estão amplamente relatadas na literatura2,7-8. Os esforços envolvidos durante a inserção e durante o serviço dos parafusos ortodônticos merecem especial atenção uma vez que podem ocasionar a fratura dos mesmos levando ao insucesso do tratamento7. Do ponto de vista mecânico, os esforços desenvolvidos durante o uso do produto devem ser estudados levando em consideração duas etapas diferentes: 1. Fase de colocação (inserção) do parafuso no paciente. 2. Fase de ativação do parafuso com molas, arames e barras para movimentação dentária. As forças de ativação necessárias para movimentação dentária são da ordem de 35 a 120g6. A literatura carece de dados padronizados sobre a resistência à flexão de parafusos ortodônticos4,7. Os valores de resistência à flexão de parafusos ortodônticos de diversas marcas comerciais não são inferiores a 44 N. Desta forma pode-se concluir que os esforços envolvidos durante a segunda etapa (120g ou 1,2 N) não são suficientes para promover a fratura dos parafusos ortodônticos4. Poucos dados da literatura existem, porém, para relatar os esforços desenvolvidos durante o ato de inserção do parafuso no paciente. No entanto pode-se inferir que estes esforços sejam maiores que aqueles desenvolvidos durante a fase de ativação, uma vez que a inserção é feita manualmente pelo ortodontista ao se utilizar de uma chave que aumenta o braço de alavanca dos esforços aplicados (Figura 1). Desta forma este artigo leva em consideração a premissa que os maiores esforços envolvidos no uso dos parafusos ortodônticos ocorrem durante o ato de inserção.

Figura 1 - Montagem da chave de inserção com parafuso ortodôntico.

Para a efetividade no desenvolvimento do estudo mecânico

que deverá ser aplicado entendemos que o ponto crítico deste parafuso é a resistência à flexão na região do furo transversal. Há flexão quando existe solicitação que tende a modificar o eixo geométrico de uma peça5. Há flexão simples quando o único esforço que atua na secção transversal é um momento fletor (cantilever). A combinação de flexão simples com carregamento axial é chamada de carregamento oblíquo5. Neste caso a barra sofre a aplicação de momento fletor e compressão ou tração. Este carregamento tem grande semelhança com o tipo de carga que o parafuso ortodôntico terá que suportar.

MATERIAL E MÉTODOS O objetivo de toda metodologia proposta neste artigo é a otimização da resistência mecânica dos parafusos ortodônticos no que diz respeito aos esforços que os mesmos são submetidos durante o ato cirúrgico de inserção. Foram analisados os parafusos ortodônticos da linha High Utility (SIN - Sistema de Implante, São Paulo, SP, Brasil) - 11 amostras. Estes parafusos foram produzidos em liga de titânio grau cinco7 e têm 1,6 mm de diâmetro de rosca (Figura 2).

Figura 2 - Modelo High Utility

Com objetivo de identificar a região de maior fragilidade nestes parafusos foram realizadas análises de elementos finitos. Estas análises levaram em consideração carregamentos estáticos na cabeça do parafuso da ordem de 92 N. Foi usado como software de análises o CosmosWorks (SolidWorks Corporation, Santa Monica, CA, Estados Unidos) com geração automática de malha. Amostras de parafusos fraturados durante simulação de inserção em resina foram levadas ao microscópio eletrônico de varredura modelo 6390LV (Jeol Ltd., Tokyo, Japão). O objetivo é verificar a correlação entre a zona de fragilidade identificada na análise de elementos finitos e a zona de ocorrência da fratura no ensaio real. Os ensaios mecânicos foram executados na máquina de ensaio Universal EMIC DL 10000 (EMIC - Equipamentos e Sistemas de Ensaio Ltda., São José dos Pinhais, PR, Brasil) com célula de carga de 5000 N, conforme ISO 14801:20073 e ASTM F136-021. A Figura 3 mostra o esquema experimental usado para fazer o ensaio mecânico. Innov Implant J, Biomater Esthet, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 30-34, maio/ago. 2010

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Otimização de projeto de parafusos ortodônticos visando aumento de resistência mecânica

RESULTADOS

Figura 3 - Modelo de dispositivo do carregamento oblíquo.

Para atingirmos a meta proposta nesse desenvolvimento estudamos modificações simples que não interferissem em seu funcional. No modelo High Utility as modificações pertinentes ao projeto consistiram no deslocamento do furo localizado no slot do parafuso. Geramos dois deslocamentos de 0,2 mm cada (Figuras 4 a 6).

A análise de elementos finitos levou em consideração as seguintes condições de contorno: • A parte da rosca do parafuso foi considerada totalmente engastada. • O implante sofreu carregamento vertical de 92 N na região da cabeça do parafuso (Figura 7). Pelo gradiente de concentração de tensão apresentado na figura denota-se que as regiões de maior concentração de tensão encontram-se no final da rosca e no pescoço próximo à cabeça do implante. No entanto, para este nível de carregamento, nenhuma parte do mesmo ultrapassa o limite de escoamento. Em função das seções transversais envolvidas presume-se que a região do pescoço é mais suscetível a falhas (por ter área de seção transversal resistente menor) que a região do final da rosca.

Figura 7 - Análise de elementos finitos em parafuso ortodôntico. Figura 4 - Modelo original de parafuso ortodôntico com representação da área da seção resistente no ponto mais crítico.

Este fato coincide com a fratura da peça real submetida a esforço de flexão. A imagem do MEV (Figura 8) revela que o ponto de fratura é o mesmo observado como crítico pela análise de elementos finitos. Isto valida a análise realizada indicando que método de elementos finitos e as condições de contorno empregadas retratam a realidade com certo grau de precisão.

Figura 5 - Modelo de parafuso ortodôntico com recuo de 0,2 mm em relação ao modelo original e representação da área da seção resistente no ponto mais crítico.

Figura 6 - Modelo de parafuso ortodôntico com recuo de 0,4 mm em relação ao modelo original e representação da área da seção resistente no ponto mais crítico.

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Figura 8 - Microscopia eletrônica de varredura de fratura após inserção do implante em resina.

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ARTIGOS CIENTÍFICOS

Luiz NE, Jacomini Filho A, Lima LAC, Ciuccio RL, Soares MAD, Coutinho LL

As Figuras 9, 10 e 11 são os gráficos dos ensaios mecânicos de carregamento oblíquo aplicados a cada modelo de parafuso. Com eles é possível determinar qual a carga de ruptura necessária para romper cada modelo. Estes dados (valores médios) estão sumarizados nos gráfico da Figura 12.

O modelo original apresentou carga de ruptura média de 168,8 N. O modelo com recuo de 0,2 mm apresentou carga de ruptura média de 182,5 N. Ganho de 8% em relação ao modelo original. O modelo com recuo de 0,4 mm apresentou carga de ruptura média de 260,4 N. Ganho de 54 % em relação ao modelo original.

DISCUSSÃO

Figura 9 - Resultado de ensaio de carregamento oblíquo do modelo original.

Figura 10 - Resultado de ensaio de carregamento oblíquo do modelo com recuo de 0,2 mm.

Figura 11 - Resultado de ensaio de carregamento oblíquo do modelo com recuo de 0,4 mm.

As Figuras 4 a 6 ilustram o que acontece com a região do furo transversal à medida que aumentamos o recuo da posição do furo. Tem-se um aumento gradativo da área da seção transversal. No modelo original a fratura ocorre preferencialmente na área evidenciada na Figura 4. Quando se altera o projeto de acordo com a Figura 6, o ganho de área é tão significativo que a região de fragilidade muda de posição com a fratura passando a ocorrer no pescoço da cabeça do parafuso (Figuras 7 e 8). As diferenças de resistência representadas nas Figuras 5 a 8 podem ser explicadas pelo aumento da área da seção transversal resistente proporcionada pelo deslocamento da posição do furo. É claro que a partir do momento que a região de fratura muda para o pescoço da cabeça do parafuso não é possível obter nenhum ganho adicional de resistência através do mesmo mecanismo. O mérito destas análises está em demonstrar que é possível aperfeiçoar o projeto de produto com pequenas alterações que não comprometem o uso ou a funcionalidade do mesmo. Seria importante ter dados, empíricos ou não, que informassem a que nível de esforços os parafusos ortodônticos são submetidos durante o ato de inserção. Poderíamos então ter mais segurança no dimensionamento do mesmo de acordo com os requisitos de uso.

CONCLUSÃO •

Figura 12 - Resultados dos ensaios carregamento oblíquo entre os modelos.

comparativos

A análise de elementos finitos revelou que 92 N é a carga em que o modelo de parafuso ortodôntico utilizado atinge o limite de escoamento do material empregado. A região crítica apontada no estudo de elementos finitos coincide com a região de fratura do objeto real, conforme evidenciado pela imagem de microscopia eletrônica de varredura. As modificações inseridas no projeto do parafuso ortodôntico permitiram um ganho de 56% em resistência mecânica sem comprometer as características de uso do mesmo.

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Educação - O Bat Bag do tempo

No vai e vem das transformações históricas há uma variável curiosa que escapa à percepção do senso comum. Trata-se da tendência – todo movimento social, espontâneo ou induzido, que aglutina um grupo significativo de pessoas em torno de comportamento ou características semelhantes, identificáveis numa série de tempo determinada.

Por tal princípio, vários segmentos sociais se beneficiam em planos diferenciados, do filosófico ao pragmático; do político ao mercadológico. Em análise a tal fenômeno, se compreende o sumiço e o ressurgimento de práticas sociais populares que bem caracterizam as manifestações da Cultura. Manifestações que, por seu poder de encantamento, se bem instrumentalizadas na ambiência escolar, poderão servir de suporte às instâncias do saber. Os vazios da Educação se pronunciam, sobretudo, nos processos de gestão do conhecimento, com significativas sequelas aos cidadãos, que após a vida escolar, se revelam carentes de Humanidades. E dentre os remédios indicados para tal malefício, a Ludicidade é o instrumento capaz de quebrar o gelo, de afugentar a apatia, de instigar os espíritos à criação, em benefício da Criatura. Ao Educador deste momento cabe a ousadia de inaugurar novas linguagens na condução do processo Ensino – Aprendizagem. A mesma fórmula, se lida in media res, poderá revelar ensinamentos para todo sempre. Hoje, a balbúrdia urbana conta com uma interferência sonora que estava silenciada. Trata-se do bat bag, brinquedo que nos anos setenta pareciam ser a válvula de escape para a energia social dos jovens que não contavam com a liberdade de expressão de hoje. Repentinamente os badalos voltaram à cena em frenéticas contusões aos pulsos dos novos urbanoides repetindo gestos de gerações que hoje articulam-se na internet ou em outros meios. Da mesma forma, o bambolê perdeu temporariamente o requebrado, o pião estonteou-se, o bilboquê perdeu o eixo, o ioiô embolou-se no tempo. O vai vem não vai nem vem, a piorra emperrou-se guardando a pergunta: por aonde andará o jovem diabolô? E a peteca? Esta, talvez tenha sido nocauteada por um golpe sórdido da tecnologia que tirou a graça de muitas outras brincadeiras:


a amarelinha, o garrafão, o pastelão, o pique-esconde, o pique-bandeira, a cobra cega, o mandrake, o pula-corda, o patinete... Revisitar a memória dos brinquedos populares e de tantas outras manifestações lúdicas é pensar as potencialidades humanas que a Educação bem pode resgatar com a dignidade do tempo que esta mesma ajuda a transformar, operando linguagens de valioso teor social. Basta olhar! Luiz Cláudio Barbosa da Silva Jornalista – Mestre em Cognição e Linguagem Professor do UNIFLU


CENTRO DE LAZER E EDUCAÇÃO AMBIENTAL SUSTENTÁVEL

ALUNO: WILLIAN JOSÉ DE FREITAS ORIENTADORA: ISABELA MAYERHOFER RESUMO

Este trabalho contribui de forma prática e teórica com o município de Iúna, Espírito Santo melhorando a qualidade de vida da população e visitantes, com a construção do empreendimento Centro de lazer e educação ambiental sustentável. Vislumbrando o potencial de lazer, e turismo da região agrícola do município, torna-se necessária a criação de um empreendimento com esse perfil, oferecendo ao usuário um local de visitação e lazer que englobe a agricultura sustentável com cultivo orgânico da hortifruticultura, criação de animais de pequeno porte, preservação da natureza, lazer rural e educação ambiental sustentável. Como referência para edificação do centro de lazer tomou-se como referência a Fazenda Quinta da Estância Grande recebeu o certificado Carbon-Free, se tornando a 1º Fazenda de Turismo Carbon-Free do Brasil, localizada na região de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Palavras-Chave: Empreendimento, Sustentabilidade, Tecnologia, Prestação de Serviço, educação, Lazer, Turismo.


CASA NOTURNA ALUNO: DANIEL NOGUEIRA OLIVEIRA MEDEIROS DE FREITAS ORIENTADOR: RICARDO DUNCAN DE FREITAS

RESUMO

Diante do stress e da rotina cotidiana, a juventude desse século vem buscando momentos de divertimentos que fogem dessa realidade diária, e estes acontecem geralmente à noite, através da música. Campos dos Goytacazes está localizada ao norte do Estado do Rio de Janeiro, apresentando 463.535 habitantes e a massa jovem dessa população concentra sua frequência nos principais bares da Avenida Pelinca, com seus, restaurantes, cafés e eventos esporádicos, como shows. Em virtude dessa deficiência de lazer noturno, a disposição de locais ligados à música expõe a necessidade da existência de opçoes destinadas a espaços musicais especializados em ritmos diversos, permitindo a infusão de uma proposta bem ousada – a criação de uma boate. Este trabalho consiste em apresentar um projeto de uma casa noturna, relacionada à cultura musical, pois, no momento atual, existe uma grande carência de lugares que forneçam uma estrutura adequada para a população. Foram pesquisadas algumas casas noturnas em Campos e estas não apresentaram a mesma estrutura funcional e projetual das existentes no Brasil, tais como: Club Nox (no Recife); Dado Bier (em Porto Alegre); Red (em São Luís); Roxy Club (em Belo Horizonte). Essas boates vão de encontro ao programa de necessidade do projeto apresentado chamado Boate Mandala. O objetivo desse projeto é trazer para Campos, não só uma casa noturna, mas um conceito particular de lazer noturno e com uma arquitetura totalmente inusitada.

Palavras-Chave: Projetual – Cultura musical – Espaços musicais – Conceito de lazer – Realidade diária.


ARQUITETURA ESCOLAR NA CONCEPÇÃO PEDAGÓGICA EM ESCOLAS DE TEMPO INTEGRAL ALUNO: ELENILSON FIDELIS ORIENTADORA: PROFESSORA ESP.: LÍDIA MARIA TAVARES MARTINS RESUMO

Este trabalho expressa a necessidade de se obter através do projeto arquitetônico, espaço físico específico para uma instituição educacional de tempo integral dentro da concepção pedagógica, considerando parâmetros térmicos e acústicos, em decorrência das variações de temperatura durante o ano. No contexto acústico o ruído gerado pelas inúmeras atividades oferecida nas escolas de tempo integral, de forma simultânea as do currículo formal, onde são analisados o processo de evolução da arquitetura escolar e os principais problemas espaciais das edificações escolares. Trata-se de um trabalho que apresenta subsídios e diretrizes para o desenvolvimento de espaços físicos específicos, levando em consideração o conforto térmico e acústico aliado ao processo de educação ambiental e desenvolvimento sustentável que através de sua configuração física contribua positivamente no processo de aprendizagem. Pois estão diretamente relacionados ao desempenho e crescimento intelectual dos alunos, com a coleta de dados com pedagogos, educadores e alunos junto a fatores climáticos da cidade de Campos dos Goytacazes, e pelos parâmetros das normas brasileiras (NBR). O Projeto incorpora uma metodologia participativa, que inclui as necessidades dos usuários e o conceito de escola inclusiva à proposta pedagógica. Neste contexto apresenta-se em sua espacialidade um projeto arquitetônico que contempla o conforto ambiental e sustentabilidade proporcionando aos alunos e demais usuários um ambiente confortável.

Palavra chave: Arquitetura escolar, conforto ambiental e sustentabilidade.


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