Revista Universidade | nº 07

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Revista da Universidade Federal do Espírito Santo •

UFES

Novembro 2017 • Nº 7

ISSN 2359-2095

Homem e Máquina Tecnologias em prol da saúde

Pesquisas interdisciplinares desenvolvem um conjunto de aplicações inovadoras que auxiliam na recuperação de pacientes Pág. 25 a 33

Impactos sobre as lagoas

Pedras preciosas

Estudos apontam situação crítica das bacias • Pág. 6

Escapolitas capixabas são tema de pesquisa • Pág. 14



Foto: Alexandre Ricardo

A Ufes e o futuro O grave cenário de profunda crise orçamentária que atinge as universidades federais em 2017 não inibe a Ufes na sua missão de crescer e de manter a sua qualidade na educação superior. O planejamento e o comprometimento da comunidade universitária com o ensino, a pesquisa e a extensão impulsionam a Universidade para o futuro. Em setembro, por exemplo, uma boa notícia ficou por conta da avaliação dos cursos de pós-graduação stricto sensu realizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). São 13 os cursos de pósgraduação que têm a nota 5, além da marca alcançada de 1 mil artigos publicados em revistas científicas nacionais e internacionais. No mesmo mês, outra boa notícia foi a inauguração do novo prédio onde está instalado o Núcleo de Estudos em Escoamento e Medição de Óleo e Gás (Nemog), do Centro Tecnológico, em parceria com a Petrobras. Assim, a Universidade reafirma o seu compromisso com o desenvolvimento científico e tecnológico do Espírito Santo e do Brasil, como mostra o material jornalístico apresentado nesta edição da Revista Universidade.


Foto: Marcos de Alarcão

Universidade Federal do Espírito Santo • Ufes Reitor Reinaldo Centoducatte Vice-Reitora Ethel Leonor Noia Maciel Pró-Reitora de Administração Teresa Cristina Janes Carneiro Pró-Reitor de Assuntos Estudantis e Cidadania Gelson Silva Junquilho Pró-Reitora de Extensão Angélica Espinosa Barbosa Miranda Pró-Reitor de Gestão de Pessoas Cleison Faé Pró-Reitora de Graduação Zenólia Christina Campos Figueiredo Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Institucional Anilton Salles Garcia Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Neyval Costa Reis Junior UNIVERSIDADE Revista de divulgação científica, cultural e temas institucionais, produzida pela Superintendência de Cultura e Comunicação (Supecc) da Universidade Federal do Espírito Santo Superintendente (interina) de Cultura e Comunicação e Secretária de Comunicação Thereza Marinho Secretário de Cultura Rogério Borges Editora Letícia Nassar Pauta Edgard Rebouças e Letícia Nassar Reportagem Ana Paula Vieira • Camila Fregona • Hélio Marchioni • Jorge Medina • Letícia Nassar • Luiz Vital • Nábila Corrêa • Patrícia Garcia • Lorraine Paixão (estagiária) Fotografia Arquivo Supecc, Alexandre Ricardo (colaborador), Isabela Altoé (estagiária), Jorge Medina, Lorraine Paixão (estagiária), Lucas Santos (estagiário), Marcos de Alarcão (colaborador), Susana Kohler (colaboradora) Design Juliana Braga e Leonardo Paiva Revisão Márcia Rocha Ilustração de capa Projetada por Kjpargeter - Freepik.com Universidade Federal do Espírito Santo Superintendência de Cultura e Comunicação - Supecc Av. Fernando Ferrari, nº 514, Campus de Goiabeiras Prédio da Reitoria, 1º andar, CEP: 29075-910 Vitória/ES - Brasil Telefone: (27) 4009-2204 E-mail: revistauniversidade@ufes.br ISSN 2359-2095 O conteúdo desta revista pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.

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Prezado leitor, Nesta edição, a revista Universidade traz como destaque as pesquisas interdisciplinares que visam melhorar a qualidade de vida de pacien-

Sumário

tes por meio de novas tecnologias. Professores e estudantes da Engenharia Elétrica, Medicina, Psicologia, Informática e Biotecnologia da Ufes

6 Lagoas

desenvolvem em seus laboratórios exoesqueletos, andadores robóticos, robô que interage com

Estudos apontam situação crítica das bacias

crianças autistas e estímulos elétricos no cérebro para tratar da dependência química. Em outra reportagem, os resultados dos trabalhos realizados pelos pesquisadores do Departamento de Oceanografia e Ecologia apontam as causas da situação crítica em que estão as lagoas capixabas e suas consequências. No Departamento de Gemologia, os pesqui-

14 Escapolitas Pedras preciosas capixabas são tema de pesquisa

sadores estudam a caracterização das escapolitas capixabas, pedras raras que são encontradas em somente seis estados brasileiros, entre eles o Espírito Santo. Tuberculose é o tema da entrevista com a pesquisadora e vice-reitora, Ethel Maciel, uma autoridade científica internacional na área de tuberculose (TB). Ela destaca que a tuberculose é a doença infectocontagiosa que mais mata no mundo e que o Brasil está entre os 20 países com maior carga da doença. Confira na entrevista as pesquisas desenvolvidas na Ufes, as estratégias definidas para o enfrentamento da TB e outras abordagens a respeito dessa doença milenar. A música também está entre os objetos de pesquisa abordados pela revista Universidade. A reportagem sobre o cantor e compositor capixaba Sérgio Moraes Sampaio, que em 2017 completaria 70 anos, mostra a importância das pesquisas para o resgate de sua obra. Artes, língua de imigração, cultura popular capixaba, educação e racismo, poluição e arquitetura, entre outros, também são temas abordados nesta edição. Boa leitura, Letícia Nassar

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A educação e o movimento negro Drones autônomos O corpo humano e a máquina Linhaça Manguezais Artigo – Conservação da biodiversidade Barreiras linguísticas Entrevista – Tuberculose Artigo – Revolução Pernambucana Monumentos não intencionais Arquitetura e o meio ambiente Sérgio Sampaio Projeto Goiamum Ideia Premiada

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Foto: Renato Neto

Pesquisa identifica

graves pressões ambientais sobre lagoas do Estado LUIZ VITAL

Levantamento limnológico realizado por pesquisadores do Laboratório de Limnologia e Planejamento Ambiental, do Departamento de Oceanografia e Ecologia, indica diferentes e impactantes pressões ambientais sobre lagoas, lagos e rios da região costeira do Espírito Santo. Nas áreas urbanas, o despejo de esgoto residencial e industrial sem tratamento é o principal vilão. Nas zonas rurais, as bacias são afetadas, principalmente, por fertilizantes usados na agricultura, pelo aumento das áreas de pastagens e pela contínua retirada de água para fins de irrigação. A limnologia é o estudo ecológico de águas interiores. 6

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Lagoa Terra Alta, a 40 km do Centro de Linhares, onde está instalada a estação meteorológica do LimnoLab/Ufes

mapeamento dos sistemas aquáticos costeiros do Espírito Santo – são 387 lagos, com área total aproximada de 196 km² – é uma das linhas de pesquisas desenvolvida pelo Laboratório de Limnologia e Planejamento Ambiental (LimnoLab), do Departamento de Oceanografia da Ufes. Os estudos, iniciados em 2011, apresentam indicadores considerados preocupantes pelos pesquisadores: a situação é crítica nas bacias hidrográficas. O levantamento limnológico aponta que os lagos localizados próximos às áreas urbanas sofrem forte pressão, sobretudo pelo despejo de esgotos residenciais e industriais sem tratamento. Nas zonas rurais, as lagoas são impactadas, gravemente, pela presença de fertilizantes usados em larga escala na agricultura, pelo aumento das áreas de pastagens e pela aleatória e contínua retirada de água para fins de irrigação. A constatação é do professor Gilberto Fonseca Barroso, coordenador do LimnoLab e do Programa de Pós-Graduação em Gestão e Regulação

O

de Recursos Hídricos e professor orientador do Programa de Pós-Graduação em Oceanografia Ambiental da Ufes. “O que se verifica nas regiões rurais é o flagrante desrespeito ao Código Florestal Brasileiro; e, nas áreas urbanas, um evidente descontrole em termos de saneamento básico”, assinala. A pesquisa realiza o mapeamento de bacias localizadas na região do Baixo Rio Doce – são cerca de 90 lagos, com extensão aproximada de 165 km² – no entorno da foz, entre os municípios de Colatina e Linhares, no norte do Espírito Santo. O trabalho avança, também, para as regiões de Aracruz, Serra e, a partir de Vila Velha, percorre os municípios de Guarapari, Anchieta e Marataízes, seguindo até Presidente Kennedy, no extremo sul do Estado. Com base nos resultados da pesquisa, Barroso considera que há ações que são imprescindíveis para se enfrentar as pressões ambientais danosas aos recursos hídricos do Estado. “É preciso proteger os sistemas naturais remanescentes e recuperar a vegetação no entorno dos cursos d’água e lagoas”, defende o pesquisador.

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Foto: Lucas Santos

O professor Gilberto Fonseca Barroso, coordenador do LimnoLab, destaca o desrespeito ao Código Florestal Brasileiro

Rios tributários O objetivo da pesquisa em curso no LimnoLab é levantar informações sobre o conjunto de lagos, buscando oferecer ferramentas para melhor manejo e uso racional dos sistemas costeiros, segundo Gilberto Barroso. Inicialmente, os pesquisadores delimitam as lagoas e realizam o levantamento batimétrico, de modo a mensurar a profundidade do volume de água e determinar a topografia do leito, com o uso da tecnologia de ecobatimetria e Global Positioning System (GPS). Com o uso do equipamento e a partir de um tour

ziguezagueado pelo lago, as informações são obtidas em diferentes pontos, gerando uma planilha com o conjunto de informações desejadas. De acordo com Barroso, a pesquisa em um único lago gerou informações em 50 mil pontos diferentes, possibilitando um volume considerável de dados. O comprometimento ambiental dos chamados rios tributários – que não fluem diretamente para o mar, mas drenam para os lagos – afeta a qualidade ambiental dos sistemas costeiros, reduz o volume de água das lagoas e aumenta a poluição. “A água de um lago com baixo aporte fluvial pode levar até 60 anos para ser renovada, e isso é muito tempo”, observa Gilberto Barroso. De acordo com o pesquisador, o pior cenário atual em termos de poluição, no Espírito Santo, é a Lagoa Jacuném, no município de Serra, na Região Metropolitana de Vitória. A lagoa é uma Área de Proteção Ambiental (APA) do município e é cercada por centenas de condomínios residenciais e por 25 bairros, além de empresas que integram o chamado Centro Industrial de Vitória (Civit), com diferentes plantas industriais poluidoras. “É uma bacia cuja recuperação é muito complexa”, ressalta o pesquisador. A Jacuném possui 3,5 km de extensão e 1,4 km² de área. Até o ano de 1983, a lagoa, com área remanescente de Mata Atlântica, foi fonte de abastecimento de água da estatal Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan), que posteriormente desativou os sistemas de captação e tratamento no local. Foto: Arquivo LamnoLab

A Estação Meteorológica do LimnoLab/Ufes, da marca Solar, é fabricada em Santa Catarina. É uma estação padrão, com sensores de temperatura, de precipitação, de radiação solar, de velocidade e direção do vento, de umidade relativa do ar e de pressão atmosférica. Sua estrutura é robusta, montada em armação de aço e fixada em uma plataforma flutuante fundeada no lago. A estação possui placa solar e bateria para armazenamento de energia. O equipamento se mantém sem necessidade de energia externa, e a bateria tem duração de um a dois anos

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Baixo Rio Doce é importante sistema lacustre costeiro do País A pesquisa desenvolvida pelo Laboratório de Limnologia e Planejamento Ambiental (LimnoLab), do Departamento de Oceanografia da Ufes, busca estabelecer a relação entre o uso da terra e os aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos das bacias hidrográficas do Espírito Santo, com foco nos sistemas fluviais. A pesquisa, coordenada pelo professor Gilberto Fonseca Barroso, está mais avançada nas bacias da região do Baixo Rio Doce, identificado como um dos mais importantes sistemas lacustres costeiros do Brasil. Os pesquisadores já identificaram as principais pressões ambientais que comprometem os recursos hídricos da região, que são assoreamento, contaminação, eutrofização (altos índices de nutrientes com acúmulo de matéria orgânica em decomposição), alterações hidrológicas (propriedades físicas e químicas da água) e perda de biodiversidade. De acordo com o coordenador da pesquisa, a eutrofização eleva a concentração de fitoplâncton – microalgas que possibilitam a fotossíntese e são a base da cadeia alimentar dos ecossistemas aquáticos – com elevada concentração de nitrogênio e fósforo por fontes pontuais e/ou difusas. Já o assoreamento resulta na redução da profundidade das lagoas e aumento da turbidez da água – aparência turva e inibição à luz – que ocorrem, principalmente, pela presença de material em suspensão devido a processos erosivos, segundo assinala Gilberto Barroso. As alterações hidrológicas, por sua vez, ocorrem pelo elevado consumo de água para fins de abastecimento e irrigação, que é agravado pelo represamento das redes fluviais. “Outro risco real é a contaminação por substâncias orgânicas tóxicas e metais pesados, em fontes pontuais e difusas, devido à aplicação de pesticidas nas culturas agrícolas, principalmente devido aos métodos da aspersão aérea nos cafezais”, acrescenta. Barroso assinala que a situação crítica da biodiversidade local resulta na perda de espécies nativas provocadas por poluição, degradação de habitats e/ou pela introdução de espécies exóticas nas lagoas. O pesquisador destaca que o território da região é ocupado por cerca de 70% de atividades pecuárias, por extensas pastagens e reduzida área natural preservada. Sistemas agrários Os resultados do trabalho desenvolvido pelo LimnoLab podem ser aplicados nos processos de gerenciamento dos ecossistemas lacustres – ambientes

aquáticos continentais. A limnologia é o estudo ecológico de águas interiores, como lagos, lagoas, rios, açudes, nascentes e reservatórios, entre outros ambientes. De acordo com Gilberto Barroso, além dos aspectos turísticos e de lazer, as lagoas formadas predominantemente por processos fluvio-marinhos há milhares de anos oferecem diferentes bens e serviços ambientais que são muito importantes para as populações rurais e urbanas no seu entorno. A grande presença de água, segundo o pesquisador, proporciona o desenvolvimento de sistemas agrários como a produção agrícola, a pecuária e as florestas naturais. Com o solo bastante irrigado, o seu uso estimula a produção. A pesquisa, nesse aspecto, analisa o uso da terra no entorno de córregos e lagoas do Baixo Rio Doce. “O estudo se concentrou nas bacias hidrográficas de 31 lagoas, sendo 27 no município de Linhares e quatro no de Marilândia”, salienta. Nesse estudo, os pesquisadores determinaram que as 31 bacias possuem área total de 3,8 mil km² de ecossistemas lacustres – as lagoas e suas margens. Ecossistemas seminaturais A pesquisa evidencia graves distorções nos ecossistemas do Baixo Rio Doce. Segundo Gilberto Barroso, os diagnósticos apontam que o uso da terra na região é caracterizado por 22,8% de cultura agrícola, 20,4% de pastagens, 14,1% de florestas naturais, 10% de silvicultura (processos de regeneração florestal, proteção de espécies e regulação do uso da terra), e 1,1% de área urbana. “O estudo revela a predominância de ecossistemas seminaturais de cerca de 53,7% dos agroecossistemas, ou seja, mais da metade da área”, destaca. “Esses sistemas possuem como características principais a baixa diversidade biológica, elevados subsídios energéticos artificiais formados por combustíveis fósseis e elevada produtividade líquida”, pontua. “Os sistemas naturais na região – florestas e lagoas – por sua vez, apresentam elevada biodiversidade, moderada resiliência ecológica – que promove o restabelecimento do equilíbrio ambiental alterado – e baixa produtividade líquida”, assinala o pesquisador. No entorno das lagoas e córregos do Baixo Rio Doce, a situação é considerada grave, de acordo com a pesquisa. “Ali há o aumento significativo dos sistemas seminaturais com agroecossistemas, da ordem de 70,2% e 78,4, respectivamente”, registra o professor.

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Pressões Ambientais sobre Ecossistemas Fluviais e Lacustres no Baixo Rio Doce Impactos

Importância

Respostas de Gestão

Acidificação

Baixa. Potencialmente reversível

Controle ambiental das fontes pontuais de poluição

Eutrofização

Alta. Problema generalizado, mas potencialmente reversível

Controle ambiental das fontes pontuais e difusas de poluição

Assoreamento

Alta. Impacto generalizado, mas potencialmente reversível

Controle da erosão nas bacias. Adoção de boas práticas agrícolas e de construção. Recuperação da vegetação marginal

Alterações hidrológicas

Alta. Potencialmente reversível

Uso racional da água, com vazão ecológica dos córregos para as lagoas. Adoção de práticas de irrigação mais econômicas e técnicas mais eficientes na construção e manutenção de açudes

Contaminantes

Alta. Problema generalizado nos ecossistemas aquáticos. Potencialmente irreversível, devido à natureza dos poluentes persistentes no meio

Exige restrito controle da aplicação de pesticidas, sendo recomendável o manejo integrado de pragas. Requer avaliação dos níveis de contaminação dos sedimentos lacustres

Perda de biodiversidade

Alta. Problema generalizado e potencialmente irreversível, devido ao nível de alteração das comunidades biológicas, sobretudo do fitoplâncton (florações de cianobactérias na Lagoa Juparanã) e ictiofauna (peixes)

Requer restrito controle da introdução de espécies exóticas de peixes. Proteção de áreas lacustres litorâneas das lagoas como habitat para reprodução de peixes nativos. Exige desobstrução dos canais fluviais para migração de espécies de peixes

Fonte: LimnoLab/Ufes.

Foto: Renato Neto

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‘É possível oferecer subsídios para múltiplos usos sustentáveis’ O pesquisador Fábio da Cunha Garcia é pósdoutorando Profix (Capes/Fapes) do Programa de Pós-Graduação em Oceanografia Ambiental e pesquisador do Laboratório de Limnologia e Planejamento Ambiental (LimnoLab), do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Ufes. Nesta entrevista, Fábio Garcia explica o estudo descritivo que realiza na Lagoa Terra Alta, no Baixo Rio Doce, em Linhares, norte do Espírito Santo, a partir de dados coletados pela estação meteorológica lá instalada. É um estudo raro sobre as condições térmicas, físicas e climáticas de um lago, pois os dados são obtidos na meticulosa sequência de cada hora. Nesta entrevista, o pesquisador antecipa resultados alcançados, que estão sendo preparados para serem apresentados em congressos e em publicações científicas. Ele diz que a pesquisa é de longo prazo e que, entre os novos projetos, está o de instalar outra estação meteorológica no Lago Palmas, na mesma região do Estado, e que é o lago natural de maior profundidade do Brasil, com composição física e morfométrica específica e que é referência ambiental para a região.

Como se desenvolve a pesquisa na estação meteorológica? É sabido que o clima é um dos principais fatores

que interferem na dinâmica de um corpo d’água. Nos tempos atuais, passamos por um período de mudanças climáticas muito claras, e diferentes trabalhos demonstram o impacto delas nos processos físicos, químicos e biológicos dos corpos d’água. Aqui no Espírito Santo, temos uma bacia lacustre muito interessante em Linhares, no Baixo Rio Doce e, a partir da estação meteorológica, fazemos a avaliação das influências climáticas nos corpos d’água da região. Buscamos entender a real influência do clima nesses corpos d’água.

Por que a estação está instalada precisamente na Lagoa Terra Alta? Por ora não temos condições financeiras para instalar estações em diferentes lagoas, então escolhemos a Terra Alta, a 40 km do Centro de Linhares, cuja bacia estudávamos desde 2011. Além disso, na lagoa há uma fazenda de piscicultura, que é de propriedade de Antônio Robert Bourguingnon, que desde o início do projeto se tornou um parceiro importante, uma vez que ele financiou a construção da plataforma onde está a estação meteorológica, promove a segurança dos equipamentos e colabora com a logística dos trabalhos no lago.

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Como a estação funciona? Ela está instalada numa plataforma flutuante e faz o registro de dados meteorológicos. Além disso, colocamos sensores de temperatura abaixo da estação, na coluna d’água, e concomitantemente medimos as variáveis meteorológicas e a temperatura da água a cada hora, ininterruptamente. É um trabalho que existe há três anos e temos um conjunto de dados muito interessante. O equipamento é uma estação meteorológica clássica, que mede temperatura, precipitação, umidade relativa do ar, pressão atmosférica, velocidade e direção do vento e radiação global. Os sensores captam os dados que são armazenados em um processador localizado dentro de uma caixa impermeável de aço. A cada 30 dias vamos ao lago e transferimos os dados para um computador, para estudos. Os dados meteorológicos são gerados por meio de um software específico, obtidos a cada 15 minutos e integralizados a cada hora. Os dados coletados são analisados, tendo como referência as variações mensais em cada estação do ano – primavera, verão, outono e inverno – por um período anual.

São dados relativos ao ar e à água. Sim, os dados nos oferecem inúmeras possibilidades. Por exemplo, a estação mede a temperatura do ar quando chove e a quantidade de radiação que chega. Podemos entender a turbulência na coluna d’água a partir de dados sobre o vento, e medimos a temperatura do ar e da água ao mesmo tempo. Assim, temos um retrato ampliado para saber como o lago responde às variações climáticas. Com essa metodologia temos um filme de três anos que vai nos dizer o que acontece no verão, no outono, no inverno e na primavera, de maneira detalhada. Além disso, temos ciclos hidrológicos muito diferentes uns dos outros e, então, é possível caracterizar o clima em um ano e, no ano seguinte, verificarmos as variações.

Os estudos na Terra Alta valem para se compreender toda a bacia? Sim, é possível estender as análises dos dados para toda região a partir dos dados específicos. Pode haver semelhanças, mas depende de vários fatores, como as características morfométricas de cada lago, da área, da profundidade, da conformação e das características do entorno dos outros lagos – presença de árvores, encostas, etc. Evidentemente que não dá para comparar um lago que tem 20 metros de profundidade como a Terra Alta, com o lago Palmas, por exemplo, que tem 50 metros, ou com a Juparanã, que é o maior lago em área – 62 km2 – da região.

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Como se comporta a água em relação à variação climática? Os lagos possuem padrões de circulação e de estratificação. Por exemplo: estamos em uma região tropical e os lagos mais profundos, como o Terra Alta, circulam no inverno e se estratificam na primavera e no verão. É o que chamamos de padrão monomítico quente. Por quê? Porque circula uma vez ao ano, no outono e no inverno, então ele é monomítico, e é quente porque é um lago tropical. No Hemisfério Norte, os lagos com essas características são monomíticos frios. Nas regiões tropicais, com a entrada das frentes frias e o resfriamento da atmosfera, os lagos perdem calor para a atmosfera homogeneizando a temperatura da coluna d’água. Se formos lá em dezembro, teremos maiores temperaturas e um gradiente decrescente em direção ao fundo, ocorrendo assim a estratificação térmica. Desse modo, a pesquisa consegue definir algumas características térmicas como a chamada zona de mistura, que é a influência direta da atmosfera na coluna d’água até uma determinada profundidade. Foi possível ver, por exemplo, que a primavera e o verão de 2015 para 2016 foram mais quentes. A temperatura do ar foi maior e isso se refletiu na temperatura da água. Tivemos o aumento de um a dois graus, o que é muito, e isso têm implicações químicas e biológicas que estão sendo estudadas.

Quais as características que diferenciam a água de um mesmo lago? Um lago é dividido em três camadas, o epilímno superior; o metalímno, o intermediário; e o hipolímno, que é a parte de baixo. Os dois primeiros são muito mais susceptíveis às variações climáticas que ocorrem ao longo do ano. Esquentou a temperatura do ar e ele também esquenta; esfriou e ele esfria. O hipolímno responde menos a essas variações. Com isso começamos a ter um bom referencial para estudos futuros, porque essa característica térmica do hipolímnio pode ser usada como o que chamamos de memória climática, uma vez que mudança nas características térmicas desse compartimento podem não mais refletir respostas apenas à variação climática anual. Pode ser algo maior, como a resposta a uma variação mais global. Somente com três anos de estudos, ainda não temos esses dados, mas diferentes estudos, com 10 ou 30 anos, já começam a perceber essas mudanças que refletem os reais efeitos de uma mudança climática. No lago Terra Alta ainda não podemos dizer isso, mas temos um bom parâmetro para acompanhar.


Foto: Renato Neto

Qual a interferência do clima em relação aos peixes e à qualidade da água? Temos dados primários ainda, porém, fundamentais. Por exemplo: em 2016 tivemos um verão muito quente, com o aquecimento da coluna d’água como um todo. Quando terminou o verão e entrou o outono, e com o passar do tempo, a temperatura do lago foi diminuindo, devido ao resfriamento da atmosfera, e assim o lago perdeu calor armazenado. E o que aconteceu? Com a entrada de uma frente fria um pouco mais forte no final de abril, a camada superficial do lago perdeu calor de forma muito rápida e a coluna d’água se homogeneizou. E, quando esta fica homogênea, mas relativamente quente, e com o aporte de matéria orgânica do fundo do lago, há um acentuado consumo de oxigênio dissolvido. Essa depressão do oxigênio comprometeu a sobrevivência das tilápias na piscicultura, com mortandade que causou perdas de cerca de 90% da produção, e prejuízos incalculáveis para o produtor. Isso mostra um efeito direto do clima. Identificamos o momento em que isso aconteceu, o que confirma estudos que têm demonstrado que, com o aquecimento global, o período de estratificação da coluna d’água fica mais longo, e os lagos termicamente mais estáveis. Geralmente o período de estratificação começa em setembro e vai até março ou abril.

São efeitos do aquecimento global? O que está acontecendo? Os invernos, tirando as entradas de frentes frias, estão mais quentes. E o verão não só está ficando mais quente como o seu período é maior. Então, o lago tem passado por um período quente maior, estratificado e estável.

Quais as consequências disso? Isso representa as condições ideais para grupos de micro-organismos como as cianobactérias e microalgas, que vivem em suspensão na coluna d’água, em ambiente enriquecido por nutrientes e favorável à produtividade biológica. As densidades de cianobactérias aumentam muito mais do que o normal, constituindo as espécies dominantes nesses ambientes. Elas dominam em detrimento das demais microalgas, e são grupos potencialmente produtores de toxinas.

Fale sobre as cianobactérias. As cianobactérias estão na origem da vida. São responsáveis pelo início da produção de oxigênio no planeta e, hoje, constituem um problema ambiental e de saúde pública. Com o aquecimento e com a estabilidade térmica dos corpos d’água, verificamos

O pós-doutorando e pesquisador do LimnoLab Fábio da Cunha Garcia faz um estudo raro sobre as condições térmicas, físicas e climáticas da lagoa Terra Alta

o avanço das cianobactérias. Elas subjugam e reprimem o desenvolvimento de outras espécies de algas e, ao mesmo tempo, constituem problema de saúde pública em potencial. Podem produzir toxinas letais para outros animais, para peixes e para o homem, inclusive. Esse é um foco de estudo muito importante da ecologia aquática, da oceanografia, porque estão se consolidando as condições ideais à proliferação dessas espécies, que compromete a produção pesqueira e a captação de água, entre outras consequências.

Com os resultados obtidos é possível planejar ações ambientais para o uso adequado dos recursos das bacias? Sim, temos três resultados diretos. O primeiro é a produção de conhecimento que a pesquisa proporciona, por conseguirmos entender como é a dinâmica desses corpos d’água frente às mudanças climáticas. O estudo faz parte de um quebra-cabeça de conhecimento muito interessante para a ciência. O segundo ganho é mostrar para o produtor o que está acontecendo no seu quintal, onde ele produz. A pesquisa mostra que é possível e necessário se ter um manejo para a produção pesqueira, por exemplo, de acordo com as variações que estão acontecendo. No caso da mortandade de peixes mencionada, não tivemos tempo de emitir um alerta, porque vamos à lagoa uma vez por mês, e quando fomos o episódio tinha acontecido. E, em terceiro, os dados mostram que os lagos estão passando por mudanças, e é possível oferecer subsídios para múltiplos usos sustentáveis desses corpos d’água.

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Foto: Jorge Medina

Preciosidades em solo

capixaba JORGE MEDINA

As escapolitas são consideradas um mineral raro de ser localizado, e os estudos científicos a respeito dessa pedra em território capixaba são ainda mais difíceis. Se não bastassem esses dois fatores motivadores para os pesquisadores do curso de Gemologia da Ufes, existe também o desafio de mapear as principais regiões do Espírito Santo onde as escapolitas são encontradas e descrever suas principais características gemológicas.

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ímbolo de poder, luxo e vaidade, as joias geram encantamento desde tempos remotos. Esses objetos de desejo eram usados na Antiguidade, principalmente no Egito, por reis e rainhas, que, ao se cobrir das mais refinadas joias, ostentavam sua riqueza e origem nobre, buscando, dessa forma, impor autoridade sobre as outras classes sociais. Ainda hoje esses sofisticados acessórios cumprem o papel de fazer distinção entre as pessoas, pois, no imaginário coletivo, quem os utiliza consegue atrair atenção e admiração para si. Parte do fascínio exercido pelas joias está relacionado à beleza e raridade dos materiais empregados em seu processo de criação, especialmente as gemas, conhecidas popularmente como pedras preciosas. Diamantes, rubis, esmeraldas, águas-marinhas, turmalinas, safiras, turquesas e ametistas, entre outras, emprestam a esses adornos diferentes cores e significados. Existem mais de 130 espécies de gemas tradicionais ao redor do mundo. No Brasil são encontrados mais de 100 tipos dessas cobiçadas gemas, deixando o País em situação privilegiada. Algumas delas, porém, não são muito conhecidas do público leigo, embora tenham alto valor comercial, como as raras escapolitas, encontradas nas cores amarelo, azul, verde, castanho, incolor e violeta. A beleza surpreendente dessas gemas, apreciadas por pesquisadores e especialistas, vem de seu acabamento, naturalmente vítreo no interior, realçando a delicadeza da sua coloração. O Brasil figura entre os principais produtores dessa gema, juntamente com Myanmar, Sri Lanka, Tanzânia, Afeganistão e Canadá. Em terras brasileiras, as escapolitas são encontradas nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Espírito Santo, sendo esse último também objeto de estudo do curso de Gemologia da Ufes.

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Mapa da escapolita no Espírito Santo Pesquisadores do curso de Gemologia da Universidade, entre professores e alunos, estão trabalhando em um projeto de investigação com o propósito de mapear as regiões das principais ocorrências de escapolitas no Estado do Espírito Santo e realizar um levantamento dos principais aspectos da caracterização genética dessas gemas, comparando às características das ocorrências em outros estados. O objetivo principal é divulgar a potencialidade das gemas escapolitas no Estado. Os trabalhos começaram em 2012, sob a coordenação da professora Daniela Teixeira Carvalho Newman e

atualmente há outro projeto sendo executado, concomitantemente, sob a coordenação do professor Paulo Dias Ferreira Junior. “Por meio desses estudos, será possível obter dados, por exemplo, das pressões e temperaturas mínimas de formação desses cristais, o que possibilitará alcançar uma interpretação referente à composição físico-química do fluido mineralizante. Dessa forma, será empregada uma série de métodos analíticos que têm por objetivo fornecer dados qualitativos que possam ser utilizados, juntamente com algumas informações disponíveis na literatura, para que se cumpra o objetivo de propor um modelo genético para as mineralizações de escapolita no Estado do Espírito Santo”, explica a professora Daniela. Daniela Teixeira é doutora em Petrogênese, Depósitos Minerais e Gemologia e mestre em Ciências Naturais. Ela ressalta que as pesquisas também vão contribuir cientificamente para outros estudos sobre o tema, e que o Estado do Espírito Santo possui uma geodiversidade rica e desconhecida pela maior parte da população brasileira, com destaque para os recursos minerais. De acordo com a pesquisa do Grupo de Estudo, no Espírito Santo há ocorrências de escapolitas nas regiões de Aracruz e Mimoso do Sul, sendo que a ocorrência mais conhecida e expressiva é a de Aracruz. Em 2012, foi realizada uma atividade de campo nessa região e foram coletadas algumas amostras de escapolita, que deram origem Foto: Jorge Medina

Professora Daniela Teixeira Carvalho Newman

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Fotos: Jorge Medina

Pesquisadores do curso de Gemologia estudam os principais aspectos da caracterização genética das escapolitas capixabas para compará-las com as de outros estados

ao projeto inicial. A pesquisadora diz que, no primeiro momento, foi criado um grupo interdisciplinar no curso, com a finalidade de conhecer mais a fundo os detalhes das mineralizações com potencial gemológico, o Grupo de Estudos em Gemologia (Gregem) e que esse projeto de pesquisa se originou a partir do Projeto de Extensão intitulado Recursos Naturais do Espírito Santo: geoturismo sustentável, em atividade deste 2011. Ao longo desse período foram realizadas descobertas de novas ocorrências e da existência, em solo capixaba, de bens minerais que eram desconhecidos, o que demonstrou o alto potencial que o Estado possui como produtor de gemas, não só de escapolitas, mas também de outras como quartzos, águas-marinhas, granadas e crisoberilo. “O que nos chamou a atenção foi a quantidade do material e a qualidade gemológica da escapolita, que é considerada um mineral-gema raro, e percebemos que não havia estudos científicos mais detalhados que relatassem a possibilidade de uso desse material para fins comerciais e gemológicos”, explica a professora. Ainda de acordo com a pesquisadora, as gemas encontradas no Estado possuem alto potencial de aplicação gemológica. Além disso, sua ocorrência é expressiva e existe um potencial real de produção e comercialização. A pesquisa pretende ainda elaborar um banco de dados descritivo e visual contendo as características das escapolitas e dos depósitos identificados. Esse banco de dados será inédito no Estado e irá auxiliar na divulgação do potencial mineral do Espírito Santo e das potencialidades do uso gemológico desse material. Daniela esclarece ainda que a escapolita, assim como as esmeraldas, guarda uma assinatura

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geoquímica do ambiente geológico no qual foi formado. Dessa forma, os estudos das inclusões fluidas contidas nos cristais levariam ao conhecimento das temperaturas e pressões mínimas de formação das escapolitas, além de dados físico-químicos dos fluidos mineralizantes. Esses dados, aliados à caracterização gemológica destas, ajudariam a traçar as assinaturas típicas dos depósitos minerais. Com isso, as informações e os resultados obtidos com a pesquisa possibilitarão condicionar os estados brasileiros a uma ampliação na área de exploração e comércio dos recursos minerais. Quanto à contribuição para o meio científico, o Grupo de Estudo pretende propor a aplicação de padrões ou modelos metodológicos que auxiliem na interpretação genética de uma determinada mineralização, bem como incentivar novos pesquisadores a realizar trabalhos sobre o tema. “Tal projeto se justifica e se faz relevante devido ao fato de não haver informações sobre o real potencial dos estados brasileiros como produtores de minerais-gema e principalmente como produtores de gemas-raras como as escapolitas. Em vista da ocorrência delas, faz-se necessário um estudo qualitativo das amostras e das caracterizações dos principais depósitos desses minerais”, pontua a pesquisadora. Outro ponto enfatizado pela professora Daniela é a continuação da pesquisa pelo Grupo de Estudo em Gemologia da Ufes que visa analisar o real potencial do Estado em produzir minerais. Essa decisão de continuar os estudos é reforçada pelos pesquisadores, uma vez que, durante uma pesquisa de campo no município de Guarapari, foi encontrada a gema iolita, um mineral considerado raro e não usual que possui diversas tonalidades: azul, roxa, cinza, amarela, marrom e esverdeada. Essa gema é encontrada em poucos países como Índia, Sri Lanka e Moçambique.


Gemologia na Ufes A Gemologia é a ciência que estuda as gemas (pedras preciosas) e materiais gemológicos. Estuda também as características mineralógicas e os processos de tratamento, identificando ainda se são naturais, sintéticos, artificiais ou imitações. O curso de graduação em Gemologia da Ufes é o único oferecido no País e tem por objetivo formar profissionais empreendedores e inovadores, capazes de agregar valor econômico ao longo da cadeia produtiva de gemas, joias e atividades afins. Criado em 2009, oferece aos seus alunos uma formação em três áreas do conhecimento: Ciências Sociais, Geociências e Artísticas. Ao todo, são oferecidas 90 vagas, sendo 45 por semestre, com duração prevista de quatro anos para o término do curso. A criação do curso de Gemologia foi uma demanda da comunidade e da sociedade em geral, principalmente de empresários e profissionais do setor de mineração e joalheria por capacitação de profissionais na área. Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, do Governo Federal, informam que o Brasil é o maior exportador mundial de gemas. Entretanto, de cada um dólar exportado, o País deixa de faturar nove dólares. Isso em decorrência das exportações brasileiras consistirem-se primordialmente de ouro em barras e pedras brutas. Ou seja, decorrente da insuficiência de qualificação profissional e de empreendimentos capazes de agregar valor econômico ao longo dessa cadeia produtiva. Outro obstáculo que afeta a comercialização e o desenvolvimento tecnológico em relação às gemas brasileiras é que o País não possui laboratórios e profissionais capacitados para poder emitir laudos sobre as gemas. Uma vez que a compra

de uma joia, por exemplo, depende da confiança do consumidor que está comprando uma peça verdadeira. Segundo o Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM), o setor brasileiro de gemas e joias gera mais de 350 mil empregos diretos e indiretos e o faturamento anual chega a cerca de R$ 8 bilhões anualmente. A proposta do curso é a de fazer com que os futuros profissionais sejam capacitados a trabalhar em todas as cadeias produtivas do mercado de joias. Ao final, os formandos estarão aptos a atuar na identificação e avaliação de gemas e joias, abrangendo a lapidação, gravação, modelagem, ourivesaria e organização de eventos, design e confecção de joias, e artesanato em minerais. Além disso, serão capazes de participar de todo o processo de comercialização, incluindo importação e exportação. Também estarão habilitados a realizar a certificação e laudos de gemas, incluindo a certificado Kimberley, que é um processo de avaliação de origem de diamantes. O objetivo é evitar a compra e venda de diamantes de “sangue”, ou seja, diamantes procedentes de áreas de conflito, guerras civis e de abusos dos direitos humanos. O curso de Gemologia também forma profissionais que podem atuar nos campos de assessoramento técnico no tratamento de gemas naturais para instituições (avaliação) e também desempenhar a função de profissional liberal no reconhecimento entre legítimas gemas e cópias. Pensando nisso, o conhecimento e a boa técnica são indispensáveis ao gemólogo para atuar nesse mercado tão competitivo e complexo, o que reforça ainda mais a importância do curso de Gemologia da Ufes para a sociedade e para o País.

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TESE

O movimento que mudou as políticas de educação no País

NÁBILA CORREA

O movimento negro e suas implicações nos avanços de um conjunto de políticas públicas, em especial na área da educação, é o tema da tese de doutorado do professor Gustavo Forde, defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Educação. Em entrevista à Revista Universidade, Gustavo Forde evidencia o protagonismo social e político dos “africanos em diáspora”, a participação fundamental do movimento negro para avanços sociais como a reserva de vagas nas universidades públicas, além de mudanças curriculares na Educação Básica, em busca de uma educação multicultural e antirracista. O pesquisador enfatiza também a necessidade de acompanhamento da execução dessas políticas públicas para que haja constante aperfeiçoamento.

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professor Gustavo Forde, do Departamento de Teorias de Ensino e Práticas Educacionais, do Centro de Educação da Ufes, membro do Núcleo Capixaba de História da Educação (Nucaphe) e do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab), ambos da Ufes, demonstra em sua tese de doutorado que a participação do povo negro na história do Brasil está muito distante da imagem subalterna derivada do papel de “pés e mãos do engenho”, atribuído a esse segmento da população em um passado ainda recente da história da educação nacional. Além de sua resistência contra a dominação a que foram submetidos em terras brasileiras, a mobilização da população negra se estendeu, após a abolição da escravatura, por todo o período republicano, resultando em conquistas que, no caso do ensino, abriram a possibilidade de uma educação básica mais plural e permitiram que segmentos sociais antes excluídos do ensino superior tivessem acesso a esse nível de formação. Tendo a imprensa negra como porta-voz, desde o final do século XIX e início do XX, e organizados, a partir dos anos 1930, em entidades como a Frente Negra Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, na década de 1940, e o Movimento Negro Unificado, no final dos anos 1970, esses militantes passaram a produzir, de acordo com Gustavo Forde, “um conjunto de denúncias, mobilizações, reivindicações e proposições perante o Estado brasileiro, buscando reduzir a situação de desigualdades frente à população branca e garantir o acesso a bens e serviços de qualidade para a população negra do País”. Em relação às demandas apresentadas, o professor Forde afirma que o tema Educação, embora fosse uma das preocupações do movimento negro, inicialmente não constava na principal pauta de reivindicações dos militantes. “Didaticamente, podemos dividir o movimento negro contemporâneo

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em fases, sendo que, em cada uma delas, determinadas questões tiveram mais ênfase”, explica o pesquisador. Dessa forma, os anos 1970 foram um período de reorganização da militância negra, após uma ruptura do movimento durante o regime militar; já nos anos 1980, a principal questão foi a denúncia da falsa “democracia racial” no País, que mascarava o racismo “à brasileira”; por fim, nos anos 1990, a questão emergente do movimento negro constituiu-se em uma fase de diálogo com o governo brasileiro, com o objetivo de apresentar sistematicamente as propostas dos movimentos. Segundo Gustavo Forde, foi nesse último período que emergiram as reivindicações relacionadas a mudanças nas políticas de acesso aos espaços educacionais e permanência neles, assim como de revisão do tipo de educação oferecida. “O movimento negro vai retomar um conjunto de valores civilizatórios africanos e vai pautar a educação escolar como um espaço importante para ressignificar a identidade afro-brasileira e para aumentar o grau de coesão da população negra”, completa o professor. Marcha contra o racismo Um dos grandes momentos do movimento negro, nesse sentido, foi a mobilização em homenagem aos 300 anos de morte de um de mais importantes líderes, Zumbi dos Palmares: Marcha contra o racismo, pela igualdade e pela vida, que, em 1995, reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília. Naquela ocasião, foi entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso um documento propondo uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial. Entre as proposições apresentadas estava a criação de programas permanentes que capacitassem os educadores a se posicionar adequadamente em relação à diversidade racial, e a identificar as práticas de

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TESE Foto: Jorge Medina

Professor Gustavo Forde ressalta que uma das conquistas do movimento negro na educação foi a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares

discriminação e seu impacto na evasão e repetência de crianças negras; além disso, buscava-se o monitoramento dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União; e o desenvolvimento de ações afirmativas para acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta. A partir de 2001, segundo o pesquisador, houve novo avanço na consolidação da pauta política do movimento negro, após a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, África do Sul, que contou com mais de 16 mil participantes, de 173 países. “O Brasil, sendo um dos signatários dessa conferência, se comprometeu a adotar políticas de reparação e de compensação ao povo negro, entre elas as políticas de cotas”, afirma Gustavo Forde. Como fruto dessa mobilização ascendente do movimento negro, parte de suas demandas, notadamente na área da educação, foi atendida pelo Estado brasileiro, entre elas a inclusão de novos conteúdos curriculares que abrangessem a história e cultura da população negra por uma nova perspectiva, além da reserva de vagas para estudantes

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negros nas instituições públicas de ensino superior. O professor destaca que o movimento negro em sua etapa atual, além de fazer reivindicações, também passou a acompanhar e participar da execução das políticas públicas, buscando seu aprimoramento. Esse novo papel assumido resultou, por exemplo, na instituição, em algumas universidades públicas, entre elas a Ufes, de comissões para validar as autodeclarações raciais de candidatos cotistas, com o objetivo de se evitarem fraudes. “Esse é um exercício muito importante e necessário da cidadania, pois toda política pública precisa ser acompanhada, para que haja controle sobre elas e seja possível seu aperfeiçoamento”, ressalta Forde. O movimento negro e as cotas A questão das cotas raciais, dentro da reserva socioeconômica de vagas em instituições públicas de ensino superior, talvez seja um dos temas mais questionados entre as conquistas do movimento negro. Os debates colocavam em dúvida, por exemplo, se havia real necessidade do recorte racial na política de cotas, já que a população negra de baixa renda já estaria incluída na reserva social. Outra questão levantada seria a suposta


dificuldade de se determinar quem é negro no Brasil, argumentando-se que a maior parte da população teria alguma ascendência africana. Sobre a primeira questão, o professor Forde argumenta que todas as cotas criadas no País decorrem da mobilização do movimento negro. “As cotas raciais não resultam das cotas socioeconômicas. Foi um processo inverso: à medida que o movimento negro reivindica reserva de vagas com recorte étnico-racial para a população negra, esse debate vai se desdobrar no que nós chamamos hoje de cotas com recorte socioeconômico”. Entretanto, o pesquisador explica que a forte tradição do debate de classes no País fez com que o Estado brasileiro demorasse a incorporar a categoria “raça” como definidora das desigualdades sociais, já que, segundo a perspectiva hegemônica nesse debate, as políticas com recorte social seriam suficientes para promover condições de igualdade, inclusive para a população negra. “Esse debate sobre cotas vai surgir quando, no Brasil, ainda é muito forte a narrativa de que o problema no País não é racial e sim de pobreza”, pontua.

Por fim, o Estado brasileiro decidiu adotar uma política mista, que atendesse à reivindicação do movimento negro, porém subordinando as cotas raciais ao critério socioeconômico. O professor Forde, no entanto, ressalta a necessidade de políticas específicas para a população negra, por entender que ela está vulnerável ao racismo, um dos grandes responsáveis pelo empobrecimento dessa população, deixando-a vulnerável às mazelas sociais. Por esse mesmo motivo, o pesquisador defende os critérios de avaliação adotados pela Comissão instituída recentemente na Ufes, para verificar a veracidade das autodeclarações dos candidatos às cotas raciais. A análise da Comissão considera o fenótipo do candidato, isto é, características físicas, como tom de pele, tipo de cabelo e formatos de nariz e boca. “As políticas de cotas raciais visam reparar um prejuízo histórico e social que um determinado grupo de pessoas sofreu diante do racismo, pessoas que trazem traços fenotípicos da raça negra e não pessoas que até possam ter alguma ascendência africana, mas socialmente são consideradas brancas”, explica Forde.

História e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares Uma das conquistas do movimento negro na educação foi a inclusão da História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos escolares das instituições de educação básica, alteração determinada pela Lei n. 10.639, de 2003. O professor e pesquisador Gustavo Forde destaca a importância dessa medida pelo fato de a escola ter papel significativo nos processos de socialização e na formação da identidade de cada indivíduo. Ele enfatiza que as crianças e os jovens negros eram prejudicados por não conseguirem se identificar no ambiente escolar. “Além de ser um espaço de produção e de promoção de práticas racistas e de discriminação, nosso currículo escolar construía uma narrativa de que todas as grandes realizações na sociedade brasileira foram feitas por povos brancos, e de que todos os valores positivos são valores branco-europeus” , afirma Forde.

Em relação às contribuições africanas na área de Ciências Exatas, o professor cita o artefato mais antigo sobre o surgimento da Matemática, o bastão de Ishango. Trata-se de um osso petrificado de 20 mil anos, contendo vários registros matemáticos, que foi encontrado na África, na região entre Congo e Uganda. Já na história colonial brasileira, Forde destaca que a presença negra contribuiu não só com a força de trabalho, mas também com inovações, como a introdução do arado agrícola, uma tecnologia africana. Outras incorreções presentes nos livros de história tradicionais seriam o “branqueamento” de civilizações negro-africanas como a egípcia, a qual contribuiu com muitos dos conteúdos que se estuda em álgebra, aritmética e geometria, e a camuflagem das características negras de personalidades importantes como Machado de Assis.

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Fotos: Arquivo Lúcio André Amorim

Drone e o seu radiocontrole, utilizado nos momentos de decolagem e pouso

NOVOS HORIZONTES COM A UTILIZAÇÃO DE

drones autônomos NÁBILA CORRÊA

As pesquisas realizadas na Ufes com Veículos Aéreos Não Tripulados (Vants), conhecidos como drones, vêm buscando desenvolver e aprimorar técnicas de controle, movimento e navegação desses dispositivos, de forma a ampliar as possibilidades de aplicação dessa tecnologia. 22

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iferentemente dos dispositivos aéreos mais populares, que precisam de um piloto em terra para dirigir seus movimentos, as pequenas aeronaves desenvolvidas na Universidade são autônomas. O voo independente é possível graças aos algoritmos de controle desenvolvidos pelos pesquisadores, além da utilização de sistemas de GPS (Global Positioning System) e WiFi instalados nos drones, e de computadores em terra, como explica o professor Mário Sarcinelli Filho, coordenador dos estudos com Vants, no Grupo de pesquisa Robótica e Automação Industrial, do Departamento de Engenharia Elétrica. Mário Sarcinelli ressalta ainda a importância das pesquisas que buscam a realização de movimentos mais complexos pelos drones, ampliando assim as possibilidades de deslocamento e de trajetórias que esses dispositivos podem realizar. Da mesma forma, o aprimoramento nas técnicas de estabilização de voo, de captação de imagens, de deslocamento de objetos, assim como de utilização de dois ou mais drones para otimizar sua utilização são exemplos dos projetos desenvolvidos pelos pesquisadores, que podem futuramente tornar os drones autônomos tão conhecidos quanto seus similares guiados por controle remoto. A seguir conheça propostas de utilização dos Vants e a tecnologia desenvolvida na Ufes que pode contribuir para sua implantação.

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A encomenda que chega voando Mário Sarcinelli afirma também que atualmente uma das apostas para aplicação de drones autônomos seria no serviço de entrega de produtos. “Nesse

caso, não há como alguém seguir o drone na rua para o controlar. Então, é necessário estabelecer o caminho que ele tem que seguir, ligando o local de armazenamento da mercadoria ao de entrega”. De acordo com o professor, para que esse tipo de serviço seja realizado pelas pequenas aeronaves é necessário que ela seja capaz de realizar diferentes manobras para cumprir os mais variados trajetos em uma cidade. O trabalho desenvolvido pelo doutorando Milton Cesar Paes Santos, no Programa de Pós-graduação em Engenharia Elétrica, por exemplo, apresenta uma proposta de aplicação em que o drone consegue seguir um caminho, desenhando um “oito” no ar. “Esse movimento é complexo, sendo necessário, nesse tipo de trajetória, que o drone freie ou acelere muito nas curvas”, explica Sarcinelli, acrescentando que o controlador desenvolvido por Santos para realizar esse movimento permite reduzir os possíveis erros a quase zero, em comparação ao controle convencional. Outro estudo realizado pelo grupo de pesquisa coordenado por Sarcinelli visa resolver o problema de oscilação da carga durante o transporte pelo drone, já que, durante o voo, o veículo pode ter sua trajetória alterada por causa da perturbação do objeto transportado sobre o veículo, por meio do cabo que o liga ao drone. Simulações realizadas pelo doutorando Igor Henrique Pisetta buscaram, então, reduzir essas oscilações, ao controlar o movimento do drone de forma a compensar a perturbação causada pela carga. O professor Sarcinelli pondera, porém que, para tornar a entrega autônoma via drones possível, seria necessário um mapeamento das cidades. “Para

O mestre Lúcio André Amorim (ao centro), oficial do Corpo de Bombeiros, ao lado do professor Mário Sarcinelli (de camisa listrada), um dos orientadores da pesquisa, realizou estudos sobre o uso dos drones nos combates a incêndio

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definir o planejamento do caminho a ser seguido pelo drone, eu tenho que ter minha cidade completamente estruturada e mapeada, para saber, por exemplo, a localização e dimensões de cada prédio. O que não existe ainda no Brasil”. Siga o mestre Outra técnica desenvolvida na Ufes em pesquisas com aeronaves não tripuladas é a chamada navegação Líder-seguidor. Nesta, um drone se move de forma independente e o outro tem que segui-lo, refletindo seus movimentos e mantendo um padrão seguro de distância. Professor Sarcinelli diz que a utilização de dois ou mais drones aumenta a eficiência dos dispositivos em aplicações como varredura de áreas e transportes de cargas. “Em varredura de áreas, ao usar mais veículos você consegue reduzir o tempo necessário para a tarefa e também inspecionar uma área maior.” No caso de transporte de objetos, Sarcinelli pondera que ao utilizar dois drones, por um lado, seria possível transportar um peso maior, mas, por outro, haveria a possibilidade de acidentes: “quando a carga sobe, o cabo é esticado, então é como se ela estivesse puxando os drones, que correm o risco de colidir um com o outro”, explica. Na busca de solução para esse problema, o pesquisador Igor Pisetta propôs uma técnica para evitar que ocorram colisões, utilizando movimentos alternados entre os drones de aceleração e desaceleração para compensar a perturbação causada pela carga. “A ideia que está sendo trabalhada é que um drone repila a aproximação do outro, por meio de um campo de força fictício, em que a força de repulsão cresce quando a distância entre os drones diminui”, explica o professor Mário Sarcinelli. Localizando focos de incêndio Um dos estudos realizados com drones no Grupo de pesquisa Robótica e Automação Industrial teve

como objetivo a utilização dessas aeronaves para auxiliar o corpo de bombeiros no monitoramento de incêndios. O projeto foi proposto pelo mestrando Lúcio André Amorim, que é oficial do corpo de bombeiros, e orientado pelos professores Mário Sarcinelli e Raquel Frizera Vassallo. “Os drones podem ser utilizados pela corporação no levantamento de informações como a localização dos pontos atingidos pelo fogo, a extensão total do incêndio e a velocidade de propagação do fogo, fornecendo, dessa forma, uma visão geral da região atingida”, explica Lúcio Amorim. Segundo o pesquisador, essas informações, que são utilizadas na tomada de decisões durante o incêndio, podem ser coletadas também por outras aeronaves, no entanto, o uso de drones apresentaria algumas vantagens. “O uso de aeronaves, tais como aviões e helicópteros nem sempre é viável devido à disponibilidade e também ao alto custo de aquisição e operação. Levando em conta tais problemáticas, surge a possibilidade do uso de equipamentos menores, buscando resultados satisfatórios, por exemplo, aeromodelos ou drones”, complementa Amorim. O professor Sarcinelli explica que o pesquisador realizou experimentos para, por meio de códigos de linguagem computacional, colocar o equipamento em determinada altitude e iniciar o deslocamento dele sobre a área de interesse. Na sequência, foi possível, por meio do sistema de GPS localizado no drone, saber, em terra, por quais pontos ele estava passando e transmitir comandos para que o equipamento fizesse o registro fotográfico dos locais desejados. “No caso do meu projeto, todo o voo foi realizado sem a intervenção humana. Após o pouso, as fotografias foram processadas por um software também desenvolvido por mim, e então foi gerado um mosaico, ou seja, as colagens das imagens.” explica Lúcio Amorim. O oficial acrescenta que já existem projetos em andamento com o objetivo de aquisição de drones para utilização em ocorrências de bombeiro.

Vídeos disponibilizados no YouTube, pelos pesquisadores: Testes com drone, simulando localização e fotografia de focos de incêndio (Lúcio Amorim): https://www.youtube.com/watch?v=ov21H9hbITk Testes com realização de movimentos circulares (Milton Santos): https://www.youtube.com/watch?v=TCLJ2ooHABo Simulação de drones em configuração Líder-Servidor, no transporte de cargas (Igor Pizetta): https://www.youtube.com/watch?v=resPvYggpBs&feature=youtu.be

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O corpo humano e

a máquina: pesquisas interdisciplinares buscam novas tecnologias para melhorar a qualidade de vida de pacientes ANA PAULA VIEIRA

Ilustração: Projetada por Kjpargeter - Freepik.com

Estímulos elétricos no cérebro, robô que interage com crianças autistas, reabilitação com andadores robóticos, exoesqueletos vestíveis. Essas são algumas das aplicações criadas por professores e estudantes das áreas de Engenharia Elétrica, Medicina, Psicologia, Informática e Biotecnologia da Ufes que têm integrado cada vez mais suas pesquisas visando gerar tecnologias e ferramentas em prol da saúde e do bem-estar da população

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O cérebro A professora Ester Nakamura é médica por formação, mas fala de corrente elétrica, algoritmos, software e campo magnético como variáveis comuns em suas pesquisas. Tendo como foco principal o tratamento da dependência química, a pesquisadora quer influenciar a função cerebral por meio da introdução de pequenas doses de corrente contínua de baixa intensidade no cérebro dos pacientes. Essa “influência” é tecnicamente chamada de modulação: “A modulação tem o objetivo de facilitar funções fisiológicas que já existem e que podem estar funcionando de forma inadequada”, explica Ester. Segundo ela, a modulação provocada pela estimulação elétrica poderia ser de ordem comportamental ou motora, mas também em nível celular e molecular. “Estamos falando até mesmo em mudanças da transmissão por neurotransmissores do sistema nervoso central e, no caso molecular, Foto: Bucher

até mesmo em mudanças da síntese de proteínas, mudanças gênicas”, afirma a pesquisadora. A neuromodulação, segundo a professora Ester, poderia ser utilizada para o tratamento de diversas condições crônicas, principalmente aquelas relacionadas às chamadas funções executivas: “As funções executivas envolvem de forma importante a parte anterior do cérebro, a região pré-frontal. São funções cognitivas necessárias para a nossa rotina, por exemplo, para tomada de decisões, planejamento de ações, mudanças de respostas frente a uma nova situação, controle de respostas, entre outros. São funções de alta complexidade, que estão bastante comprometidas nos casos de dependência química”, destaca ela. Então a professora pretende tratar pessoas dependentes de álcool e outras drogas com a estimulação cerebral? Sim, mas não só isso. A neuromodulação não é a única técnica pesquisada no Laboratório de Ciências Cognitivas e Neuropsicofarmacologia, coordenado por Ester Nakamura, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas. Os estudos caminham também para o neurofeedback que, segundo ela, tem a intenção de proporcionar ao indivíduo um treinamento cognitivo para que ele consiga sustentar as respostas adquiridas no tratamento de doenças. “Para isso, precisamos da tecnologia. Seria necessária uma máquina para receber o estímulo, processá-lo e devolvê-lo para o indivíduo em tempo real. Ao devolver esse estímulo, você teria a possibilidade de treinar, por exemplo, o dependente de drogas, para que ele consiga confrontar determinadas situações no dia a dia, sustentando, assim, a modificação de uma resposta inadequada”, analisa a pesquisadora.

Professora Ester Nakamura demonstra o novo sistema de EEG, totalmente sem fios, capaz de registrar a atividade cerebral

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Neurofeedback O desenvolvimento do neurofeedback é um dos principais esforços do Brazilian Research Group on Brain and Cognitive Engineering, o Braen, formado em 2016 na Ufes e composto por pesquisadores da Medicina, Engenharia Elétrica e Psicologia. Esse grupo está idealizando a configuração de um sistema de neurofeedback para ser utilizado em pesquisas na Ufes. Para isso, a professora Ester explica que são necessários um computador, um programa capaz de receber o estímulo cerebral e interpretá-lo (que seria um programa de neurofeedback) e um sistema de Eletroencefalografia, o EEG, método de monitoramento que registra a atividade elétrica do cérebro e seria responsável por capturar os sinais cerebrais do paciente. “A ideia aqui é ter um sistema que vai captar os registros cerebrais. Esses registros serão inseridos na máquina, que vai fazer a leitura e introduzir alguns estímulos, ou algumas mudanças, e depois disso devolver para esse indivíduo. Com isso, posso buscar a ativação de outra área cerebral diferente da que ele está utilizando, por exemplo”, projeta a professora. Diferente da estimulação cerebral utilizada na neuromodulação, no neurofeedback não há estimulação com corrente elétrica, mas uma devolução sob a forma de estímulos (por exemplo, visuais, sonoros ou táteis). Todos esses equipamentos já foram adquiridos pela Ufes, com verbas captadas junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O EEG era

o último equipamento aguardado pela equipe, e chegou em 30 de agosto. Conforme explica Ester Nakamura, após a chegada de todos os equipamentos é preciso conhecê-los melhor e definir as participações das diferentes áreas e pesquisadores no processo, mas a expectativa é começar a realizar os primeiros testes clínicos com pacientes em 2018. E o Braen não para por aí. Para validar a técnica do neurofeedback e atestar que realmente estão ocorrendo mudanças no cérebro a partir da devolução dos estímulos, é preciso enxergar todas as reações durante o processo. A parte visual fica por conta da Ressonância Magnética (RM) que, de acordo com a professora Ester, é um ótimo equipamento para captar as imagens da estrutura cerebral, mostrando inclusive o seu funcionamento: “Essa técnica dá uma resolução espacial muito boa, bem definida, mas não dá a indicação temporal”, destacou. Para ter precisão do momento em que certas reações acontecem, o método utilizado é o EEG, então os professores resolveram investigar como esses dois processos poderiam ser utilizados ao mesmo tempo. Para combinar as duas técnicas, os pesquisadores da Engenharia tiveram que avaliar a inserção do sistema de EEG dentro da Ressonância, visto que dentro dela o campo magnético influenciaria o funcionamento do EEG. “Os equipamentos existem aqui, os pesquisadores da Engenharia e da Psicologia fizeram o esforço de conseguirem esse sistema de EEG todo blindado, específico para isso. Também adicionamos um sistema de projeção de imagem”, ressalta a pesquisadora.

Foto: Bucher

Pesquisadores do Braen fazem os primeiros testes para configuração do sistema de neurofeedback

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Mapeamento cerebral A possibilidade de fazer um mapeamento cerebral é o cerne das indagações que uniram esses pesquisadores. Os professores da Engenharia percebiam que em projetos para reabilitação motora, como a cadeira de rodas robotizada, o estado emocional do paciente no momento dos testes influenciava muito a experiência e, por isso, eles procuraram a equipe da Medicina na tentativa de compreender melhor o funcionamento do cérebro humano. De acordo com Ester, técnicas como o neurofeedback já são utilizadas, mas não de maneira muito resolutiva, e o objetivo das pesquisas do Braen é inovar. “Aqui na Ufes, estamos tornando o sistema um pouco mais complexo: não queremos ver apenas o registro de onda emitido pelo sinal cerebral, mas a ativação cerebral como um todo”, defende. Com esse nível de detalhe, a professora quer compreender melhor as conectividades cerebrais:

Tecnologia Assistiva Muito antes da formação do Braen, alguns pesquisadores da Engenharia Elétrica já se aventuravam pelo estudo do funcionamento do cérebro e da interface entre homem e máquina com o objetivo de desenvolver aplicações voltadas para a área da Saúde, visando ajudar pessoas com deficiências ou com limitações causadas por doenças. Temas como robótica de reabilitação, exoesqueletos robóticos, andadores robóticos, jogos para reabilitação, entre outros, são o foco do Núcleo de Tecnologia Assistiva (NTA), criado em 2014 e coordenado pelo professor Teodiano Freire Bastos Filho, como parte do Laboratório de Automação Inteligente, que foi criado no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica em 1991. O professor André Ferreira é membro do NTA e do Braen. Em seu doutorado, defendido em 2008, ele trabalhou em uma proposta de interface Cérebro-Computador para comando de cadeiras de roda. A partir dessa e outras experiências, ele foi percebendo que, em algumas condições, a parte cognitiva do paciente está funcional, mas devido a limitações motoras, a única saída de informação é o sinal cerebral.

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“Uma criança com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) possivelmente tem conectividades neurais não funcionando plenamente; no caso do autismo, há conectividades que não se formaram, por exemplo. Então a partir do momento que se aprimora esse diagnóstico, é possível saber melhor por onde começar a atuar, ou de que forma buscar uma correção ou recuperação. É o aprimoramento do diagnóstico e do tratamento também”, vislumbra a pesquisadora. O leque de doenças que poderiam ter o diagnóstico e tratamento aperfeiçoados com o neurofeedback é grande: tremores, alcoolismo, lesões, ansiedade, depressão, fibromialgia, dor crônica, Parkinson, autismo, distúrbios do sono. Mas seja qual for o problema a ser tratado, o objetivo da professora Ester é sempre o mesmo: “É pensar no indivíduo, na pessoa, para que ela possa estar mais integrada no contexto da vida dela, da sociedade, da família. O foco é no indivíduo ser mais feliz”.

Nesses casos, é possível detectar alguns padrões nos sinais cerebrais registrados e mapeálos em ações físicas: “Utilizamos um gorro com eletrodos colocado na cabeça do paciente. Com ele, registramos os sinais elétricos no escalpo através de um bioamplificador e, depois, esses dados são transmitidos a um computador para processamento e análise, buscando detectar padrões específicos. É possível, por exemplo, mapear a intenção de movimento de uma das mãos em um movimento real de uma cadeira de rodas, ou comandar qualquer outro dispositivo via um canal de comunicação disponível”, explica André. De acordo com o professor, esse tipo de tecnologia poderia auxiliar em qualquer enfermidade cujo tratamento envolva a fisioterapia, pois é possível um acompanhamento desde a fase do planejamento da ação motora: “Mesmo antes de o indivíduo iniciar o movimento, é possível identificar no sinal cerebral que as redes estão se preparando para executá-lo”, ressalta. André explica que nos estudos da interface cérebro-computador, é importante que a interação homem-máquina ocorra de forma natural e intuitiva: “Tentamos utilizar um mínimo de sensores e buscar tarefas mentais que sejam relacionadas com a tarefa física desejada”.


O corpo e as tecnologias assistivas Córtex pré-frontal Neurofeedback Várias doenças poderiam ter o diagnóstico e tratamento aperfeiçoados com o neurofeedback: tremores, alcoolismo, lesões, ansiedade, depressão, fibromialgia, dor crônica, Parkinson, autismo, distúrbios do sono.

Aqui ocorrem as funções executivas, relacionadas à tomada de decisões, planejamento de ações e controle de respostas.

Treinamento cognitivo

Interação Durante as pesquisas com o robô Maria, os braços foram uma das áreas mais tocadas pelas crianças, e na nova versão eles vêm com diferentes materiais e texturas.

Robô com braços O robô ONO, também usado para diagnóstico e tratamento do autismo, é um projeto de hardware aberto que está disponível para fabricação e impressão em 3D. Na Ufes, os pesquisadores querem acrescentar bracinhos para que ele possa apontar para objetos e eventos durante a interação com crianças.

Ilustração: Projetada por Kjpargeter - Freepik.com

Lesões medulares Pesquisas mostram que pacientes com lesão medular incompleta poderiam melhorar suas capacidades motoras com o auxílio de sistemas robóticos.

Usando técnicas como a neuromodulação e o neurofeedback, os pesquisadores querem promover um treinamento cognitivo e conseguir respostas mais adequadas diante de algumas doenças.

Movimentos Sensores desenvolvidos na Ufes com tecnologia de fibra ótica podem medir ângulo de joelho e a pressão que o usuário faz quando caminha, de forma que o movimento seja completamente descrito.

Locomoção Tecnologias como o exoesqueleto e o andador robótico poderiam ser usadas de maneira combinada, ajudando na locomoção.

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Foto: Isabella Altoé

Essa busca por técnicas menos invasivas foi uma das principais motivações para o desenvolvimento de um robô para interação com crianças com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), batizado com o nome de Maria (Mobile Autonomos Robot for Interaction with Autistics). O estudo foi iniciado em 2013 no doutorado do estudante Carlos Valadão, do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica, e no mestrado da estudante Christiane Goulart, do Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia, ambos orientados pelo professor Teodiano Freire Bastos Filho, que orienta outras 23 pesquisas de mestrado e doutorado. Christiane, que é farmacêutica, se juntou aos engenheiros no projeto de criar um robô para auxiliar no tratamento do TEA, distúrbio neurológico caracterizado por comprometimento da interação social e comunicação. Na primeira fase da pesquisa, finalizada em 2015, os pesquisadores identificaram que uma das Foto: Isabella Altoé

Professor Teodiano Freire Bastos Filho, o pós-doutorando Carlos Valadão e a doutoranda Christiane Goulart apresentam o robô que interage com crianças autistas

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Professor André Ferreira trabalha com a interface Cérebro e Computador para comandar cadeiras de roda

limitações era o fato de a criança ter que colocar uma touca na cabeça para gravar os padrões de sinais cerebrais, o que as incomodava muito. Agora a pesquisa está em uma segunda fase, utilizando o conceito de proximetria: “Proximetria é um conceito psicológico que demonstra aproximações de pessoas do ponto de vista de intimidade. Ele é estabelecido de acordo com a cultura. No Brasil, se as pessoas se aproximam até 50 cm umas das outras, essa é considerada uma distância prudente de conversa, respeitosa”, destaca o professor Teodiano. A partir dessa ideia, a nova Maria tem sensores a laser na cintura, que a todo momento estão medindo distâncias e conseguem detectar obstáculos e crianças a sua volta. De acordo com o professor, a partir da distância que a criança chega do robô, é possível compreender se ela quer interagir. “Temos câmeras térmicas e câmeras normais. Um dos fatores que revela emoção é a variação de temperatura facial, que muda quando nós, seres humanos, queremos muito alguma coisa ou temos emoções. O robô tem uma câmera que mede essa temperatura e a interpreta como variação emocional, o que é muito importante, pois a criança com autismo tem sérias limitações de demonstrar emoção, isso é muito limitante para elas”, explica Teodiano. Além da dificuldade de relacionamento com as pessoas, estudos indicam que os autistas teriam mais facilidade em interagir com máquinas. O robô Maria não apenas detecta esse interesse, mas também reage a ele, pois conforme conta o professor Teodiano, trata-se de um robô cognitivo, que muda a expressão facial de acordo com a reação da criança. “Se ele vir que a gente está triste, ele fica triste, mas pode começar a tocar música, filme ou rodopiar. O robô é um sistema autônomo, capaz de se locomover, girar; os braços são feitos com


sensores de contato para identificarmos quando a criança tocar a estrutura. Isso demonstra um grau de interação muito grande, porque a criança com autismo evita sempre tocar e ser tocada; se ela tocou o robô, tem um significado importante para a sua sociabilidade”, analisa o professor. De acordo com Teodiano, a hipótese é de que se a criança com autismo, que geralmente apresenta problemas de socialização com humanos, é capaz de interagir com um sistema robótico, a repetição dessas interações possibilitaria alterações de comportamento que permitiriam interagir com humanos, de forma que a Maria seria um potencializador da sociabilização. Para comprovar a hipótese, os pesquisadores pretendem realizar testes com trinta crianças. Na primeira fase, dez crianças participaram dos experimentos, cinco com autismo e cinco sem a doença. “É muito difícil conseguir as crianças, porque a gente precisa de critérios de inclusão e de exclusão”, justifica Christiane. Ela destaca ainda que o transtorno do espectro autista tem três níveis, leve, moderado e severo: “A gente conseguiu fazer o teste com crianças do nível um, porque precisávamos tomar certos cuidados e entender se ia interessar, qual seria o comportamento”, relata a doutoranda. Os primeiros testes foram realizados em 2014, mas para chegar até a nova Maria, desenvolvida em sua pesquisa de doutorado, Christiane precisou ir além da Engenharia e da Medicina. Depois de muito estudar, conversar com pais de autistas, associações de apoio aos portadores do distúrbio e psicólogos,

juntamente com o estudante de mestrado Vinícius Binotte, ela deu um novo formato à Maria: no lugar do rosto um tablet projeta emoções e cores, e uma saia colorida foi utilizada para acrescentar o lúdico ao robô. A pesquisa de materiais também foi extensa: “Usamos EVA, espuma, isopor, tecido e até sanfonado de ar-condicionado. Ela é toda montável, para o caso de precisar mexer em alguma coisa, nos sensores, minicomputadores, fios”, ressalta Christiane. Segundo ela, os rostos coloridos projetados no tablet foram baseados em um filme infantil: “Até isso, nos mínimos detalhes, não é livre, tudo tem um estudo”, diz. “Não foi só Engenharia e Saúde, foi muito mais, foi um tempo muito grande para conceber a forma do robô, pesquisa de materiais, estética; um trabalho imenso, totalmente baseado em evidências científicas”, atesta o orientador da pesquisa. Além da Maria, cujo foco é a interação com crianças já diagnosticadas com o autismo, um outro robô está em estudo no NTA, porém mais voltado para auxiliar no diagnóstico do distúrbio. Esse é um dos projetos sob a coordenação do professor Anselmo Frizera. Ele explica que se trata de um robô aberto, disponível na internet para download e impresso em impressora 3D. “A gente consegue fazer o seguimento das pessoas dentro do espaço, então eu poderia saber onde está uma criança, na hora que ela está interagindo com o psicólogo, como ela está se locomovendo e para onde ela está olhando. Então eu consigo saber se ela está prestando atenção ou não e se está seguindo indicações do terapeuta. A ideia é detectar o que a

Fotos: Jorge Medina

O robô ONO (à esquerda) e o exoesqueleto (à direita) são algumas das pesquisas desenvolvidas por estudantes e professores no âmbito do NTA

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Foto: Jorge Medina

O andador robótico poderá auxiliar paraplégicos com lesão medular incompleta

gente chama de parâmetros de risco de autismo, auxiliando no diagnóstico mais do que na reabilitação”, descreve o professor. Esse robô, batizado de ONO, só tem expressões faciais, e agora os pesquisadores querem acrescentar braços, de forma que ele possa se direcionar à criança. A abordagem é diferente da Maria: “Algumas bibliografias sugerem trabalhar com robôs menores, para causar menor impacto na criança. Apesar de, por exemplo, a Maria ser um robô grande, e eles terem resultados positivos; mas esse robozinho fica em cima de uma mesa, com poucos movimentos, então a criança sente como se ela tivesse o controle da situação, o robô não se desloca em direção a ela, são movimentos bem controlados e bem restritos. É uma abordagem um pouco diferente da realizada no Projeto Maria, mas igualmente válida e ainda em fase de experimentação”, salienta Anselmo.

Reabilitação motora Atualmente com dezesseis estudantes sob sua orientação, o professor Anselmo, outro integrante do NTA, também é um dos engenheiros falando sobre reabilitação e tecnologias voltadas para a saúde. Algumas de suas pesquisas estão concentradas no desenvolvimento de sensores eletrônicos, óticos e com câmeras, tudo isso com o objetivo de estudar o movimento humano e propor tecnologias que possam ser utilizadas em diferentes tipos de terapias para pessoas com

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lesão medular incompleta, como os paraplégicos, por exemplo. Uma dessas vertentes de tecnologias é o estudo dos exoesqueletos, que são robôs vestíveis para reabilitação. Anselmo explica que já existem exoesqueletos comerciais que podem ser receitados pelos médicos nos Estados Unidos, porém com custo muito alto; então os pesquisadores desenvolvem os sensores na Ufes com o objetivo de torná-los mais acessíveis e compactos. Além do custo, o tamanho dos sensores também é determinante: “Trabalhamos com tecnologias baseadas em sensores de fibras óticas. Estamos tentando fazer os sensores menores, ocupando menos espaço no robô e viabilizando a integração em roupas futuramente”. Esses sensores poderiam ser utilizados para medir variáveis como ângulo de joelho e a pressão que o usuário faz quando caminha, de forma que o movimento seja completamente descrito. E além de desenvolverem sensores, os pesquisadores da Ufes também desenvolvem a parte de software, ou seja, os programas que recebem e processam as informações. “Esse processamento pode ocorrer no próprio robô, em um computador que está próximo ao robô, ou em um data center, a fim de gerar relatórios que indicam o progresso de determinado movimento, força de interação ou tônus muscular”, enfatizou Anselmo. Segundo ele, esses relatórios poderiam ser gerados de acordo com as demandas de médicos e profissionais de saúde envolvidos na reabilitação dos pacientes. Os pesquisadores da Ufes agora investigam como usar o exoesqueleto integrado ao andador robótico desenvolvido na Universidade desde 2010. O professor Anselmo explica que, em alguns casos, paraplégicos com lesão medular incompleta acabam usando cadeira de rodas por não terem uma ferramenta mais adequada, prejudicando a manutenção das capacidades motoras residuais, e testes já demonstraram que eles podem andar com auxílio de sistemas robóticos. “Devido à instabilidade de caminhada e problemas que eles desenvolvem, eles acabam ficando presos à cadeira de rodas, o que gera um decréscimo da atividade motora. Eles vão sofrendo de perda da função pela falta de mobilidade diária”, ressalta. Nesse andador projetado na Ufes, um sistema detecta as forças de interação no membro superior e a distância entre as pernas do usuário e o andador, de modo que o usuário caminha sem tocar no robô e o robô não sai da frente dele. “Como o robô está sempre na frente da pessoa, é algo


extremamente seguro”, destaca Anselmo. O desafio agora é integrá-lo com o exoesqueleto: “Ao mesmo tempo que o exoesqueleto ajuda a dar o passo, o andador segue a pessoa, as duas coisas funcionando sincronizadas”, explica o pesquisador. Além desse uso, o exoesqueleto desenvolvido na Ufes também pode ser usado com o paciente sentado, para induzir movimentos de flexão e extensão do joelho e ajudar na reabilitação. O professor Anselmo prevê a utilização desse sistema dentro de espaços médicos, como hospitais e clínicas. “Nós estamos adicionando sensores para termos também as informações do ambiente. Então hoje a gente pode fazer um mapa virtual enquanto a pessoa caminha com o andador, criando uma rota para ajudá-la a voltar, por exemplo”, afirmou. O andador pode aprender o mapa de um hospital e se autolocalizar nesse ambiente: “Podemos ajudar os usuários a desviarem de obstáculos ou a navegarem em determinados espaços como se ali houvesse um trilho virtual: criamos uma espécie

Recursos Mesmo com o alto custo dos equipamentos e materiais utilizados nas pesquisas e os recentes cortes do Governo Federal nos investimentos em ciência e educação, os pesquisadores da Ufes têm alcançado projeção internacional. Nos dias 7 e 8 de agosto de 2017, a professora Ester Nakamura e sua equipe receberam a visita do professor de Psiquiatria e Neurologia da Universidade Médica de Viena (Áustria), Otto Michael Lesch, presidente da Sociedade Austríaca de Medicina da Dependência. Referência mundial sobre dependência química, ele criou a “Tipologia de Lesch”, método amplamente utilizado para categorizar pacientes dependentes de álcool. A iniciativa de visitar a Ufes veio do próprio pesquisador, que queria conhecer mais sobre as pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Ciências Cognitivas e Neuropsicofarmacologia. Ainda no mês de agosto, o Google anunciou uma nova classe de 27 pesquisadores da América Latina na área de Ciência da Computação que receberão, ao longo de 12 meses, aproximadamente R$ 2 milhões para avançar seus estudos. Entre eles estão os professores Anselmo Frizera Neto e Teodiano Freire Bastos Filho (Leia mais sobre o prêmio na página 64). O professor Teodiano também

de resistência virtual, para que eles sigam trajetórias previamente estabelecidas”, afirma o professor. Ele ainda acrescenta que todas essas aplicações podem ser integradas a uma técnica chamada cloud robotics, ou seja, robótica em nuvem. Com ela, toda a parte de processamento do robô poderia ser retirada dele e colocada em um data center. A partir daí o robô usaria comunicação sem fio e isso o tornaria mais barato e mais simples, segundo Anselmo. Em meio a todas essas possibilidades, o professor Anselmo ressalta que o investimento é fundamental: “Cada conjunto motor e redutor para uma única articulação de um exoesqueleto pode custar cerca de 3 mil euros, e nós precisamos de seis, um em cada lado do quadril, um em cada joelho, um em cada tornozelo”.

destaca uma parceria de vários anos com a Ryerson University e a University of Alberta, do Canadá, com as quais são realizadas pesquisas conjuntas. Com essas iniciativas e parcerias, o objetivo dos pesquisadores é dar continuidade e avançar nas pesquisas. “A Medicina evoluiu muito nos últimos 100 anos por conta dos fármacos. O investimento que se tem nessa área é gigantesco e trouxe soluções para uma série de problemas graves. Supostamente as ferramentas robóticas, de realidade virtual, geram novas terapias ou novas tecnologias de terapias que podem levar a outros benefícios clínicos”, analisa Anselmo. Para ele, a participação da Engenharia nesse processo deve ser ainda maior nos próximos anos. “Se você olhar o que é feito hoje em projetos americanos, europeus, existem investimentos fortes. Alguns exoesqueletos podem até ser prescritos para pacientes, não é uma coisa tão distante. Eu acredito que a gente esteja avançando. O difícil é avançar sem tanto investimento”, pontua. Nesse cenário acadêmico, a Ufes apresenta um diferencial: “Colegas de grupos de pesquisa do Brasil e do exterior elogiam essa integração natural entre as áreas, como a que conseguimos aqui, entre a Medicina, a Engenharia Elétrica e a Psicologia, visto que tal integração não é comum”, conclui o professor André Ferreira.

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Linhaça: uma semente boa para a saúde da mulher LORRAINE PAIXÃO

Pesquisadores da Ufes estudam os efeitos da farinha de linhaça no corpo feminino

hega uma fase da vida da mulher em que tudo parece virar de cabeça para baixo. Calor intenso, suor noturno, irritabilidade e diminuição da libido são alguns sintomas sentidos por muitas mulheres que estão entrando na fase que antecede a menopausa, conhecida como perimenopausa. Muitas vezes confundida com a menopausa, a perimenopausa é, na verdade, o período

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que marca o fim da vida reprodutiva. Isso acontece por volta dos 50 anos de idade, quando ocorre a última menstruação, devido à redução na produção do hormônio estrogênio. Além dos incômodos sintomas citados, uma outra transformação acontece no corpo das mulheres nessa fase: o aumento da gordura abdominal, uma consequência e resposta do corpo à queda da produção de estrogênio.


Foto: Freepik/ Roi Pihlaja

Com o problema evidenciado e vivido por muitas mulheres, os médicos e pesquisadores têm procurado, por meio de estudos, encontrar soluções para melhorar a qualidade de vida delas. Nesse sentido, três pesquisadores da Ufes, que atuam no Centro de Ciências Agrárias e Engenharias (CCAE) e no Centro de Ciências Exatas, Naturais e da Saúde (CCENS), em Alegre, realizaram um estudo, entre 2013 e 2016, que tem apresentado resultados considerados significativos. Realizada pela professora do Departamento de Engenharia de Alimentos (CCAE) Pollyanna Ibrahim Silva; e pelos professores do Departamento de Farmácia e Nutrição (CCENS) Neuza Brunoro Costa e André Gustavo Vasconcelos Costa, a pesquisa analisa os efeitos dos alimentos funcionais, como a linhaça, no corpo de mulheres com excesso de peso e em fase da perimenopausa. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o alimento funcional é aquele que oferece, além de suas funções nutricionais básicas, um efeito benéfico para a saúde, ou seja,

são alimentos que, além de nutrir, podem controlar e evitar algumas doenças como hipertensão e diabetes. “Alimentos funcionais têm compostos bioativos que trazem muitos benefícios para a saúde. Já alimentos não funcionais são os que, apesar de terem em seus componentes nutrientes como carboidratos e lipídios que fornecem energia e são bons para o corpo, não têm nesses componentes os benefícios a mais”, explica a professora e nutricionista Neuza Brunoro Costa. “O macarrão e o arroz branco, por exemplo, são alimentos não funcionais. Eles têm, em seus compostos, carboidratos que fornecem energia para o corpo humano, e nós precisamos de energia. Mas, além desses compostos, eles não têm nenhum outro composto que traga benefício para a saúde. Inclusive, se consumidos em excesso, podem aumentar a glicemia e provocar diabetes”, alerta. Manter uma alimentação saudável virou parte do cotidiano de muitas pessoas. A busca por alimentos saudáveis e novos hábitos alimentares têm feito as pessoas procurarem mais informações sobre o assunto. Com isso, os alimentos funcionais têm se tornado cada vez mais populares. “Atualmente, existe uma procura por uma alimentação equilibrada, e isto tem transformado os alimentos funcionais num grande trunfo para as indústrias alimentícias”, pontua a professora Pollyana Ibrahim. Foto: Arquivo pessoal

Professora Pollyana Ibrahim Silva, do Departamento de Engenharia de Alimentos (CCAE)

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Existe no mercado uma grande variedade de alimentos funcionais. Cada alimento é responsável por garantir benefícios a uma parte do organismo humano. Brócolis, couve-flor e rabanete, por exemplo, têm a função de aumentar a atividade de enzimas tipo 2, que são protetoras contra as células cancerígenas. As frutas, como a melancia e a goiaba vermelha, possuem ação antioxidante e reduzem os níveis de colesterol. Já os cereais integrais, leguminosas, hortaliças com talos e frutas com casca auxiliam no bom funcionamento intestinal. Conhecer a função de cada alimento no corpo humano não é uma tarefa muito fácil para a maioria da população, mas especialistas e até mesmo leigos têm buscado se aprofundar nesse assunto. Da semente à farinha Na Ufes, os pesquisadores do CCAE e do CCENS têm estudado os efeitos da linhaça, que também é considerada um alimento funcional, no organismo humano. Eles analisam a farinha de linhaça, obtida por meio da trituração da semente de linhaça, como substituta parcial da farinha de trigo. Estudam também os benefícios do consumo desse alimento por mulheres com excesso de peso e em fase da perimenopausa, já que a linhaça possui, entre seus componentes, as lignanas, que são fitoestrógenos que atuam de maneira similar aos estrogênios. “A semente de linhaça apresenta quantidades significativas de proteínas, fibra solúvel e insolúvel, além de minerais, como cálcio, fósforo e magnésio. Apresenta também elevadas concentrações de lignanas e ácidos graxos poli-insaturados da série n-3, como o a-linolênico”, explica a pesquisadora Pollyanna Ibrahim. Em um dos estudos, foram produzidos cupcakes com diferentes concentrações de farinha de linhaça marrom como substituta parcial da farinha integral que é usada como ingrediente do produto. Após as análises, os pesquisadores chegaram à conclusão de que é possível a utilização da farinha de linhaça marrom como substituta parcial da farinha de trigo. Segundo a pesquisadora, não houve nenhuma rejeição, por parte dos consumidores, do produto feito à base de linhaça. “O cupcake com inclusão de 80% de farinha de linhaça foi bem aceito, o que demonstra a possibilidade de um novo produto mais nutritivo e muito mais saudável”, salienta. Além de pesquisarem o uso da farinha de linhaça nos alimentos, os professores da Ufes pesquisaram ainda os benefícios do alimento para a saúde das mulheres. O estudo sobre os benefícios da linhaça foi

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aplicado em 30 voluntárias alocadas em três grupos diferentes: grupo controle (que não recebeu linhaça), grupo linhaça marrom e o grupo linhaça dourada. Todos os grupos receberam planejamento alimentar com redução de 250 kcal/dia e orientações nutricionais. As voluntárias consumiram durante três meses 40g de farinha de linhaça diariamente. Passados os dias do estudo, foi verificado que o consumo de linhaças dourada e marrom contribuiu para a redução da circunferência da cintura, e o de linhaça dourada também contribuiu para a redução do peso corporal e do índice de massa corporal. A composição das duas linhaças (marrom e dourada) foi semelhante em termos de carboidratos, lipídios e proteínas. Já a linhaça dourada foi mais eficaz na diminuição da fração do colesterol LDL, popularmente chamado de colesterol ruim. Como é produzida no Brasil, a linhaça marrom tem um preço bem mais acessível que a linhaça dourada, mais produzida em países de clima frio como o Canadá. “Além de reunir compostos bioativos com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias, a linhaça tem ainda os fitoestrógenos, substâncias que imitam o hormônio estrogênio. Por isso, ela é importante e deve ser incluída na alimentação das mulheres”, ressalta a nutricionista e pesquisadora Neuza Brunoro Costa.

Foto: Jorge Medina

Professora Neuza Brunoro Costa, do Departamento de Farmácia e Nutrição (CCAE)


Fotos: Marcos Santos / USP Imagens

Conheça os principais alimentos funcionais e seus benefícios para a saúde Linhaça Composto funcional: Proteínas, fibras, minerais, lignanas e ácidos graxos poli-insaturados da série n-3 Benefícios: Contribui para a redução de peso, ameniza os sintomas da menopausa, controla o colesterol, previne doenças cardiovasculares, inibe os tumores hormônio-dependentes

Soja e derivados Composto funcional: Isoflavonas Benefícios: Ação estrogênica, reduzem os sintomas da menopausa, reduzem também os níveis de colesterol

Sardinha, salmão, atum e outros peixes Composto funcional: Ácidos graxos e ômega-3 Benefícios: Reduzem o LDL (colesterol ruim) e têm ação anti-inflamatória

Chá verde, amoras, cerejas, uvas roxas Composto funcional: Catequinas Benefícios: Reduzem a incidência de alguns tipos de câncer, controlam o colesterol e estimulam o sistema imunológico

Couve-flor, repolho, brócolis Composto funcional: Indóis e isotiocianatos Benefícios: Indutores de enzimas protetoras contra o câncer, principalmente o de mama

Cereais integrais, leguminosas, hortaliças com talos e frutas com cascas Composto funcional: Fibras solúveis e insolúveis Benefícios: Reduzem o risco de câncer de cólon, melhoram o funcionamento intestinal. As solúveis podem ajudar no controle da glicemia e no tratamento da obesidade

Raiz de chicória, batata yacon Composto funcional: Prebióticos, fruto-oligossacarídeos, inulina Benefício: Ativam a microflora intestinal, favorecendo o bom funcionamento do intestino

Leites fermentados, iogurtes e outros produtos lácteos fermentados Composto funcional: Probióticos, bifidobactérias e lactobacilos Benefícios: Favorecem as funções gastrointestinais e reduzem o risco de constipação e câncer de cólon

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Foto: Alexandre Ricardo

Os mangues são responsáveis por 95% de todo o alimento que o ser humano retira do mar

MANGUEZAIS: conhecer para preservar JORGE MEDINA

Os manguezais, ecossistemas típicos de regiões tropicais litorâneas, são muito importantes para a vida econômica da sociedade. Seu solo, geralmente lamacento e rico em matéria orgânica, é de grande importância para a fauna e flora aquáticas, abrigando uma enorme diversidade de animais e plantas. Mas quais são os principais fatores que afetam esse ecossistema? Quais as consequências dessas ações negativas sobre os manguezais e seus efeitos sobre outros ecossistemas? As pesquisas e os trabalhos sobre manguezais desenvolvidos pela professora Cláudia Câmara do Vale, do Departamento de Geografia, permitem entender um pouco mais sobre os fatores que estão afetando esse ecossistema e as soluções para minimizar os problemas. 38

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os manguezais, que se localizam entre os ambientes marinhos e terrestres, são encontrados peixes, ostras, moluscos, mamíferos, mariscos, crustáceos e micro-organismos, e portanto possuem uma rica biodiversidade. Trata-se também de um local para a reprodução de várias espécies de aves, constituindo uma área de elevada produtividade biológica, uma vez que acolhe representantes de todos os elos da cadeia alimentar. Esses ecossistemas possuem importantes funções para o meio ambiente. As raízes aéreas das plantas ajudam a diminuir a energia do curso das águas e das ondas, diminuindo, assim, os impactos sobre os solos e ajudando, com isso, a conter o processo de erosão. Entretanto, esse berçário da natureza também está sendo ameaçado pelas mãos do homem. A extração não sustentável de suas espécies, bem como a devastação de seus ambientes, estão afetando sua biodiversidade. Vale ressaltar que os manguezais são responsáveis por aproximadamente 95% de todo o alimento que o ser humano extrai do mar, e que, entre os sistemas costeiros tropicais, eles estão entre os mais produtivos. As pesquisas e os trabalhos sobre manguezais desenvolvidos pela professora Cláudia Câmara do Vale, que coordena o Laboratório de Biogeografia e Paisagem Geográfica (Labiogeo) da Ufes, buscam ampliar o conhecimento sobre os aspectos fitossociológicos dos manguezais. O objetivo é realizar um levantamento da quantificação da composição florística, da estrutura, do funcionamento, da dinâmica e da distribuição da vegetação. “Esse é somente um dos objetivos, que pode parecer apenas ecológico, mas conhecer a quantidade de mangues, o número de espécimes por área, por exemplo, é uma medida muito importante para levantar outras informações mais amplas, como calcular a quantidade de sequestro de carbono que um bosque pode realizar ou averiguar a quantidade de madeira por metro quadrado, por hectare nos manguezais”, explica Cláudia. Outro importante objetivo dessas pesquisas, destaca a professora, é, por meio do mesmo tipo de análise fitossociológica, estudar a capacidade dos manguezais de proteger a linha de costa e as cidades costeiras da erosão causada por rios e mares, como foi o caso de um projeto de pesquisa coordenado por ela no município de Conceição da Barra, que verificou a erosão sobre os manguezais e sobre a praia da Bugia. “Também temos objetivos sociais, de saber quais comunidades vivem dos manguezais por

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meio dos recursos naturais que estes oferecem gratuitamente à humanidade, como peixes, crustáceos e moluscos, que são utilizados para alimentação e renda, além da madeira que é utilizada para combustível, como carvão, e da casca do tanino, retirada dos troncos da espécie conhecida como mangue-vermelho (Rhizophora mangle), entre outros”, ressalta. “Além desses objetivos, uma nova linha de pesquisa que estamos seguindo é quantificar os serviços ecossistêmicos dos manguezais”, enfatiza a pesquisadora. Entende-se como serviços ecossistêmicos o controle de inundação e da erosão, manutenção da biodiversidade costeira, proteção contra tormentas e ventos fortes, retenção de substâncias tóxicas e de resíduos tóxicos e a segurança alimentar das comunidades ribeirinhas. Ameaças O Brasil possui uma ampla área costeira, com uma grande quantidade de manguezais em seu território, ocupando um espaço superior a 1,2 milhão de hectare, o que representa 15% de todos os manguezais existentes no planeta. No País há registros de que os manguezais foram utilizados pelos indígenas antes mesmo da chegada dos colonizadores. Isso pode ser comprovado pela existência de sambaquis espalhados pela costa brasileira. Apesar de existirem leis de proteção e campanhas de conscientização de preservação das áreas de manguezais, essas áreas continuam sofrendo um processo de degradação, principalmente com a urbanização desordenada em seu entorno, aterros clandestinos, especulação imobiliária, implantações de indústrias e despejo de efluentes tóxicos, como esgoto industrial. Dessa forma, os manguezais sofrem com a descarga de materiais tóxicos provenientes das indústrias, desmatamento para a construção de palafitas, além de inundações para criação de camarão, peixes e ostras. Somada a esses problemas, existe ainda a poluição causada por empresas, pelo lixo doméstico e despejo de esgoto urbano e industrial. Estimativas de pesquisadores e ambientalistas indicam que aproximadamente 25% dos manguezais brasileiros já foram destruídos. Essas questões são preocupantes, salienta a professora Cláudia, uma vez que se conhece a existência, na costa brasileira, de comunidades que sobrevivem a partir dos recursos naturais, sobretudo no que se refere aos manguezais, a exemplo da Ilha das Caieiras, em Vitória, no Espírito Santo.

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Fotos: Alexandre Ricardo

O mangue, berçário da natureza, está ameaçado pela extração não sustentável de suas espécies, um dos fatores de devastação ambiental

Entre esses recursos, os caranguejos estão entre as espécies que servem de renda para várias comunidades. Apesar da abundância desses crustáceos, a pesquisadora enfatiza que sua extração desordenada contribui significativamente para a deterioração da biodiversidade dos manguezais. Cláudia explica que eles são muito importantes para o equilíbrio ecológico dos manguezais, pois, ao se alimentarem das folhas e raízes de árvores, ajudam no processo do material orgânico encontrado nesse ambiente. “Os manguezais são ecossistemas altamente produtivos que contribuem significativamente para a fertilidade da região costeira, sobretudo da plataforma continental, devido à exportação de grande quantidade de matéria orgânica transformada em partículas de detritos e à utilização dessas partículas como alimento para um grande número de organismos consumidores de elevado valor comercial, que passam pelo menos uma parte de seu ciclo vital na região estuarina, ora para reproduzir-se, ora para alimentar-se, ora para defender-se dos predadores”, salienta a professora. Outro ponto observado por ela é a necessidade de se considerar o papel geomorfológico exercido pelos manguezais onde quer que eles se desenvolvam, já que esses ecossistemas retêm, entre suas raízes, os sedimentos continentais transportados

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pelos rios e pela chuva, por meio do escoamento superficial. Da mesma forma, os manguezais funcionam como “barreira”, protegendo a linha de costa contra os processos erosivos das ondas, marés e correntes litorâneas. O mangue e as cidades A ocupação dos manguezais é um problema que está presente em várias cidades brasileiras e é realizada tanto por parte de populações consideradas carentes como as de alta renda, gerando inúmeros prejuízos aos municípios, ao meio ambiente e às pessoas em geral. “O crescimento das cidades, a urbanização sobre as áreas de manguezal, os complexos portuários que provocam a supressão dos bosques de manguezais, os lixões sobre os manguezais, os aterros sanitários sobre essas áreas, entre muitos outros impactos negativos, são inúmeros e afetam os manguezais de norte a sul do País. Se a legislação fosse corretamente aplicada, tudo isso seria impedido”, explica Cláudia Vale. A pesquisadora ressalta ainda que a população que se instala nas áreas de interesse ambiental não somente compromete os recursos essenciais aos moradores, mas também sofre com a falta de infraestrutura básica para moradia, culminando em uma maior degradação ambiental e social.


A ocupação das margens dos rios, segundo Cláudia, afeta as matas ciliares, as quais têm papel essencial para a manter o curso d’água, e também para conter a erosão em áreas críticas, propícias aos desabamentos. Apesar de ser uma área protegida por lei, grande parte do manguezal das cidades já foi aterrada para dar lugar a construções de moradias ou para a instalação de grandes empreendimentos imobiliários, viários e industriais. “A solução para os problemas que afetam os manguezais consiste numa legislação que deve levar em consideração todo o potencial que esses sistemas possuem. Leis sobre esse tema já existem, pois o Brasil tem uma das melhores legislações ambientais do mundo, mas na prática ela não é aplicada e, portanto, os problemas se perpetuam e se repetem em todo o litoral brasileiro de forma indiscriminada”, acrescenta a pesquisadora. Costa brasileira As pesquisas desenvolvidas pela professora da Ufes não se limitam aos manguezais, mas também abrangem diferentes enfoques na costa brasileira, bem como sobre seus ecossistemas associados, tais como dunas, marismas, restingas, lagunas e recifes de corais. A importância para a ampliação dos estudos sobre a costa, de uma maneira geral, enfatiza a pesquisadora, é a intensa ocupação desta, realizada

pelo homem de forma impactante, sobretudo a partir de meados do século XX, assim como a existência de grande potencial de recursos naturais e ambientais. “Por outro lado, a zona costeira, quando comparada com o restante das terras emersas do mundo, é um espaço reduzido, constituindo-se numa estreita faixa de terras finitas e relativamente escassas. A despeito dessa finitude espacial, dois terços da humanidade habitam em zonas costeiras, onde se localiza a maioria das metrópoles”, ressalta a professora. Cláudia afirma ainda que, muitas vezes, as regiões litorâneas brasileiras possuem um valor muito mais elevado do que o território situado por trás de uma costa ou de um rio (hinterlândia), o que pode levar à supressão dos ecossistemas costeiros e, consequentemente, das populações a eles inter-relacionadas, e à diminuição da biodiversidade, em função da exploração imobiliária que é imperativa no atual modelo de desenvolvimento econômico do País. Vale ressaltar que o conhecimento dos problemas que afetam esse ecossistema rico em sua biodiversidade é fundamental para reavaliar as ações praticadas pelo homem. A ocupação desordenada dos seus territórios, o uso indevido de suas riquezas e a contaminação desses santuários promovem uma perda inaceitável para a humanidade, para a atividade econômica da sociedade, para a paisagem das cidades e para todo o processo evolutivo humano.

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ARTIGO

Conservação da biodiversidade e direitos das comunidades tradicionais: breve olhar sobre o Litoral Norte capixaba Marcos C. Teixeira*

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) é um tratado da Organização das Nações Unidas e um dos mais importantes instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente (Ministério do Meio Ambiente). Mais de 160 países assinaram o acordo, que entrou em vigor em dezembro de 1993, entre os quais o Brasil. Entre as ações para garantir a conservação da Biodiversidade, as Unidades de Conservação (UCs) representam uma das principais estratégias. No Brasil, com a instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC - Lei 9985/2000), são reconhecidos dois tipos de unidades de UCs: proteção integral e uso sustentável. O objetivo básico das Unidades de Proteção Integral é preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, enquanto o objetivo das Unidades de Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais. Desde 2003 venho me envolvendo em debates sobre a conservação da biodiversidade no Norte do Espírito Santo. Esse envolvimento teve início por ocasião da desafetação da Estação Ecológica de

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Barra Nova (São Mateus). Essa UC, criada no âmbito do município, abriga comunidades que tradicionalmente desenvolveram sua cultura e suas atividades de subsistência vinculadas ao acesso direto da biodiversidade local. São pescadores e catadores de caranguejo que se utilizam do mangue, do rio, do mar e da restinga, que têm garantido a segurança alimentar das comunidades por gerações. Com a sanção do SNUC, essa condição recaiu na ilegalidade, pois as Estações Ecológicas são reconhecidas como UC de proteção integral e, portanto, incompatível com a presença humana em seu interior. Atualmente, as comunidades de Barra Nova vêm enfrentando muitas dificuldades para manter suas atividades extrativistas com a redução do pescado e do caranguejo, segundo os mesmos, consequência dos empreendimentos que vêm ocupando o Litoral Norte do Espírito Santo. Degredo A Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Degredo está localizada no litoral de Linhares. Um dos principais problemas dessa UC tem sido a pressão


Foto: Setur/ES – Yuri Barichivich

sobre a flora, sobretudo para a retirada de bromélias, já que a área ganhou notoriedade pela diversidade e abundância dessas plantas. Recentemente, a UC esteve no epicentro das discussões sobre a construção de um empreendimento portuário, cuja alocação demandava mudanças em suas dimensões. A conclusão dos órgãos gestores ambientais foi pela não concessão da licença ao empreendimento e, embora os motivos sejam diversos, certamente a presença da reserva reforçou a decisão. Na região da foz do Rio Cricaré, está implantada a Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra. Essa categoria de UC tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais. Embora a categoria de APA não proíba o acesso das comunidades à biodiversidade, podem ser estabelecidas normas e restrições quanto ao uso dos recursos que muitas vezes são conflitivas com os modos de vida das comunidades tradicionais. Desde setembro deste ano, essa UC tem sido palco de conflitos entre as comunidades e os órgãos públicos responsáveis pela

gestão do meio ambiente em função do parcelamento ilegal do solo. Aproveitando-se da ausência do Estado, especuladores do setor imobiliário aliciam os moradores tradicionais que vendem parte de seus terrenos, contrariando as normas previstas no plano de manejo da APA. Esse parcelamento desordenado tem provocado a redução significativa da cobertura vegetal da restinga no interior da Ilha de Guriri e, consequentemente, aumentado a pressão sobre o manguezal na região da foz do Rio Cricaré. O Parque Estadual de Itaúnas está localizado na porção norte do litoral de Conceição da Barra até a divisa com a Bahia. Implantado em 2000 para proteger a área de restinga, manguezal, alagados e a Mata Atlântica de tabuleiro, o Parque constitui uma UC de proteção integral e, portanto, o acesso à biodiversidade é bastante restrito e a permanência de comunidades em seu interior é proibida. Por isso, desde sua criação, a gestão do Parque tem enfrentado sérias dificuldades, uma vez que a comunidade local, que vivia tradicionalmente da pesca e da caça e fazia uso da flora, precisou ser retirada. Ainda hoje as comunidades reclamam o direito de acesso à biodiversidade

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ARTIGO e seus interesses têm conflitado com as ações de fiscalização para garantir a conservação. Em todos os casos acima mencionados, sendo as UCs de proteção integral ou de uso sustentável, a questão que ainda permanece, após 17 anos da sanção do SNUC, é que ainda permanecem os conflitos entre os objetivos de conservação da biodiversidade e os modos de vida das comunidades tradicionais, fortemente vinculados à natureza. Essa questão tem dividido conservacionistas e socioambientalistas desde 1872, com a criação do primeiro parque, Yellowstone, nos Estados Unidos. Para os primeiros, a presença humana no interior das UCs é incompatível com a conservação e buscam evidenciar isso por meio de estudos que mostram que mesmo os modos de vida tradicionais levam à extinção de grandes predadores e aves. Para os segundos, é preciso considerar que foram os modos de vida das comunidades tradicionais que garantiram a permanência desses ecossistemas até a atualidade e, por isso, é preciso garantir a manutenção dessa relação homem-natureza. Defendem ainda que os tradicionais possuem direito ao território em função do tempo de uso. Assim, os argumentos conservacionistas estão ancorados em conhecimentos ecológicos enquanto os socioambientalistas se valem de argumentos políticos. No contexto da análise da relação das comunidades tradicionais com as Unidades de Conservação da Biodiversidade no Norte do Espírito Santo, é preciso considerar outro fator: o desenvolvimento econômico. O incentivo ao turismo no Parque de Itaúnas explicita a predileção do Estado pelo turista ao morador tradicional no acesso à biodiversidade, embora nesse modelo o benefício para a comunidade é incipiente. O Estado, por meio da implementação de determinadas políticas públicas, privilegia ora o capital privado e a apropriação privada da terra, ora uma suposta apropriação pública da terra, na forma de UC que, no entanto, traduz-se no uso particularizado deste espaço, voltado para a atividade recreativa, mediado principalmente pelo turismo. No caso da Estação Ecológica de Barra Nova, sua desafetação foi motivada pela necessidade de implantação de um terminal de óleo, cuja viabilidade técnica passava pelo Litoral Sul de São Mateus. Dessa forma, a desafetação não ocorreu em função de descriminalizar as comunidades, mas apenas para viabilizar o empreendimento em nome do crescimento econômico. Em resposta, os gestores planejaram uma demarcação do espaço para criação de uma nova UC de uso sustentável, cujo decreto levou 17 anos para ser publicado.

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Na região da foz do Rio Cricaré, está implantada a Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra

Nesse período, registrou-se a degradação da biodiversidade e, consequentemente, da qualidade de vida das comunidades tradicionais de Barra Nova. Nessa discussão, não se pode negligenciar a necessidade de proteção da biodiversidade e a importância dos conhecimentos científicos. Porém, também não se pode menosprezar o fato de que os povos tradicionais também desenvolveram conhecimentos preciosos sobre a biodiversidade a partir de seus modos de vida e suas culturas dependentes da natureza. Também é fato que essa cultura tradicional tem colaborado significativamente para a conservação da biodiversidade. Essa condição está reconhecida pela Convenção sobre a biodiversidade, em seu Art. 8: “Em conformidade com as legislações nacionais, (a Convenção deve) respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas de comunidades indígenas e locais


Foto: Setur/ES – Weverson Rocio

que apresentam estilos de vida relevantes para a conservação e o uso sustentado da diversidade biológica e promover sua aplicação ampla com a aprovação e o envolvimento dos possuidores de tais conhecimentos, inovações e práticas e encorajar a distribuição dos benefícios derivados de tais conhecimentos, inovações e práticas”. Portanto, conferir aos tradicionais o título de inimigos da natureza, colocando-os sob o mesmo prisma das sociedades urbanas, cujos laços com a natureza é de outra ordem, não parece justo e pouco contribui para a conservação, pois apenas amplia os conflitos. Uma das evidências dessa situação são os constantes incêndios sofridos pelo Parque de Itaúnas. Tomar como base estritamente o SNUC e os conhecimentos científicos denuncia não apenas um legalismo por parte da gestão da biodiversidade, mas ainda uma abordagem dicotomizada da

relação sociedade-natureza pautada na dissociabilidade entre natureza e cultura. Cabe aos gestores e pesquisadores reconhecer que a cultura tradicional não possui conhecimentos menos importantes que os conhecimentos científicos, mas diferentes. Feito isso, também é tarefa do Estado, por meio dos conhecimentos científicos, desenvolver métodos de gestão em que esses saberes possam se complementar para garantir a conservação e o uso da biodiversidade pelas comunidades tradicionais, inaugurando-se outro modelo de gestão. Mesmo porque, na ausência do Estado, são as comunidades que sempre se constituíram como guardiãs da biodiversidade no norte capixaba, posto que esta tem sido sua fonte de sobrevivência.

* Professor Doutor do Ceunes / Laboratório de Educação Ambiental

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Desenho: Vítor Meireles - Bahia(2)

Derrubando BARREIRAS Pesquisa desvela as línguas de imigração no Espírito Santo

LETÍCIA NASSAR

A travessia do Atlântico era apenas o começo de uma epopeia para italianos, espanhóis, suíços, pomeranos, alemães, prussianos, poloneses e outros, que tinham como ponto final da sua viagem algum lote de terra na então província do Espírito Santo, a partir de meados do século XIX. Dos navios às canoas, os imigrantes percorriam os leitos dos rios e depois desbravavam florestas, caminhando por alagadiços e abrindo picadas nas matas virgens, seguindo os passos de guias que os levavam até o terreno prometido. Isolados, pois os povoados ficavam a quilômetros de distância, esses grupos aos poucos foram vencendo as adversidades da natureza, mas ainda enfrentam a dificuldade da língua. 46

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sse breve relato da dificuldade da instalação dos imigrantes no Espírito Santo se deve às pesquisas que há anos vêm sendo realizadas nessas comunidades. Muito se descobriu a respeito das barreiras naturais vencidas por essas pessoas guerreiras, mas a academia ainda sabe pouco a respeito das barreiras linguísticas. As diferentes etnias de imigrantes que colonizaram o Espírito Santo construíram uma babel linguística no território capixaba, dificultando, no início, a integração entre eles e os poucos nativos – indígenas, portugueses e negros escravizados – que, em alguns casos, viviam nas redondezas. “Não temos muitas pesquisas, informações ou depoimentos a respeito dos primeiros contatos linguísticos e da dificuldade de comunicação enfrentada pelos imigrantes”, explica a professora Edenize Ponzo Peres, do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGEL/Ufes), que pesquisa os contatos entre as línguas faladas pelos imigrantes e o português no Espírito Santo. A pesquisa desenvolvida pela professora tem por objetivo descrever os traços das línguas de imigração presentes na língua portuguesa falada pelos atuais descendentes de imigrantes e as causas do fim da transmissão da língua ancestral às gerações seguintes, além de propor políticas para a manutenção e até um possível resgate dessas línguas.

E

Preconceito O fato de esses imigrantes terem morado no interior do Estado, em locais isolados, ajudou a manter as línguas vivas por muitos anos, porém boa parte delas está desaparecendo. Segundo depoimentos dos informantes aos pesquisadores, foram vários os fatores que determinaram o fim da transmissão dessas línguas, entre eles: as lembranças tristes da terra natal que as línguas evocavam; o uso da língua apenas entre os mais velhos, para que os filhos não soubessem do que os adultos estavam falando; a proibição do uso de línguas estrangeiras no Brasil, a partir de 1938; a busca por novas terras dentro do Estado, por parte dos imigrantes e seus descendentes, o que fez com que os falantes passassem a ter mais contato com o português; e o preconceito que os descendentes de imigrantes, principalmente as crianças, na escola, sofriam por causa da língua. “Na escola, se ensinava o português e não eram aceitas outras línguas. Como ficavam essas crianças? As professoras não sabiam, não tinham a habilidade para lidar com

essa questão. Afinal, era como se elas fossem ensinar o português para um estrangeiro”, acrescenta. A professora Edenize tem vários relatos de professores de escolas em municípios colonizados por imigrantes: “Eu não consigo dar aula para essas crianças. Elas não falam o português direito”, diz uma professora do Ensino Fundamental à pesquisadora. Edenize explica que “não é raro a escola e os colegas discriminarem quem fala a língua de imigração ou quem tem sotaque. Então o estudante, como o descendente de pomeranos, chega em casa e diz que não quer falar mais essa língua. E não adianta os pais saberem que ela é importante, porque a criança não quer falar. Isso retrata como é complicada a situação dessas línguas minoritárias”. A pesquisadora explica que, em outros estados, como o Rio Grande do Sul, já existe uma conscientização a respeito da importância dessas línguas, de modo a promover nos descendentes de imigrantes o respeito pelos antepassados e pela sua língua. “Aqui no Espírito Santo isso ainda não acontece. Na zona urbana é maior a pressão da língua majoritária, que é o português. Por outro lado, na zona rural, essa questão de identidade e etnicidade não é levantada; assim, a língua se perde, pois as pessoas têm vergonha de usá-la”, diz. A professora destaca ainda que não existe o reconhecimento legal do preconceito linguístico, como existe quanto ao preconceito racial, por Foto: Jorge Medina

Professora Edenize Ponzo Peres pesquisa os contatos entre as línguas faladas pelos imigrantes e o português no Espírito Santo

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exemplo. “As pessoas acham que quem não fala o português culto simplesmente fala errado. E a Sociolinguística mostra que todas as variedades linguísticas são legítimas e caracterizam os diferentes grupos sociais. Assim, não existe o ‘certo’ e o ‘errado’, e sim o ‘adequado’ ou ‘não adequado’ a uma situação comunicativa”. As línguas italianas foram as que deixaram de ser faladas mais cedo. “Esses falantes sofriam muito preconceito, então pararam de falar. Em Venda Nova, a cultura italiana é muito presente. Os moradores têm orgulho dos ancestrais, das tradições e da história deles, mas, com a relação à língua, isso não acontece”, destaca Edenize. Apesar dessa discriminação, a pesquisa constatou que, atualmente, muitos jovens manifestam o interesse em aprender a língua falada pelos antepassados. Os imigrantes e suas línguas A última grande leva de imigrantes chegados Espírito Santo começou em 1846, ocupando as localidades mais próximas da capital da província, Vitória. Os grupos germânicos, especificamente os suíços, foram os primeiros. Os pomeranos, que vieram de uma região entre a Alemanha e a Polônia, a Pomerânia, se fixaram inicialmente em localidades que hoje são os municípios de Domingos Martins, Santa Leopoldina e Santa Maria de Jetibá. Os alemães se instalaram no que corresponde atualmente

aos municípios de Domingos Martins, Marechal Floriano e Santa Leopoldina, entre outros. Já os italianos, em número muito maior que os demais, foram para além dessas terras e, atualmente, seus descendentes estão em praticamente todo o Espírito Santo. De acordo com o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, chegaram ao Estado nos séculos XIX e XX mais de 36 mil italianos. “Os italianos vieram de diferentes regiões: Vêneto, Lombardia, Trentino-Alto Adige, Emilia Romagna, Piemonte e Friuli-Venezia Giulia, entre outras. A maioria dos italianos veio do Vêneto, norte da Itália, e falavam variedades dessa língua. Já os lombardos falavam variedades do lombardo, e assim por diante. No Vêneto, por exemplo, temos o trevisano, o padovano etc. Trata-se de línguas e suas variedades. É complicado usar o termo dialeto, pois a ele está associada a ideia de uma língua inferiorizada e, para a Linguística, especialmente a Sociolinguística, não existe uma língua inferior a uma outra. Ela pode ter status social menor que outra, mas uma língua ou uma variedade ser inferior a outras, não”, enfatiza. De acordo com a pesquisadora, também vieram para o Estado imigrantes de várias outras etnias, como os libaneses, que são o sexto maior contingente, mas ela desconhece pesquisas a respeito do contato entre a(s) língua(s) falada(s) por esses imigrantes com o português. Um dos fatores para

Fotos: Susana Kohler

Em Domingos Martins, a influência da colonização alemã pode ser encontrada também na arquitetura e em nomes de ruas e estabelecimentos comerciais

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Foto: Divulgação

a manutenção de uma língua é a coesão do grupo, ou seja, quando ele se mantém em determinada região e esses falantes se comunicam na língua ancestral, que, afinal, é a língua que eles conhecem. No entanto, se eles se dispersam, não têm com quem falar e a língua se perde. É o caso dos libaneses, que andavam de comunidade em comunidade, comercializando produtos. Contatos linguísticos As línguas de imigração mais faladas ainda hoje no Espírito Santo são o pomerano e o hunsrückich. “Os alemães até hoje conservam a língua, assim como os pomeranos. Há famílias que falam dentro de casa. Já as línguas italianas estão deixando de ser faladas”, diz Edenize. Há muito ainda a ser pesquisado. “Os mais idosos estão morrendo e muita informação está sendo perdida. Temos pesquisas ainda por fazer em Secretarias de Saúde e Educação dos municípios e em cemitérios e igrejas, além de realizar mais entrevistas com as famílias e fazer outras pesquisas bibliográficas. Existem alguns fatores que tornam a pesquisa ainda mais complexa: é preciso trabalhar com a história do Espírito Santo, do Brasil e dos países de onde vieram os imigrantes, pois uma língua não é isolada da sociedade”, afirma a professora. O Espírito Santo é um campo amplo para esses estudos. Aqui conviveram e convivem portugueses, indígenas, afrodescendentes e descendentes

Grupo de pesquisadores da Ufes, Ipol e UFRGS, em Marechal Floriano (ES). Da esquerda para a direita: Reni Klippel Machado, Edenize Ponzo Peres, André Kuster Cid, Cleo Altenhoffen, Rosângela Morello e Rodrigo Schlenker

de imigrantes alemães, italianos, libaneses, poloneses, espanhóis e muitos outros. “Vários pesquisadores do Brasil e do exterior vêm ao Espírito Santo para conhecer e estudar os contatos linguísticos que ocorreram aqui. Por exemplo, pesquisadores do Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Linguísticas (Ipol) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul estiveram no Estado em agosto deste ano, para coletar dados para o Inventário da língua Hunsrückisch. Além deles, pesquisadores brasileiros e europeus têm interesse em fazer pesquisas com as línguas dos imigrantes italianos e pomeranos”,

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destaca a professora Edenize, que complementa: “O Espírito Santo tem uma grande diversidade linguística em seu território. O Espírito Santo é fascinante!” O projeto de pesquisa, coordenado pela professora, envolve estudantes de mestrado e doutorado em Linguística, pesquisas de Iniciação Científica e Trabalhos de Conclusão de Curso, na Ufes, e alunos do Mestrado Profissional em Letras – Profletras –, no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), que são professores do Ensino Fundamental da rede pública de ensino. Vários desses professores trabalham em escolas de comunidades rurais, quilombolas e também colonizadas por imigrantes. “Tenho uma aluna

que, em sua sala de aula, na zona rural, tem alunos de diversas etnias”, destaca a pesquisadora. “Um dos principais objetivos do projeto é esclarecer para os descendentes de imigrantes que sua linguagem não é feia nem errada, e que ser bilíngue é algo muito positivo. É isso que tento passar para os meus estudantes, a partir da Sociolinguística. É preciso dizer para as pessoas, principalmente para as crianças, que elas não são inferiores às outras porque falam duas línguas ou o português com sotaque. Esperamos que essa conscientização faça com que o preconceito linguístico tenha menos efeito sobre as pessoas”, conclui Edenize.

A língua hunsrückisch como referência cultural brasileira Conversar, ouvir e anotar. Essas três atitudes trazem à tona histórias sobre o modo como os imigrantes falam entre si e as comunidades onde habitam. No período de 11 a 18 de agosto, a professora Edenize Ponzo Peres (PPGEL/Ufes) recebeu pesquisadores do Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Linguísticas (Ipol) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para juntos visitarem os municípios de Domingos Martins, Marechal Floriano e Santa Leopoldina e mapearem a situação linguística de cada uma dessas localidades. “Nós do IPOL e da UFRGS viemos ao Estado para coletar dados para o projeto Inventário do Hunsrückisch como Língua Brasileira de Imigração. Historicamente, os imigrantes alemães foram instalados nesses três municípios do Espírito Santo, mas a variedade linguística dessas localidades é muito grande. Encontramos falantes do tirolês, déitsch, pomerano, hunsrückisch, além das variedades italianas. No entanto, constatamos que muitas crianças estão perdendo a língua falada pelos mais velhos, com exceção do pomerano. Isso acontece porque, entre outros motivos, esses municípios ainda não têm políticas de atenção para essas línguas”, diz a professora Rosângela Morello (UFRGS) e coordenadora do Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Linguísticas (Ipol). Uma dessas políticas é a cooficialização de línguas pelos municípios. “A cooficialização é uma

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política muito importante, porque, a partir de leis, há a construção de uma prática de valorização da língua. Aqui no Espírito Santo, temos cinco municípios onde o pomerano é língua cooficial,” enfatiza. A professora Rosângela explica que os estudos sobre diversidade linguística são recentes. “Somente em 2010, a partir do Decreto Federal N. 7387, é que começaram as pesquisas do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) que têm como objetivo conhecer e reconhecer as línguas brasileiras. O Brasil tem mais de 300 línguas faladas em seu território, sendo que, dessas, mais de 50 são línguas de descendentes de imigrantes. Identificamos em Santa Leopoldina, por exemplo, pessoas que falam cinco línguas de imigração fácil-fácil”, explica. Já foram inventariadas e certificadas como referência cultural brasileira sete línguas. Entre elas está a Guarani-Mbya, língua falada em aldeias indígenas de seis estados, entre eles o Espírito Santo. Segundo a professora, após as pesquisas e os relatórios que embasam o reconhecimento, a língua entra para o Inventário Nacional da Diversidade Linguística e, do ponto de vista político, passa a ser referência cultural brasileira. Para a professora Edenize, “a pesquisa, além de inventariar a língua hunsrückisch no Estado, possibilita a parceria entre o PPGEL, o Ipol e a UFRGS, destacando o papel da Ufes dentro das investigações sobre Contatos Linguísticos no País”.


ENTREVISTA – ETHEL MACIEL

A tuberculose

é um desafio para a saúde pública no Brasil LUIZ VITAL

A pesquisadora Ethel Leonor Noia Maciel, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC), do Centro de Ciências da Saúde da Ufes, é uma autoridade científica internacional na área de tuberculose (TB). Membro do Comitê Técnico para Tuberculose da Organização Mundial da Saúde (OMS), ela destaca, nesta entrevista, que o Brasil está entre os 20 países com maior carga da doença. A TB, embora milenar, ainda é a doença infectocontagiosa que mais mata no mundo. Ethel Maciel observa que a TB é o carro-chefe das pesquisas realizadas no Laboratório de Epidemiologia (LabEpi/Ufes), onde se concentra boa parte dos estudos epidemiológicos desenvolvidos no País sobre a doença. A pesquisadora aponta as estratégias definidas para o enfrentamento da TB e aborda os estudos realizados na Ufes. Ethel Maciel é pós-doutora em Epidemiologia pela Johns Hopkins University, bolsista de Produtividade de Pesquisa em Epidemiologia do CNPq e coordenadora de Epidemiologia da Rede Brasileira de Pesquisas em Tuberculose. UNIVERSIDADE - Revista da Ufes - Novembro 2017

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ENTREVISTA – ETHEL MACIEL Fotos: Arquivo Supecc

O que é a tuberculose e quais são os principais sintomas?

diagnosticada com TB precisa tomar medicamentos todos os dias durante, no mínimo, seis meses. E essa ETHEL MACIEL – A tuberculose é uma doença finalização com cura tem sido um dos grandes desainfectocontagiosa muito antiga, milenar. Ocorre fios do Programa Nacional de Controle da Tubercuque os pulmões são os órgãos mais afetados por lose (PNCT), do Ministério da Saúde. Quanto a baixar ela, mas pode também acometer os rins, a pele, a incidência da doença, trata-se de uma questão funos ossos e os gânglios. Ela é causada pelo Mycodamental, porque o Brasil está entre os 20 países bacterium tuberculosis, ou Bacilo de Koch (BK). considerados de alta carga da doença. No quadro A transmissão da tuberculose é direta, de pessoa sanitário brasileiro, a tuberculose constitui um desapara pessoa. Portanto, a aglomeração de pessoas é fio para a saúde pública, ainda que o Brasil apresente um dos principais fatores de transmissão. A pessoa dados positivos que mostram queda da incidência com tuberculose expele, ao falar, espirrar ou tosem cerca de 20% na última década. Em relação ao sir, pequenas gotas de saliva que contêm o agente número de casos novos, a redução nos últimos 10 infeccioso, que podem ser aspiradas por outro indianos foi de 12,5%. Verificamos que em 2015 foram notifi cados 63.189 no País, contra 72.213 em 2006, víduo e contaminá-lo. Também dificultam o cono que é muito representativo no enfrentamento da trole da doença a má alimentação, o tabagismo, o doença. Contudo, trata-se ainda da doença infectoalcoolismo ou qualquer outro fator que gere baixa contagiosa mais letal do mundo, que atinge todas resistência do organismo. as faixas etárias e é agravada pela ‘A tuberculose precariedade das condições sociais O diagnóstico é simples? é a doença e econômicas. Como deve ser a prevenção? infectocontagiosa O diagnóstico é relativamente simples, dependendo da localizaAlém do SUS, as prefeituras mais letal do ção da doença, e é feito por meio da atuam na prevenção e identifimundo, que atinge cação de pacientes que neceshistória de adoecimento da pessoa todas as faixas e também pelo exame clínico. Possitam de tratamento? teriormente, deve ser confirmado No SUS funciona um sistema etárias’ por testes específicos como a baciintegrado pelo pacto federativo, loscopia, que é o exame do escarro da pessoa que ou seja, há ações que estão no âmbito do Governo apresenta tosse por mais de três semanas, além Federal, outras que são dos estados e dos municída cultura do escarro e o raio X de tórax. Evenpios. É importante observar que, desde 1994, com tualmente são necessários outros exames como a a reorganização dos serviços de saúde, o PNCT biópsia, dependendo do órgão afetado. reordenou as estratégias de detecção e tratamento de casos de TB para a Atenção Primária à Saúde No Brasil, a doença é tratada exclusiva(APS), que é de responsabilidade dos municípios. Essa ação é reconhecidamente muito importante mente pelo Sistema Único de Saúde (SUS)? Sim, a doença é tratada exclusivamente no SUS, para a atuação das equipes de saúde da família, e isso significa que, mesmo que a pessoa seja assona implementação de ações de vigilância, prevenciada a um plano privado de saúde, ela deverá ser ção e controle da doença. Ela tem sido apontada reportada ao SUS para a notificação do caso e trapelas pesquisas como fundamental para a redução tamento oportuno. A tuberculose é uma doença de da incidência da doença no Brasil. notificação obrigatória, porque permite que a vigilância epidemiológica conheça a localização dos Em artigo publicado recentemente, a senhora casos e atue na prevenção e controle. denominou a tuberculose de ‘doença invisível’. Exatamente. O que ocorre? A tuberculose está Há eficiência no tratamento feito pelo diretamente associada à desigualdade social, à pobreza, às condições miseráveis de sobrevivência SUS? O serviço público de saúde tem consehumana. Nesse cenário, em países com elevadas guido baixar a incidência? O serviço é muito eficiente no diagnóstico, mas desigualdades, ela atinge, sobretudo, as pessoas temos, ainda, problemas de eficiência no aspecto da mais vulneráveis economicamente e à margem do finalização do tratamento, que é longo. Uma pessoa bem-estar social. Assim, fatores como desnutrição,

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Fotos: Jorge Medina

moradias inadequadas e falta de saneamento básico aumentam a incidência da doença. Então, a qualidade de vida e a abrangência dos serviços públicos de saúde são determinantes. Combater a tuberculose implica enfrentar a pobreza e atuar nas comunidades carentes. Por isso faço referência a essa invisibilidade. Fala-se muito pouco da tuberculose nos grupos sociais, nas instituições, na mídia, e então parece que ela não existe, mesmo com dados tão assustadores.

A senhora tem apontado negligências no tratamento de uma doença que tem cura. Onde está a falha? Eu diria que essa negligência é uma falha compartilhada. Estamos falhando enquanto sociedade, por não reconhecer a tuberculose como a doença infecciosa que mais mata. Estamos falhando também em não reconhecer o sofrimento causado pela doença, e que provoca desestruturação de lares e impacto econômico para o País. Aponto aspectos humanos, sociais e econômicos. A maioria dos doentes está na faixa economicamente ativa e, com a doença, acaba se afastando do mercado de trabalho. Esse é um fator que deve merecer muita atenção no contexto mais amplo da doença.

A senhora é membro do Comitê Técnico para Tuberculose da OMS. Como a instituição analisa o avanço da doença no mundo? A OMS está otimista. A atual diretoria do Programa Global de Tuberculose foi bastante ousada ao propor a eliminação da doença até 2050, como meta. Jamais na história do controle da TB fomos tão ousados. Nem sequer imaginamos que essa eliminação é possível. Ao estabelecer essa meta, a OMS propõe aos países a responsabilidade de se alcançar avanços mais significativos. Globalmente estamos conseguindo reduzir a incidência da epidemia da tuberculose – algo em torno de 2% – quando deveríamos estar trabalhando com redução em torno de 4% a 5%. Então, há muito trabalho para ser feito, mas, pela primeira vez na história, temos a possiblidade concreta de conseguirmos vencer essa luta.

Como é o funcionamento do Comitê Técnico para Tuberculose da OMS? Os Comitês Técnicos e as Task Forces (Forças-tarefas) são trabalhos voluntários e não há remuneração. São atuações de assessoramento em nível global para se pensar estratégias e planos de ação.

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ENTREVISTA – ETHEL MACIEL Há diferentes comitês com temáticas específicas. Atualmente participo de um comitê e, nele, três países foram selecionados como estudo de caso pela OMS: Brasil, Vietnã e África do Sul. São países com complexidades diferentes, com alta carga da doença e estratégias de enfrentamento que estão dando resultados de alguma ordem. É um comitê voltado para a pesquisa e a incorporação dos resultados em políticas públicas. Represento o Brasil como pesquisadora e na condição de coordenadora do PNCT na área de política pública. Na Força-tarefa, estou em um grupo de pesquisadores que quer compreender os reflexos econômicos da TB, relacionada aos gastos com a doença e o seu impacto na vida das pessoas que estão vivendo com a tuberculose. Nesse grupo, há a representação de um pesquisador de cada um dos 30 países com maior carga da doença.

Quais as principais estratégias da OMS para o enfrentamento da doença?

São os países nórdicos. O principal diferencial deles é o elevado e massivo investimento para a redução da desigualdade social e para o combate à pobreza, o que acaba impactando nos indicadores da doença. No caso desses países, a eliminação já é uma realidade.

A escassez ou ausência de investimentos em ciência no Brasil compromete o desenvolvimento de estratégias epidemiológicas? Sem dúvida. É um grande gargalo. Os Estados Unidos, por exemplo, que estão entre os países de baixa carga da doença, investe o equivalente a dez vezes mais que o Brasil. Hoje, o grande problema da pesquisa no Brasil é o subfinanciamento.

A Ufes possui estudos avançados em diferentes áreas das ciências da saúde, sobretudo a partir dos núcleos de pesquisa da pós-graduação. Como está a produção científica da Universidade na área de saúde coletiva?

A estratégia ‘Fim da TB’ da OMS amplia as ações de controle da doença, assentaO Laboratório de Epidemiologia ‘É uma doença das em três pilares: integração (LabEpi-Ufes) do PPGSC tem condos cuidados e prevenção cen- diretamente associada centrado seus esforços nos estutrada no paciente; políticas ousados da tuberculose, estendendo à desigualdade das e sistemas de informações as pesquisas sobre outras doenças integrados, incluindo ações de social, à pobreza e às infecciosas como Aids, zika vírus, proteção social aos pacientes e condições miseráveis febre amarela, entre outras. Mas a recomendação de acesso univertuberculose é o carro-chefe de nosde sobrevivência sal à saúde; e intensificação de sas pesquisas. Há muitos estudanhumana’ pesquisas e ações de inovação e tes de graduação, pós-graduação de incorporação de novas tecnologias. e pessoas ligadas ao serviço tanto em nível municipal quanto estadual. A Ufes é uma instituição recoO terceiro pilar insere as universidades e nhecida por ter pesquisadores entre os mais citados na área de pesquisa em tuberculose no Brasil. Cominstituições de pesquisa no centro da quespletam esse trabalho os pesquisadores do Núcleo tão. É isso? Sim. Exatamente. É uma verdadeira inovação. de Doenças Infecciosas (NDI). O País possui potenIsso porque aponta para que os programas de concial científico e capacidade técnica para responder trole da doença – usualmente focados na atenção às demandas da população brasileira em relação à TB. É claro que parcerias internacionais são essene cuidado ao paciente – possam ser redimensiociais para que novas tecnologias sejam desenvolvinados de modo a colocar a pesquisa científica e das, e elas funcionam em todas as áreas. A ciência, tecnológica como importante ferramenta. É uma cada vez mais, opera de forma integrada, tanto nacioestratégia muito bem elaborada e fico feliz por ter nalmente quanto internacionalmente. A internaciofeito parte da sua construção. Aliás, essa estraténalização da ciência é um desafio da universidade gia já está sendo contemplada no novo plano do brasileira, e na Ufes estamos contribuindo para esse Ministério da Saúde, lançado em julho de 2017. O esforço nacional. PNCT está bastante comprometido com a implementação da estratégia ‘Fim da TB’.

Quais os países considerados modelos na aplicação de políticas públicas para o enfrentamento eficiente da doença? Qual o diferencial? 54

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É correto dizer que a elevada produção científica no Brasil, na área da saúde, não se traduz em políticas públicas com efetividade? A pesquisa aplicada e a inovação chegam até


os profissionais de saúde e as instituições? Como eu disse, somente a partir de 2015 a OMS reconheceu que, sem pesquisa e inovação, não mudaremos os indicadores da doença. Esse reconhecimento da OMS e a explicitação dessa estratégia no Plano Global, no pilar 3, influencia todos os planos nacionais, estaduais e municipais. É um efeito em cascata extremamente importante para que a pesquisa possa ser realizada com e nos programas de controle da TB. É também uma oportunidade para que a academia estreite os seus laços com os serviços de saúde, para que a pesquisa seja realizada em maior consonância com as reais necessidades dos serviços.

de extrema importância. Essas estratégias de pesquisa aproximaram muito a academia do serviço.

A produção de conhecimento chega, efetivamente, ao cidadão, à população? Onde está o nó, se é que existe?

Acredito que, também como parte da nossa construção histórica, a sociedade brasileira tenha dificuldade em reconhecer a ciência como uma parte importante da soberania nacional. Nenhum país que chegou a um nível satisfatório de desenvolvimento humano o alcançou sem investimento forte em pesquisa e na formação de pesquisadores. Os países que investem parte considerável de seu Produto Interno Bruto (PIB) em ciência conseguem um Essas distorções estão no poder público retorno econômico e social muito significativo. No Brasil, nós não temos essa tradição. As feiras de ciêne nos órgãos de fomento ou na academia e cia ainda têm pouca penetração no ensino formal, instituições de pesquisa, que não conseguem a carreira de cientista ainda é vista com ressalvas e, direcionar os resultados para os ambientes dadas as dificuldades de financiamento para a exeadequados? Eu penso que há um afastamento histórico no cução de pesquisas no Brasil, a vida de pesquisador Brasil e em algumas partes do mundo, entre ‘aqueainda é vista quase que como um sacerdócio. A remuneração é indireta, se dá por meio les que fazem ciência’ e ‘aque‘Há um afastamento de projetos ou de bolsas, e o proles que a executam’ por meio de cesso para se gerar patente ainda é políticas públicas. Essa lacuna histórico entre demasiado lento e custoso. A parjá foi enorme no Brasil, onde a aqueles que fazem ticipação da indústria no Brasil é academia, em geral, pesquisava ciência e aqueles que muito incipiente, e a maior parte problemas que não eram necessariamente as necessidades do a executam por meio das pesquisas acontece nas universerviço, e assim se produzia ciênde políticas públicas’ sidades e nos institutos federais. cia não coadunada com a prática. Mais recentemente, principalmente devido É possível projetar o futuro da ciência no ao aumento do número dos mestrados profissioBrasil? nais no Brasil, houve um estreitamento com os Eu sou otimista e acredito sempre no melhor, serviços de saúde. Essa aproximação possibilitou considerando de onde saímos e onde estamos que técnicos que operam a política nas diversas agora. Digo que avançamos muito. Nem tínhamos instâncias do serviço pudessem obter formação bolsistas de produtividade em pesquisa na Ufes, científica. Outro fator importante foi o aumento e hoje, assim como eu, temos mais de 120 pesdos estudos realizados dentro da realidade dos quisadores que, em análise comparativa, estão serviços de saúde. classificados entre os mais produtivos do Brasil, em diversas áreas do conhecimento. Eu comePor exemplo... cei a fazer pesquisa na Ufes no início da década Diferentemente da magnitude do efeito da de 1990, quando nem existia programa de pósestreptomicina (medicamento para TB) sobre a -graduação na área da Saúde. Hoje, olhando para tuberculose pulmonar, a maioria das intervenções tudo que construímos, para o nosso Programa de sob investigação, atualmente, apresenta efeitos Saúde Coletiva, que é nota 5 na Capes, vejo que as pequenos ou moderados. Assim, é necessário que conquistas foram imensas. Portanto, acredito que os estudos sejam grandes o bastante para identifiestamos prontos para novos desafios. Em relação carem efeitos que, embora de pequena magnitude, à tuberculose, a Ufes possui centros de excelênsejam relevantes do ponto de vista clínico e da cia em pesquisa, e estamos trabalhando para que saúde pública. Uma pequena redução na ocorrênpossamos ajudar na eliminação da doença no Brasil e no mundo. cia de óbitos, numa condição bastante frequente, é

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Crespo Street (in the album) Pernambuco de Emil Bauch (Museu Nacional de Belas Artes)

ARTIGO

Domingos Martins e a Revolução Pernambucana de 1817: 200 anos de apropriação, esquecimento e memória Patrícia Merlo* No atual cenário político brasileiro, a palavra República tem ganhado notoriedade, especialmente no que diz respeito aos debates sobre o exercício do poder em uma sociedade democrática. Dessa forma, República e democracia ganham proximidade semântica no imaginário e na cultura política do brasileiro comum, misturadas inclusive às ideias de nação e de cidadania. Assim, convém, antes de adentrarmos na temática que nos ocupa – a participação do capixaba Domingos Martins no movimento que ficou conhecido como Revolução Pernambucana – fazer algumas breves reflexões sobre os temas acima. Acreditamos que essa aproximação será fundamental para entendermos o significado e a atualidade do movimento, bem como a construção simbólica erguida em torno daquele sujeito histórico. A Revolução Pernambucana foi um processo ocorrido em 1817, na então Capitania de Pernambuco, que propôs a separação com relação a Portugal. Para compreendermos, portanto, esse processo, devemos evidenciar alguns fatores. Primeiramente, a própria tradição de autonomia da região, marcada pela presença da administração

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holandesa e pela organização das lutas contra os mesmos, durante a época colonial. Em segundo lugar, o próprio desenvolvimento do comércio e a efervescência dos principais centros urbanos – Recife e Olinda – ao longo dos séculos. Só para se ter uma ideia, estes somavam juntos mais de 40 mil habitantes, o que era um contingente expressivo para os padrões coloniais. O porto de Recife movimentava a produção das regiões rurais, baseada na cana-de-açúcar e no algodão. O comércio do entorno também aquecia a economia e aprofundava insatisfações, uma vez que o monopólio dos comerciantes portugueses sobre essas atividades e o controle sobre os cargos administrativos vantajosos estavam nas mãos da elite de origem lusa. Soma-se a isso o fato de a produção do açúcar brasileiro estar, desde o século XVII, sofrendo pesada concorrência com a produção holandesa nas Antilhas e a mão de obra escrava estar cada vez mais cara. A partir de 1808, surgem algumas alterações nesse quadro. Por um lado, a presença de comerciantes estrangeiros acabava por quebrar o monopólio português. Por outro, as capitanias – especialmente as do norte – são taxadas com uma série de novos


impostos e recrutamentos militares, no sentido de atender às demandas da corte. Pressões econômicas, tensões políticas, aversão ao estrangeiro, penetração de ideias liberais dão o panorama no qual eclode a Revolução de 6 de março, que começa com um levante militar que levou à morte de um oficial e à prisão do governador. Nesse movimento, o próprio Domingos Martins, que havia sido preso, é liberado. No mesmo dia, os representantes do Governo Provisório são escolhidos. É importante lembrar que, apesar da contestação ao governo português e da ampla participação popular, os homens do novo governo eram todos oriundos de setores dominantes. Contudo, o movimento, também conhecido como Revolução dos Padres, contou com a participação de diferentes grupos, reunindo interesses e identidades diversas. Destaque-se a intensa participação dos maçons e do clero, inspirados pelo liberalismo e incansáveis na persuasão das camadas mais populares. O movimento, que durou em torno de 70 dias, culminou com o abalo do domínio colonial em Pernambuco, abrindo caminho para a independência. A violenta repressão da Coroa não foi a única marca impressa pelo levante. A ampla participação popular e aproximação de camadas com interesses antagônicos permite que se observe, a partir desse episódio, o abalo da própria estrutura de dominação colonial de um ponto de vista diferente do tradicionalmente abordado. Estamos, portanto, diante de um evento em que a ideia de construção de uma coletividade é testada na prática. Experiência na qual, por diferentes táticas e ações políticas, grupos com demandas distintas e, por vezes, divergentes, são capazes de encaminhar suas reivindicações em nome do bem comum da República. Tais demandas, desde as relacionadas aos grandes negócios até as das gentes mais simples – conformaram movimento único, no momento de construção da própria ideia de uma nação brasileira. Duzentos anos depois, em meio à crise ética, política e econômica que nos atinge, que balanço podemos fazer dos traços que conformam nosso sentimento de pertencimento a uma nação? Que representações essa rememoração acessa? Como responder a elas, na contemporaneidade? Ideais liberais Patrono da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo, o capixaba Domingos José Martins nasceu em nove de maio de 1781, no sítio Caxangá, próximo à cidade de Itapemirim. Filho de Joaquim José

Martins, Capitão de Milícias, e de dona Joana Luiza da Santa Clara Martins, fez os estudos primários em Vitória, completando sua formação em Portugal. De lá, seguiu para Londres, onde fez muitas amizades nos ambientes liberais, facilitado pela sua condição de maçom. Lá, empregou-se na firma portuguesa Dourado Dias & Carvalho, chegando à condição de sócio da referida empresa. Foi nessa época que amadureceu seu contato com os ideais liberais, especialmente sob a influência de seu amigo Hipólito José da Costa, editor do “Correio Brasiliense”, e com o General Francisco Miranda, baluarte da independência da Venezuela. Regressou ao Brasil, como gerente geral de sua firma. Em Recife tornou-se um dos líderes do movimento separatista, que deveria se iniciar em 6 de abril de 1817. Os fatos chegaram ao conhecimento do Presidente da Província, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que mandou prender os revoltosos. O Comandante da tropa responsável por conter a movimentação, depois de negociar com os rebeldes, mandou recolher a tropa. Nascia assim um governo provisório, abrangendo revolucionários de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, tendo sido Domingos Martins escolhido como Ministro do Comércio. Porém, uma esquadra imperial, sob o comando de Rodrigo Lobo, rumou sobre Recife, bloqueando todos os acessos à cidade. Setenta e quatro dias depois de iniciado o movimento, chegou a termo. Domingos Martins foi julgado e condenado à morte, tendo sido arcabuzado em Salvador, Bahia, no Campo da Pólvora, hoje Campo dos Mártires. No dia 16 de setembro de 2011, a então presidente da República, Dilma Rousseff, sancionou a lei 12.488 que inscreveu o nome de Domingos Martins no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves.

* Professora Doutora do Departamento de História / CCHN. Fontes: BAHIENSE, Norbertino dos Santos. Domingos José Martins e a Revolução Pernambucana de 1817. 2. ed. Belo Horizonte: Littera Maciel, 1974. MEMÓRIAS Históricas da Revolução de Pernambuco. In: Documentos Históricos. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional do Brasil, 1995.

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Fotos: Arquivo Projeto Arte Pública e Escultura Espontânea ao Longo da BR 101

MONUMENTOS

aclamados pela população são estudados por Projeto do Centro de Artes NÁBILA CORRÊA

O Tigrão de Guarapari, os Papahoos e até um castelo são alguns dos monumentos não intencionais em análise pela equipe do Projeto Arte Pública e Escultura Espontânea ao Longo da BR-101, coordenado pelo professor Aparecido José Cirillo, do Departamento de Artes Visuais.

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O Tigrão de Guarapari, a Estátuta da Liberdade (linhares), o castelo na Barra do Jucu (Vila Velha) e a estátua de Roberto Carlos (Cachoeiro de Itapemirim) são alguns tipos de construções e objetos que são considerados monumentos por moradores e turistas

uem já visitou a cidade de Guarapari teve a oportunidade de conhecer o famoso tigre de fibra de vidro, erguido à beira-mar, próximo ao centro da cidade. O simpático e colorido boneco, de 6m de altura, faz parte da vida da cidade há quase cinco décadas, acompanhando, inclusive, as tendências de cada momento. Ele já se vestiu, por exemplo, de verde e amarelo, celebrando a seleção de futebol brasileira durante a Copa do Mundo, e de rosa, para chamar a atenção à campanha contra o câncer de mama, realizada no mês de outubro. Muitos turistas não sabem, porém, que, ao escolher registrar sua passagem pelo balneário capixaba junto ao Tigrão de Guarapari, como ficou conhecido o gigantesco boneco, estão colaborando para validar uma função simbólica concedido a ele pela população local. Esse papel coloca a figura do tigre em paridade com outros marcos identitários no Estado, como a cruz em concreto localizada na Praça do Papa, na Enseada do Suá, em Vitória.

Q

Como explica Aparecido José Cirillo, professor do Departamento de Artes Visuais, ambos os exemplos citados são considerados monumentos, já que são objetos colocados em um contexto de compartilhamento coletivo para sinalizar algum acontecimento. O que os diferencia é a intenção com que foram criados. “A Cruz do Papa é um objeto escultórico criado para servir de marco da presença do religioso na década de 1980, na capital do Espírito Santo. Ela, então, nasceu para ser um monumento”, explica o professor. Já o Tigrão em Guarapari, segundo Cirillo, é classificado como monumento não intencional, tendo surgido como parte de uma campanha publicitária de uma empresa de combustível, na década de 1970. Com o slogan “ponha um tigre no seu carro”, essa empresa distribuiu, por todo o País, os bonecos representando tigres. “Em Guarapari, o dono do Posto Dino ficou tão encantado com a repercussão que a figura gigante causou na cidade que ele pediu à empresa que não a recolhesse ao

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final da campanha e o Tigrão permanece na cidade desde então.” Esses e outros monumentos não intencionais são o objeto de estudo do Projeto Arte Pública e Escultura Espontânea ao Longo da BR-101, coordenado por Cirillo. Segundo o professor, o projeto iniciou-se em 2012, com financiamento da Fapes (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), inicialmente para um mapeamento do conjunto de obras encontradas nos 78 municípios capixabas, como bustos, painéis e murais. “Foi exatamente no contexto desse projeto inicial que percebemos a existência de alguns tipos de objetos nessas cidades que faziam parte do imaginário delas, mas que não eram exatamente enquadradas como esculturas, como monumentos propriamente ditos.” Dessa forma, o grupo de pesquisa prossegue com os estudos sobre arte pública no Espírito Santo, dedicando-se, a partir de 2015, a essas obras espontâneas que são criadas com intenções diversas, mas acabam assumindo, pela vontade popular, o papel de marco identitário e memória da cidade. O professor afirma que, embora esses objetos surjam de outros sistemas e não do universo da artes propriamente dito, eles podem ser considerados objetos estéticos, no sentido de que são capazes de acionar os nossos sentidos, gerando empatia e noção de pertencimento em quem tem contato com elas. Divulgando a cidade Da mesma forma que o Tigrão de Guarapari, muitos dos monumentos não intencionais identificados pelo grupo de pesquisa ao longo da BR-101 surgiram inicialmente como objetos publicitários, isto é, faziam parte de alguma campanha de divulgação de produtos ou simbolizavam alguma marca ou serviço. Em Linhares, por exemplo, encontra-se a réplica da estátua da Liberdade, de 30m, que foi trazida por uma loja de departamentos para ser usada como slogan, mas acabou se tornando referência na cidade. “Hoje as pessoas já vão até essa região não por causa da loja, mas para conhecer a estátua”, conta Cirillo. Outro exemplo da transformação de objetos de divulgação em monumentos são as figuras promocionais conhecidas como Papahoos. Após o fechamento do Yahoo, no início dos anos 2000, os bonecos Papahoos, símbolos do parque, foram dados como

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pagamento aos credores e espalhados por eles pela Grande Vitória. “Atualmente, um está em um condomínio em construção em Nova Almeida (Serra); o outro na BR-101, um pouco antes de Timbuí (Fundão); e o terceiro está em um posto de gasolina próximo à rodovia Norte-Sul, perto de um shopping na Serra”, afirma o professor. Segundo ele, esses objetos, estão em processo de tornarem-se monumentos não intencionais com a mesma repercussão do Tigrão de Guarapari, sendo que o mais icônico é o situado próximo ao Shopping Mestre Álvaro, na Serra. Mi castello és nostro castello O professor Cirillo coloca também exemplos em que os marcos identitários surgem de interesses e paixões particulares e, posteriormente, acabam sendo apropriados pela população da cidade. Como no centro da Barra do Jucu, em Vila Velha, onde um morador transformou a frente de sua casa em um castelo medieval, o qual passou depois a ser referência turística na região. Outro exemplo dessa relação é uma estátua de 3m em Cachoeiro do Itapemirim, representando o cantor Roberto Carlos. “Essa obra não surge porque a cidade de Cachoeiro resolveu fazer uma escultura de Roberto Carlos. Ela se origina do interesse de uma artista local pelo cantor, que resolve então realizar o trabalho”, afirma o professor. Quando o deslocado e grotesco atraem O professor explica que, entre as possíveis discussões que esse mapeamento de monumentos não intencionais pode trazer, está o estudo da estética do Kitsch e do Grotesco. “O Kitsch ocorre quando um objeto é completamente deslocado do seu sentido original para assumir uma posição ornamental. A relação das pessoas com ele é então muito mais afetiva que de funcionalidade”, explica José Cirillo. Já o universo do Grotesco, segundo o pesquisador, remete a uma escolha pelo universo do feio, pela antiestética da beleza. Os objetos que remetem ao Grotesco são, em geral, desengonçados, fora do formato ideal e primam pela rudicidade em sua composição, podendo não se definir nem pelo abstrato, nem pela harmonia das formas, ou pelo equilíbrio anatômico. “Não fazemos no estudo, porém, juízo de valor, classificando as obras de boas ou ruins. A questão é o diálogo que essas figuras estabelecem nesse sistema ao qual elas pertencem”, conclui o pesquisador.


Foto: Marcos de Alarcão

A CONSTRUÇÃO DE CIDADES mais seguras e menos poluídas NÁBILA CORRÊA

O meio ambiente deve ser um dos fatores considerados no momento do planejamento de construções, seja em obras de grande porte como pontes e viadutos, seja em edificações cotidianas como os prédios, casas e praças. Isso porque os elementos naturais e as criações humanas se influenciam de forma mútua nas cidades, surgindo, em alguns casos, cenários que podem colocar em risco a saúde e a segurança dos cidadãos. Considerando essas questões, pesquisadores dos departamentos de Engenharia Civil e Engenharia Ambiental da Ufes têm buscado formas de simular e propor cenários urbanos nos quais sejam reduzidos os impactos ambientais e minimizados os perigos à segurança e ao bem-estar da população.

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studos realizados no Departamento de Engenharia Civil, por exemplo, enfocaram o impacto que o ambiente marinho pode ter em construções de grande porte, acelerando o processo de degradação de pontes e outras grandes obras em concreto armado erguidas em meio marítimo, preocupação recorrente em estados litorâneos, como o Espírito Santo. “As condições climáticas no ambiente marinho são agressivas para a edificação. Além da carbonatação, devida ao CO2, presente na atmosfera, que reage com o cimento e leva à corrosão, as estruturas construídas nesse ambiente sofrem também a ação dos íons de cloreto de sódio, lançados pelo aerossol do mar”, afirma o prof. João Luiz Calmon, do Programa de Pós-graduação em Engenharia Civil da Ufes. Tendo como um dos objetivos reduzir os danos que essa corrosão pode causar às edificações, e os consequentes perigos aos veículos que trafegam por elas, pesquisadores desse departamento desenvolveram um software que torna possível a previsão de vida útil das estruturas dos projetos de construção, relacionando variáveis como as condições climáticas do local onde a edificação será erguida e as possibilidades de materiais e de tecnologias empregados

E

em construção: “é possível, por exemplo, determinar, na fase de projeto, se a manutenção corretiva da edificação será necessária 50 anos depois de sua construção, o que é o exigido pela norma ABNT, ou após 100 anos. O programa vai, então, realizar várias simulações com essas variáveis para apresentar as opções para que se atinja o objetivo”, explica o professor João Calmon. Segundo o pesquisador, as simulações feitas pelo software podem ser usadas também em edificações já existentes, avaliando, nesse caso, se as condições de conservação da construção, em relação a sua idade, estão de acordo com o que é estipulado pelas normas técnicas do setor e advertindo se há necessidade de manutenção da obra antes do previsto. Na fase de desenvolvimento do programa, foram testadas amostras coletadas nos pilares da Terceira Ponte, que liga os municípios de Vitória e Vila Velha. O objetivo era verificar a adequação do modelo matemático desenvolvido para o programa. O prof. Calmon explica ainda que, por meio do material recolhido dos pilares, em diversas profundidades, foi possível avaliar o grau de contaminação da estrutura da ponte por sal marinho. “No caso dos dados recolhidos, verificamos uma boa Foto: Marcos de Alarcão

Análise das amostras coletadas nos pilares da Terceira Ponte indica que a conservação está boa e dentro da previsão das normas

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conservação da Terceira Ponte, dentro da previsão das normas”, concluiu o pesquisador, destacando que o trabalho desenvolvido contou com a parceria da empresa Recuperação Serviços Especiais de Engenharia, que realiza a manutenção da ponte. Baseado nos resultados dessa análise realizada na Terceira Ponte, o pesquisador apresentou o trabalho “Modelagem da vida útil de uma ponte em

ambiente marinho tropical para projetos duráveis”, na 3ª Conferência Internacional em Gestão de Projetos, que ocorreu em maio deste ano, no Canadá. Esse estudo e o desenvolvido do software fazem parte das pesquisas realizadas pelos mestrandos Adrianne Moreira e Wagner Dominicini, sob orientação do Prof. Calmon, no Programa de Pós-Graduacao em Engenharia Civil, da Ufes.

Metodologias e Simulações para conter espalhamento de poluentes nas cidades Por sua vez, as pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Conservação da Qualidade do Ar (NQualiAr), da Ufes, vem trabalhando no outro sentido da relação entre elementos naturais e construções, estudando a maneira como os tipos de edificações e sua localização nas cidades podem afetar os fluxos de vento e causar, em decorrência disso, aumento da poluição em determinadas áreas. A professora Jane Meri Santos, do Departamento de Engenharia Ambiental, membro do NQualiAr, explica que o escoamento da atmosfera, isto é, os ventos, ao entrar nas cidades, reúne e espalha os poluentes das fontes de contaminação, como indústrias e veículos. Esse escoamento do ar, entretanto, encontra barreiras como as construções urbanas. Assim, o tipo de edificações erguidas, o espaçamento entre elas e sua distribuição na cidade é que vão definir como ocorrerá a dispersão dos poluentes. “Os ventos entregam contaminantes de maneira diferente, dependendo da configuração espacial de cada região. Às vezes criam-se situações em que o contaminante fica estagnado em uma região”, explica a pesquisadora. Ela afirma que essa é uma situação que poderia ser evitada se houvesse um planejamento urbano, com avaliação, por exemplo, da altura dos prédios e o espaçamento entre eles: “Há algumas cidades que foram planejadas do zero, mas a maioria tem um crescimento que deve ou deveria ser controlado pela prefeitura, que é quem dá autorização para todas as construções”, afirma Jane Meri. Segundo a pesquisadora, a importância desse planejamento seria pensar nas possibilidade de reformulação do meio urbano, para que não sejam criadas zonas onde a concentração de poluentes fique muito elevada, causando problemas à saúde. Nesse sentido, um trabalho de doutorado de uma

das pesquisadoras vinculadas ao NQualiAr tem o objetivo de realizar simulações, apresentando as configurações ideais das edificações das cidades, controlando variáveis em projetos de construção, por exemplo, a altura e localização de novos prédios, de maneira que seja minimizada ou até mesmo evitada a estagnação de poluentes em determinadas áreas da cidade. A tese em andamento é a aplicação prática dos estudos desenvolvidos pelo Núcleo de Qualidade do Ar, em colaboração com a Universidade de Southampton, no Reino Unido. A parceria tem o objetivo de buscar metodologias para prever o comportamento das massas de ar nas cidades e o consequente espalhamento dos contaminantes. Segundo Jane Meri, esse é um fenômeno físico difícil de se prever e de ser representado em um modelo matemático, porém técnicas cada vez mais sofisticadas têm sido propostas pela comunidade científica. “A afinidade entre os trabalhos desenvolvidos na universidade inglesa e no nosso Núcleo na Ufes é justamente a especialidade em comum de fazer a modelagem da turbulência, isto é, do vento que escoa”, explica a pesquisadora. A professora acrescenta que esse projeto desenvolvido em conjunto com a instituição inglesa foi possível graças ao Fundo Newton, que busca estreitar laços em pesquisas científicas entre a Grã-Bretanha e outros países em temas de interesse comum. Os recursos do fundo são gerenciados pela Real Socity of Engenieers, uma sociedade de engenheiros da Grã-Bretanha. No Brasil, estão envolvidos no projeto para modelagem matemática das massas de ar, além da professora Jane Meri, que é coordenadora do projeto, os professores Neyval Reis e a professora Elisa Goulart, todos do departamento de Engenharia Ambiental e membros do Núcleo de Qualidade do Ar.

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Fotos: Arquivo vivasampaio.com.br

A OBRA VIVA DE

SÉRGIO SAMPAIO

LUIZ VITAL

Sérgio Moraes Sampaio é um artista popular brasileiro nascido em Cachoeiro de Itapemirim, sul do Espírito Santo. Morto em 1994, em 2017 completaria 70 anos. Integrante de talentosa e irreverente geração de músicos denominada “maldita, bandida, maluca e marginal” , Sérgio Sampaio, mesmo com breve período de produção musical, deixou uma obra intensa, vasta e moderna, referenciada por artistas da atualidade e por uma legião de fãs. A música e a poética de Sérgio renascem como objeto de pesquisas na Ufes e carregam tamanha atualidade que agregam milhares de seguidores conectados à sua memória e à sua arte na internet e em redes sociais. 64

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ributos e festivais com músicas de Sérgio Sampaio se espalham com frequência pelo Brasil, além de regravações de suas canções por músicos renomados, exposições, livros e documentários que resgatam sua vida e sua obra. Admiradores de todas as idades se organizam e se multiplicam em diversos Estados, em jornadas “sampaiófilas”. Com sua obra revitalizada e revisitada, são incontáveis as bandas que apresentam o seu repertório pelo País. Sérgio morreu em 15 de maio de 1994, um domingo, vítima de pancreatite, no Rio de Janeiro. A cultuação de agora à sua obra, entretanto, não expõe qualquer risco de ranço saudosista. Com efeito, realça um movimento espontâneo, despretensioso e despojado, assim como o músico. Um resgate vital de sua obra que está reunida em quatro álbuns, sendo o último, póstumo. Sérgio Sampaio foi introduzido no ambiente fonográfico em 1971 pelo lendário músico Raul Seixas – então produtor musical – com o lançamento de um compacto com duas músicas: “Coco verde” e “Ana Juan”. E ele avisava ao que viera já na primeira canção: “Leio, ouço, comento e grito / Que o mundo não tem razão / Nunca mais eu me largo, amigo / Na sombra de sua mão”. No ano seguinte, participou do disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta sessão das dez”, com as primeiras parcerias entre os “malditos” Sampaio e Seixas, que se tornaram muito amigos. Naquele mesmo ano, Sérgio se apresentou no Festival Internacional da Canção – promovido pela TV Globo e transmitido ao vivo em horário nobre – com a música “Eu quero é botar meu bloco na rua”, levando a plateia do Maracanãzinho lotado a cantar com ele. O compositor capixaba se tornava, ali, o novo fenômeno musical brasileiro. Impulsionado pelo súbito e surpreendente sucesso da canção, Sérgio foi contratado por uma das principais gravadoras do País, a Phillips/Phonogram, que rapidamente apresentou o músico potencialmente talentoso. Porém, Sérgio demonstrou que não estava pronto para enfrentar demasiados desafios mercadológicos. Lançado em 1973, o primeiro long-play (LP) com 12 canções, algumas marcantes e simbólicas da MPB naqueles tempos de

T

exacerbação da ditadura militar, do AI-5 e da censura. Entre as canções, Sérgio Sampaio fala do pai, Raul Gonçalves Sampaio, compositor e maestro de banda em Cachoeiro: “A marca no meu rosto / É do seu beijo fatal / O que eu levo no bolso / Você não sabe mais”. Canta também para a mãe, a professora do ensino básico Maria de Lourdes Moraes: “Dona Maria de Lourdes / Não espere por mim / Que eu estou no paradeiro / Dessa gente”. E faz homenagem ao parceiro e amigo Raul Seixas, numa mensagem rápida, intensa, sincera: “Meu nome é Raulzito Seixas / Eu vim da Bahia / Vim modificar isso aqui / Toco samba / E rock, morena / Balada e baioque”. Indústria cultural No ano seguinte, Sérgio lança pela Phillips um compacto com duas músicas: “Meu pobre blues” e “Foi ela”. Em “Meu pobre blues” Sérgio faz referência irreverente ao cantor Roberto Carlos, seu conterrâneo de Cachoeiro. Com sensibilidade e urgência, ele lamenta, ri e zomba da sua vã pretensão de que o “Rei” gravasse uma música sua. “Foi inútil... / Juro que tentei compor / Uma canção de amor / Mas tudo pareceu tão fútil / E agora que esses detalhes / Já estão pequenos demais / E até o nosso calhambeque / Não te reconhece mais / Eu trouxe um novo blues / Com cheiro de uns dez anos atrás / E penso ouvir você cantar...”. Dado o recado, agudo, sensível e direto, com a bluezeira melodia triste e insinuante da batida do seu violão. Entre indiferente e indignado com a indústria cultural, Sérgio abandona, naquele 1974, a grande gravadora para retornar no ano seguinte com duas canções: “Velho Bandido” e “O teto da minha casa”. Mostra ironia e acidez diante da indústria do disco: “E como eu fui o tal velho bandido / Vou ficar matando rato pra comer / Dançando rock pra viver / Fazendo samba pra vender... sorrindo”. Acompanhado de músicos e arranjadores reconhecidos e considerados bambas da MPB, Sérgio lança em 1976 o álbum “Tem que acontecer”. Avaliado pela crítica como um disco essencialmente de “sambas lúcidos”, o LP não emplacou como deveria. Mais recentemente, porém, passou a ser aclamado como um álbum cult e o melhor da sua curta discografia.

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Foto: Arquivo vivasampaio.com.br

Chega o ano de 1977 e o Velho Bandido ressurge com mais duas canções: “Ninguém vive por mim” e “História de um boêmio – Um abraço em Nelson Gonçalves”. Amargura e solidão se evidenciam fortemente na sua obra, então. “Fui tratado como um louco / Enganado feito um bobo / Devorado pelos lobos, derrotado sim / Fui posto de lado e fui um marginal enfim / O pior dos temporais aduba o jardim”, sinaliza o compositor em “Ninguém vive por mim”, para, a partir daí se tornar um artista absolutamente independente, sem gravadora e sem mídia, e assumir a difícil vida de maldito. Continua a compor, quase anônimo e só, e em 1981 lança o álbum “Sinceramente”, por selo independente.

O Velho Bandido morreu em 1994, aos 47 anos

Pesquisa busca compreender cancioneiro sampaiófilo A riqueza lírica e poética presente na obra do músico Sérgio Sampaio atrai pesquisadores da Ufes em investigações acadêmicas, buscando melhor compreender o cancioneiro sampaiófilo no universo da Música Popular Brasileira (MPB). Em 2004 – dez anos após a morte do músico – o Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Ufes promoveu o evento “Sérgios Sampaios, ensaios: situações de um compositor sem lugar”. Nele, o pesquisador Wilberth Salgueiro apresentou e debateu o texto “Notas: tentando ouvir-me em Sérgio Sampaio nos anos setenta”. O ensaio faz uma aproximação entre a obra musical de Sampaio e a chamada Poesia Marginal, transitando por temas comuns como drogas, loucura, morte, repressão da ditadura, amor e solidão. Em 2013, o texto foi publicado no livro “Lira à brasileira – Erótica, poética, política”, coletânea de ensaios de Wilberth Salgueiro de crítica e de poesia, produzido pela Editora da Ufes (Edufes). Mais de uma década depois da apresentação do ensaio, Salgueiro tornou-se o orientador de doutoramento do pesquisador Jorge Luis Verly Barbosa no PPGL/ Ufes, cuja tese, em andamento, é intitulada “Adornando um Velho Bandido: Sérgio Sampaio à luz de Theodor W. Adorno”. Em seu projeto de pesquisa, o doutorando investiga as relações do cancioneiro de Sampaio e a filosofia de Adorno, mediadas pelo contexto da sociedade brasileira da década de 1970, sob a vigência da ditadura militar no Brasil. Verly

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também recorre ao conceito filosófico de mônada, a partir de Leibinz, Walter Benjamin e Adorno, para explicar que as canções “funcionam como partes essenciais para a compressão do todo social”. Crítica e subversão A pesquisa também posiciona a canção de Sérgio na contramão da indústria cultural, como instrumento de crítica e subversão. Sobre as leituras filosóficas na obra do músico capixaba – considerando mônada como o fragmento no qual se pode observar a totalidade do existente – Verly sustenta que, segundo Theodor W. Adorno, “no capitalismo tardio o sujeito é visto pela perspectiva do dano, porque é a sociedade (e não ele) quem está tomada pela catástrofe”. De acordo com as concepções do filósofo alemão, concebidas no Pós-Guerra, cabe emancipar a sociedade. “Visto como mônada, como retrato inteiro dos anos de exceção e barbárie no Brasil dos anos 1970, sua obra pode fornecer uma compreensão – pela via da autonomia da arte – de seus impactos sobre os sujeitos e ensejar um movimento de liberação social e coletiva”, enfatiza. “Nada em Sampaio é simples e objetivo, e por isso é preciso ampliar o olhar que tente dar conta da multiplicidade dele e de sua obra”, analisa o pesquisador. Na década de 1970, diferentemente de outros artistas populares, Sérgio Sampaio era avesso a militâncias explícitas e a engajamentos de qualquer tipo. “Mais do que um artista de resistência,


Melancólico e cortante Naquele ano, compôs para o amigo Erasmo Carlos, gravou com outro amigo, Luiz Melodia, e enfrentou o seu limbo profissional à margem de tudo que o artista merecia, para além do indispensável reconhecimento ao valor da sua obra. O enigmático Sérgio Sampaio atravessou parte da década de 1980 com a dor do ostracismo e do esquecimento. Cantou em bares e em minúsculos shows para fãs angustiados quanto ao remoto futuro do músico talentoso. “Não há nada mais bonito / Do que ser independente / E poder se conquistar / Sair, chegar / Assim tão simplesmente”, compôs em “Sinceramente”, em seu terceiro álbum. Era como se buscasse revelar e antecipar, com a sua poética, o resumo da atribulada vida.

“Não há nada mais tranquilo / Do que ser o que se sente / E poder amar / Perder, chorar / Depois ganhar assim tão livremente”, acrescenta mais um verso de uma canção que objetivamente celebra com lirismo a sua trajetória até o fim. Sérgio, poeta outsider, melancólico e cortante, empurrou a vida para frente um pouco mais até o início dos anos 1990, suportando a dor do isolamento, o sofrimento físico, e enfrentando até onde pode os males que acumulou na trajetória errática. Aos 47 anos o Velho Bandido sai de cena, perde a vida e deixa um indelével e encantador legado musical e poético. Porque, afinal, como em suas canções, “lugar de poesia é na calçada”.

diria que ele era um artista de dissidência”, argumenta o doutorando. “As canções dele não têm um viés claramente político, mas também não possuem uma desconexão aparente da política”, acrescenta.

Foto: Arquivo pessoal

Dissidente na cena musical O músico capixaba continuou a não ceder aos apelos mercadológicos e a não compor “outros blocos”, segundo Jorge Verly. “Ali foi fazendo a sua injusta fama de maldito, cercando-se de polêmicas”, diz. Visceral, perspicaz e criativo, Sérgio buscava outros recursos poéticos na construção de suas canções, reafirmando, sempre, sua independência em relação à indústria cultural e à música de consumo. “A dissidência dele era a não-cooptação, o não alinhamento ao sistema, sua postura em relação ao mercado fonográfico e ao gosto da indústria cultural”, diz. Involuntariamente, talvez, segundo o pesquisador, Sérgio marcou um movimento de autonomia do sujeito em face do “mundo administrado”, usando outro conceito filosófico de Adorno. Um público muito jovem, que não viu Sérgio vivo, passa também a conhecer, reproduzir e apreciar a obra do músico. O pesquisador justifica: “a comunicabilidade das canções ultrapassa o dado histórico-temporal – embora como mônada, esteja marcado por ele – e chega ao ouvinte de hoje como algo fresco, atual, cheio de ressonâncias que podem ser encontradas naquilo que os jovens de hoje experimentam no retrato que está aí do lado

Jorge Verly pesquisa a obra de Sérgio Sampaio em tese de doutorado na Ufes

de fora, hoje”. Verly destaca as formas de criação do compositor: “São canções amparadas em arranjos simples – na economia instrumental e não na riqueza sonora e rítmica – num discurso tortuoso que se espraia em versos não repetidos, em rimas nada fáceis ou óbvias, ou mesmo na ausência delas”. E arremata: “Há nele a ideia de comportar a maior gama possível de sentidos numa produção essencial, escassa e verdadeiramente significativa. Isso é a grandeza da sua produção”.

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Na Ufes, o último show O resgate da obra de Sérgio Sampaio após a sua morte passa, fundamentalmente, pelo ambiente acadêmico da Ufes. A análise é do músico e produtor cultural Rogério Borges, também secretário de Cultura da Universidade. Segundo ele, o último show de Sérgio foi, exatamente, no Cine Metrópolis, no campus de Goiabeiras, em 1994. “Ele já estava bastante debilitado fisicamente, e foi com o meu violão que realizou esse show”, relembra. Depois, Sérgio retornou para o Rio de Janeiro, onde sucumbiu à doença. Rogério Borges é músico e secretário de Cultura da Ufes

Em 2017 o Festival Sérgio Sampaio realizou a sua 11ª edição. Criado em 2007 pelo primo do músico, João Moraes, foi realizado na Ufes entre 2013 e 2015. Desde o início, o evento mobilizou a comunidade universitária e músicos capixabas que passaram a cantar o repertório de Sérgio. “O legado dele se estendeu para o País a partir do festival, com o envolvimento de músicos como Zeca Baleiro, Luiz Melodia, Shangai, Chico César e outros”, destaca Rogério Borges. “Hoje tem grupos tocando o Sérgio em São Paulo, Rio e Minas”. Na Ufes, o cancioneiro sampaiófilo é objeto de monografias, teses, dissertações, ensaios, produção audiovisual e outras pesquisas em diferentes áreas. Novas gerações de músicos capixabas passeiam por Sérgio Sampaio, segundo o secretário de Cultura. Ele cita artistas locais como André Prando, Kátia Rocha, Andréia Ramos e Zé Moreira. “A estética musical de Sérgio provoca criativos e produtivos diálogos entre diferentes gerações”, acentua.

Foto: Jorge Medina

‘Vi a atenção de vocês, muito obrigado!’

Foto: Arquivo pessoal

Jorge Nascimento Claro que conheci Sérgio Sampaio através do “Bloco na rua”, tocava no rádio. Lembro-me de ouvir uma música e os versos sempre estiveram comigo: “O pior dos temporais aduba o jardim”. Tocava de manhã. Nessa época só tocava música gringa nas rádios, então, seis e pouco da manhã, me arrumando para ir estudar, ligava o rádio FM, havia um programa de música brasileira, e eu ouvia, gostava. Depois, tive três encontros com o Sérgio. 1 – Quando tinha uns 16 anos, ele foi fazer um show na escola em que estudei um ano, na quadra. Eu costumava ir aos bailes que lá ocorriam, havia desconto para alunos, e me interessei, lembrei-me das músicas do rádio, não havia escutado disco dele na íntegra. Um conhecido mais velho tocava umas músicas de seu repertório... Chamei os amigos, ninguém quis ir, fui sozinho. A lembrança que tenho: fiquei perto do palco, lembro mais do visual do que dos sons, recordo um cabeludo magro, grande, uma presença monstruosa no palco e uma voz poderosa. 2 – Já morando no ES, trabalhando como professor da Ufes, em 1994, creio, fui assistir com amigos ao show no antigo Teatro Metrópolis. Ficamos tomando uns uísques... é, nesse tempo vendiam-se bebidas alcoólicas no campus de Goiabeiras. Ficamos aguardando, nesse tempo já conhecia mais a obra de Sérgio. Quem comandava o bar do Metrópolis era o Juninho, que era conhecido do homem. Ele chegou, de branco, magro, não era mais o grandão do palco, estava junto com algumas pessoas, se aproximou do nosso grupo, nos cumprimentou, falou comigo. O show foi memorável.

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3 – Morava em Jardim Camburi – bairro da região continental de Vitória – e era um sábado chuvoso. Soube à tarde que ele iria se apresentar num bar que não existe mais, e que se chamava California Dreams. Fui de bicicleta comprar cigarros pra minha mulher, lógico que no tal bar. Convenci a Maria a irmos. Ambiente pequeno, sentei bem próximo ao pequeno palco improvisado. Cantarolávamos as músicas que conhecíamos, prestávamos toda a atenção em meio ao ambiente do bar, com sua indiferença hostil e conversas cheias de cerveja nas mesas. Ele nos olhou e, no intervalo, desceu e veio para a mesa, se dirigiu a nós e disse mais ou menos isso, num tom nervoso, entrecortado com estalos nos lábios: “Olha, eu estou ali em cima e vejo tudo, vejo tudo, e vi a atenção de vocês, muito obrigado!”. Acho que agradeci, sorrindo... Depois publiquei um textinho sobre sua poética. Esses foram meus três encontros físicos com Sérgio Sampaio. Digo físicos porque a sua música, a sua presença, me acompanham desde a adolescência, ou seja, desde sempre. E continua em sua poesia e suas sonoridades, formando um pouco daquilo que sou. Jorge Nascimento é professor do Departamento de Línguas e Letras da Ufes e doutor em Letras Neolatinas pela UFRJ


Foto: Arquivo Projeto Goiamum/Compania Andora

saberes que perpassam gerações LORRAINE PAIXÃO

Jogos e brincadeiras não são só para crianças. Na Ufes existe um grupo de professores e universitários que estuda os jogos e as brincadeiras populares presentes nas comunidades tradicionais capixabas. Esses estudos são fruto de pesquisas realizadas pelo Projeto Goiamum, criado em 2007, no Centro de Educação Física, com o objetivo de coletar materiais sobre cultura popular e folclore para as disciplinas de dança do curso de graduação da Universidade. UNIVERSIDADE - Revista da Ufes - Novembro 2017

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A partir da criação do projeto Goiamum, alguns dos estudantes, sensibilizados pela riqueza que encontravam nas culturas populares estudadas por eles, se mobilizaram e trouxeram para dentro da academia e para a grade curricular do curso de Educação Física da Ufes a cultura popular. “Em 2008, um grupo de estudantes sugeriu um momento para praticarmos no campus algumas das danças com fortes influências do folclore e da cultura popular. Ou seja, além dos estudos, a pesquisa resultou ainda em ações dentro da Universidade como estratégia de multiplicarmos os saberes populares”, comenta o professor e coordenador do projeto, Antônio Carlos Moraes. O Goiamum estuda a diversidade cultural das comunidades tradicionais por meio de suas práticas corporais. Segundo o coordenador do projeto, práticas corporais, diferente das atividades físicas cotidianas, são ações pensadas e realizadas pelos sujeitos que as expressam. São práticas singulares e características de determinadas expressões culturais que têm o corpo como principal instrumento de fala. E por que estudar as práticas corporais em comunidades tradicionais? Para o professor e coordenador do projeto, ir para essas comunidades e conhecer de perto seus saberes culturais é essencial para uma formação mais humana dos futuros e futuras professoras de Educação Física. “Há uma massa de professores que ainda se encontra

desinformada e sem formação mínima para tratar dessas questões em sala de aula. Uma formação mais social desses professores é urgente”, pontua. Retornar às raízes é resistir Sankofa é um saber africano presente nos símbolos adinkras e significa voltar e apanhar de novo aquilo que ficou para trás. Ou seja, retornar às raízes para preservar e resistir. O aforismo remete também ao que o Projeto Goiamum tem feito, que é retornar às comunidades tradicionais capixabas para conhecer as práticas e saberes praticados por esses povos. As comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas são muito ricas culturalmente e, infelizmente, suas práticas culturais têm sido silenciadas até mesmo dentro das escolas que estão em seu entorno. O Ticumbi, o Carnaval de Congo e de Máscaras, os Rituais de Puxada de Mastro, os Jongos e Folias de Reis são expressões populares pouco estudadas em sala de aula e são marcas identitárias de centenas de comunidades tradicionais capixabas presentes de norte a sul do Estado. “Algumas dessas manifestações, carregadas de elementos identitários, são tratadas como práticas improdutivas ou motivo de atraso”, diz Moraes. “Nossos estudos são uma aposta na formação continuada do professor para tentar garantir que as novas gerações de educadores sejam menos ignorantes. Entendemos

As expressões populares, como Ticumbi, são pouco estudadas em sala de aula

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Foto: Arquivo Projeto Goiamum/Compania Andora

que a cultura carregada de traços identitários das comunidades é parte fundamental e imprescindível na educação de crianças e jovens”, reflete. Não silenciar os saberes populares é preservá-los. O Ticumbi, por exemplo, é um festejo que já marca 300 anos de existência e resistência. Todo mês de janeiro, às margens do rio Cricaré em Conceição da Barra, norte do Estado, acontece a apresentação de Ticumbi: festejo centenário oriundo dos negros devotos de São Benedito, padroeiro dos negros e pobres. É um ritual religioso que acontece há três séculos e que carrega em suas cantigas e apresentações muitas histórias dos povos que viveram ali. Compreender os saberes desses povos e explorá-los dentro das atividades pedagógicas é uma forma de preservar a identidade cultural dessas comunidades e de passar adiante esses saberes e memórias. Reconhecer as influências e referências das práticas culturais dos povos tradicionais em outras atividades mais contemporâneas também é preservar a identidade cultural. “Os conteúdos da Educação Física são todos advindos da cultura popular. Os esportes, os jogos, as brincadeiras, as danças, as ginásticas e as lutas foram primeiramente praticadas pelos povos. Só depois foram sistematizadas e utilizadas pelas instituições, entre elas a escola”, ressalta o professor. “Nenhum conteúdo é produto original de laboratório. Comunidades tradicionais de todo o planeta contribuíram para esse conjunto de práticas”, completa.

Foto: Arquivo Projeto Goiamum/Companhia Andora

Projeto Goiamum: dez anos de realizações e conquistas Em dez anos de existência, mais de 500 estudantes universitários receberam formação por meio dos materiais coletados em disciplinas, oficinas e outras atividades didáticas curriculares ligadas ao folclore e cultura popular. Dentro do projeto, nasceu ainda um outro projeto de Extensão – o Grupo Andora onde cerca de 70 estudantes produziram 26 números de danças, música e teatro populares para apresentação em escolas básicas com objetivo de despertar a atenção de crianças, jovens e professores para as manifestações culturais. O Grupo mantém ainda um trabalho permanente com professores de escolas públicas ministrando oficinas e fornecendo material didático. Nesse meio tempo, o Grupo Andora já participou de sete festivais nacionais, dois festivais internacionais no Brasil e realizou oito apresentações no exterior. Durante os investimentos do Governo Federal em formação Continuada de Professores, o Projeto Goiamum, em parceria com o Programa Mais Educação e Escola Aberta, contribuiu na formação de cerca de 800 professores da rede pública de educação básica nos cursos de: Especialização em Educação Comunitária; Especialização em Educação Comunitária e Saberes Populares; Especialização em Artes Corporais; Aperfeiçoamento em Educação Integral e Docência, Escola e cidades: Educação Integrada e Integradora e Propostas Curriculares para Educação Integral. O Projeto Goiamum aprovou, ainda neste ano, por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Ufes, o curso de Especialização em Dança, que contará em seu corpo docente com professores formados pelo projeto.

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IDEIA PREMIADA

Duas pesquisas da Ufes estão entre as premiadas pelo Latin American Research Awards 2017 Foto: Divulgação

As pesquisas premiadas foram desenvolvidas pelos professores Anselmo Frizera Neto e Teodiano Freire Bastos Filho, do Departamento de Engenharia Elétrica

Há cinco anos o Google realiza o Latin American Research Awards (Lara), premiação voltada para pesquisas nas áreas de Ciência da Computação realizadas na América Latina. Na edição deste ano, dois professores da Ufes estão entre os contemplados pelo programa de incentivo à pesquisa. No total, foram inscritos 281 projetos oriundos de diversos países latino-americanos. Desses, 27 foram contemplados e, entre eles, os dos professores do Departamento de Engenharia Elétrica Anselmo Frizera Neto e Teodiano Freire Bastos Filho. Além deles, mais 15 brasileiros também foram agraciados pela premiação e receberão, ao longo dos próximos 12 meses, aproximadamente R$ 2 milhões para avançar seus estudos. O nome dos vencedores do Lara foi anunciado pela primeira vez no Campus São Paulo, espaço do Google para empreendedores. Durante o evento, foi promovida uma ampla discussão entre os acadêmicos, a comunidade de startups e dirigentes

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de instituições de pesquisa sobre um dos grandes motores para a inovação: a aproximação entre a academia e a comunidade de empreendedores. Segundo a organização do programa, o crescimento do número de pesquisadores na região investindo em aprendizagem de máquina, campo de estudo que permite ensinar computadores a aprender sem que estes sejam explicitamente programados, é notável e extremamente positivo. Dos 27 projetos escolhidos, 14 utilizam aprendizagem de máquina. É o caso dos projetos desenvolvidos pelos professores da Ufes. O projeto apresentado pelo professor Anselmo Frizera Neto e realizado em parceria com o doutorando Andrés Alberto RamírezDuque, consiste em um sistema robótico baseado em visão computacional elaborado para identificar sinais em crianças com Transtorno do Espectro de Autismo (TEA). “Nosso projeto visa criar novas ferramentas tecnológicas mais simples para auxiliar psicólogos e neuropediatras no diagnóstico e tratamento do TEA. Consideramos que ainda estamos dando os primeiros passos e o que buscamos é detectar falhas num fator de risco usado no diagnóstico denominado Atenção Compartilhada”, explica Anselmo Frizera Neto, que coordena a pesquisa há dois anos. Já o projeto do professor Teodiano Freire Bastos Filho, elaborado junto com o doutorando Alexandre Luís Cardoso Bissol, e que já foi premiado no ano passado pelo Google Research, trata-se de um software desenvolvido para captar o movimento dos olhos, por meio de um rastreador do olhar que direciona o cursor do mouse para os ícones de cada equipamento da residência, selecionando a ação. Apenas com os olhos, a pessoa consegue acionar eletrodomésticos, através do software, como ligar a TV, o ventilador, acender e apagar lâmpadas, mudar de canais e até fazer ligações telefônicas. O sistema foi desenvolvido para ser utilizado por pessoas com deficiência motora. Desde que foi lançado, em 2013, o Lara beneficiou 46 projetos e mais de 100 pesquisadores, entre estudantes de pós-graduação e orientadores.


Pesquisa sobre

eletrocatalisadores para atuar em célula a combustível recebe prêmio internacional Foto: Arquivo Supecc

O professor Josimar Ribeiro, do Departamento de Química, do Centro de Ciências Exatas (CCE), recebeu uma premiação internacional por sua contribuição no campo da ciência e tecnologia de materiais avançados. Professor Ribeiro integra o Grupo de Pesquisa e Desenvolvimento em Eletroquímica do Programa de Pós-Graduação em Química, e foi premiado, em agosto, com a “Medalha Cientista do Ano de 2017” pela Associação Internacional de Materiais Avançados (IAAM), com sede na Suécia. “Há cerca de 10 anos que eu e meu grupo de pesquisa estamos desenvolvendo eletrocatalisadores para atuar em célula a combustível, um sistema alternativo e ambientalmente amigável de geração de energia elétrica”, explica o professor. Ele diz que esses materiais são basicamente constituídos por platina, considerado um metal nobre e de custo elevado no mercado. “A importância do resultado da pesquisa é que conseguimos diminuir a presença desse metal no catalisador, passando de 90% para 50%, ou seja, uma redução de custo da ordem de 40% e com a produção de energia mais limpa”, acrescenta. Segundo ele, o resultado mostrou que, mesmo com a redução de platina, a eficiência da atividade eletrocatalítica dos materiais permaneceu praticamente a mesma. “O prêmio é um reconhecimento às pesquisas que desenvolvemos na Ufes, e indica que estamos no caminho certo para produzir energia elétrica de forma sustentável e limpa, sem agredir o meio ambiente”, afirma. “Nossa meta é que, em futuro próximo, todos possam utilizar essa tecnologia na vida cotidiana, para a geração de energia limpa para veículos elétricos, e também em celulares, notebooks, tabletes e outros equipamentos”, completou. Materiais avançados A International Association of Advanced Materials (IAAM) é uma organização internacional com

De camisa listrada, professor Josimar Ribeiro, do Departamento de Química, com a equipe que participou da pesquisa

foco no desenvolvimento de materiais avançados. Possui cerca de 50 mil membros de universidades, laboratórios independentes de pesquisa e de indústrias, e que se reúnem para debater o desenvolvimento de materiais avançados. É um fórum de pesquisa e de educação para o campo de materiais avançados. O professor Josimar Ribeiro é responsável por diversos projetos científicos financiados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amaparo à Pesquisa e à Inovação (Fapes). Entre eles, Ribeiro destaca o projeto de tratamento de efluente gerado pela empresa Vale, que está em estágio inicial e é uma parceria público/ privada por meio de edital Fapes/Vale. O pesquisador é autor de nove livros didáticos, de quatro capítulos de livros e de duas patentes, é membro da Sociedade Brasileira de Química (SBQ), da Sociedade Internacional de Eletroquímica (ISE) e da Sociedade Brasileira de Eletroquímica e Eletroanalítica (SBEE).

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PATENTES

Patentes O processo de produção de um aglomerante à base de casca de coco verde utilizado na indústria de minério de ferro já teve patente concedida nos Estados Unidos. Segundo o Instituto de Inovação Tecnológica (Init/Ufes), a patente aguarda o reconhecimento em mais de 20 países. O aglomerante foi desenvolvido pelo Laboratório de Biotecnologia Aplicada ao Agronegócio, da Ufes, para ser utilizado no processo de pelotização do minério de ferro e surgiu por meio de uma parceria com a Vale. A empresa se interessou pelo conhecimento desenvolvido no Núcleo de Biotecnologia, que buscava agregar valor comercial aos resíduos da casca de coco verde. “No Brasil é gerada uma quantidade enorme de casca de coco, o que é problemático, pois, quando esse resíduo começa a se deteriorar, produz materiais químicos danosos ao meio ambiente”, explica Antonio Alberto Fernandes, professor do Departamento de Física e diretor do Init/Ufes. Inicialmente, o trabalho do Laboratório de Biotecnologia se desenvolveu no sentido de utilizar a biomassa da casca de coco verde para a produção do etanol, pesquisa que gerou uma patente, várias

publicações e premiação internacional na área de inovação tecnológica. Uma vantagem em relação às outras matériasprimas utilizadas normalmente para a produção desse combustível – cana-de-açúcar, beterraba e milho – é que estas seriam desviadas de sua função originária, que é servir de alimento para pessoas e animais, para a produção do combustível, enquanto o etanol desenvolvido pela Ufes é mais sustentável do ponto de vista ambiental. O professor afirma que o objetivo é que um dia a própria indústria que gera a casca de coco seja retroalimentada pelo etanol produzido a partir da biomassa do resíduo dessa casca, criando um processo de produção autossustentável. Patentear a tecnologia fora do Brasil tem como objetivo resguardar sua utilização comercial. “Não existe o conceito de patente mundial. Em cada local em que aquele conhecimento tenha importância, quem o desenvolveu precisa solicitar sua patente para protegê-lo”, afirma professor Alberto. Em 2017 o Init possui 73 pedidos de patentes depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Conheça alguns deles:

Energia elétrica: Trata-se de um sistema supercondutor e sua utilização como protetor de circuito de rotor de DFIG, com aplicação, entre outras, nas indústrias geradoras de energia eólica, elétrica, hidrelétrica, termoelétrica ou nas usinas nucleares que geram energia elétrica com máquina de indução de rotor bobinado. Departamento: Engenharia Elétrica – Centro Tecnológico

Departamento: Design Gráfico Centro de Artes

Sistema supercondutor: Trata-se de um sistema para o limitador de corrente de falta supercondutor do tipo resistivo, que possui em seu núcleo um supercondutor que, quando imerso em nitrogênio líquido, apresenta impedância nula durante o funcionamento normal da rede elétrica. Departamento: Física - Centro Tecnológico Tabuleiro de jogo modular: Trata-se de um tabuleiro para jogo de bolso e suas respectivas peças. Relaciona-se, dentre outros, com o setor industrial gráfico e de fabricação de jogos não eletrônicos.

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Cancerologia: Nessa área, os avanços no entendimento das bases celulares e moleculares do câncer são cruciais ao desenvolvimento de estratégias inéditas de diagnóstico e terapia da doença. A nova tecnologia utiliza sequências peptídicas específicas da proteína transportadora de uma certa membrana como alvo para terapia. Departamento: Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia – Centro de Ciências da Saúde Fisioterapia: Sistema atuando no campo de tecnologias assistivas na área de fisioterapia e educação física, podendo ser utilizado como fonte de inclusão social para pessoas com deficiências, pois possibilita o comando de dispositivos eletrônicos por meio de movimentos do segmento do corpo. Departamento: Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia – Centro de Ciências da Saúde


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Antônio Henrique Amaral - Um + um = a dois? - 1967, xilogravura sobre papel, dimensões: Papel: A 37 x L 54 cm; Imagem: A 30,3 x L 42,5 cm Acervo da Universidade Federal do Espírito Santo, Galeria de Arte Espaço Universitário


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