Jornal da ABI 366 Extra - A Imprensa e o Dia da Imprensa

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

EDIÇÃO EXTRA M AIO 2011

Hipólito da Costa, nosso primeiro herói nacional

ESPECIAL




WALTER FIRMO

Editorial

O DIA DA IMPRENSA, NOSSO DIA PAULO SILVA

UM DOS MAIS DESTACADOS acontecimentos da imprensa brasileira na segunda metade do século XX, a criação da revista Realidade pela Editora Abril em 1966, constitui um dos pratos de sustança desta Edição Especial do Jornal da ABI dedicada ao Dia da Imprensa, a qual elegeu esse tema não por acaso. Ao lado da criação do diário Última Hora por Samuel Wainer em 12 de junho de 1951 e da reforma do Jornal do Brasil por Odylo Costa, filho, Reynaldo Jardim e Amílcar de Castro na segunda metade dos anos 1950, o aparecimento de Realidade detonou uma revolução na forma de se fazer jornalismo no País, pela inovação na concepção da pauta, pela forma como esta era executada, sem mesquinhez na avaliação do que isto importaria em custos, e sobretudo no produto daí resultante: um texto inteligente, límpido, escorreito, que tornava a reportagem uma espécie de irmã gêmea da literatura. ESTE MOMENTO SINGULAR DA IMPRENSA é reconstituído nesta Edição Especial por alguns dos integrantes dessa fascinante aventura jornalística, que exaltam as virtudes que singularizaram a publicação e fazem justiça, retirando-os do limbo do esquecimento, a profissionais que, em comunhão com muitos outros, plasmaram esse novo jornalismo, como Paulo Patarra, Diretor de Redação, e Sérgio de Souza, Editor de Texto, que já se foram mas grafaram nessa obra coletiva as marcas de seu talento e de sua criatividade. Em termos cronológicos, Realidade foi um átimo, mas com tempo suficiente para efetivar o que o poeta Vinícius de Morais imaginou: foi eterna enquanto durou. CUIDA TAMBÉM O JORNAL DA ABI de aspectos da evolução da nossa imprensa que ensejam permanente reflexão, como a saga do criador do primeiro veículo gestado por brasileiros, o Correio Braziliense de Hipólito José da Costa, apontado por Alberto Dines, em artigo exclusivo para esta Edição, como o nosso primeiro herói nacional; a primazia do Correio de Hipólito sobre o Diário do Rio de Janeiro lançado pela Corte joanina, objeto de erudito estudo da historiadora Cybelle de Ipanema, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro; o começo da ascensão da mulher nas Redações de jornais e revistas do Rio de Janeiro, como lembrado, em texto que escreveu há mais de 50 anos, quando radicado no Brasil, o jornalista francês Édouard Bailby; a contribuição dada ao nosso jornalismo pela citada Última Hora de Samuel Wainer; a densa presença no jornalismo do escritor Lima Barreto, cuja contundente irreverência se aplica às mazelas que desde a sua morte, há quase um século, o País não conseguiu superar. ALÉM DE SE ENGALANAR COM A COMEMORAÇÃO do Dia da Imprensa, nosso dia, esta Edição Especial orgulha-se de poder apresentar de corpo inteiro, num depoimento minucioso, um dos maiores jornalistas de nosso tempo: Zuenir Carlos Ventura. Maurício Azêdo, Presidente da ABI 4

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Realidade que não fica apenas em palavras Textos bem escritos e reportagens aprofundadas eram apenas duas das muitas qualidades pelas quais a revista Realidade marcou época. Tão reveladores quanto as mais de mil palavras foram alguns ensaios fotográficos produzidos pela revista. Um destes foi encomendado a WALTER FIRMO. Ele foi incumbido de mostrar o drama enfrentado pelos brasileiros que viviam em terras amazônicas, sujeitos às intempéries da natureza. Para tanto foi à região no mês de maio de 1972, período em que se aproximava o inverno, mas que lá não era visto nas variações dos termômetros e, sim, nas intermitentes chuvas, que sobrecarregavam igarapés e rios, fazendo alguns subirem até 30 metros e expulsando populações inteiras. Depois, voltou lá em outubro do mesmo ano e encontrou uma situação completamente diferente. Próximo ao verão, chove muito menos, os rios estreitam e a população aproveita para plantar. Nas duas oportunidades, o fotojornalista visitou os mesmos lugares e encontrou os mesmos personagens. Assim, registrou a família de seu Paraíba em dois cenários bem distintos, nos quais apenas a devoção era a mesma, vista como a única maneira de escapar à fúria das águas. Agora, quase quatro décadas depois, Firmo cedeu a foto acima, que registra o período de chuvas, para ser novamente publicada com exclusividade nesta Edição Especial do Jornal da ABI. A revista REALIDADE é tema de uma ampla reportagem a partir da página 10. ALBERTO DINES - NOSSO PRIMEIRO HERÓI NACIONAL

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COMEMORAÇÃO - NO DIA DA IMPRENSA, UMA VIAGEM NA HISTÓRIA. E UM CONVITE À REFLEXÃO 6 MEMÓRIA - UM MOMENTO DA ASCENSÃO DA MULHER NO JORNALISMO

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RODOLFO KONDER - SAMUEL WAINER, UM JORNALISTA QUE INOVOU A IMPRENSA

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EXCELÊNCIA - DESTA REVISTA RESTOU BEM MAIS DO QUE SAUDADE

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PRÊMIO ESSO - RECONHECIMENTO DESDE O NÚMERO 1

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CENSURA - A EDIÇÃO PROIBIDA

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CARTAS - O BRASIL EM UM ANO

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LANÇAMENTO - A ARTE DOS FATOS

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DEPOIMENTO - ZUENIR DE CORPO INTEIRO

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BRUZUNDANGAS - LIMA, CRONISTA DO BRASIL MODERNO

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FRANCISCO UCHA

Dia da Imprensa

NOSSO PRIMEIRO HERÓI NACIONAL Seu nome: Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, criador do Correio Braziliense, início do nosso jornalismo.

exato momento em que, ao lado das comemorações da chegada da Corte portuguesa ao Brasil, seriam festejados os 200 anos dos atos fundadores da nossa imprensa. Um rigoroso e misterioso embargo impediu que a mídia impressa e a eletrônica registrassem qualquer referência sobre a instalação do primeiro prelo, o início da circulação do primeiro veículo sem censura e a impressão do primeiro periódico no País. A inédita mordaça foi obra da Opus Dei, o braço mais militante e mais reacionário da Igreja, que na ocasião estava intimamente conectada às corporações empresariais de mídia no Brasil. O pêndulo foi novamente revertido em 2010 quando a Presidência da República designou o primeiro Herói Nacional – o jornalista Hipólito José da Costa. Recuperamos, enfim, a nossa História. E 203 anos depois podemos lembrar o primeiro parágrafo do primeiro texto a circular no Brasil livre de qualquer controle, profissão de fé daqueles cuja profissão não é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, mas é o ofício primal de uma sociedade comprometida com a busca da verdade: “O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela. E cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar em benefício da mesma os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo que abrange o bem geral de uma sociedade vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que espalha tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar com evidência os acontecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjecturas sobre o futuro.” REPRODUÇÃO

O

O Correio Braziliense de Hipólito da Costa foi louvado, invejado e combatido como qualquer veículo de referência. Entre 1808 e 1822, nos dois lados do Atlântico, a imprensa clerical não escondia o quanto o detestava, enquanto os correligionários maçons e liberais mostravam por ele o maior respeito. Os problemas começaram com as efemérides. Em 1908, quando começaram as celebrações do primeiro centenário da imprensa brasileira, instalou-se a primeira polêmica: qual teria sido o primeiro veículo brasileiro – o Correio Braziliense ou a Gazeta do Rio de Janeiro? O contencioso sobre a primazia desdobrava-se numa questão pessoal: quem é o patriarca da imprensa brasileira, Hipólito da Costa que em Londres, ao longo de 14 anos, escreveu e editou o Correio, ou Frei Tibúrcio José da Rocha, que dirigiu de 1808 a 1812, no Rio, a Gazeta? Oferecia-se também uma divergência ideológica: qual o critério para avaliar a qualidade de um veículo jornalístico, sua independência ou sua continuidade? O Correio Braziliense, porque era impresso em Londres, circulou livre de qualquer censura, já a Gazeta do Rio de Janeiro jamais escondeu a sua vinculação com a Coroa, tanto assim que em seguida à Independência transformou-se num ostensivo diário oficial. Para atenuar os efeitos da drástica censura implantada pelo Estado Novo (em 1937), o Presidente Getúlio Vargas ofereceu aos jornalistas uma série de benefícios — um deles, o estabelecimento do Dia da Imprensa. Dispunha de três opções em matéria de data, todas relacionadas com fatos ocorridos em 1808: o decreto autorizando o funcionamento da primeira tipografia no Brasil, assinado em 13 de maio; o primeiro texto, do primeiro número do Correio Braziliense tem a data de 1º de Junho; a primeira edição da Gazeta do Rio de Janeiro saiu do prelo em 10 de Setembro.

POR ALBERTO DINES E SPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

Positivista, olhado com desconfiança pelo clero, Getúlio Vargas não titubeou em autorizar a encomenda de um enorme crucifixo no pico do Corcovado em 1931. Agora, em 1943, novamente procurou agradar a Igreja e, ao invés de valorizar um órgão livre como o mensário de Hipólito da Costa, preferiu preteri-lo para não prestigiar um notório maçom, perseguido e preso pela Inquisição antes de refugiar-se na Inglaterra. A data vencedora foi 10 de Setembro, os jornalistas resignaram-se, obrigados a consagrar como paradigma o jornalismo oficial. A mudança da data para 1º de junho em 1999 foi uma vitória dos jornalistas e dos democratas, já que o requerimento apresentado pelo Deputado Federal Nelson Marchezan foi endossado pela bancada gaúcha, sem a ausência de qualquer partido. Ironicamente, o pêndulo voltou-se contra os jornalistas e contra todos os que se empenham em preservar nossa memória e nossa História no

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COMEMORAÇÃO

No Dia da Imprensa, uma viagem na História. E um convite à reflexão Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, a professora Cybelle de Ipanema avalia a mudança da data comemorativa da Imprensa no Brasil. E faz uma análise do papel dos jornais na construção da nação Brasileira. A imprensa brasileira gosta de uma polêmica – e disso todo mundo sabe. Quer ver só? A própria comemoração de seu dia gera controvérsias. Desde 1999, o Dia Nacional da Imprensa é comemorado em 1º de junho. Nem sempre foi assim. Antes da promulgação da Lei nº 9.831, em 13 de dezembro daquele ano, a criação da imprensa entre nós era festejada em 10 de setembro. Por trás de ambas as datas – e, sobretudo, da mudança de uma para outra – estão as histórias de duas importantes publicações. O descartado 10 de setembro representa o dia em que começou a circular a Gazeta do Rio de Janeiro, no ano de 1808, oficialmente inaugurando a imprensa no Brasil. Repare bem... Eu escrevi ‘oficialmente’. Pois é justamente este o problema. Publicado duas vezes por semana, era um jornal oficial e consistia, basicamente, de comunicados do Governo. No campo político, publicava informes sobre a política internacional, especialmente sobre a realidade européia diante dos conflitos napoleônicos e a instabilidade das colônias americanas da Espanha, sempre

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cias e idéias. Logo, ter nascido com a permissão e sob a tutela oficial foi fator decisivo para que, dois séculos depois, a Gazeta do Rio de Janeiro não mais fosse considerada apta a representar data tão importante no calendário nacional. A mudança, sugerida pela Associação Riograndense de Imprensa, foi incorporada a um projeto do então Deputado Nelson Marchezan (PSDBRS) e sancionada por Fernando Henrique Cardoso no primeiro ano de seu segundo mandato de Presidente da República. Ficou decidido, então, que o novo Dia NaD. JOÃO VI, LITOGRAFIA DE MAURÍCIO JOSÉ DO CARMO SENDIM. cional da Imprensa passaria a ser festejado em sob o ponto de vista dos interesses da 1º de junho – data em que foi lançado Coroa Portuguesa, que, naquela fase, reo Correio Braziliense, em Londres. Este sidia no Brasil. Seu editor era um relijornal, editado por Hipólito da Costa, gioso, Frei Tibúrcio José da Rocha. também circulou de 1808 a 1923 – exaVale lembrar que até 1808 eram proitamente o mesmo período de existênbidas a circulação e a impressão de qualcia da Gazeta do Rio de Janeiro, que, na quer tipo de jornal ou livro no Brasil, verdade, havia nascido naquele mesmo exatamente por ordem da Coroa, que 1808, só que alguns meses depois. Connão permitia a livre circulação de notítudo, se muito pouco tempo separava uma publicação da outra, elas se distanciavam quilômetros quando eram anaREPRODUÇÃO

P OR P AULO C HICO

lisados seu conteúdo editorial e sua linha política. O Correio Braziliense defendia idéias liberais, entre as quais as de emancipação colonial, dando ampla cobertura à Revolução liberal do Porto de 1820, assim como aos acontecimentos de 1821 e de 1822 que conduziriam à Independência do Brasil. Por essa postura combativa e contestadora, o periódico de Hipólito da Costa levou a melhor na disputa com a Gazeta do Rio de Janeiro. Na revisão feita em 1999, passou a representar o Dia Nacional de Imprensa. Uma medida não unânime pois, especialmente entre historiadores, há quem veja na Gazeta uma iniciativa heróica de lançar uma publicação no País, com todas as limitações técnicas e políticas da época. Por outro lado, há também quem enxergue no Correio Braziliense um jornal português – e não brasileiro – editado na Inglaterra. E como será que uma das maiores especialistas e pesquisadoras sobre a imprensa brasileira vê essa espécie de julgamento histórico? E, mais do que isso: como definiria o real significado do Dia da Imprensa, o papel desempenhado pelos jornais na formação da nação brasileira e o jornalismo praticado nos dias de hoje? As respostas a essas e outras questões ficam por conta da professora Cybelle de Ipanema, formada em Geografia e História, doutora pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.


“O Correio Braziliense é uma extraordinária fonte primária para acompanhar o mundo nos 14 anos de sua circulação.” DIVULGAÇÃO

JORNAL DA ABI - QUAL O SIGNIFICADO DO DIA DA IMPRENSA, COMEMORADO EM 1º DE JUNHO?

Cybelle de Ipanema - É dia de evocação, afirmação e compromisso. Não me parece que deve ser diferente, no nosso caso. Dia, naturalmente, de marcar presença, acordando nos circunstantes, usuários ou não, a existência/persistência da homenageada, isto é, a imprensa. E uma data para lembrar as diferentes e vividas marcas de sua trajetória, inclusive e principalmente, em prestabilidade e, como corolário, a certeza de sua continuidade. JORNAL DA ABI - NÃO LHE PARECE QUE A DATA É POUCO LEMBRADA E COMEMORADA , INCLUSIVE PELA PRÓPRIA IMPRENSA? Cybelle de Ipanema - Sem dúvida, talvez justificada pela avalanche de informações que bombardeia a sociedade, minuto a minuto. JORNAL DA ABI - A LEI Nº 9.831, DE 1999, DETERMINOU QUE O DIA DA IMPRENSA MUDAS-

10 DE SETEMBRO (DATA DA FUNDAÇÃO GAZETA DO RIO DE JANEIRO) PARA 1º DE JUNHO, DATA DE NASCIMENTO DO CORREIO BRAZILIENSE, EM LONDRES. A SENHORA CONSIDE RA QUE ESSA FOI UMA ALTERAÇÃO JUSTA? QUAIS FORAM OS FUNDAMENTOS APRESENTADOS? Cybelle de Ipanema - É preciso observar, por um lado, o critério invocado. E, por outro, quem lutou mais por quem. O Correio Braziliense leva a palma à Gazeta do Rio de Janeiro em pouco mais de três meses – 1º de junho contra 10 de setembro. Realmente, nasceu primeiro. A Gazeta estava perto de nós, o Correio, tão longe, dependendo de transporte alémfronteiras. Não eram publicações paralelas. O Correio Braziliense era realmente doutrinário em favor da independência do Brasil. Era uma publicação de 80 a 100 páginas, tratando de política, arte e ciência – e, especialmente, de política internacional. Por sua vez, a Gazeta do Rio de Janeiro tinha de seis a oito páginas, em outro formato, era bem menor. Marca-lhes, em comum, o fato de terem rompido barreiras de mais de 300 anos, para a conquista de prelos e difusão das SE DE DA

Cybelle de Ipanema: Durante todo o período colonial o Brasil não teve prelos, apesar de algumas tentativas pontuais.

Cybelle de Ipanema - Citarei apenas um, por sua destinação específica. Em 1821-1822, o Reverbero Constitucional Fluminense, “escrito por dous brasileiros, amigos da nação e da pátria”, encobertos Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo. Era um motor da Independência, com sua epígrafe ‘Redire sit nefas’, ou, “voltar atrás é um crime”. Eles faziam a defesa de um projeto nacionalista em prol da emancipação política do País. JORNAL DA ABI - QUE PAPEL HISTÓRICO A IMPRENSA BRASILEIRA DESEMPENHOU NAQUE LE INÍCIO DO SÉCULO XIX? SERIA EXAGERO AFIRMAR QUE O

BRASIL SE TORNAVA OUTRO PAÍS,

NA MEDIDA EM QUE A IMPRENSA NACIONAL NASCIA E RENDIA FRUTOS?

idéias. Durante todo o período colonial o Brasil não teve prelos. Os holandeses chegaram a tentar algo no século XVII, quando chegaram a contratar tipógrafos, mas o projeto não andou. No século seguinte, Antônio da Fonseca chegou a editar pequenas obras no Rio mas, descoberto pela Coroa, teve seus equipamentos apreendidos por Dom João V, e foi mandado embora para Portugal. Só passamos a ter prelos no Rio com a presença de D. João VI. JORNAL DA ABI - PARA MUITOS CRÍTICOS, A GAZETA DO RIO DE JANEIRO FUNCIONAVA, PRATICAMENTE , COMO UM ÓRGÃO DE IMPRENSA OFICIAL. ISSO É VERDADE? E DIMINUI A IMPORTÂNCIA DESSE VEÍCULO COMO PIONEIRO DA IMPRENSA NACIONAL?

Cybelle de Ipanema - Esta Gazeta, ainda que pertença por privilégio aos Oficiais da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra – em cujo âmbito se criou a Impressão Régia, semelhante à de Portugal – não é, contudo, oficial. O Governo somente responde por aqueles papéis que nela manda imprimir em seu nome. Já no 1º número não foi impeditivo de que ela funcionasse, realmente, como órgão de imprensa do Brasil. Vale lembrar que ela vai reinar soberana até 1821, quando aparece o jornalismo político, com José da Silva Lisboa, futuro Visconde de Cairu, ainda em tempos de Dom João VI.

JORNAL DA ABI - POR OUTRO LADO, COMO DEFINIRIA A LINHA EDITORIAL DO CORREIO BRAZILIENSE? QUAL FOI A SUA IMPORTÂNCIA HISTÓRICA? Cybelle de Ipanema - A despeito do seu também viés informativo, divulgando notícias que interessavam ao Brasil e demais colônias de Portugal – no momento histórico e dentro dos parâmetros mundiais em que se moveu, em Londres, diante da eclosão dos eventos – o jornal era uma verdadeira revista de conhecimentos, com seções como Política, Comércio e Artes, Literatura, Ciência e Miscelânea. Ele foi um esforço de pioneirismo em prol da Independência do Brasil. O enunciado das seções, em publicação mensal de 80 a 100 páginas, evidencia o seu caráter diferencial. O Correio Braziliense é uma extraordinária fonte primária para acompanhar o mundo nos 14 anos de sua circulação (1808-1822). Já a Gazeta do Rio de Janeiro, em igual período, partilha da mesma classificação de ‘extraordinária fonte primária’, mas acompanhando o Rio de Janeiro e o Brasil, com uma janela, igualmente, para aquele mundo que se transformou com a ascensão e queda de Napoleão. JORNAL DA ABI - A SENHORA É UMA REFERÊNCIA NOS ESTUDOS SOBRE A IMPRENSA NO

BRASIL. QUAIS OUTROS VEÍCULOS TIVERAM PAPEL DE DESTAQUE NO INCIPIENTE CENÁRIO DA IMPRENSA BRASILEIRA DAQUELA ÉPOCA?

Cybelle de Ipanema – Não seria exagero, e sim justiça. A imprensa brasileira, de fato, nascia e rendia frutos, pelas suas vertentes formativa e informativa, aperfeiçoadas sem sinais de esmorecimento, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI. JORNAL DA ABI - NESTE DIA DA IMPRENSA, QUE PRESENTE VEÍCULOS E PÚBLICO DEVERIAM GANHAR? QUAL ANÁLISE CRÍTICA A SENHORA FAZ DA IMPRENSA BRASILEIRA ATUAL?

O QUE NOS-

SOS VEÍCULOS CONTEMPORÂNEOS DEVERIAM RESGATAR OU APRENDER COM AQUELES JORNAIS PIONEIROS?

Cybelle de Ipanema - Uma chamada para o papel social da imprensa seria presente e um desafio. A atual imprensa brasileira, periodicamente acutilada pela imprensa virtual e a anunciada perspectiva de seu desaparecimento como veículo de papel, é pujante e desempenha os compromissos assumidos, mantendo-se a mídia herdeira dos tempos heróicos em termos de recursos materiais e humanos. As plêiades e plêiades de jornalistas, desde Hipólito da Costa e Frei Tibúrcio José da Rocha; a presença de órgãos associativos, como a Associação Brasileira de Imprensa, além, já de centenária; a defesa intransigente da liberdade de imprensa e o direito do livre exercício da profissão são marcos fincados no caminho difícil trilhado. E que não devem ser esquecidos neste Dia da Imprensa, 1º de junho de 2011. E também em 2012, 2013...

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Um momento da ascensão da mulher no jornalismo Em texto comemorativo do cinqüentenário da ABI, publicado na edição de abril de 1958 da revista Jóia, o jornalista EDOUARD BAILBY entrevistou as estrelas que ganhavam espaço nas Redações: Eneida de Moraes, Yvonne Jean, Elsie Lessa, Pomona Polítis, sucessoras de Eugênia Álvaro Moreyra, nossa primeira repórter, nos anos 1920. Uma das formas que a revista Jóia encontrou para homenagear a ABI e a mulher, no cinqüentenário de fundação da Casa, comemorado em 7 de abril de 1958, foi solicitar ao jovem jornalista Edouard Bailby, um francês que se radicava no Brasil, que fizesse uma reportagem sobre a presença feminina nas Redações, que começavam a elevar o nível de profissionalização de suas equipes. Bailby incumbiu-se da missão com este texto em que festeja as jornalistas em ascensão

A

Associação Brasileira de Imprensa (ABI) acaba de completar 50 anos de existência. Publicamos esta reportagem para homenagear a mulher profissional de imprensa que encontrou, na ABI, apoio para as suas aspirações, numa época em que mulheres não podiam ter aspirações. Publicamos esta reportagem para homenagear umas das instituições mais democráticas da nossa terra – a ABI. Mulheres brilham em letra de imprensa

Talvez seja o jornalismo uma das raras profissões no Brasil onde a mulher conquistou, graças à sua inteligência e ao seu trabalho, e em tão pouco tempo, as mesmas prerrogativas e direitos dos homens. É o que Elsie Lessa nos dizia recentemente quando acentuava: “Passado o preconceito de que mulheres só podiam fazer seção de moda ou de cozinha, elas aí estão, dando as cartas, sobre política, problemas sociais, ensaios, crônicas, artigos de fundo, crítica especializada, e tudo muitíssimo bem. Ou não é?” Na hora em que a ABI (sob a feliz presidência de Herbert Moses) comemora seus cinqüenta anos de existência, esta

na época: Eneida de Moraes, Yvonne essa e Pomona P olitis Lessa Politis olitis, que Jean, Elsie L ocupavam o espaço aberto nos anos 1920 pela nossa primeira repórter, Eugênia Álvaro Moreyra. De Paris, onde voltou a se radicar após uma atuação durante cerca de 20 anos na imprensa do Rio, Bailby mandou o recorte deste seu trabalho, que o Jornal da ABI reproduz como homenagem às comemorações do Dia da Imprensa. “afirmação” da mulher jornalista brasileira vale e deve ser lembrada. Sim, porque o nascimento e o desenvolvimento de uma deram-se paralelamente à valorização e ao crescimento de outra. Hoje, a Casa dos Jornalistas pode orgulhar-se de ser o “Lar”, segundo a justa expressão de Eneida, não só das mulheres jornalistas como dos homens também, isto é, de todos os trabalhadores da imprensa. Realizou-se ali aquilo que o Código Civil ainda não garantiu: a equiparação dos direitos e deveres de ambos os sexos numa só profissão. Uma surpreendente evolução

Durante muito tempo, a mulher brasileira desempenhou um papel de segundo plano. Limitada inicialmente às croniquetas femininas, sem maior destaque, ela conquistou aos poucos, nos últimos quarenta anos, uma posição justa e digna, até afirmar de uma maneira inequívoca a necessidade de sua presença. Numa conferência famosa, Eneida descreveu um dia as lutas e as vitórias de Violante Atalibar Ximenez de Bivar e Velasco, considerada a primeira jornalista brasileira, diretora de um jornal chamado Jornal de Senhoras, de 1852 a 1855, para depois lembrar a figura de Eugênia ÁlARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO varo Moreyra, a primeira repórter brasileira, lá pelos idos de 1920. Esses dois exemplos, porém, foram de certa forma uma exceção, pois que a mulher jornalista, impedida, como

Eneida, entre Manuel Bandeira e Jorge Amado, dizia que todos aqueles que se dedicam ao jornalismo tinham um papel a defender: o da honradez, da inteligência e do critério.

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Elsie Lessa (esquerda) dizia que as mulheres estão aí, dando as cartas. Um bom exemplo desse poder foi o de Adalgisa Nery e sua temida coluna no primeiro caderno de Última Hora.

nas outras profissões, de exercer sua capacidade intelectual, teve de travar árdua batalha antes de ingressar nas fileiras dos autênticos trabalhadores da imprensa. Ainda há quinze anos, quando Yvonne Jean lançou no Diário de Notícias uma crônica chamada Presença da Mulher, na qual eram tratados todos os problemas sociais, muitos foram aqueles que protestaram contra essa inovação jornalística, criticando acerbamente o desejo de emancipação da mulher. Vemos, pois, que a conquista de um lugar ao sol pelas jornalistas brasileiras é bastante recente. E acreditamos que, afora a evolução normal dos fenômenos sociais, a ABI tenha exercido, pelo menos indiretamente, um papel ponderável na mentalidade da opinião pública. Dando à imprensa consciência de sua força e de sua unidade, dentro de um clima de liberdade e justiça, a Casa dos Jornalistas favoreceu por outro modo a emancipação da mulher jornalista brasileira. Foi o que Eneida traduziu muito bem nos seguintes termos: “Não creio que haja diferente sentimento entre homens e mulheres jornalistas quanto à ABI. Ela é útil à nossa grande família de profissionais. Sabemos que lá nossos direitos são defendidos, que contamos com a colaboração, o companheirismo, a solidariedade que merecemos como trabalhadores da imprensa.” E Elsie não se expressou de outra forma quando declarou: “Num País onde a mulher não está ainda no Código Civil equiparada ao homem, a mulher jornalista e o homem jornalista são na ABI exatamente a mesma família, têm as mesmas prerrogativas e os mesmos direitos, como não poderia deixar de ser.” Pomona Politis considera que “a mulher tem uma capacidade de observação muito maior e mais humana do que o homem. A sua curiosidade natural amplia-se no jornalismo e dá-lhe as condições necessárias ao desempenho de sua função de reportar os fatos”. Esta dupla qualidade – curiosidade e intuição – desenvolveu-se extraordinariamente nos últimos dez anos na mulher quando, livre de certos preconceitos sociais e trabalhistas, teve a oportunidade de exprimir aquilo que nunca foi autorizada, ou pelo menos raramente, a mulher afirma-se em todos os setores, inclusive no político, com Adalgisa Nery.

Não há, pois, um papel especial para a mulher na imprensa brasileira. “Há, isso sim – afirma Eneida – um papel a ser defendido por todos aqueles que se dedicam ao jornalismo; o da honradez, da inteligência e do critério.” Esta mesma maneira de encarar o trabalho profissional e a igual valorização das tarefas realizadas pelo homem e pela mulher são as duas características da imprensa moderna do Brasil. Isto prova, também, que o público tem cada vez mais confiança nas opiniões emitidas pelas jornalistas e aceita o valor de suas observações. Chega-se, então, ao outro aspecto da questão: a influência da mulher na imprensa. Talvez não exista no sentido “feminista” da palavra. Mas o fato de uma nova leva de moças, cada vez mais conscientes, mais preparadas, fileiras do jornalismo a cada ano já demonstra por si só a força crescente do sexo feminino no jornalismo. Por outro lado, assistimos a uma diversidade cada vez maior das tarefas que lhes são atribuídas. Hoje em dia, em toda a escala de valores dos jornais e das revistas, encontramos mulheres no pleno exercício de suas funções; da simples fotógrafa, anônima, corajosa e abnegada, à influente diretora de publicações; passando pelas repórteres, redatoras, cronistas, etc... Poucas ainda são as mulheres jornalistas que conseguiram projetar-se para fora da profissão e, neste particular, não queremos citar os nomes de ninguém, a não ser os de Eneida e Elsie Lessa, que foram lembrados unanimemente por todos quantos entrevistamos, mas não acreditamos que esse fenômeno possa ser apresentado como prova de que a mulher brasileira não pode equiparar-se ao homem no trabalho jornalístico. A verdade, pelo contrário, é que o número de jornalistas anônimos, que colaboram diariamente nos maiores órgãos de nossa imprensa, informando, alertando ou orientando a opinião pública, é tão grande que seria injusto citar os expoentes máximos sem lembrar essas dezenas de trabalhadoras da imprensa que, ao lado de seus companheiros de profissão, dedicam sua vida ao jornalismo. A grande vitória da imprensa brasileira é ter conseguido unir no mesmo ideal e com os mesmos direitos e deveres homens e mulheres, dando assim uma prova magnífica daquilo que deve ser regra geral: igualdade no progresso.

ARQUIVO AGÊNCIA OGLOBO

RONALDO MORAIS/FOLHAPRESS

MEMÓRIA


FRANCISCO UCHA

História

Samuel Wainer, um jornalista que inovou a imprensa Depois da criação da Última Hora, sua razão de viver, o jornalismo não foi mais o mesmo, na forma de cobrir e relatar os fatos e de remunerar os jornalistas.

túlio, de quem se aproximou em 1949. Perseguidor e perseguido se tornaram amigos, Samuel se transformou em conselheiro pessoal de Getúlio. Desta amizade nasceu a Última Hora. Com o golpe de 1964, Samuel ficou de novo na alça de mira dos grupos conservadores. Tropas golpistas invadiram e depredaram seu jornal, e o jornalista buscou a proteção da embaixada do Chile. Com os direitos políticos cassados, enbarcou para o segundo exílio: uma breve passagem por Santiago, cinco anos de isolamento na França, de onde retornou em 1968. Vendeu o título Última Hora em 1971, “para poder pagar dívidas trabalhistas”. Seu naufrágio como empresário, no entanto, não o afastou do jornalismo – uma paixão fundamental em Samuel. Como todos os jornalistas talentosos que conheço, era um homem polêmico. Desagradava freqüentemente aos que amam a linearidade, irritava os patrulheiros com sua vocação para a conciliação, era paciente mesmo com os inimigos. Como lembrou Cláudio Abramo, outro mestre do jornalismo brasileiro moderno, “Samuel nunca abriu a boca para atacar alguém’. No dia de sua morte, a caminho do hospital, pediu um rádio de pilha. Ia ao encontro da morte, logo estaria do outro lado do tempo, mas continuava preocupado com a crise política que abalava o País. ELIANE SOARES

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Abro a Folha de S. Paulo e procuro, num gesto automático, as iniciais S.W. na segunda página. Mas o artigo não está lá. Samuel Wainer saiu da trincheira – e isso nos deixa, a todos nós, um pouco mais pobres, um pouco mais vulneráveis. Na grande batalha política pela democracia, o flanco jornalístico parece menos guarnecido. Samuel, 68 anos, revolucionou a imprensa brasileira, nos anos 1950, como criador da Última Hora, um jornal ágil, popular, agressivo. Antes, fizera Diretrizes, a primeira revista política brasileira. Ao morrer, trabalhava na Editora Três e na Folha, onde escrevia editoriais desde 1977. Era um dos poucos gigantes da imprensa deste País. Atuou como consultor de três presidentes da República: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Teve muito poder nas mãos. Poderia deitar-se em alguma sinecura, como tantos fazem, mas nunca abdicou de si mesmo, de um papel político ativo, de uma participação corajosa no processo de transformações da sociedade brasileira. Por isso mesmo, morreu pobre. Teve poder e morreu pobre. Não se pode dizer o mesmo de muitos brasileiros ilustres. No plano pessoal, era acima de tudo um animal político. E um profissional de imprensa que valia por muitas escolas de Comunicação. “Trabalhar com ele”, diziam seus colegas e subordinados, “é o melhor curso de Jornalismo que se pode ter.” Como jornalista, porém, dedicava-se à política, num combate que o levou três

POR RODOLFO KONDER

vezes à cadeia, duas vezes ao exílio. Preso em 1942 e 1943 por alegadas “atividades comunistas”, viajou para os Estados Unidos, em seguida à sua segunda prisão. Ficou um ano naquele país, embarcando então para a Europa, onde fez a cobertura do histórico julgamento de Nuremberg, para Diretrizes. Retornou ao Brasil com o fim da Segunda Guerra e a queda de Ge-

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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EXCELÊNCIA

Desta revista restou bem mais do que A EDIÇÃO NÚMERO ZERO.

er à disposição, nas bancas, uma revista que brinda seus leitores com excelência em todas as suas edições. Da pauta inusitada, criativa e abusada, à qualidade quase literária de seus textos, passando pela valorização das fotos e da apresentação gráfica. Isso parece um sonho. Pois, saiba, já foi realidade. Mais precisamente, a revista Realidade. Há 45 anos nascia, com o selo da Editora Abril e pelas mãos de talentosos profissionais, a publicação que, de certa forma, redefiniria a prática do jornalismo no Brasil. E, em especial, o conceito de reportagem. Uma revista que conquistou a fidelidade e a admiração de milhares de leitores. E fez a cabeça de toda uma geração de jornalistas, assumidamente influenciados por tudo o que saía publicado em suas páginas. Assim como o Brasil, já mergulhado no período militar, Realidade passou por diversas transformações. Experimentou diferentes fases, quase sempre em movimentos impostos pelas conjunturas políticas da época. De seu surgimento, em 1966, até a publicação do AI-5, em 1968, a revista passou por seu período de ouro. Nestes anos, o País vivia um regime militar autoritário, mas o Ato Institucional publicado em 13 de dezembro de 1968 endureceu as regras do jogo. Por uma série de decretos, os militares condenaram o País a uma ditadura radical, sem disfarces, com a presença da censura. Isso, é claro, alterou o ambiente nas Redações. E o teor do que era veiculado pelos jornais e revistas. “Aquela primeira fase foi marcada pelas matérias de contestação, basicamente sobre os costumes vigentes, embora com alguns toques na política do Governo militar, ainda em uma fase mais branda. Tudo isso trouxe um estrondoso sucesso de vendas e aceitação. Que eu saiba, entre 1966 e 1968, não houve casos de censura explícita. Existia alguma autocensura, ditada mais pelo bom senso. Houve o caso da apreensão de toda uma edição de Realidade – a de número 10, especial da mulher. Mas não foi por motivos políticos, e sim comportamentais. A revista defendia o divórcio, o reconhecimento de filhos de pais que

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SAUDADE Lançada há 45 anos, a revista que marcou a História do Jornalismo no País conserva intacto seu prestígio na lembrança de antigos leitores, e também junto a novos admiradores. Mais do que lembranças nostálgicas, a publicação da Editora Abril, que parou de circular em 1976, deixou de herança o exemplo da prática de um jornalismo impecável – que até hoje influencia diversas publicações. Sua trajetória e algumas de suas reportagens mais especiais estão agora disponíveis em livros. POR P AULO C HICO Paulo Patarra, nosso primeiro RedatorChefe. A empresa queria mudanças no processo editorial e alguns colegas entenderam que deviam se demitir. Isso levou a uma atitude coletiva, pois o espírito de união dentro da equipe era muito forte. Poucas semanas depois, veio o AI-5. Para alguns, então, ficou claro que a empresa vinha sendo pressionada pelo Governo, quando pedia as modificações na revista. Mas não posso confirmar essa análise.”

Ilustração de Carybé para um capítulo de Dona Flor e Seus Dois Maridos publicado no segundo número de Realidade antes do lançamento do livro de Jorge Amado.

não eram casados e outros itens polêmicos. E trazia a foto de um parto”, conta José Carlos Marão, redator, repórter e membro da equipe da Realidade desde setembro de 1965, tendo participado de todos os números “zero”. “Saí da revista na debandada coletiva em 1968”, conta Marão. Esse episódio de demissão da equipe, é claro, carece de explicação. Embora fosse uma publicação contestadora mais no campo do comportamento, a origem da grande crise da Redação foi mesmo política. “Nos primeiros anos, o regime militar ainda estava mais brando. A revista, por meio do Luiz Fernando Mercadante, chegou a fazer o perfil de muitos dos militares no poder. De certa forma, esses perfis contrabalançavam algumas matérias mais agressivas. A demissão em massa teve a ver com o processo de substituição de

Alguns ingredientes de uma receita de sucesso Afinal, quais teriam sido os segredos do sucesso de Realidade? “A grande ousadia estava nas pautas, na contestação dos costumes e na formulação de textos com certo espírito literário, que tomava liberdades em relação ao jornalismo convencional. Era preservado o estilo de cada repórter. Os textos eram individualizados, e não pasteurizados. Era a adequação para um público mais disposto à leitura, à reflexão e ao exame de grandes tendências, no lugar de simples coberturas. Essa foi a principal característica, sem prejuízo, claro, de um espírito inovador na direção de arte e nas fotos. Na opinião do falecido Paulo Patarra, a Realidade era uma revista de autores, exatamente como está citado no livro Realidade Re-vista”, diz Marão. Lançado pela Realejo, o livro (ver resenha na página 24) recupera a história da publicação que circulou até 1976. O

A PRIMEIRA EDIÇÃO.

editor da obra, José Luiz Tahan, é um entusiasta do projeto. “Os textos ali publicados tinham personalidade. Isto é, mesmo que não fosse identificado o autor da matéria com a assinatura formal, os leitores farejavam quem tinha escrito. Cada jornalista era uma grife. Dei uns palpites na formatação do livro. Mas, assim como a própria revista, ele é uma obra do José Carlos Marão e Zé Hamilton Ribeiro. É muito fácil trabalhar com quem é craque”, elogia. Há também quem destaque, com maior ênfase, a postura política da revista. “Acho que seu maior valor estava no sentido político aguçado de, sob uma ditadura militar, propor um questionamento político através dos costumes. Discutir questões como liberdade sexual, a nova mulher, virgindade, preconceito de raça, a presença dos jovens na sociedade... Não podíamos falar abertamente das lutas estudantis que estavam ocorrendo, nem das passeatas. Então, falávamos das novas posturas da juventude. Tudo na Realidade era muito sutil. A equipe tinha que driblar o patrão e atacar a ditadura pelos flancos, apontando os preconceitos de uma sociedade retrógrada. Hoje, alguns dizem que Realidade não era muito avançada politicamente. Eu discordo totalmente”, avalia Carlos Azevedo, que foi repórter da revista, e é autor do livro Cicatriz de Reportagem, lançado pela Editora Papagaio em 2007. “Realidade trabalhava mais com o foco no comportamento. E nem poderia concorrer com jornais ou revistas semanais em coberturas, pois seria totalmente furada, por ser mensal. A criatividade na pauta permitiu que ela discutisse assuntos do momento, mas com ênfase nas tendências. É importante lembrar que a revista apostou na revolução de costumes que estava ocorrendo no mundo e chegando ao Brasil. Mas, é claro, chegou um momento em que o único ponto a contestar era mesmo o regime político. Mas a censura nos impedia”, diz José Carlos Marão. Mestre do jornalismo, ainda hoje em plena atividade no Globo Rural, da TV Globo, Zé Hamilton Ribeiro explica em que cenário foi desenhada a revista, da qual também fez parte da equipe pioneira. Para entender os anos 1960, nada


“Realidade foi um ‘case’ de sucesso editorial raras vezes visto. Nas contas da Abril, se ela vendesse 80 mil exemplares, estava muito bom. Vendia 500 mil em menos de seis meses.”

Reunião de cúpula na Redação da Realidade: Eduardo Barreto (de costas), Roberto Civita, Paulo Patarra e Woyle Guimarães num flagrante registrado por Jorge Butsuem.

REPRODUÇÃO

Alessandro Porro escreveu os perfis de Dom Hélder Câmara e Jorge Amado, que foram publicados respectivamente em Realidade 4 e 5, com fotos de Nélson Di Rago. A febre do ié ié ié, a Jovem Guarda e a liderança indiscutível de Roberto Carlos foram temas de reportagem de Narciso Kalili, publicada na segunda edição da revista.

melhor do que embarcar numa viagem no tempo, relendo as matérias publicadas em Realidade. Ela conserva, com impressionante frescor, o retrato fiel dos hábitos daquela década de transformações. “Sua linha editorial foi resultado de um conjunto de circunstâncias históricas. Estava em curso a revolução comportamental de jovens, das mulheres, dos padres. Era época do Beatles, dos hippies, de manifestações de estudantes no mundo inteiro. Tudo isso aconteceu nos anos 1960 . No plano local havia, de início, um Governo militar, mas ainda sem censura à imprensa. Havia um anseio de mudanças, e uma editora, a Abril, que estava bancando a aposta de se tor-

nar uma referência jornalística. Aliada a isso, havia uma equipe com boa experiência jornalística, mas ainda jovem, com média de idade de 30 anos. Logo, com muita energia e ambição. Esse caldeirão desembocou no que deu. E, acredito, foi mesmo toda essa soma de fatores. É difícil apontar uma só peculiaridade.” O resultado, neste caso, foi um fenômeno de circulação. “Realidade foi um ‘case’ de sucesso editorial raras vezes visto. Nas contas da Abril, se ela vendesse 80 mil exemplares, estava muito bom. Vendia 500 mil em menos de seis meses”, recorda-se Zé Hamilton. O êxito comercial tinha seus reflexos nos salários pagos aos profissionais.

“A gente ganhava os maiores salários de jornalistas do País. Eu fiz a conta. Na época, a gente ganhava um carro popular zero por mês, um Fusca zero por mês! Ganhávamos muito bem e éramos os melhores profissionais, reconhecidamente”, afirmou o revisor Mylton Severiano, em depoimento no vídeo-documentário Marcas da Realidade, projeto de conclusão de curso da Faculdade de Jornalismo da Puc de Campinas, produzido em 2010. Para Zé Hamilton, o texto diferenciado era, possivelmente, o maior charme da publicação. “Por certo, isso foi uma coisa que chamou a atenção dos outros jornalistas.

Digo, simplificando, que a reforma dos jornais brasileiros, capitaneada por jornalistas do Rio, no fim dos anos 1940 e nos 1950, influenciando jornais do Brasil inteiro, repetiu-se, no campo das revistas, com a Realidade. A reforma dos jornais do Rio criou e implantou o copidesque – que reescrevia eventuais textos ruins dos repórteres. Realidade criou o editor de texto, um profissional mais refinado, sensível, capaz de melhorar o texto do repórter sem desfigurá-lo.” Basta folhear as antigas revistas para perceber que o texto de Realidade tinha qualidade literária. Era um artigo informativo, mas que dava prazer de ler, como um bom texto de literatura. Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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DESTA REVISTA RESTOU BEM MAIS DO QUE SAUDADE

“Deve-se isso, em boa medida, ao exercício da edição de texto criado pelo inesquecível Sérgio de Souza, morto em 2008. Essa receita reunia riqueza de imagens e de vocabulário e a busca da palavra apropriada. No raciocínio jornalístico, ou literário, chega uma hora em que o texto pede uma palavra, e tem que ser aquela palavra. Em seu significado total e exato. Qualquer outra, soaria chocho...”, defende Zé Hamilton.

O início da trajetória de uma revista histórica O processo de nascimento da Realidade, assim como relatado no livro Realidade Re-vista, partiu da necessidade da Abril de entrar no mercado de publicações de assuntos gerais. O primeiro projeto – uma revista semanal que seria encartada em jornais – falhou. Então, com a equipe já contratada, a editora optou por uma publicação mensal. Assim, começava a estabelecer um marco na história da imprensa brasileira, pois até então as grandes revistas do Brasil, como Manchete e O Cruzeiro, eram editadas no Rio de Janeiro. A partir de Realidade elas passaram a ser feitas em São Paulo, que ganhou um know-how nesta produção, com o qual, até hoje, nenhum outro Estado consegue competir. “Muitos pensam que a Realidade nasceu a partir da Quatro Rodas, mas isso não é verdade. Ela era mais um novo projeto editorial da então jovem Abril. Acontece que Quatro Rodas já tinha ido buscar no mercado alguns dos melhores profissionais da época. Como estava consolidada e tinha toda uma estrutura profissional com linhas de sucessão já determinadas, nada mais natural que o nome para chefiar a nova Redação fosse o de um profissional conhecido da casa, Paulo Patarra. Um nome que não deixava vácuo em Quatro Rodas, pois foi imediatamente substituído por Zé Hamilton RiO índio Aritanã em foto de Jorge Butsuem para a reportagem Indinho brinca de ìndio, de Carlos Azevedo. beiro”, conta José Carlos Acima, o olhar terno do palhaço Arrelia na foto de Lew Parrela publicada na Realidade de outubro de 1966. Marão. O próprio Zé Hamilton dá sua versão. exercício jornalístico que iria desembomanal. Dela faziam parte Paulo Patarra, “No começo dos anos 1960, a Abril era Narciso Kalili, Luiz Fernando Mercadancar na Realidade – em primeiro lugar – e, ainda ‘um escritório’, que coordenava a te, Carlos Azevedo e José Carlos Marão. a seguir, na Veja e nas outras centenas de publicação de revistas traduzidas – tais Assim que foi decidido o caminho pela revistas que podemos contar hoje. Agocomo quadrinhos, fotonovelas, corte e ra, em termos de influências, ela não se revista mensal, vieram Sérgio de Souza, costura, cama, mesa e banho... Com a Zé Hamilton Ribeiro, Woyle Guimarães baseou em qualquer outra publicação do Cláudia, entre as femininas, dirigida por exterior. E lembro que até o nome foi uma e Mylton Severiano da Silva. Fizaram Luís Carta, e a Quatro Rodas, masculina, busca errática, com muita gente pensanparte destetime outros nomes, como dirigida por Mino Carta, irmão de Luís, do e dizendo: Realidade? Mas isso é nome Roberto Freire e Paulo Henrique Amoa editora passava a ter redação de jornalisrim. Para a Direção de Arte veio Eduarde revista?!?”, diverte-se. tas – e não mais só de tradutores. E Quado Barreto. Os fotógrafos eram Geraldo A equipe original – o chamado dream tro Rodas, sob a direção do Mino, foi, de Mori, Jorge Butsuen e Luigi Mamprin. team – apresentara-se ainda quando da certa forma, o laboratório de texto e de Já lançada, atraiu Eurico Andrade. Mais execução do fracassado projeto da se12

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tarde, veio Hamilton Almeida Filho. Em meados de 1968, juntaram-se ao grupo Dirceu Soares e o escritor João Antônio. Essa turma toda sairia na crise deflagrada em dezembro de 1968, com o afastamento de Paulo Patarra, transferido para outro grupo de revistas no meio daquele ano.

A crise de identidade revelada no pós-1968 Em sua segunda fase, em plena ditadura, com o AI-5 em vigor, a revista, de certa forma castrada, já não tinha o mesmo sucesso com os leitores. “Houve um grande esforço para recuperar esse sucesso, com o trabalho de grandes profissionais, como Maurício Azêdo, Audálio Dantas, Luiz Edgard de Andrade e muitos outros. Alguns pioneiros, como eu, voltaram. Mas a situação política impediu os grandes vôos que poderiam ter acontecido. A partir de 1969 já havia a presença dos censores nas Redações. Embora a Realidade nunca tenha sofrido com a presença ostensiva deles, já havia uma autocensura mais pesada no ar, em razão da situação política vigente”, lamenta Marão. Milton Coelho da Graça é outro jornalista que atuou na Realidade e que nos ajuda a identificar as diferentes fases da publicação. “Obviamente, sob a pressão da autocensura e com o lançamento, pela própria Abril, da revista Veja, a Realidade começou a sofrer queda de circulação. Vieram, por isso, tentativas de lhe dar outras propostas editoriais. Primeiro, a de torná-la mais sofisticada e voltada para o consumo. Depois, a da revistadocumento, com edições sobre Amazônia, Mar das 200 Milhas, e Cidades. Mas essas eram edições muito caras, e a direção da Abril resolveu tentar um projeto mais simples – o de fazer uma revista no estilo da Seleções, só que ‘abrasileirada’. E assim ela morreu, depois de minha saída da Editora Abril e uma condenação a seis meses de prisão pela Justiça Militar, por também editar jornais clandestinos nas horas vagas.” Milton Coelho, que hoje atua na TV Brasil, fez descobertas profissionais quando de sua passagem pela Abril. E enfrentou situações internas delicadas. “Tenho 52 anos de jornalismo, mas passei os dez primeiros sempre sentado na Redação, onde fui redator, chefe de Reportagem, editor, chefe de Redação. Foi na Abril e na Realidade que vesti a camisa de repórter e saí por aí. Quando Roberto Civita convidou Odylo Costa, filho para substituílo como diretor, uma parte da Redação se demitiu. Com a saída de Patarra eu acabei assumindo como chefe de Redação”, explica ele, que segue seu relato, tão revelador quanto assustador. “Em 1968, o nosso número de dezembro foi para as bancas no mesmo dia em que foi editado o AI-5. Meu nome estreava no expediente como chefe de Redação, já com os novos redatores e repórteres admitidos por mim para substituir os demissionários – inclusive cariocas que estavam desempregados e todos com


A despedida de Paulo Patarra da Realidade foi com uma matéria explosiva: Este é o camarada Prestes, publicada em dezembro de 1968, justamente no mês em que o Governo militar impôs o AI-5.

ficha no Dops: Maurício Azêdo, Sérgio Cabral, Rodolfo Konder e Henrique Coutinho. A matéria de capa era uma entrevista exclusiva de Luís Carlos Prestes, feita na União Soviética, ainda por Patarra. Imagine só! Na segunda-feira, agentes da Oban (Operação Bandeirante) foram à Abril procurando por mim. Tive que fugir pelos fundos, depois de avisado pelo segurança da editora.” Sérgio Cabral fala das recordações dos tempos da Realidade. “A revista foi talvez a primeira publicação brasileira a oferecer ao repórter espaço e liberdade para demonstrar aonde chegaria o seu texto. Diria que, na Realidade, o repórter era também escritor. A década de 1970 foi muito cruel com as publicações que ousavam desrespeitar as recomendações do regime militar. Vivi as experiências de O Pasquim e da Realidade para saber que é muito difícil uma publicação sobreviver com independência na ditadura.” Cabral era um dos editores da Realidade quando a equipe decidiu dedicar um número à sucessão presidencial militar – na verdade, a simples passagem da guarda de Emílio Garrastazu Médici para Ernesto Geisel. Evidentemente, um tema que o regime não queria que aparecesse na imprensa.

O mundo da espionagem em Altamente Secreto, de Alexandre Porro e desenho de Quimdoro.

O repórter Luiz Fernando Mercadante (acima, com João Goulart) e o fotógrafo Luigi Mamprim foram ao Uruguai produzir uma reportagem marcante com Jango e Brizola (à direita): Cunhados em choque.

“A matéria estava escrita e paginada. As fotos feitas, inclusive a de Geisel que iria para a capa, quando, cinco dias antes do lançamento, foi tudo vetado pelo regime. Tivemos de inventar uma matéria principal e a solução seria uma entrevista com uma mulher bonita e inteligente, para aparecer bem e brilhante na edição. Éramos oito a votar nessa mulher. E me lembro que perdi por sete a um, o placar da vitória da saudosa atriz Dina Sfat, sobre a também saudosa Nara Leão, minha candidata. Graças à entrevista, a Realidade circulou.”

Reportagens ‘de verdade’, feitas com profundidade Não há dúvidas do quanto uma boa apresentação gráfica ou idéias originais podem despertar o interesse dos leitores. Incentivar neles o impulso de comprar uma ou duas edições. Contudo, o processo de fidelização dessa relação exige bem mais do que isso. Algo além de bons textos de inspiração literária. Realidade, a revista, não era um livro, nem um álbum de fotojornalismo. Tampouco um ensaio de artes gráficas. Era, sim, uma revista jornalística. Com um jornalismo de primeira. Esse foi, sem dúvida, outro ponto forte na equação de seu sucesso. “O jovem jornalista aprendeu com a Realidade a mergulhar profun-

damente nos temas abordados”, define Sérgio Cabral. A Realidade fazia a ‘grande reportagem’ – que pouco tem a ver com ‘reportagem grande’. Isso incluía pesquisa, pensamento e trabalho na busca de um pouco de profundidade e compromisso com a verdade. Enfim, um jornalismo investigativo, de longo curso, sério. “Isso exigia vivência. Se o camarada fosse escrever uma reportagem de pescadores numa vila na Bahia, ele conviveria com eles por dias e dias, para que seu texto transmitisse a realidade daquele local e daquelas pessoas. Não era nunca uma matéria superficial”, recorda-se Zé Hamilton Ribeiro. A necessidade de estar in loco pregou uma peça no veterano repórter. Deixou-lhe marcas para toda a vida. “Era 1968 e havia ficado claro, já no começo do ano, por volta de fevereiro, que os americanos poderiam sofrer uma derrota humilhante no Vietnã. Nessa altura, a Realidade já era a revista mais destacada do Brasil. E, nessa condição, não poderia tratar do assunto mais importante do mundo, naquele momento, pelas mãos de terceiros. Não dava para contar só com agências internacionais. Ela tinha que mandar uma pessoa sua para guerra... E lá fui eu. Por causa de uma reportagem, passei a viver com uma parte do corpo a menos”, relata, numa referência à mutilação de uma perna sofrida ao pisar numa mina terrestre. O jornalista Marcos de Castro também fez parte da equipe de Realidade, e revela peculiaridades do esquema de produção da revista. “Devo dizer, em primeiro lugar, que não usávamos o termo ‘pauta’. Trabalhávamos mais na base de ‘idéias’. Quanto à característica principal da revista, prefiro uma resposta plural, para destacar, além dos textos criativos, a importância dos assuntos abordados, não poucas vezes de grande impacto social. Uma vez por mês, todo jornalista corria às bancas para comprar a Realidade. Creio que isso revela a importância da revista para os profissionais da época de um modo geral.”

Um formato exclusivo na ‘discussão’ das pautas Exatamente por ser planejada mais no campo das idéias do que das pautas ortodoxas, cada nova edição da revista era precedida por reuniões, digamos assim, pouco convencionais. “Éramos todos amigos. A Redação era uma salinha. Lugar de repórter era na rua, trabalhando, ou em casa escrevendo. Quase ninguém escrevia na Redação! Não dava para se concentrar naquela sala. Quem ficava na Redação mesmo era o Paulo Patarra, o Sérgio de Souza, o pessoal de arte e mais alguns. E, mesmo assim,

Foto de Olivier Perroy ilustrou Poemas para rezar.

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faltava ar! Era apertado mesmo! O prédio ainda está lá, na Rua João Adolfo, 118, 12º andar, no Centro de São Paulo.” A piada que corria na imprensa na época, conta Marão, dava conta de que as reuniões de pauta da Realidade eram, na verdade, alcoólicas. “A gente gostava de reunir o pessoal para discutir as idéias, quase sempre com um litro de uísque, na casa cedida por alguém. Era muito divertido, pois era proibido dizer não. No dia seguinte, claro, havia a triagem do que prestava daquilo que fora discutido no dia anterior. A pauta era sempre coletiva. Tinha muita bobagem. Mas sempre ficávamos com dez, 15 ou 20 pautas muito boas para a edição seguinte.” Zé Hamilton ajuda a elucidar esse processo nada convencional que, no fundo, tinha lá sua razão de ser. “Essa reunião era importante pois havia um consenso entre os jornalistas para, na reunião seguinte, enfrentar o patrão. Ele era o Roberto Civita, filho do dono da editora. Independente de ser filho do dono, ele era um grande jornalista, formado e com estágios nos Estados Unidos. Uma pessoa muito inteligente, bom leitor de jornais. Mas ele era representante da empresa – e a Redação chegava uníssona para convencê-lo a aceitar as pautas mais ousadas. Pensávamos: ‘Ele é muito bom, muito inteligente, mas não entende de Brasil. Quem entende somos nós’. Acreditávamos nisso.”

Chico Buarque em foto de Lew Parrela para uma reportagem de Roberto Freire.

O Jornal do Brasil foi palco de uma reportagem de Luiz Fernando Mercadante e do fotógrafo Nélson Di Rago, que registraram um dia de trabalho naquele diário carioca. O Editor-chefe era Alberto Dines (acima). Mercadante também escreveu o perfil de Sobral Pinto, o advogado da liberdade.

seu projeto as referências de novas escolas do jornalismo mundial. “Sem dúvida, a revista representou no Brasil a chegada do chamado New Journalism, que pregava o ‘casamento do jornalismo com a literatura’, nos moldes do que produziram, nos Estados Unidos, dos anos 1950 e 1960, nomes como Truman Capote, Norman Mailer e Tom Wolfe. Por aqui, isso teve grande influência na formação da geração de jornalistas da época – e mesmo para a revisão das coberturas, ou do modo como elas eram feitas. A partir do padrão estabelecido pela Realidade, os profissionais de imprensa passaram a cobrar de si mesmos textos bem mais elaborados”,

A influência do “novo jornalismo” Embora não tenha se inspirado em qualquer outra publicação internacional, como bem garante Zé Hamilton Ribeiro, Realidade trazia embutidas em

Luiz Fernando Mercadante fez um perfil de Paulo Autran (acima) na sexta edição da revista, que teve também um ensaio fotográfico de David Zingg: O Brasil que eu amo (direita).

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A inegável ousadia das pautas fica evidente quando é analisada a relação de reportagens publicadas na revista. A número 1, por exemplo, trazia Onde Está o Corpo de Eva Perón? – além da produção especial de Luiz Fernando Mercadante e Walter Firmo, que viveram três semanas com os pracinhas em São Domingos, na matéria Brasileiros Go Home, premiada com um Esso. Nas edições seguintes não faltaram exemplos de criatividade. Há Liberdade no Brasil?; Sou Padre e Quero Casar; O Mundo dos Espiões; Deus Está Morrendo?; Educação Sexual das Crianças; Chico Buarque: O Gênio Brincalhão; Por que Rio e São Paulo Se Detestam; Quando Costa e Silva era Garoto; Eles Querem Derrubar o Governo; No Mundo do Vício; O Brasil Não Tem Onde Morar; Antiamericanismo; e Censura: O que Você não Pode Ver foram algumas das matérias publicadas – não custa nada lembrar – em pleno regime militar.


comenta Rodolfo Konder, que foi redator e repórter da revista. “Sob essa influência do New Journalism e de nomes como Gay Talese, e outros na imprensa americana, mas sem deixar de lado a paixão brasileira pelo jornalismo investigativo, a Realidade provocou a revalorização do texto. Uma tendência que se mantém viva em revistas como Piauí e Caros Amigos”, defende Milton Coelho da Graça, destacando outros nomes que fizeram parte da redação da revista, como Jorge Andrade, David Zingg e Roger Bester. “Eles, e vários outros, fizeram parte de uma equipe que ajudou a abrir novos horizontes para a informação e a ilustração fotográfica no jornalismo brasileiro.”

Jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso-Facha, do Rio de Janeiro.

Uma história que ainda gera muita curiosidade

Pelo resgate de um jornalismo exemplar

“Nosso livro nasceu de uma certa demanda. De tempos em tempos, nem sei por qual motivo, os remanescentes de Realidade são procurados por jovens jornalistas, estudantes de Jornalismo e de História, sociólogos iniciantes, em busca de informações sobre a revista. Pois bem, agora estes dados estão à mão”, festeja Zé Hamilton Ribeiro. “O que motivou o livro, tal como está, foi exatamente isso. O grande número de estudantes que me procuravam pedindo depoimentos. Acho que o Realidade Revista é a documentação de uma época, segundo a ótica dos dois autores do livro. A contribuição para os antigos leitores é a chance de reler algumas matérias de que talvez tenham gostado”, avalia Marão. Para o público mais jovem, a contribuição é exemplificar, com fatos, uma história que estava se tornando uma lenda, e, como tal, trazendo o risco de interpretações equivocadas. “Acho, inclusive, que outros profissionais da Realidade poderiam fazer um trabalho semelhante, colocando suas visões pessoais. Seria uma maneira de esclarecer, cada vez mais, a lenda que foi criada”, sugere ele, que, ao lado de Zé Hamilton e do editor José Luiz Tahan, participou recentemente do programa Espaço Aberto, da GloboNews e conduzido por Edney Silvestre, falando do livro. Na internet há diversas iniciativas de resgate do legado da revista, como o blog Virou Realidade (virourealidade.blogspot. com) produzido por alunos do curso de

Passados 45 anos de sua fundação e 35 de sua saída de cena, haveria espaço no mercado editorial brasileiro para uma revista nos moldes da Realidade? Ou, de

Ilustração de Sápia para O Uísque é nosso. Abaixo, desenho de Fortuna para um texto de Carmen da Silva: São Paulo precisa parar.

fato, a fórmula vitoriosa empregada naquele tempo encontra-se superada? “O estilo da Realidade não se perdeu, como várias revistas – especialmente mensais – estão aí para demonstrar. Os jornalistas estão mudando, porque as novas tecnologias exigem isso, mas ainda há muito espaço na mídia para o texto e a foto de excelente qualidade. Há, sim, espaço para boas publicações. Até porque, além de sexo, nada consegue igualar o prazer de uma leitura agradá-

Um mestre da fotografia, na revista que sabia trabalhar as imagens Walter Firmo é um dos maiores nomes da fotografia brasileira em todos os tempos, com prêmios internacionais, exposições no mundo inteiro e livros publicados. Ele também emprestou seu talento à Realidade. “Na apresentação das reportagens havia uma ousadia gráfica. O mesmo ocorria na qualidade impressa, com paginações surpreendentes que primavam pela criatividade, aliada a uma linguagem fotográfica inteiramente desconhecida para os padrões da época. O fotógrafo tinha a iniciativa de pautar seus ensaios como quisesse, buscando outras luzes, libertado de um ponto de vista déjà vu, introduzindo no leitor uma nova paixão de apreciar o belo aliado à notícia. Ali, na Realidade, participei do nascimento do ensaio fotográfico durante as reportagens”, define Walter Firmo. “Fui o primeiro fotógrafo a ser convidado para o projeto, dois anos antes de ele ser lançado.” Na avaliação de Firmo, nas Redações brasileiras a informação textual ainda é primordial no posicionamento político da informação. “A fotografia vem em segundo plano. E ela tem perdido espaço cada vez mais, dando cabeçadas nos anúncios, dividindo para menos as atenções na mídia... Porém, melhoramos muito na questão educacional. Os profissionais são mais capacitados para seguir os rumos fotográficos numa empresa jornalística. Agora, o fotógrafo escreve, lê, multiplica, soma e ainda discute Marx. Sua fotografia é pensante, precisa de maior apoio na hora da paginação”, acredita ele, que destaca o material que considera inesquecível, produzido para a Realidade. “Foi a reportagem Inverno e Verão, publicada já na decadência da revista, em 1971, dirigida pelo Mino Carta. Na ocasião reverenciamos uma nova maneira de se pensar um fotojornalismo moderno.”

vel, inteligente e com muita informação”, arrisca Milton Coelho da Graça. Na prática, contudo, os veículos não têm aberto espaço, e nem mesmo investido, nas grandes reportagens. “O estilo da Realidade está presente em toda reportagem que pratica o jornalismo de verdade e, com ele, busca o progresso da sociedade. Agora, no aspecto formal, é bem verdade que se perdeu o espaço para escrever daquele modo. A indústria cultural não consegue perceber a diferença de qualidade, a fina flor de um texto inspirado... Para ela, o que interessa é papel pintado para vender anúncio. E fazer propaganda ideológica disfarçada de jornalismo”, reclama Carlos Azevedo. Zé Hamilton Ribeiro é dono de uma visão especialmente crítica acerca do jornalismo praticado no Brasil atualmente. Por isso mesmo, aposta que uma publicação instigante e de qualidade, nos moldes da Realidade, certamente cairia no gosto de uma expressiva parcela dos leitores. “Há espaço para uma revista de reportagens bem feitas, com texto cuidado, com pauta criativa... Vemos cada coisa por aí! Acho que o público espera por algo com ‘qualidade literária’, que lhe dê prazer na leitura. Infelizmente, em matéria de jornalismo – e não só de jornalismo – o Brasil de hoje está acostumado com coisa ruim. Estamos vivendo, talvez, uma das épocas mais medíocres deste País. Assim, quando surgir no jornalismo uma coisa boa, vai ser fácil o povo se acostumar. Se está acostumado com o que é ruim, na hora em que surgir o bom, ele vai correndo atrás. Foi assim com a nossa revista.”

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REPRODUÇÃO/FOTO DE KEISABURO SHIMAMOTO

Em maio de 1968 José Hamilton Ribeiro conta o seu drama no Vietnã. Em fevereiro de 1971 Juscelino Kubitschek é fotografado por David Lew Zing para um perfil escrito por Luiz Fernando Mercadante.

Que textos! Que inveja! Que devaneios... P OR P AULO C HICO Vamos esclarecer logo de cara. O título acima não é meu – e bem que eu gostaria que fosse. É de Geneton Moraes Neto, e traduz com rara precisão o sentimento de toda uma geração de jornalistas diante das sensações provocadas pelo pedido do Jornal da ABI para que contribuíssem para esta reportagem, dando-nos um depoimento sobre suas lembranças a respeito da revista Realidade. Um dos profissionais de imprensa mais premiados do País, hoje na GloboNews, Geneton – algo raro na televisão – é dono de um texto primoroso, além de entrevistador curioso e pauteiro dos mais ousados quando da escolha dos temas de suas reportagens. Terá sido influência da Realidade? “Peguei o bonde atrasado: quando comecei a ler a Realidade, a revista já existia há tempos. É provável que já tivesse passado pela ‘fase áurea’. O desencontro foi puramente cronológico: quando a revista foi lançada, em 1966, eu tinha de nove para dez anos de idade. Não via o mundo com olhos jornalísticos, obviamente. De qualquer maneira, guardei na lembrança a foto de Pelé, coroado, na capa do primeiro número da Realidade. Tempos depois, quando me interessei por jornalismo, passei a ler, maravilhado, edições ‘antigas’ da revista. Gostava de tudo ali: os títulos fortes, as pautas ousadas, as sacadas gráficas. Eu lia o expediente da revista tomado por uma íntima inveja: ah, eu daria tudo para fazer parte daquele time. Em meus devaneios, eu tinha certeza de que, depois de enfrentar uma longuíssima viagem de ônibus entre Recife e São Paulo, eu seria sumariamente contratado por um chefe de Redação que usava suspen16

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sórios e emitia baforadas de fumaça azulada no ar de uma sala da Editora Abril”, escreveu Geneton, que segue em seu relato ficcional. “Escalado para uma entrevista, eu iria passar uma semana inteira observando e anotando cada gesto do meu personagem. Depois, gastaria horas e horas e horas imaginando o lide fatal capaz de arrebatar para sempre a atenção do leitor, este ingrato. Resolvido o drama do lide, eu iria batucar em minha Olivetti Lettera 22 um texto que, quem sabe, poderia provocar um leve movimento nas sobrancelhas do editor, o único sinal exterior de aprovação que ele, carrancudo, era capaz de emitir. Já tinham me dito que a vida não ia ser fácil. Era assim que eu o imaginava: envolto na fumaça das velhas Redações, o editor de suspensórios inspecionaria o meu texto em busca de algum absurdo. Por fim, eu viveria a suprema felicidade de ver, numa banca da Avenida Paulista, um exemplar da Realidade exposto à curiosidade pública. A capa traria, no

canto inferior direito, uma chamada para a entrevista que eu tinha feito. Devaneios, devaneios”, prossegue ele. Geneton diz ainda que, enquanto embalava seu sonho secreto, tratava de tentar aprender alguma coisa lendo as edições de Realidade que caíam em suas mãos, lá no Recife. “Por algum motivo, nunca me esqueci de uma reportagem sobre o ex-Presidente Juscelino Kubitschek. As fotos mostravam JK nadando. O título reproduzia a pergunta da modinha: ‘Como pode um peixe-vivo viver fora da água fria?’ Também me lembro de um perfil do Marechal Castelo Branco. Salvo engano, era assinado por Luiz Fernando Mercadante. Que textos! Eu me lembro da capa que mostrava o repórter Zé Hamilton Ribeiro ensangüentado no Vietnã. O que me maravilhava, na Realidade, era algo que pode ser resumido em duas palavras: a grande reportagem. Hoje, depois de inspecionar o que as bancas exibem, vejo alguma coisa do espírito da Realidade na revista Piauí, por exemplo. Mas uma dúvida renitente incendeia minhas florestas anteriores. Quem matou a Grande Reportagem? Onde? Quando? Por quê? O que o meu imaginário editor de suspensórios diria?”, conclui, algo entre o nostálgico e o desafiador. A mesma análise é feita por Ricardo Noblat, de O Globo. “Houve sempre uma pergunta no ar. Era possível escrever reportagens longas e encontrar leitores dispostos a lê-las até o fim? A dúvida de boa parte dos jornalistas da minha geração começou a se dissipar quando o primeiro número da Realidade apareceu nas bancas. Ela foi um tremendo sucesso editorial até o dia em que deixou de circular. E por quê? Primeiro por-

que os assuntos que abordava interessavam a muita gente. Segundo porque os textos eram primorosos. Por último, porque não havia nada de parecido com ela no mercado editorial brasileiro. Na época, falava-se muito do chamado ‘novo jornalismo’ – o jornalismo tratado com apurado gosto literário. Mas dele só tínhamos notícias por meios de reportagens publicadas lá fora e de alguns poucos livros a respeito que nos chegavam parcimoniosamente. A revista, como defendem alguns, pode até não ter sido a primeira porta de entrada do New Journalism por aqui. Mas foi a mais bem-sucedida. E a mais duradoura. Bons tempos aqueles!”, afirma. De tanto elogiar a revista, Ricardo Kotscho diz que, por vezes, parece causar até certa confusão histórica. “Tem muita gente que pensa que trabalhei lá de tanto que cito a Realidade em textos, debates e palestras, como a melhor publicação brasileira de todos os tempos. Cheguei até a pedir emprego na revista, é verdade, o que era muita ousadia, quando tinha apenas 18 anos de idade... Por sorte, comecei a trabalhar na grande imprensa justamente no final dos anos 1960, e me tornei amigo de muitos dos seus repórteres e editores, um timaço do melhor jornalismo. Mais tarde, seria convidado a dar um curso de reportagem na Eca/Usp, de onde tinha sido expulso, e o tema foi exatamente a experiência revolucionária da Realidade. Muitos dos que participaram daquela história atenderam a meu convite para dar seu depoimento aos alunos. No meio acadêmico, noto tamanha curiosidade por parte de professores e estudantes, que é como se a revista ainda existisse. Como Elvis, Realidade vive. Pelo menos, na lembrança dos que ainda fazem da reportagem um ofício de fé”.


PRÊMIO ESSO

RECONHECIMENTO DESDE O NÚMERO 1 De 1966 a 1973, Realidade ganhou oito vezes em diversas categorias o principal concurso do jornalismo brasileiro. Nas capas, uma mistura de ousadia e criatividade capaz de fazer o rei do futebol ser fotografado com um busby, o chapéu usado pelos guardas da rainha Elizabeth, da Inglaterra, na cabeça. Dentro, quebra de tabus, grandes reportagens e textos muito bem escritos. Uma mistura explosiva, sim, mas também vencedora e muito premiada. De 1966 a 1973, Realidade ganhou oito vezes, em diversas categorias, o principal concurso do jornalismo brasileiro, o Prêmio

Esso. Em todas, um olhar diferenciado e instigante, seja sobre a vida de soldados brasileiros em meio a uma guerra civil, acompanhando transplantes de órgãos, mostrando que as mazelas sociais tinham rosto e nome ou ainda retratando a vida nas grandes florestas e nas enormes cidades do País. Tempos e matérias que deixam saudades, ainda mais porque se interessar pelo ser humano não era somente mostrar a casa ou revelar os segredos de alcova de alguma celebridade.

1966

to Freire e o fotógrafo Geraldo Mori decidiram seguir seus passos em agosto de 1967. No caminho, conheceram o advogado Maurício, então com 23 anos, e a enfermeira Maria, 20, dois voluntários que foram para a capital pernambucana com o objetivo de fundar uma organização social e tentar ajudá-los. Porém, para se aproximar e conquistar a confiança da meninada, o casal precisou viver com eles, dormindo debaixo de pontes, andando a esmo pelas grandes avenidas e lutando contra traficantes, ladrões e homossexuais que tentavam se aproveitar dos garotos e garotas.

PRÊMIO ESSO DE REPORTAGEM Luiz Fernando Mercadante Brasileiros, go home

Em abril de 1966, São Domingos, capital da República Dominicana, mais lembrava uma cidade fantasma. Nas ruas, lixo apodrecia por todos os cantos. As paredes de casas e sobrados estavam furadas à bala, marca da guerra civil que o país atravessava. Foi nesse cenário que o jornalista Luiz Fernando Mercadante e o fotógrafo Walter Firmo procuraram descrever o cotidiano dos mais de mil soldados brasileiros que integravam a Força Interamericana de Paz e que ainda tentavam estabelecer a paz completa. Mas só encontravam a hostilidade dos sobreviventes do conflito, em sua maioria mulheres e crianças que vestiam luto por seus mortos e não cansavam de gritar para os invasores: “Go home, go home!”.

1967 PRÊMIO ESSO DE REPORTAGEM Roberto Freire Os meninos do Recife

Para mostrar a dura realidade dos meninos de rua do Recife, o repórter Rober-

PRÊMIO ESSO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA José Hamilton Ribeiro Uma vida por um rim

No sétimo andar do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o jornalista José Hamilton Ribeiro percorreu corredores e enfermarias, conversando com pacientes, médicos e enfermeiros. Eram as histórias dos primeiros pacientes de transplantes de rim no Brasil e os bastidores que mostravam a evolução do procedimento, desde que fora realizado pela primeira vez, ainda em 1964.

1969 PRÊMIO ESSO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA Marcos de Castro Marcinha tem salvação: amor

Até Realidade invadir essa praia, jornalismo científico não era tarefa para repórteres comuns. A tarefa ficava por conta de profissionais especializados de cada área, gente que não tinha tanta afinidade com textos simples e objetivos. Em 1969, a revista provou que acabou de vez com esse mito e ganhou pela terceira vez consecutiva o Esso de Informação Científica com um texto bastante original sobre o problema das crianças que nascem com lesões cerebrais.

1972 Anúncio da Esso no final da década de 1960 oferece “aos jornalistas o Prêmio e o Seminário Esso de Jornalismo”.

1968 PRÊMIO ESSO DE REPORTAGEM Eurico Andrade Eles estão com fome

Produzir um retrato revelador da Zona da Mata, no Nordeste, onde a população enfrentava a miséria e a fome. Esse foi o desafio de Eurico Andrade, nascido naquela mesma região e que voltou lá para fazer a matéria em 1968. Um retrato vívido, ilustrado pelas experiências marcantes de alguns personagens, pelas fotos de Jorge Butsuem e por relatos como o de duas professoras num Dia das Mães: “Um dos alunos pediu-lhes para fazer um pacote bonito do presente que trouxera. ‘Mãe vai gostar muito’, disse. Quando ele saiu, as moças abriram o pacote: era um pão”.

PRÊMIO ESSO DE JORNALISMO e PRÊMIO ESSO DE MELHOR CONTRIBUIÇÃO À IMPRENSA Equipe – Edição Especial Amazônia

Em outubro de 1971, a floresta passava por uma mudança radical. Estradas deixavam de ser projetos, reservas minerais começavam a ser exploradas, a pastagem do gado acelerava o desmatamento e o Governo queria, a todo custo, colonizar a região com a entrada de milhares de pessoas. Uma das mais completas descrições já feitas do universo amazônico, mobilizou 16 jornalistas em deslocamentos mata adentro e visitas a mais de uma centena de cidades, num percurso maior que o de uma viagem à Lua. Da Amazônia, a equipe comandada por Raimundo Rodrigues Pereira trouxe 30 mil fotografias, incontáveis relatos e uma visão de contrastes, em que 1,5 milhão de pessoas viviam uma existência de miséria sobre a riqueza mitológica do solo.

1973 PRÊMIO ESSO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA José Hamilton Ribeiro De que morre o Brasil

PRÊMIO ESSO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA José Hamilton Ribeiro Seu corpo pode ser um bom presente

Na década de 1960, o Brasil sofria com endemias que só se tornavam complicadas por causa da realidade do País. E José Hamilton Ribeiro descobriu que 40 por cento das mortes eram causadas por seis doenças infecciosas: diarréia, gripe, pneumonia, tuberculose, sarampo e tétano. Um diagnóstico ainda mais escandaloso quando se sabe que o grande culpado é a falta de saneamento básico, mal que continuaria incomodando a nação por décadas.

No começo dos anos 1970, a doação de órgãos ainda era um tema pouco conhecido da maioria dos brasileiros, mesmo com centenas de transplantes de rins, fígados, pâncreas, pulmões e até corações já realizados. Ao mostrar o drama enfrentado por pessoas que necessitavam de algum tipo de transplante, trazer números, discutir questões éticas e falar sobre êxitos e fracassos, Realidade debateu o tema a fundo e incentivou a doação. Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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CENSURA

A EDIÇÃO PROIBIDA Em janeiro de 1967, dois magistrados ordenaram a apreensão do número 10 da revista Realidade, alegando “obscenidade” e “ofensa à honra da mulher”. O que houve por trás dessa história, que revela as nuances de uma sociedade ainda cheia de tabus e preconceitos, mas em plena efervescência. P OR M ARCOS S TEFANO

E

ra o fim do ano de 1966. Na cidade gaúcha de Bento Gonçalves, Dona Odila Pizzato, experiente parteira que segundo suas contas teria ajudado mais de 3 mil crianças a vir ao mundo, preparava-se para mais um trabalho. Desta vez, no entanto, ela não estava sozinha. Com caneta e bloco de anotações na mão, o jornalista Narciso Kalili lutava para transformar indescritíveis sensações em palavras. Ao seu lado, a fotógrafa Cláudia Andujar clicava cada detalhe do parto: a preparação, o esforço da mãe, Zenaide dos Santos, e o exato e mágico momento em que a pequena Tânia nascia. Claro, tratava-se de uma ousadia jornalística para qualquer publicação da época; em termos de Realidade, porém, era mais uma reportagem reveladora, que buscava mostrar uma situação comum nos interiores do Brasil e sem disfarces. Todo mundo na Redação sabia que ia dar o que falar. Apenas não previa que, menos de 48 horas depois da edição de janeiro de 1967, a de número dez da revista, ir às bancas, aquelas fotos seriam a gota d’água para dois juízes de Menores, um de São Paulo e outro do então Estado da Guanabara, decretarem a apreensão de todos os seus exemplares. Não foram somente aquelas fotos que indignaram os magistrados. A revista inteira era uma bomba de efeito retardado. Seria apenas a primeira de uma série de edições temáticas que ainda tratariam da juventude (setembro 1967), da Amazônia (outubro de 1971), das metrópoles (maio de 1972) e do Nordeste (novembro de 1972). Naquele número 10, o tema explosivo seria o universo feminino, mostrando quem era e no que pensava a mulher brasileira em tempos de mudança. Uma grande pesquisa com 1.200 mulheres foi realizada na tentativa de entender cerca de 20 milhões de brasileiras adultas. Entre os principais temas, sexo

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sem casamento, infidelidade, prostituição e aborto. Os resultados mostraram que 41% achavam ser justificada a infidelidade feminina em alguns casos; 67% consideravam importante casar virgem; 25% já haviam feito aborto; e 84% encaravam a homossexualidade como uma doença. Para hoje, os números parecem indicar um excesso de moralismo. Para aquele tempo, eram escândalo puro. Não acabava por aí. A entrevista daquela edição foi da jovem atriz Ítala Nandi, de 24 anos, comparada logo no índice com a sueca Ingrid Thulin, personagem de posições liberais e que provocou muita polêmica quando saiu logo no número 1 da revista. A brasileira foi na mesma linha e ainda aproveitou para desafiar homens e mulheres: “Devemos ser independentes a qualquer custo”. Havia mais. Em depoimento à jornalista Gilda Grillo, uma universitária carioca de 20 anos, estudante de Direito, soltou o verbo: “Sou mãe solteira e me orgulho disso”. Escondida pelo anonimato, ela aceitou falar abertamente sobre um grande tabu na época:

Na seqüência de fotos em preto e branco, a do parto tem poucos detalhes e fica prejudicada por estar no meio da revista.

“Foi uma escolha da qual não me arrependo. Ele não queria que eu tirasse a criança e falou em casamento. Eu lhe perguntei: ‘Você casaria comigo se eu não estivesse grávida?’. Ele respondeu que não. ‘Então não quero casar com você’, disse eu. “Ela vai ser filha de mãe solteira, mas podia ser filha de pais mal casados. E isso talvez seja pior, muito pior”. Noutro texto de igual contundência, José Carlos Marão deu voz a três mulheres desquitadas. Nas páginas de seus diários ou em entrevistas, elas abriram o jogo e contaram o drama que viviam como mulheres “de segunda classe”. Não bastasse a dor da união desfeita, sofriam discriminação e preconceitos: “Os rapazes do ginásio me olham como se eu fosse uma prostituta, dizem que sou biscatona”. “Certo rapaz, depois de sair comigo, levou-me até uma casa bonita. Queria que eu descesse do carro. Aí percebi. Discutimos. Ele disse que estava saindo comigo era para isso mesmo, ou eu pensava que era moça donzela e que nos casaríamos?” Até a última página, a edição seguiu no mesmo tom revelador e polêmico. Na derradeira seção Brasil pergunta, a questão era se a mulher deveria se casar virgem ou não. A radialista Sarita Campos apostou que “sim”, mas fez uma advertência: “A pureza pode existir independente da virgindade”. A jornalista Eneida de Moraes cravou que “não” e acirrou de vez os ânimos: “Na mulher, a virgindade é obrigatória. Só mesmo numa sociedade como a nossa, ainda dominada pelos preconceitos, isso é compreensível. Digo compreensível, mas não admissível. O que um homem e uma mulher devem levar para o lar é a vontade de compreensão, entendimento, concessão”. Era somente o que faltava. O dia 30 de dezembro de 1966 estava apenas começando, mas a ordem de tirar todas aquelas revistas das bancas já começava a ser cumprida. Obscenidades e ofensas “Ela podia ser uma bomba, mas o retrato era fidedigno de como as brasileiras da época viviam, trabalhavam, amavam e pensavam. Não havia nada de obsceno e muito menos atentatório contra a dignidade e a honra de ninguém, a não ser do obscurantismo e da censura”, disse Roberto Civita, Presidente do Conselho de

Administração do Grupo Abril, mais de 40 anos depois, numa publicação especial que foi às bancas juntamente com a reimpressão da edição censurada. Naquele dia 30 de dezembro de 1966, Civita, então Diretor de Redação de Realidade, sentiu-se atordoado quando recebeu a notícia de que os exemplares das bancas paulistas estavam sendo apreendidos. Horas depois, tanto a metade da tiragem que ainda não tinha saído da gráfica, cerca de 231 mil exemplares, quanto o reparte que estava nas bancas do Rio de Janeiro, tiveram o mesmo destino. Ainda assim, uns 200 mil exemplares foram vendidos clandestinamente, graças à esperteza e rapidez de muitos jornaleiros. Nem o pessoal da Abril nem seus advogados sabiam o que os magistrados achavam obsceno na revista, estudada e preparada durante vários meses. Civita sentia-se culpado. Ele havia insistido na publicação da tal foto do parto, mesmo com conselhos contrários de colegas que diziam que poderia dar problema. Mesmo assim, não acreditou que o motivo pudesse ser esse. “Só depois descobrimos que os magistrados tinham sido incitados por um telefonema do Governador de São Paulo, que, por sua vez, havia recebido uma ligação indignada do cardeal da arquidiocese. Antes, quando nosso advogado impetrou mandado de segurança ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, o recurso foi rejeitado”, contou Civita. A Abril resolveu então recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Fora do âmbito judiciário, decidiu responder na edição seguinte da revista. Independente de seu conteúdo, o número 11 de Realidade já prometia ser quente por conta da guerra da seção de cartas. “Estão vendendo pornografia, mas isto vai acabar. Palmas para os senhores Juízes de Menores que saíram em defesa da Moral brasileira”, provocou um missivista paulistano. “Há ainda neste País pessoas que se sentem duramente atingidas pela verdade, porque toda sua personalidade se baseia em valores estéreis de uma fictícia moral, impregnada de ódio e intolerância”, respondeu outro, puxando a fila da maioria das cartas publicadas. O mais interessante foram as pautas usadas pela Redação naquela edição. Logo de cara, a Carta do Editor explicou o que houve e alertou: “Torna-se evidente que a ‘obscenidade’ não estava em jogo, pois a revista não


Os fotógrafos da equipe de Realidade produziram um ensaio sobre a mulher para a edição que foi proibida. Cláudia Andujar clicou esta mulher amamentando: “É uma prostituta. Pelo filho, quer deixar de ser”.

Retrato inacabado

continha sequer uma frase maliciosa, uma foto provocante, um desenho erótico ou um texto libidinoso. O que estava – e ainda está – na balança é uma atitude perante a vida, o mundo e a realidade brasileira: não querer enfrentar os problemas”. Em seguida, publicou em forma de acusação e defesa a decisão dos magistrados e os recursos elaborados pelos defensores da revista. Dentro, uma reportagem mais que oportuna, assinada por Carmen da Silva, sobre o Bicho-Papão do momento, o preconceito. No texto, a jornalista passou a História em revista até chegar ao cerne do problema: a família. “Se proibirmos aos adultos tudo o que for impróprio para crianças, acabará não havendo mais crianças – o que realmente seria uma pena”, vaticinou. A fina ironia não esteve presente somente ali. Em todo o número 11 podia ser encontrada. Especialmente na última seção, aquela que normalmente traz duas personalidades discutindo contra e a favor de determinado ponto. Desta vez, à estranha indagação “A cegonha existe?”, o jornalista Alessandro Porro garantiu que “sim”. “Com relação a um dos mais palpitantes assuntos de todos os tempos – Como nasce uma criança – começaram a surgir, nas últimas semanas, versões contrastantes e boatos sem nenhum fundamento. Órgãos de imprensa, evidentemente mal informados (ou, talvez, a serviço de interesses nem sempre cla-

ros), chegaram a publicar relatos de lírica invenção, alguns avançando a hipótese de que a criança forma-se no ventre materno, depois de um espermatozóide ter fecundado um óvulo. (...) Muitos poderão perguntar: ‘E os gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos?’. O erro acontecia porque nos escritórios do Centro Mundial da Criança usava-se papel carbono na hora de fazer o pedido. Acontece ainda hoje quando os computadores eletrônicos fazem mais cópias de um mesmo pedido ou de uma encomenda”, brincou Porro. Ninguém o contestou. A outra resposta, a do STF, só viria longos 21 meses depois, em 1º de outubro de 1968, às vésperas do AI-5 e do fim da fase áurea de Realidade. “Não vi no dito exemplar nada de obsceno, imoral, sórdido ou contrário aos bons costumes. A linguagem é decorosa, a exposição se faz em tom alto e não encontrei apologia do vício, da anomalia ou mesmo da irreverência, enfim nenhum juízo de valor que se possa considerar antissocial. Para assim julgar, não necessito de exame pericial ou parecer técnico, impróprio do mandado de segurança. Julgo como homem de meu tempo e de meu País”, votou o Ministro Aliomar Baleeiro, em nome da maioria do tribunal. A essa altura, os exemplares confiscados já tinham sido totalmente triturados. De qualquer forma, valeu a lição: diante da censura, só existe graça no bom jornalismo.

A apreensão da edição 10 não foi o único entrevero que Realidade teve com a Justiça. Antes dela, em agosto de 1966, ainda no número 6, a revista publicou a matéria A juventude diante do sexo, com a primeira parte dos resultados de uma pesquisa, que ouviu mil moças e rapazes do Rio e de São Paulo, entre 18 e 21 anos, sobre o que conheciam, falavam e faziam em relação à sexualidade. Era um momento em que os jovens ocupavam com destaque a cena pública, seja com as manifestações estudantis, seja com novos artistas brilhando nos festivais de música. O levantamento foi realizado por meio de um questionário e abordou assuntos que eram verdadeiros tabus na época, como virgindade, sexo antes do casamento e uso de métodos anticoncepcionais. Mas era somente a primeira parte. A conclusão prometia ser tão polêmica quanto e viria no mês seguinte. Bem, esse pelo menos era o plano. No meio do caminho, Realidade recebeu uma advertência do Juiz de Menores da Guanabara, Alberto Cavalcanti de Gusmão, que havia considerado a pesquisa “obscena” e “chocante”. Caso a revista insistisse e publicasse a parte final da pesquisa, ele ameaçava apreender toda a edição.

Realidade preferiu recuar. Um ato que prometia ser momentâneo, mas que se tornou definitivo, já que a segunda parte da pesquisa não sairia mais. E respondeu na própria edição 7, usando o tradicional espaço da Carta do Editor: “Não pode haver obscenidade num artigo que é apenas o retrato fiel do comportamento e das atitudes de uma parte representativa da juventude brasileira. Não inventamos este retrato. Também não o aprovamos, nem o condenamos. Isso cabe aos nossos leitores. Mas estamos serenos por tê-lo divulgado, prestando aos pais, educadores e, sobretudo, aos jovens um serviço que julgamos inestimável – e imprescindível. Realidade parte do princípio de que seus leitores são adultos, inteligentes e interessados em saber a verdade. E continuará fiel a seu compromisso de informar. Com imparcialidade, com serenidade. E com a coragem de enfrentar os fatos”. De fato, o julgamento pode ser sentido na seção de cartas da edição seguinte. Houve quem apoiasse o juiz, considerando a matéria como um “ultraje ao pudor e um desrespeito à igreja”. Mais extremado, um leitor disse que colecionava a revista, mas ela já não o interessava mais. “Os exemplares que possuo irão para o fogo”, sentenciou em tom inquisitório. E outro foi mais além: “Sua revista é caso de polícia”. Mas também muitos apoiaram Realidade. “Que outros considerassem a reportagem obscena e chocante, vá lá. Mas um juiz – homem que pelo menos deveria ter noção do ridículo?! É o fim!”, disseram alguns leitores de Curitiba. “A reportagem apenas mostra que o Ministério da Educação precisa inserir urgentemente no currículo escolar, uma cadeira de educação sexual, suprindo as falhas da educação doméstica”, opinou uma mulher de São Paulo. O DESENHO DE MILTON LUZ ILUSTRA O TEXTO A INDISCUTÍVEL NUNCA PROCLAMADA (E TERRÍVEL) SUPERIORIDADE DA MULHER, DE MYLTON SEVERIANO DA SILVA A PARTIR DA PESQUISA DE DAISY CARTA.

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CARTAS

O BRASIL EM UM ANO Debates, críticas e elogios. As cartas dos leitores sobre as matérias dos primeiros 12 meses de Realidade mostram uma sociedade em transformação, mas cercada por tabus. P OR M ARCOS S TEFANO Todos os meses, a história se repetia no 12º andar do número 118 da Rua João Adolfo, Centro de São Paulo: pilhas de correspondências eram trazidas à Redação onde funcionava a revista Realidade. Dessas, mais de 200 costumavam ser cartas de leitores, recebidas sempre com grande apreensão e também com solenidade, como o mais importante anúncio oficial. Bem, poderia não ser algo tão formal, mas tantas vezes era capaz de fazer tudo parar, a ponto de fazer renomados repórteres darem um tempo em suas concorridas agendas e debruçaremse sobre caixas e envelopes. Afinal, tratava-se da mais importante das opiniões sobre suas matérias, a dos missivistas. Geralmente com o auxílio de Octávia Yamashita ou Lana Nowikow, tudo era separado, organizado e trazido ao EditorChefe Paulo Patarra e ao Secretário de Redação Woile Guimarães. Era deles a

C ONGR ATU LAÇÕES REALIDADE 2 “Sr. Diretor: Realidade é saborosa, suculenta. Sua polpa constitui alimento energético, regenerador (contém muita proteína).” Hamilton Kress – Rio, GB

A S SUECAS AMAM POR AMOR REALIDADE 2 “Sr. Diretor: As sete páginas da sueca são o único grave senão de Realidade. Se a revista foi criada para merecer franca receptividade da família brasileira, francamente lhe digo, com todo o brio dos meus 62 janeiros: não será apresentando coisas assim nauseantes que o conseguirão.” Gilberto A. Domingues – Salvador, BA REALIDADE 3 “Sr. Diretor: Aplaudo uma revista do porte de Realidade. Que venha para construir. Mas, por amor de nossa Pátria e dos nossos, que não venha veicular assuntos como o de As suecas amam por amor.” Padre José Stringari Reitor da Faculdade de Filosofia de Lorena São Paulo, SP “Sr. Diretor: Qualquer livro sobre educação sexual para principiantes poderia ter evitado tanto “trabalho de pesquisa” pré-conjugal à atriz Ingrid Thulin. Protesto, como jornalista, mulher, esposa, mãe e avó, contra a reportagem As suecas amam por amor.” Giselda Moura Ferreira – Rio, GB “Sr. Diretor: Na qualidade de mulher e médica faço ressalvas ao artigo sobre o amor na Suécia. Sinceramente, não sei por que o brasileiro tem a mania de confundir realidade com imoralidade e

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incumbência de ler tudo, ver quais eram mais representativas e separar os trechos relevantes para publicar na seção Cartas. Sempre começando com o misterioso adereçamento “Sr. Diretor”. Polêmicas e opiniões fortes não faltavam. Mais do que apaixonados elogios ou enervadas críticas, o que se via eram reações de uma sociedade em transformação em cada palavra. Qualidade à parte, nem sempre contente com as novidades publicadas e cercada de preconceitos e tabus. Cartas foi um capítulo à parte na importante trajetória da revolucionária revista. Mas só pode ser corretamente compreendida se lida e não contada. Por isso, o Jornal da ABI fez uma ampla pesquisa nos doze primeiros meses de Realidade, seu primeiro e mais impactante ano de existência. E separou, como se verá a seguir, as mais quentes opiniões sobre tudo o que seus leitores comentavam, da pinga brasileira a relatos sobre como viviam as brasileiras desquitadas.

usar o sexo como assunto de cartaz.” Maria de Lurdes Morais – Santos, SP “Sr. Diretor: Gostei muito da entrevista com Ingrid Thulin. Ela está certíssima. Mas digna de nota é a carta de protesto do leitor Gilberto A. Domingues, publicada no número 2. Ela reflete bem como são estúpidos, retrógrados, injustos e inflexíveis os conceitos da nossa sociedade sobre o sexo.” João Carlos Reis – Rio, GB “Sr. Diretor: Como uma jovem normal, que trabalha, estuda e luta em pé de igualdade com os homens, achei excelente a reportagem sobre o problema sexual na Suécia. É um crime

e uma farsa, nos países latinos, a maneira como este problema é encarado. Por favor, continuem abordando este tema. Com este pedido estou expressando o pensamento de talvez 90% das jovens brasileiras, embora muitas não tenham coragem de demonstrar o que sentem.” Ângela Fernandes – Rio, GB “Sr. Diretor: Vimos nos congratular com Realidade. A reportagem As suecas amam por amor foi amplamente discutida pelos jovens desta igreja, motivando ainda o sermão do nosso pastor.” Dátames A. Egg – Primeira Igreja Presbiteriana Independente – Curitiba, PR REALIDADE 4 “Sr. Diretor: A afirmação da leitora Ângela Fernandes foi gratuita e dogmática. Tenho certeza de que são mais de 10% as jovens brasileiras que pensam que a chamada liberdade sexual não passa de uma inversão de valores e um desamor, em lugar de amor.” A. L. de Oliveira – São Paulo, SP REALIDADE 5 “Sr. Diretor: A respeito da reportagem As suecas amam por amor, quero esclarecer que o sermão que na ocasião proferi não era favorável à atitude da atriz Ingrid Thulin. É bem diferente a ética do Novo Testamento, tido por nós como a palavra de Deus.” Pastor Roberto Lessa – Primeira Igreja Presbiteriana Independente – Curitiba, PR

J ÂNIO, HOJE

D ISFARCE REALIDADE 3 “Sr. Diretor: Tenho a impressão de que Realidade é francamente antiamericana e anti-religiosa, aparecendo nas suas páginas os mesmos disfarces esquerdistas de todos os tempos.” Davi Carlos Reis – Rio, GB REALIDADE 4 “Sr. Diretor: Realidade veio provar que a Editora Abril não constitui perigo à soberania da Pátria, como querem alguns órgãos de nossa imprensa. Está se mostrando, isto sim, uma excelente revista de formação, que muito irá contribuir para o desenvolvimento intelectual do Brasil.” Lewys S. Andrade – estudante – Lavras, MG

R ECADO AO DEPUTADO REALIDADE 4 “Sr. Diretor: Empolgado com o brilhantismo dos três primeiros números desta revista, vi-me chocado com as afirmativas subservientes do Deputado Federal Anísio Rocha*, no Brasil Pergunta do exemplar de junho. Gostaria de lembrar àquele parlamentar que: 1) o aumento de vagas no Supremo Tribunal Federal não deu maior poder ao Judiciário e sim ao Executivo, que as preencheu; 2) os deputados não podem ter liberdade quando há cassações; 3) não há vantagem em o povo “ser convocado em praça pública”, pois lhe cassaram o direito de eleger; 4) quanto à liberdade dos “comícios que aí estão”, que o digam os estudantes de Belo Horizonte”. Fernando Rodrigues – Rio, GB

REALIDADE 3 “Sr. Diretor: Meus pêsames. Realidade gastou tempo, bom papel e trabalho gráfico perfeito para tratar do mais pernicioso e nefasto demagogo que já tivemos. Que Jânio continue sua “vida ascética” em Guarujá e deixe o Brasil em paz.” Aldo Machado – Limeira, SP

*Nota do Editor: Na seção Brasil Pergunta da Realidade 3, de junho de 1966, o Deputado Federal Anísio Rocha respondeu “Não” à pergunta “É verdade que, no Brasil, todo o poder está nas mãos dos militares?”

REALIDADE 5 “Sr. Diretor: Os leitores que qualificaram o sr. Jânio Quadros de “pernicioso e nefasto demagogo” devem ter sido, eles que me perdoem, muito justamente castigados pelas vassouradas do ex-Presidente.” Paulo Lucena – Belém, PA

REALIDADE 4 “Sr. Diretor: O redator de Realidade examinou tudo e escolheu o pior de Conceição de Mato Dentro, em sua reportagem Nossa Cidade. Por que não focalizou o Cuiabá, que é uma encantadora fonte natural? Ou o ginásio São

N OSSA C IDADE


dizendo que a revista estava interessada ‘em desagregar as fibras morais mais autênticas do nosso povo’. Nós, leitores, não podemos deixar ser difamada uma obra que visa esclarecer os brasileiros sobre problemas jamais abordados por outras publicações.” Celina R. Carvalho – Belo Horizonte, MG Francisco, com seus 500 alunos, o Colégio São Joaquim, com 500 alunas, e Éden Clube, o Cuiabá Hotel, as nossas quatro igrejas e uma infinidade de coisas boas?” José Getúlio de Souza e outras 79 pessoas – Conceição de M. Dentro, MG

DESQUITE OU DIVÓRCIO REALIDADE 5 “Sr. Diretor: Tanto o divórcio quanto o desquite não representam um amadurecimento cultural. Pelo contrário, são marcha à ré para o abismo. Tudo não passa de pretexto para destruir a família brasileira e deixar crianças no abandono.” Diva R. Arruda – Escriturária – Jundiaí, SP “Sr. Diretor: A separação conjugal é um câncer, que não pode ser curado e só prevenido. Quem casa deve estar ciente de que recebeu um sacramento indissolúvel.” Eduardo F. Breda – Postalista – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Sou a favor do divórcio, porque um casamento fracassado já não é mais casamento como Deus o deseja.” Ulrich Feisher – Pastor – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Quando o casamento fracassa, rui por terra, só o divórcio é a solução racional, moral e lógica. O desquite, como a lei brasileira faculta, é uma imoralidade, um erro grosseiro de direito.” Lauro de Queiroz – Funcionário público aposentado – Curitiba, PR REALIDADE 10 “Sr. Diretor: Causa repulsa ao mais superficial observador o resultado publicado por Realidade sobre o que pensam os brasileiros do divórcio. Responderam apenas 14.611 leitores dos quais 11.547 deram opinião favorável, e a revista publica em manchete “Brasileiros querem o divórcio”. Conclusão correta está com as 1.042.359 assinaturas antidivorcistas recolhidas em 15 Estados e no Distrito Federal pela Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. Isto sim, louvado seja Deus, convence qualquer brasileiro que use a cabeça.” Haydée Galli – São Carlos, SP Realidade respondeu: Veja resultados da pesquisa nacional realizada pelo Inese e que publicamos a partir da página 18 desta edição: eles confirmam os totais colhidos na enquete de Realidade sobre desquite e divórcio. “Sr. Diretor: Acho que Realidade é muito boa, mas li um artigo em um jornal de Juiz de Fora, comentando a pesquisa sobre o divórcio e

A JUVENTUDE DIANTE DO SEXO REALIDADE 6 “Sr. Diretor: Sua revista vem pregando a dissolução da família brasileira com seus artigos amorais. Porém o número de agosto, com o artigo sobre a juventude, é o pior: não deveria circular, é caso de polícia.” H. Barroto – Rio, GB “Sr. Diretor: Ótimo o número de agosto, supervalorizado pela pesquisa A juventude diante do sexo e pela composição fotográfica de Poemas para rezar. Como professor, faço votos de que a revista continue progredindo, como notável fator educativo de nosso povo.” Antônio L. Gomes – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Os preconceitos que imperam em algumas pessoas com grau de formação inferior nos prejudicam, a nós jovens, e mais ainda quando se trata de problemas sexuais. Precisamos de orientação.” Maria Carmem – Lavras, MG REALIDADE 7 “Sr. Diretor: Não posso deixar de reconhecer ao Doutor Alberto Cavalcanti de Gusmão, Juiz de Menores da Guanabara, o direito que lhe assiste de impedir a publicação da segunda parte da reportagem A juventude diante do sexo, em defesa do decoro da família brasileira. É de notar que num lar qualquer, seja ele modesto ou luxuoso, nem todos são adultos, nem cultos: há as crianças e há as mocinhas.” Paulo Sarto – Ribeirão Preto, SP “Sr. Diretor: Estava colecionando Realidade. Agora, porém, não mais me interessa e os exemplares que possuo irão para o fogo. R. Ferraz Sales – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Consideramos um artigo desse quilate como ultraje ao pudor e um desrespeito à Igreja.” Antonio Carvalho – Alto Paraguai, MT “Sr. Diretor: Faz-se mister uma grande revolução nas relações sociais entre pais e filhos. Considero um insulto pessoal a proibição do artigo de Realidade. Não devemos querer que nossos filhos se assemelhem às crianças da Idade Média. Será que o Sr. Juiz de Menores da Guanabara esqueceu-se das suas próprias interrogações de jovem?” Senhora Capitão Nonato dos Santos – Rio, GB

“Sr. Diretor: Felizmente pude notar que o Senhor H. Barroto – que deveria chamar-se H. Barroco, pelo atraso de suas idéias – ficou só, quando opinava que a Realidade de agosto “não deveria mesmo circular, pois é caso de polícia”. Faço votos para que a sua revista consiga derrotar aqueles que, imbuídos de preconceitos mesquinhos – e às vezes fazendo uso da prepotência – tentam impedir seu esforço para esclarecer o povo deste País.” Edilson Limeira Ribeiro – São Paulo, SP REALIDADE 8 “Sr. Diretor: Confesso que fiquei profundamente chocado. Sou pai de quatro rapazes, um deles já casado. Embora meus filhos sejam homens, importo-me também com o comportamento das moças, pois não vou querer para nora uma moça que já sabe demais.” Marinho Vidal – Belo Horizonte, MG “Sr. Diretor: O Sr. Ferraz Sales ameaça queimar os exemplares que possui de Realidade; pois bem: estou disposto a pagar o preço que o citado senhor quiser (desde que numa base lógica!) pelos números 1 e 2 da revista. Iria, inclusive, até São Paulo para buscá-los.” Paulino Alves Barreto – São João de Merit, RJ “Sr. Diretor: Não consideramos obscena ou chocante a pesquisa A juventude diante do sexo. Ela nada mais é que a coleta de dados reais. Não é o assunto que é chocante e, sim, a vivência atual dos nossos jovens. Mas se eles assim procedem é conseqüência de uma educação falha.” Sr. e Sra. Adílson Brunharo – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Não queria ser aluno de professor tão mal formado como o Sr. Antônio L. Gomes, que elogia ‘pesquisas’ despudoradas, e gosta

de poemas para rezar ilustrados com mulheres desnudas. A única realidade é que os donos de Realidade querem enriquecer, mesmo sacrificando os mais sagrados valores da civilização. Só não fazem quando seu lucro é ameaçado por algum Juiz de Menores cônscio de seu dever.” João e Miguel Q. Barros – Santa Maria, RS

SOU PADRE E QUERO CASAR REALIDADE 8 “Sr. Diretor: O caso particular do Padre Stephen Nash, se é real, pois soa a coisa forjada, é para entristecer. Por que não aconselham esse padre torturado a deixar o ofício e se casar, se tamanha é a ânsia?” Joel Rolim – Fortaleza, CE “Sr. Diretor: Em meu nome e no de centenas de sacerdotes com quem conversei durante viagens pela América e pela Europa, parabéns pelo artigo Sou padre e quero casar. Sugiro que os senhores enviem uma separata de tal artigo a cada um dos bispos brasileiros.” Padre J. F.

R EVOLUÇÃO NA I GREJA REALIDADE 8 “Sr. Diretor: Os verdadeiros católicos não devem iludir-se com as falsas pregações dos padres Dominicanos, pois eles desmoralizam a religião.” Cássia Fernandes – Pará de Minas, MG REALIDADE 9 “Sr. Diretor: Parabéns pela reportagem Revolução na Igreja. Muita gente precisava saber que os dominicanos são os ‘cobrões’ da nossa Igreja.” Clarice Salomão – Belo Horizonte, MG “Sr. Diretor: O Senhor não imagina a repercussão que tiveram os artigos Sou padre e quero casar e Revolução na Igreja, sobretudo entre o clero gaúcho. Realidade é uma revista aberta que não se inclina nem tanto à terra nem tanto ao mar.” Irmão Fábio Lourenço de Jesus, Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs – Porto Alegre, RS

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O BRASIL EM UM ANO

DEUS ESTÁ MORRENDO ? REALIDADE 10 “Sr. Diretor: Mexer com sexo, divórcio, padres etc. ainda é aceitável, mas mexer com Deus, isto já é demais! Os senhores cometeram um crime, publicando o artigo Deus está morrendo? Lucinha Laurindo Sampaio – São Paulo, SP “Sr. Diretor: Parabéns pela magnífica reportagem Deus está morrendo?. Não é mais possível o antropomorfismo divino. Há três anos, fiz um verso dando meu conceito de Deus, dedicado ao Papa Paulo VI a quem o enviei. Recebi do Vaticano agradecimento e bênção papal.” Diana Fischer Linhares – Rio, GB

A ARTE DESCOBRE A MULHER

sabemos respeitar os últimos instantes de vida de um pobre ser indefeso?” Haroldo S. F. Geribello – São Paulo, SP

Q UEM ERA O HOMEM JESUS REALIDADE 13 “Sr. Diretor: Se Deus, Jesus, os apóstolos e os santos deixarem de ser mitos, não haverá religião. Realidade é uma publicação culta e avançada demais para um povo tão pouco esclarecido como o nosso.” Dr. Vladimir Medeiros – Rio, GB REALIDADE 14 “Sr. Diretor: Não tenho adjetivo para qualificar a reportagem Quem era o homem Jesus. É lamentável que haja uma revista aparentemente tida como culta e instrutiva, e que desça tanto ao abordar um tema para o qual não esteja capacitada.” Gilson Faustino Maia – Angra dos Reis, RJ

REALIDADE 10 BRASIL PERGUNTA: SÓ O “SIM” PARA A RESPOSTA IRÔNICA DE ALESSANDRO PORRO. “Sr. Diretor: Fiquei horrorizada lendo o artigo A arte descobre a mulher. Qual é a intenção da revista em exibir mulheres nuas?” de freiras com o consentimento da Madre “Sr. Diretor: Artigo não somente blasfemo do Johanna Halter S. Mattos – Uberaba, MG Superiora. Estabelecer o diálogo é coisa ponto de vista cristão, senão também errado importantíssima na educação da juventude e do ponto de vista histórico-científico.” Padre “Sr. Diretor: Lindas, formidáveis as qualquer assunto, sem exceção, deve ser João M. Gardenal – Salvador, BA reproduções de quadros do número 8 de discutido e esclarecido para que as gerações de AS MÁQUINAS QUE QUASE FALAM Realidade. Oxalá voltem a publicar mais amanhã possam conduzir o Brasil para um futuro reportagem sobre arte.” Raquel Sampaio mais feliz.” Hernâni L. Furtado – São Paulo, SP REALIDADE 12 Barbosa – Maceió, AL “Sr. Diretor: A reportagem sobre o computador REALIDADE 12 mostrou-me ser ele uma máquina simples. A MULHER BRASILEIRA , HOJE “Sr. Diretor: Notei, após ter lido as primeiras falta de divulgação sobre o fato o havia REALIDADE 11 páginas da edição de fevereiro, cujo título se transformado num mistério, numa coisa que só “Sr. Diretor: Os senhores podem ficar lê A Edição Proibida: Acusação e Defesa, os deuses são capazes de produzir e manejar.” esperando o prêmio que estão procurando, que a defesa suplantou a acusação com Antônio Vianna Xavier – Porto Alegre, RS pois quem semeia a prostituição e o méritos indiscutíveis. Após estas explicações P ARA TODA A VIDA adultério no seio das famílias honestas e no necessárias, Realidade provou mais uma vez, coração das mocinhas puras terá de receber que continua no caminho do bem e da REALIDADE 4 resposta à altura, e eu tenho certeza de que verdade.” Wanderlei Lara Léo – São Paulo, SP “Sr. Diretor: A revista é magnífica e o papel é o povo brasileiro saberá separar o joio do ótimo, do melhor que se pode colocar em P RECONCEITO : O BICHO PAPÃO trigo, para lançar tudo o que é repulsivo e uma revista brasileira. Mas, ao invés de imoral ao fogo sagrado da Justiça e da REALIDADE 12 usarem cola para segurar as folhas, por que “Sr. Diretor: Permita-me fazer um trocadilho: Verdade.” Luiz Andrés Jr. – São Paulo, SP os senhores não usam grampos, para que Carmen da Silva é igual à Amélia, do Ataulfo Realidade possa suportar melhor o descuido “Sr. Diretor: Estão vendendo pornografia, mas Alves – é uma mulher de verdade. Seu artigo dos que a tomam emprestada? Realidade é isto vai acabar. Palmas para os srs. juízes de Preconceito: o bicho papão é uma verdadeira uma revista para se ler e depois guardar para Menores que saíram em defesa da Moral demonstração de cultura e de equilíbrio toda a vida.” Paulo Roberto Franco Andrade, brasileira.” Clementina Soares Mintori – São emocional. É assim que deverá ser a mulher Mesmer da Silva Ferreira, Pedro Alves de Paulo, SP brasileira de amanhã.” Justina Lotuso Magelli – Souza, Pedro de Alcântara – Juiz de Fora, MG Aracaju, SE “Sr. Diretor: Gostei imensamente da MAGAREFES: ELES honestidade que Realidade teve em publicar VIVEM DE MATAR as opiniões da mulher brasileira sobre todos os assuntos da última pesquisa. Que medo REALIDADE 13 têm certas pessoas de ler a verdade! Fiquei “Sr. Diretor: Sem qualquer emocionada com a reportagem Nasceu!. A culpa da revista, o artigo foto tirada com o papai feliz carregando pela Eles vivem de matar é primeira vez seu filhinho é de uma força de simplesmente nojento, expressão formidável. A fisionomia do rapaz é horrível, desumano e de ternura e orgulho. A foto tirada na hora H é patológico. Sabemos que há também ótima, e servirá para eu responder à muita maldade humana pergunta que não deve tardar dos meus dois neste planeta de Deus, meninos: de que jeito nasce um bebê?” mas isto não justifica a Tereza Monfort – São Paulo, SP nossa apatia diante de cenas vis, deprimentes e “Sr. Diretor: Com satisfação fiquei sabendo que ofensivas. Que interesse podemos ter pela ILUSTRAÇÃO PARA O TEXTO PRECONCEITO: O o número 10 de Realidade foi lido num colégio Pátria e por nós próprios se nem ao menos BICHO PAPÃO, DE CARMEN DA SILVA.

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m marco no jornalismo brasileiro.” “Revolução na forma de se fazer reportagem.” “A publicação que derrubou tabus e revelou um País desconhecido.” Muito provavelmente, você já ouviu diversas vezes essas frases em referência a Realidade, revista mensal de informação da Editora Abril, que circulou com grande sucesso entre os anos 1966 e 1976. Meros clichês ou não, ela teve um caráter inovador há exatos 45 anos, seja pela criatividade de sua pauta, pela fuga do convencional na apuração, pela ousadia na execução das matérias ou pelas fotos e textos caprichados. Um jornalismo digno de bons romances de ficção. Não à toa, tornou-se paradigma de excelência profissional e obsessão acadêmica, com inúmeros trabalhos e estudos universitários que ainda procuram desvendar sua importância para os leitores e para a imprensa nacional. Nessa trilha, alguns novos livros prometem ajudar e muito os interessados. É o caso de Realidade Re-vista (432 páginas, Realejo Livros), escrito por dois dos personagens que viveram o cotidiano da publicação em seus primeiros tempos, os jornalistas José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro. De forma simples e direta, eles trazem exemplos de reportagens, mostram os meandros de uma época e revelam os bastidores do trabalho de um veículo para o qual apenas responder à fórmula “O quê? Quem? Quando? Onde? Por quê?” não era o suficiente.

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Utopia do jornalismo Realidade, a revista, teve três fases distintas. A primeira começou com os números zero, ainda em fins de 1965, e foi até dezembro de 1968. Acabou com a debandada de quase toda a equipe original, após divergências com a direção da editora. A segunda começou em1969 com uma nova equipe e a volta de alguns profissionais da turma original. A terceira e última fase aconteceu a partir de outubro de 1973, com tamanho reduzido e uma fórmula editorial parecida com a de Seleções do Readers Digest. A “utopia do jornalismo brasileiro” é apresentada no livro com a reprodução de reportagens principalmente da primeira fase, o tempo áureo da revista, e assuntos variados: Política, Religião, Mulher, Preconceito, Interior, Saúde, Juventude, Economia, Personagens, Educação e Mundo. A maioria, dos autores do livro, mas também há textos de Narciso Kalili, Sergio de Souza, Paulo Patarra e Eurico Andrade. Uma espécie de homenagem aos antigos colegas, hoje já falecidos. Como revela Marão na obra, a idéia em cada reunião de pauta, fosse formal, na editora, ou informal, na casa de algum dos jornalistas, acompanhada de pizzas e bebidas, era apostar na criatividade. Naquele tempo, o sonho ainda era o de trabalhar num jornal diário, desde que se pagasse bem. O rádio sofria críticas pela superficialidade nas coberturas e o jornalismo na televisão era, ain-


FRANCISCO UCHA

DIVULGAÇÃO

LANÇAMENTO

A ARTE DOS FATOS Com a reprodução de reportagens e contando os bastidores de seu funcionamento, o livro Realidade Re-vista traz a história da publicação que marcou época no jornalismo brasileiro, vista pela ótica de dois de seus pioneiros. P OR M ARCOS S TEFANO

da, incipiente. Mas a sociedade passava por enormes mudanças. “Jornais e revistas semanais focavamse demais no factual. Se um Papa morria, por exemplo, falavam sobre o velório, o enterro, o perfil do falecido e se esqueciam de fazer algo em profundidade, de dizer o que significava aquilo, social e politicamente, quais seus efeitos para a instituição que ele representava. Realidade começou a fazer isso. Se fosse preciso falar sobre um assunto geral, como a educação no Brasil, não fazíamos uma análise horizontal, com um monte de números e depoimentos técnicos. Contávamos a história de uma escola ou de um professor. A partir desses exemplos, apresentávamos a situação geral”, escreve Marão. Hoje essa receita parece óbvia, mas emplacou graças a Realidade na década de 1960. Sem internet ou Google, uma boa matéria começava na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, no centro de São Paulo, bem próxima à Redação. Os personagens eram geralmente pessoas comuns, gente em quem os leitores podiam se projetar. A revista trabalhava muito pouco com celebridades. Havia tempo para a apuração, para que o repórter pudesse “viver” o que iria escrever. No caso de Zé Hamilton Ribeiro, foram três meses para tentar “empretecer”. Sim, a revista queria dar a clara sensação do preconceito, escolhendo um

repórter branco para sentir na pele o peso da discriminação. Para isso, ele tentou de tudo, da maquiagem a tratamentos experimentais desenvolvidos por pesquisadores da USP. Nada deu certo. Para sorte do leitor de Realidade, que tempos depois pode ler uma reportagem antológica de Sérgio de Souza sobre o racismo nos Estados Unidos. São essas histórias curiosas que dão um sabor todo especial ao livro. Em tempos de ditadura, Realidade soube tratar de política do jeito que dava. Além de perfis daqueles que estavam no poder então, procurou antever quem ocuparia esses espaços anos mais tarde. Seriam pessoas que concordavam com os militares ou pelo menos fingiam. Quem não estivesse nesses grupos seria cassado, preso ou exilado. Foi dessa forma que a publicação identificou que as oligarquias e os donos dos grotões estavam longe de ter seu fim e que seus descendentes e apadrinhados os sucederiam. Com isso em mente, Ribeiro viajou para o Nordeste em 1966, com a missão de retratar o “Último Coronel”. Com o título Coronel não morre, a matéria é divertida, cheia de perólas: “A bondade é como o terrorismo: uma tática”. Ou: “Revólver, automóvel e mulher, só zeroquilômetro”. O estilo narrativo e autoral, marca registrada da revista, permite um texto leve e que não deixa de ser crítico.

Para José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro a Realidade foi um produto de seu tempo.

inteira, eram permitidas. O que não dava era para colocar fotos de mulheres bonitas na capa, como faziam as concorrentes. A ligação com a matéria deveria ser direta. Assim como as páginas de continuação das reportagens, abertas em páginas duplas, deveriam ter ligação visual. E de conteúdo, o que era feito com a adoção de títulos de continuação, recurso usado pioneiramente por Realidade. “Pela primeira vez apareceu na imprensa brasileira a figura do Editor de texto, no lugar do copy-desk. Enquanto o copy reescrevia tudo, pasteurizando o texto, o Editor da revista procurava aperfeiçoar a reportagem, sem desfigurá-la, sem tirar o toque pessoal e a sensibilidade do repórter que tinha ido lá no teatro dos acontecimentos”, explica Ribeiro. Como dá para perceber, o tom de Realidade Re-vista é bastante ufanista. Não poderia deixar de ser. Como bem explicam os autores, ninguém gosta mais de lamber sua cria do que os próprios jornalistas. Mas o livro também derruba alguns mitos jornalísticos. Um é de que o texto final não pode ser mostrado para as fontes. Ainda em 1966, Ribeiro acompanhou o primeiro transplante de rim do Brasil e da América Latina para escrever Uma vida por um rim, reportagem ganhadora do Prêmio Esso de Jornalismo. No livro, ele conta que sua maior dificuldade foi convencer a equipe de médicos de que um jornalista seria capaz de escrever sobre a operação de maneira simples, de forma a todos entenderem, sem erros técnicos, exageros e sensacionalismo. “Fiz um acordo para que um professor-assistente, membro da equipe,

lesse a matéria antes. Não para mudar o que fosse opinião ou impressão pessoal, mas para alertar sobre equívocos e erros de informação”, conta ele. Outro é que o veículo tenha sido o grande representante do New Journalism norte-americano no Brasil. “Quase todos tinham lido Truman Capote, Gay Talese ou Tom Wolfe. Mas, que eu saiba, ninguém sentava em frente da Studio 44 pensando em fazer New Journalism. Era pura intuição. O texto tinha forte teor literário, mas de acordo com nossa realidade”, explica Marão, contestando uma certa insistência vinda principalmente dos círculos acadêmicos. Realidade é contemporânea a essa vertente, que teve seu boom nos anos 1960 e 1970. Ocorreram influências, mas também características próprias, peculiares ao contexto brasileiro e que o livro deixa bem claras. Tanto Marão como Ribeiro acertam em dizer que Realidade foi um produto de seu tempo. De fato, teve seu papel, tanto na forma quanto no conteúdo, influenciando jornais, revistas e programas de televisão até hoje. Simplesmente copiá-la seria um grande erro. Mas seria um acerto resgatar a essência de sua fórmula. No atual momento da imprensa brasileira, em que as publicações deparam-se com o esgotamento do padrão tradicional de seus textos, experimentar novas formas de tornar a leitura mais atraente parece uma boa idéia. Com o perdão do trocadilho, o prazer de ler, a profundidade encontrada no narrar e a aventura da descoberta do mundo não são formas antagônicas de enxergar a realidade. Podem andar de mãos dadas.

Quebrando tabus Em seus primeiros anos, Realidade quebrou tabus. Fez divulgação científica ao acompanhar cirurgias de coração e deu voz às mulheres desquitadas, desprezadas como gente de segunda categoria num tempo em que o divórcio ainda era proibido. Não que suas concorrentes, como O Cruzeiro e Manchete, não tivessem esse tipo de reportagem. Mas aquilo que para os outros tratava-se de extraordinário, em Realidade tornava-se regra. Assim como as fotos, que contavam histórias ao lado dos textos, sempre bem escritos. Os repórteres tomavam emprestadas as velhas Studio 44 e iam para casa. Escrever bem exigia tranqüilidade. Licenças, como condensar num único dia acontecimentos de uma semana Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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LIVROS

REALIDADE EM SEIS LIVROS Em tempos nos quais a televisão ainda engatinhava, a internet não passava de imaginação para a maioria das pessoas e o rádio já não vivia seu esplendor e era considerado superficial, jornais e revistas reinavam soberanos. Mesmo com opressão e censura, elementos que parecem estar sempre presentes desde os primórdios da imprensa. Os anos 1960 foram tempos de mudanças, na política, na economia, no comportamento e também nas publicações. Poucos veículos conseguiram cap-

Quando palavras dizem mais que imagens Tratar de política em tempos de ditadura e censura é como se equilibrar sobre uma corda bamba. Pior ainda se for numa publicação contestadora e espirituosamente crítica. Encontrar o devido equilíbrio, sem ser chapa branca nem deixar de falar do assunto, foi um dos maiores desafios para a revista Realidade. Conseguiu ser vencido usando uma fórmula simples: fazer perfis. Não somente daqueles que estavam no poder, mas também dos que andavam no ostracismo. Nessa empreitada, nenhum jornalista brasileiro se deu tão bem quanto Luiz Fernando Mercadante. Com criatividade e estilo literário, ele soube como poucos usar da sutileza e de um olhar diferenciado para falar de seus personagens. Parte dessa produção encontrase em 20 Perfis e Uma Entrevista (Editora Siciliano). A maioria dos textos que compõem o livro foi publicada originalmente em Realidade, entre os anos de 1966 e 1971. Entre os perfis estão os de Jânio Quadros, Castelo Branco, João Goulart, Leonel Brizola, Paulo Autran, Sobral Pinto, Oscar Niemeyer, Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo, Ademar de Barros, Carlos Lacerda, o ex-Presidente chileno Eduardo Frei e Juscelino Kubitschek. Mas não se trata de descrições pasteurizadas e cheias de preconceitos como costuma se ver em muitas publicações. Mercadante soube como poucos informar e deixar o julgamento para o leitor, o que não significa que ficou em cima do muro. Não à toa é considerado o “rei do perfil” no jornalismo nacional. Pena que a obra, lançada em 1994, hoje possa ser encontrada somente em sebos.

Visões da realidade Na trajetória da imprensa brasileira, poucas publicações ousaram um mergulho tão profundo nas águas do jornalismo literário quanto a revista Realidade. A ponto de ser comparada aos arautos do New Journalism norte-americano dos anos 1960. Só que, diferente de Tom Wolfe, Gay Talese e outros, os brasileiros não foram combatidos

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tar tão bem essas transformações quanto a revista Realidade, especialmente em sua primeira fase. Para os acadêmicos, até hoje é fonte de infinitas discussões e estudos. Para estudantes, o Olimpo, uma utopia inspiradora. O Jornal da ABI selecionou alguns livros, editados nos últimos anos, que procuram desvendar esse tempo e a revista. Não somente trazendo acuradas análises, mas também resgatando reportagens e textos que fizeram a fama da publicação.

como uma “turma que não escrevia direito”. Mas os recursos discursivos que se apropriavam de elementos literários e ficcionais para prender o leitor com uma narrativa de primeira eram apenas parte do segredo do sucesso da revista. Outras são a forma como leu o cotidiano e como compartilhou com o leitor o significado de uma época turbulenta, cheia de mudanças. Analisar todo esse meandro de forma prática e sem cair no academicismo exagerado é o grande mérito do Professor José Salvador Faro no livro Revista Realidade – Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira (Editora Ulbra e AGE Editora). O livro é uma adaptação da tese de doutorado do autor apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Usp e abrange os três primeiros anos da revista. Nesse período, analisa o projeto de Realidade e como encarou em seus textos assuntos em voga no período, da complexidade e violência da vida urbana a temas polêmicos, como o papel da mulher e dos jovens na sociedade, os avanços científicos e a atualidade da religião. Também traz diversas curiosidades, como a abordagem diferente que a publicação deu aos esportes e uma das poucas vezes em que Realidade abandonou seu teor mais crítico para fazer uma apologia da indústria cultural: Foi em outubro de 1966, num perfil de Walt Disney, assinada por Oriana Fallaci. Esta é outra obra que só pode ser encontrada em sebos.

O rei estava nu Não há nada pior para os poderosos de plantão do que revelar seus abusos e crimes. Ou ainda uma realidade que muitos prefeririam deixar escondida. 10 Reportagens que Abalaram a Ditadura (Editora Record), organizado por Fernando Molica, joga uma poderosa luz nos porões do regime militar que dominou o País depois de 1964, descobrindo que, realmente, o rei estava nu. O rei, no caso, são os ditadores, e a nudez, as tantas violações dos direitos humanos e práticas pouco ortodoxas com os recursos públicos. São dez reportagens que mostram o melhor do jornalismo investigativo brasileiro no período, unindo coragem e ousadia para denunciar os superfuncionários públicos, escancarar os bastidores do atenta-

do ao Riocentro ou combater a tortura, como no episódio da prisão e morte de Vladimir Herzog. Todas com um texto que introduz o leitor no assunto e na conjuntura do período. Destaque para a única reportagem de Realidade que figura na seleção: Eles estão com fome, na qual o jornalista Eurico Andrade denuncia a imensa dificuldade atravessada pelos trabalhadores da Zona da Mata de Pernambuco, Estado dividido e apelidado então de o “Vietnã brasileiro”. O trabalho foi o grande vencedor do Prêmio Esso de Reportagem de 1968, mas Eurico abriu mão dos 2 mil dólares da premiação. A seu pedido, o valor foi entregue pela organização a um padre da cidade de Pontezinha (PE). Com esse dinheiro, os trabalhadores fizeram sua primeira greve contra as condições desumanas em que viviam.

Tempo de polêmicas na imprensa Quase tão marcantes como suas antológicas reportagens foram as polêmicas levantadas pela revista Realidade. Numa sociedade em transformação, na qual as gerações mais jovens contestavam o comportamento das mais velhas, a publicação acirrou ânimos de todos os lados. Pessoas que esgotavam as edições da revista logo após chegarem às bancas. Alguns repórteres chegavam a sair às ruas para sentir o clima entre os leitores, mas a influência do veículo era melhor sentida em outras frentes. Nas tentativas dos governantes e magistrados de censurar o periódico, o que levou

uma edição inteira, sobre a mulher brasileira, a ser apreendida sob o pretexto de que era “obscena e chocante”. E na seção de cartas da edição seguinte, em que o público travava um debate tão efusivo quanto o que acontecia nas matérias. Essa última seção é o objeto de estudo da historiadora Letícia Nunes de Moraes em seu Leituras da Revista Realidade (Alameda). Se na primeira parte do livro ela se atém a analisar o conteúdo editorial da revista, contar sua história e analisar motivos de seu sucesso e posterior fracasso, coisa que não é inédita, mas que faz de modo resumido e com muita competência, depois parte para um estudo bastante diferenciado e único: durante a fase áurea da publicação, Letícia analisa mais de 700 cartas publicadas em 33 diferentes edições, identificando quem eram os leitores da publicação e explicitando o racha na sociedade brasileira. Também presenteia o leitor com algumas pérolas. “Sr. Diretor: Parabéns pela reportagem sobre juventude e se-xo. Tenho 29 anos, sou casada e mesmo assim aprendi muitas coisas lendo-a”, diz uma leitora, num elogio acompanhado por muitas outras pessoas: “Sr. Diretor: O que essa revista revela é a realidade do que necessitamos. Isso contraria a muitos, que se escondem sob preconceitos”, conta outra. Reflexo da realidade, nesse mundo não existia unanimidade: “Sr. Diretor: É de se estranhar que a revista só tenha recebido duas cartinhas protestando contra sua maneira sueca de levar a todos os lares e aos brasileiros de todas as idades o depoimento libertino de uma mulher livre e o depoimento de uma universitária que é mãe solteira e se orgulha disso”.

Marcas para a História O tempo passa, mas as grandes reportagens ficam. Mesmo depois de décadas, ainda é possível lê-las como se fossem atuais. Essa é a impressão que dá quando se depara com textos como os do livro Cicatriz de Reportagem (Editora Papagaio), do jornalista Carlos Azevedo. A obra traz 13 matérias escritas por Azevedo, um dos pioneiros da revista Realidade, entre os anos 1960 e 1990. Todas devidamente acompanhadas por apresentações, que além de trazer o making of de cada uma, ainda contextualizam o leitor em relação à época em que foram produzidas. Cinco das 13 reportagens do livro foram tiradas de Realidade e pelo menos outra da Quatro Rodas de 1965. Neles, Azevedo faz o fino do jornalismo, sempre com humor, criatividade e um olhar diferenciado e crítico. Tanto em matérias nacionais, como O Piauí existe, sobre a situação no então Estado mais pobre da Federação,

quanto em internacionais, como Agora é guerra, que aborda os conflitos raciais nos Estados Unidos. Porém, tão importantes quanto essas matérias são os textos que trazem os bastidores da revista, desnudando as disputas internas entre Redação e empresa e mostrando que Realidade não terminou como muitos sugerem por ser generalista e ficar sem lugar em um mercado segmentado, mas por ter perdido sua identidade combativa e, justamente, essa grande reportagem que tanto a caracterizou. “Textos que mostram gente comum, sua vida, uma nação escondida. Vidas assim, feitas de trabalho e digna humildade, mais do que as ações dos poderosos. Talvez seja por isso que essas histórias, garimpadas com sacrifício e que ocuparam tanto dos meus dias e cuidados, permaneçam vivas, impressas na memória, nos sentimentos, feito cicatriz”, justifica Azevedo, na apresentação do livro.

“Rombos” no jornalismo Mais do que “furos”, algumas reportagens costumam ser consideradas “rombos” no jornalismo. Especialmente, quando laureadas com prêmios, como por exemplo, o Esso. Nesse quesito ninguém supera o jornalista José Hamilton Ribeiro. Maior vencedor da premiação, com sete troféus, ele reúne todas as vencedoras no volume O Repórter do Século (Geração Editorial), com devidas apresentações e contextualizações que esclarecem cada texto. Dessas sete, quatro foram obtidas na extinta revista Realidade. São elas: Uma vida por um rim, cobertura do primeiro transplante do gênero no Brasil e na América Latina; Do que morre o Brasil, um duro retrato da falta de saneamento e condições mínimas de saúde no País; Seu corpo pode ser um bom presente, sobre a questão da doação de órgãos; e um dos textos da edição Amazônia, um especial de Realidade, lançado em 1972. Ironia ou não, aquelas que são consideradas suas grandes obras-primas, as duas da Guerra do Vietnã, não foram contempladas com o Prêmio. Mas, como não poderia deixar de ser, entraram com toda justiça no compêndio. (Marcos Stefano)


DEPOIMENTO

ZUENIR DE CORPO INTEIRO Convidado pelo Museu da Imagem e do Som para dar um depoimento sobre a sua trajetória profissional, o autor de 1968 – O Ano Que Não Terminou surpreendeu os entrevistadores com revelações de segredos bem guardados, como o de que sua mãe, católica fervorosa, queria que ele fosse padre.

MUNIR AHMED

POR C LÁUDIA SOUZA

O mais recente convidado do projeto Depoimentos para a Posteridade do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, o jornalista Zuenir Carlos Ventura manteve uma platéia atenta durante quatro horas com o relato de sua trajetória na profissão, iniciada em 1956, na antiga Tribuna da Imprensa, onde começou na função de arquivista, e sua experiência de vida, que inclui prisões durante a ditadura militar. Às vésperas de completar 80 anos, no próximo dia 1º de junho, Zuenir mantém o perfil otimista e velhos hábitos, como o de fugir de comemorações: “Sou avesso a cerimônias. Se eu abrir uma exceção para a comemoração do meu aniversário de 80 anos será para a ABI. Mas no dia do meu aniversário pretendo sumir. Eu nunca quis comemoração. É uma coisa meio assim, doente, sei lá... (risos)”. Entusiasmado, Zuenir recebeu com alegria o público que lotou o auditório do Mis: “Sobre o depoimento de hoje vou te dizer, até como furo de reportagem, que estou nervosíssimo! Em toda a minha vida escolar eu sempre tive problemas com exame oral. A sensação é que eu vou fazer um exame oral e com uma bancada de feras. Não sei como vou me sair, já que sempre me fui melhor em provas escritas (risos). E esse negócio de posteridade... acho que nem mereço”. Participaram da banca de entrevistadores o cartunista Ziraldo, os jornalistas Roberto D’Ávila, Arthur Xexéo, Mauro Ventura e João Máximo, os dois últimos, respectivamente, filho e primo do homenageado. A seleção dos entrevistadores foi um momento importante na organização do evento: “É com muita emoção que vejo tantos amigos na mesa. A escolha foi em comum acordo com o Mis. Convivi profissionalmente com todos eles, de alguma maneira. Mauro Ventura é meu filho e João Máximo é meu primo de 2º grau. Então, é uma coisa muito amigável, mas isso não me impede de ficar nervoso”. Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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ZUENIR DE CORPO INTEIRO CAMILLA MAIA/AGÊNCIA O GLOBO

As revelações bloco a bloco O primeiro bloco do depoimento de Zuenir Ventura foi dedicado aos dados biográficos, lembranças da infância e adolescência nos anos 1930 e 1940, os estudos no Seminário Colégio Salesiano Dom Helvécio, em Ponte Nova (MG), a relação com a religiosidade cristã, a paisagem mineira, a transferência da família para Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em 1941, o novo círculo de amizades na cidade, as primeiras experiências profissionais, a dedicação ao basquete, a descoberta do prazer da leitura. No segundo bloco, Zuenir falou sobre o início da carreira na imprensa, o ingresso na Faculdade de Letras Neolatinas na UFRJ (1954-1957), a diversidade cultural do Rio de Janeiro na década de 1950, o trabalho ao lado do filólogo Celso Cunha na cátedra da Língua Portuguesa da Faculdade de Jornalismo da UFRJ (1955), a experiência como redator da publicação A História em Notícia (1956), o emprego no jornal Tribuna da Imprensa a partir de 1957. No terceiro bloco, o tema central foi a diversidade política e cultural dos anos 1960, e a geração de 1968. Zuenir falou também sobre a temporada em Paris com a bolsa de estudos no Centre de Formation des Journalistes (1960 e 1961), o contato com o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, o casamento com a jornalista Mary Akiersztein, em 1962, o nascimento dos filhos Mauro (1963) e Elisa (1964), os trabalhos como Editor internacional do jornal Correio da Manhã (1962), e professor de Comunicação Verbal da Escola Superior de Desenho Industrial no Rio de Janeiro, a reflexão em torno da experiência didática (a partir de 1962), o panorama político pré1964, pós-golpe militar e as dificuldades criadas pela censura no cenário jornalístico, a atmosfera criadora dos anos de 1960 no Brasil: tropicalismo, as produções do Cinema Novo, o teatro de militância política, o movimento estudantil, as atividades na década de 1970, na Redação do Diário Carioca, como chefe de Reportagem da revista O Cruzeiro (ambos em 1965), a direção da revista Fatos & Fotos(1966), a concepção do jornal O Sol (1967) e da revista Visão(1967), o maio de 1968 na França, o cenário de agitação política, cultural, o desejo de mudança e as influências no âmbito mundial, a “geração 68” no Brasil e as personagens antológicas do movimento, o recrudescimento do regime após o AI-5, a prisão em dezembro de 1968, a produção para a Editora Abril da série Os anos 60 – A década 28

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que mudou tudo (1969), publicada em livro. Após um pequeno intervalo, a sessão foi retomada com detalhes sobre os anos de chumbo na imprensa, o posicionamento político e ideológico no período, a experiência na direção da Redação do jornal Correio da Manhã (1970), o retorno para a revista Visão (1971-1977), a cobertura da Revolução dos Cravos em Portugal (1974), o encontro com Glauber Rocha nesse episódio histórico, a colaboração como roteirista no documentário Que País é Esse?, de Leon Hirzsman, para o rádio e tv italiana, o trabalho na revista Veja (1977-1981). O sucesso na carreira literária foi abordado em seguida, no quinto bloco, juntamente com informações sobre o trabalho na revista IstoÉ (1981) e no Jornal do Brasil (19851999), o ofício jornalístico no período de abertura política brasileira, o lançamento do best-seller 1968 - O Ano Que Não Terminou, em 1988, as coberturas marcantes, como a série O Acre de Chico Mendes, com a qual recebeu o Prêmio Esso de Jornalismo e o Prêmio Vladimir Herzog, em 1989, a publicação dos livros Cidade Partida (1994, Prêmio Jabuti de Reportagem), Inveja – Mal Secreto e O Rio de J. Carlos (ambos em 1998), o trabalho no jornal O Globo e na revista Época, a publicação do livro Crônicas de um Fim de Século (1999). No sexto bloco, Zuenir falou sobre a publicação dos livros Cultura em Trânsito – 70/80, em parceria com Heloísa Buarque de Hollanda e Elio Gaspari (2000), Chico Mendes – Crime e Castigo (2003) e As Vozes do Golpe com Carlos Heitor Cony, Moacyr Scliar e Luis Fernando Verissimo (2004 ), a co-direção do documentário Um Dia Qualquer, a roteirização do documentário Paulinho da Viola: Meu Tempo é Hoje, em parceria com Isabel Jaguaribe (2002), a publicação dos livros Minhas Histórias dos Outros (2005) e 1968 – O Ano Que Não Terminou/O Que Fizemos de Nós (2008), o reconhecimento internacional da obra: o troféu da ONU (2008) e o importante papel jornalístico para os percursos da cidadania no Brasil, o título de “Jornalista do Ano” pela Associação de Correspondentes Estrangeiros, em 2010, a publicação do livro Luis Fernando Verissimo & Zuenir Ventura: conversa sobre o tempo com Arthur Dapieve, em 2010, a função social do jornalista no novo milênio. No sétimo e último bloco, Zuenir falou sobre os projetos para o futuro e aspectos da vida privada.

“A internet já me matou” Meu nome é Zuenir Carlos Ventura, mas muitos me chamam de Dona Zuenir. Pelo menos uma vez por semana tenho que responder ao telefone: “Eu queria falar com Dona Zuenir”. Eu digo: “é ela mesma que está falando”. Resolvo a questão assim. Nasci em Além Paraíba, no dia 1º de junho de 1931. Meus pais são Herina de Araújo e Antônio José Ventura, seu Zezé Ventura. Eu nasci em Além Paraíba, mas fui para Ponte Nova (MG). Meu pai trabalhava na Leopoldina nessa época, e ainda era em Friburgo, e minha mãe em Além Paraíba. Fui para Ponte Nova com dias, praticamente, e fiquei lá até os onze anos. Em Ponte Nova eu ia ser padre, na verdade fui interno no Colégio Salesiano Dom Helvécio. Minha mãe lavava as batinas dos padres para eu poder estudar de graça no internato. Depois, descobri que a vocação para a religião era dela e não minha. Ela queria que eu fosse padre, não eu. Percebi a falta de vocação em Friburgo, porque aos 11 anos nos mudamos para lá e eu caí na vida, literalmente. Minha mãe costumava dizer que eu me perdi. Tenho duas irmãs mais velhas do que eu, e um irmão mais novo. Dois nasceram em Friburgo e dois em Ponte Nova.

Primeiro emprego Meu pai era de Friburgo e quis voltar para a cidade dele. Minha mãe achou ótimo. Ele retomou o ofício de pintor de paredes. O meu primeiro ofício também foi o de pintor de paredes. Eu fiquei muito emocionado porque aqui na platéia está uma senhora de Friburgo, com a filha. O pai tem uma casa que foi pintada pelo meu pai, e provavelmente,

quem raspou as paredes fui eu, né? Comecei como aprendiz de pintor, eu raspava as paredes. Meu pai dizia o seguinte: “Olha, você quer estudar, então você vai ganhar dinheiro para comprar uniforme e tal”. Meu pai e minha mãe tinham uma formação cultural muito precária, semi-alfabetizados, os dois. Mas minha mãe tinha obsessão pelo estudo, pelo ensino. Achava que os filhos tinham que estudar, que era fundamental o estudo. Já meu pai, filho de portugueses, achava que estudar era coisa para rico, que tinha que trabalhar. Era uma combinação muito curiosa. Tenho muito orgulho de meu pai, um dos mais honrados cidadãos que conheci, meu modelo de vida ético. Foi ele quem me ensinou que pobreza rima com dignidade, honestidade. É o meu modelo de comportamento de vida.

Cordoeira Estive em Nova Friburgo há pouco tempo para visitar o Morro do Cordoeira. Meu pai queria construir uma casa e comprou um terreno lá em cima do morro que não valia nada, e ainda abriu uma rua que tem o nome da minha avó Elisa Ventura. Voltei agora há pouco tempo para tentar rever a minha casa na Rua José de Alencar. Quando cheguei no meio do morro, uns senhores disseram que eu não podia subir porque o local estava tomado pelo Comando Vermelho. E era um lugar onde a gente ia à noite, a qualquer hora, só tinha medo de assombração. Aí eu não subi. Fui também visitar o Beco da Oficina, que era a zona do baixo meretrício, onde todos nós iniciamos, inclusive o João Máximo (risos).


“Não é à toa que a poesia de Bandeira é uma poesia suja de vida.” Experiências profissionais Aos 14, 15 anos, trabalhei como contínuo no Banco em Barra do Piraí, no Bar do Alemão, e em um desses laboratórios de prótese. Pode parecer sacrifício, mas foi uma época muito boa. Fui muito feliz na infância e na adolescência, só não fui mais porque eu era muito feio (risos). Tinha essa coisa da proximidade, essa coisa da vizinhança, de todo mundo se conhecer, mas era meio claustrofóbico. Meu sonho era sair de lá e vir para o Rio de Janeiro. Não tinha televisão, não tinha nada disso, mas eu ficava vendo tudo pela revista O Cruzeiro, um fascínio. Quando eu pude mudar para o Rio foi um acontecimento.

Primeiras leituras

Vocação

Mudança para o Rio Cheguei ao Rio em 1953 e fui morar em Vila Isabel, em uma espécie de república, próximo de minha tia Zinha e de meu tio Pena, avós do João Máximo. Caí em Vila Isabel com toda a mística, todo o carisma do bairro. Depois, comecei a dar aula particular. Nesse tempo eu não tinha grana, não tinha muito dinheiro. Nosso primo mais velho nos ajudava muito, assim como minhas colegas, as moças da faculdade, que davam dinheiro para o sanduíche. A pobreza rimava com dignidade, nada que pudesse deprimir.

Começo na imprensa Quando cheguei na faculdade tinha Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha. Aquilo tudo, usando uma expressão de Manuel Bandeira, foi um alumbramento, a descoberta de um outro mundo. Manuel Bandeira freqüentava a Lapa, os grandes poemas dele são da Lapa. Não é à toa que a poesia de Bandeira é uma poesia suja de vida. Ele e Celso Cunha eram boêmios, amigos de Ismael Silva. Celso Cunha dava aula na

Faculdade de Jornalismo. Um dia ele perguntou se eu queria ser assistente dele. Eu ainda estava estudando Letras e tinha começado a trabalhar na Tribuna da Imprensa. O professor Hélcio Martins, que era muito amigo de Celso Cunha e dirigia o arquivo da Tribuna da Imprensa, me ofereceu um emprego de arquivista entre 18h e meia-noite, o único horário que eu poderia. Eu ficava recortando jornais e arquivando pastas. Um dia, eu estava passando pela Redação quando o dono do jornal, Carlos Lacerda, uma figura que metia medo, dava broncas colossais, mas foi um grande professor de Jornalismo, estava procurando alguém para fazer o obituário de Albert Camus, que era uma das minhas paixões. Ele é muito mais atual do que Sartre. Eu me ofereci para fazer o obituário. Escrevi e correu a lenda de que o contínuo do arquivo do jornal era um gênio (risos). Fui trabalhar na Redação com o salário dobrado, triplicado.

Curso em Paris Em 1960, me candidatei a uma bolsa do Governo francês para o Centro de Formação de Jornalistas em Paris. Passei um ano lá. A Tribuna complementava a bolsa, que na época era de U$ 50 para eu mandar matéria como correspondente. O Jango estava na China e na volta passou por Paris. Ninguém sabia o que ia acontecer aqui, se ia ter revolução, se ia ter golpe. Como o Jango mal falava o

ACERVO ABI

Minhas primeiras leituras foram Judas, O Obscuro, um livro fundamental na minha vida, e Ladeira da Memória, entre outros títulos. Dona Letícia Pinto, que era professora, fez a minha cabeça. Ela me deu o meu primeiro Proust, o meu primeiro Machado de Assis, livros que chegavam e a que não se tinha acesso em Friburgo. Depois eu tive um amigo, o André, que a gente chamava de André Maluco, porque ele lia muito, tocava violão, era apaixonado pelos filósofos como Schopenhauer. Foi muito importante para a minha formação literária, uma formação cheia de lacunas. Na faculdade, aí sim, eu passei a me organizar na leitura.

gava razoavelmente bem, era pivô. O apelido que ganhei de “Divino Mestre”, claro que era uma ironia, foi porque eu lecionava e também jogava na Seleção de Basquete de Friburgo. Cheguei a bater um recorde de cestas, que hoje deve ser insignificante.

Em Friburgo, eu tinha uma bolsa de estudos no Colégio Modelo. Depois, a direção propôs que eu lecionasse para o pessoal do curso primário para fazer o científico de graça à noite. Descobri, então, que a minha vocação era lecionar. Vim para o Rio porque a única escola que dava o diploma de magistério era a Faculdade de Filosofia no curso de Letras Neolatinas. Mas eu também quis ser dentista, motorista de caminhão. Fiz exame para a Escola Naval, mas não passei no exame de saúde por ser muito magro, não podia ser oficial da Marinha, hoje eu seria o Almirante Ventura (risos). O principal jornal de Friburgo, A Voz da Serra, foi criado pelo meu primo. Eu nunca pensei em trabalhar no jornal, nunca pensei em trabalhar como jornalista, nunca pensei em ser escritor. Eu queria ser professor, o que fui por mais de 40 anos. Adoro essa coisa do magistério. Eu gosto de ler, mas não gosto de escrever (risos).

Casamento Quando voltei para a Tribuna de Imprensa, vi na lanchonete do jornal uma moça de olhos verdes, maravilhosa, Mary Akiersztein. Começou uma história de amor que hoje tem 48 anos. Mary me apresentou a muita gente, ela fazia crítica de arte. Vivemos a efervescência intelectual e criativa na casa da Urca, onde moramos durante sete anos. Em 1968, nós fomos presos, eu de manhã, na Urca, meia hora depois a Mary, que tinha ido levar roupa para mim e acabou presa também. Aí veio meu irmão, que também foi preso. O delegado era Antônio da Costa Sena. Expliquei que minha filha estava com coqueluche, tendo acessos de tosse. Ele disse que o problema era meu. Dias depois, fomos levados para o Dops, onde, por sorte, encontramos um inspetor que era amigo de infância do Ziraldo. Foi um momento que eu entrei realmente em pânico, mas essa figura me tranqüilizou, eu confiei nele. Pedi para ele cuidar da Mary, que ficou um mês lá, e eu três meses. Não fui torturado. Fiquei um tempo com o Ziraldo, mas a maior parte dele com o Hélio Pelegrino.

Prisão Eu e o Hélio jogávamos basquete na prisão durante os 15 minutos de banho de sol. Falamos para o Coronel Quaresma que o Ziraldo também jogava basquete. Conseguimos, assim, a transferência do Ziraldo. Numa confusão do Hélio com o time de basquete dos militares, acabamos transferidos e isolados por desacato à autoridade. O Nélson Rodrigues era quase um irmão do Hélio. Ele apoiava o regime militar e era amigo dos generais, tanto que conseguiu tirar o Hélio, que na hora H avisou que só sairia se o Zuenir saísse também. Saí com o aval de Nélson Rodrigues.

Anos de chumbo na imprensa

Basquete No futebol eu não era bom, mas era bom no basquete. Quando eu vim para o Rio, eu tinha um convite para jogar no Fluminense. O João Máximo e o Hélio, que é o irmão mais velho dele, fizeram a minha cabeça para o Fluminense. Eu jo-

francês, acabei sendo intérprete dele. Participei em Viena do “encontro do século”, que reuniu Kruschev e Kennedy.

Zuenir trocou o interior pelo Rio de Janeiro pela ânsia de querer saber mais. Essa mudança, conta agora, foi um acontecimento. Ele queria ser professor, e foi durante 40 anos.

Foi uma loucura aquela paranóia. Eles achavam que eu era o cara que centralizava o Partido Comunista, que o organizava na área de jornalismo. Chegaram a dizer que ninguém era admitido ou demitido de jornal sem a minha aquiescência. Grampearam nosso telefone durante um ano. Nesses anos o mercado jornalístico tinha mais de 20 jornais. Eu nunca tive medo de deixar um jornal e ficar desempregado. Quando ficava meio chateado, ia pra outro. Entre 1964 e 1968, trabalhei no Diário Carioca, O Cruzeiro, Fatos & Fotos, O Sol, revista Visão. Trabalhei na Visão na época braba, uma revista de economia que não era muito visada. Ziraldo era o diretor de arte e diagramador, eu era o chefe de ReJornal da ABI 366 Maio de 2011

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RENAN CASTRO

ZUENIR DE CORPO INTEIRO

dação, e o Washington Novaes era o diretor de Redação. Embaixo da Redação funcionava o restaurante estudantil Calabouço. No dia da morte do estudante Edson Luís nós descemos e seguimos o cortejo para o velório. Em 1968 aconteceu essa coisa misteriosa que ninguém consegue explicar até hoje. Um desses grandes mistérios. Tivemos um movimento planetário sem a ajuda da internet. Na Visão saiu a entrevista do Glauber dizendo que o General Golbery era o gênio da raça, que o Partido Comunista tinha fracassado, e a Igreja Católica, e que só tinha um jeito que era a saída pelos militares. Tentei entrar em contato com o Glauber, mas ele não estava mais em Roma. Parecia, como ele foi acusado depois, que estava aderindo aos militares. Ele estava negociando com os militares a volta dele. Era uma forma de obter um salvo-conduto. Ele dizia o seguinte: “Eu não tenho outra saída”. Soubemos depois que o Golbery levou dois dias sem entender a tal entrevista do Glauber, se era contra ou a favor. No ano seguinte, em 1975, o Vlado foi assassinado dentro do quartel do Doi-Codi em São Paulo. Aconteceu uma coisa muito estranha, quando eu fui chamado a São Paulo para assumir o Jornalismo da TV Cultura. Liguei para o Vlado e disse que tinha uma novidade. Ele disse que também tinha uma novidade para mim. Insisti para que ele contasse primeiro e ele falou que tinha sido convidado para a assumir o Jornalismo na TV Cultura de São Paulo. Decidi não comentar o que tinha acontecido comigo. O Juca de Oliveira falou por muito tempo que eu teria morrido se estivesse no lugar do Vlado, que era o chefe de Jornalismo na TV Cultura quando foi preso e assassinado. A morte dele tem muita relação com a abertura política. Logo depois, foi assassinado o operário Manuel Fiel Filho. O Geisel deu soco na mesa. A morte do Vlado mobilizou muito. Todos nós sabíamos que ele tinha sido morto. Nesse momento começa o primeiro passo para a abertura, porque foi uma coisa tão revoltante inclusive para o próprio Governo, que queria abrir.

Internet Está acontecendo uma revolução tecnológica. Não sabemos o que vai ser da internet, qual é o papel da internet. Parece que o tempo acelerou com a informação em tempo real. Não acredito que aconteça o antagonismo das mídias, Acho que, na verdade, vai haver uma convergência. Essa coisa meio apocalíptica de que um meio vai acabar com outro, que o jornalismo escrito vai acabar, que os livros vão acabar, não vai acontecer. Sempre que surgiu uma tecnologia nova, houve o aperfeiçoamento da anterior. O cinema não acabou com o teatro, enfim, nem a televisão acabou com o jornalismo e com o livro. Estamos vivenciando uma certa perplexidade, assusta porque é essa avassaladora presença desse negócio do Twitter, por exemplo. E há pessoas que acham que se 30

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Conhecendo o mar

O filho Mauro e a mulher, Mary, ambos jornalistas, e Arthur Xexéo e Ziraldo cobriram Zuenir de carinho desde que ele chegou até o fim do seu depoimento de quatro horas: ele tem o que contar.

Eu sabia que água do mar era salgada, mas eu morava em Vila Isabel e não tinha carro. O Darci, nosso primo que trabalhava na Alfândega, tinha algum recurso, tinha carro. De vez em quando ele pegava a gente e levava para um passeio na Zona Sul à noite. Minha primeira visão do mar foi à noite.

Briga no Maracanã Eu e o João Máximo, torcedor do Fluminense, estávamos no Estádio do Maracanã. Logo atrás da gente tinha um português vascaíno. Não sei bem o que aconteceu, mas o português agrediu o João. Eu me levantei e derrubei o cara com um soco. Ele veio atrás de mim e estava sangrando. Corri para o alambrado e pensei: estou perdido! O sujeito era um monstro, um armário, e aí seguraram. Até hoje eu não sei como consegui dar aquele soco. Um fraco abusado. Quando eu conto esta história as pessoas não acreditam. pode fazer tudo com 140 toques. Pode escrever Os Lusíadas em 140 toques. Isso é ótimo para analfabeto. No nosso tempo tinha o telegrama, mas não dá conta de tudo. A leitura é uma necessidade biológica, você pode mudar até o meio, já foi na pedra, na árvore, em vários suportes. Daqui a pouco teremos um novo tipo de folha. Aliás, já existe. Eu tenho a maior pinimba com a internet, que até já me matou. Hoje eu estava mexendo nas minhas coisas e encontrei a tal notícia: “Morre o escritor Zuenir Ventura”. Hoje a gente acha graça, mas o Mauro ficou três horas procurando o meu corpo nos hospitais do Rio de Janeiro. Aconteceu o seguinte: um menino ligou para um telefone meu muito antigo, e a mulher que era a nova dona do número já estava de saco cheio e resolveu ir à forra. Disse que o Zuenir não estava porque tinha morrido atropelado ao meio-dia, e que o corpo estava no Hospital da Lagoa, deu todos os detalhes da morte. Mary ficou inconsolável. Na verdade, eu estava participando da reinauguração do Instituto Moreira Sales, onde também estavam o Presidente da República, o Governador, e o Prefeito. Ninguém entrava nessa sala, ninguém conseguia. O Mauro viu a notícia e começou a correr a cidade procurando. Não tinha celular na época, é bom dizer. Todos os repórteres estavam do lado de fora do evento querendo entrar e começaram a mandar me chamar. Achei que queriam alguma informação sobre a cerimônia e deixei pra lá. Como ninguém conseguia confirmar se eu estava ou não no evento, a jornalista do site botou a notícia da morte no ar, e permaneceu durante três horas. Teve gente que levou três dias para tirar. Quando eu cheguei em casa às três horas da manhã, a notícia continuava lá e terminava assim: “Sua última coluna deve sair amanhã no O Globo”. Aí me bateu aquela

coisa, se estava escrito ali, eu podia ter esperado mais um tempo para ver o que falariam de mim. Para reclamar, claro! Achei a notícia muito pequena (risos).

Amizade Eu tenho uma teoria de que a amizade é mais duradoura do que o amor. Na amizade não há cláusula de exclusividade, não tem libido, não tem ciúme, a não ser o do Ziraldo. Ele me liga todo dia reclamando porque ele me liga e eu não ligo para ele. Eu sou um amigo relapso, mas adoro os meus amigos. O Ziraldo realmente morre de ciúmes de mim e vive fazendo intriga. Um dia ele me ligou de São Paulo para dizer que todo mundo estava dizendo que eu tinha um caso com o Xexéo, e que aqui no Rio todo mundo estava dizendo que ele tinha um caso comigo. Rubem Vagner diz que ciúme de homem é o pior ciúme (risos).

Relação com a mãe Minha mãe, Herina de Araújo, foi realmente uma pessoa fundamental na minha vida por todo sacrifício. A memória que tenho dela é de uma pessoa muito sofrida, uma espécie de mater dolorosa muito religiosa, supersticiosa. Ela achava que aqui era realmente um vale de lágrimas, que estava aqui para sofrer. Sabe aquela coisa do catolicismo radical? Minha mãe era isso e projetava muita culpa na gente. Em mim, por exemplo, essa coisa de eu não ter ido para o Seminário, de não ser padre, que era o sonho da vida dela, me custou muito, muito mesmo porque foi uma espécie de traição. O projeto dela, pelo qual ela tinha se sacrificado. Ela morreu com mais de 100 anos e meu pai aos 97 anos. Eu tenho o biotipo do meu pai, mas não tenho a pretensão de chegar aos 97 anos.

Alceu Amoroso Lima Alceu Amoroso Lima foi outra figura fantástica que conheci nos tempos da faculdade. Certa vez, eu tive que fazer um trabalho por escrito sobre o O Tempo e Machado de Assis. Na data da entrega do texto eu não estava em sala. Ele me deu nota 10, com louvor, e disse: “Esse rapaz vai ser escritor.” Achei a maior graça, imagina, eu ser escritor.

“A História em Notícia” Dirigida por Amaral Netto, História em Notícia era uma publicação que tratava os acontecimentos históricos em linguagem jornalística. Fui redator desta publicação antes de trabalhar como jornalista na Tribuna. Era muito bem feita, contava os fatos históricos como se estivessem acontecendo hoje. Sobre o Descobrimento do Brasil foram três volumes.

Joaquim Pedro de Andrade Joaquim Pedro de Andrade, cineasta, Diretor de Macunaíma, figura adorável, foi muito importante para mim. Quando fui estudar na França, moramos na Casa Brasil, um no quarto 309 e o outro no 306. Eu estudava Jornalismo e ele, Cinema. Joaquim, ao contrário de mim, teve formação aristocrática, filho do Rodrigo Melo Franco. Na época, ele já tinha feito documentários sobre o Manuel Bandeira e sobre Gilberto Freyre. Ele sabia de tudo e era uma pessoa muito generosa, inclusive politicamente, o que foi muito importante para mim, já que eu era muito reacionário. Joaquim foi fundamental. Formamos uma patota com Antônio Pedro, que era ator, Cláudio Cavalcânti, arquiteto, e Jorge


“Até hoje eu não sei como consegui dar aquele soco. Um fraco abusado.” Lafayete, também arquiteto. Vivíamos juntos. Viajávamos e saíamos juntos.

Calcinha da Jacqueline Kennedy Eu tinha uma câmera Rolleiflex e estava em Paris em meio a um acontecimento que eu não tinha a menor chance de cobrir. Todo mundo estava credenciado, e eu não. Eu estava um pouco afastado quando uma limusine preta estacionou. Era Jacqueline Kennedy. Eu peguei a câmera e fotografei Jacqueline saindo do carro. Como a limusine era muito baixa, acabei fotografando a calcinha dela, que era branca (risos). A foto acabou se perdendo. Mandei para a Tribuna, mas eles disseram que não chegou. De qualquer modo, não seria publicada. Naquela época representaria um despudor com a primeira-dama. Jacqueline foi um grande sucesso. O Presidente Kennedy estava com o moral baixo após o episódio da invasão da Baía dos Porcos em Cuba. Jacqueline tinha cultura francesa e era uma gata, linda, maravilhosa, eu vi de pertinho, assim (risos).

Reforma do Diário Carioca Em 1964, saí brigado da Tribuna, que já tinha outro dono, uma história sobre a qual eu não gosto de falar muito. Fui para o Correio da Manhã, Diário Carioca, e O Cruzeiro, mas já em outra fase. A reforma do Diário Carioca eu achei legal porque quem conduzia era o Amílcar de Castro, que foi um grande escultor e designer. Ele fez a reforma do Jornal do Brasil, a famosa reforma de 1956, e eu o levei para fazer a reforma do Diário Carioca. Fizemos juntos a reforma. Foi marcante. O Sol durou pouco. Foi uma invenção da Ana Arruda, Reynaldo Jardim, Ziraldo também participou. Era um jornal experimental, um jornal diferente. Estávamos em 1967, época do Tropicalismo, da experimentação, do vanguardismo. Dedé, a mulher de Caetano Veloso, foi estagiária do Sol. O trecho da música Alegria, Alegria, de Caetano, remete ao jornal: “O Sol nas bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia...”.

Um dia com Darcy Ribeiro doente, falando, falando Depois disso, saí para comprar um remédio urgente para o Darcy, que permaneceu no quarto. Quando saí da farmácia, eu não lembrava em que hotel nós estávamos hospedados. Às vezes, fico meio tonto e esqueço até o caminho de casa (risos). Saí perguntando pela rua, até lembrei que estávamos em um hotel de duas estrelas. Resolvi pedir a relação dos hotéis dessa categoria. Mas isso demorou muito. Acabei reconhecendo o nosso hotel. A Mary estava lembrando que eu fiquei com ele vários dias dormindo no hotel, e ele falando, falando, falando, falando. Tempos depois, Darcy participou do programa Roda Viva e perguntaram para ele quem era o maior intelectual brasileiro. “É o Zuenir Ventura, porque ele me salvou!” Darcy também costumava dizer o seguinte: “Os militares deixaram eu voltar ao Brasil por causa do câncer, achando que eu ia morrer, mas eles não sabem de nada, câncer você raspa, você passa a mão, assim, e raspa. Eu passo a mão na bunda do câncer”. Darcy ainda ficou muitos anos vivo. Chegou a fugir da UTI vinte anos depois. REPRODUÇÃO

Darcy Ribeiro estava participando de um congresso na Alemanha e se despedindo da vida porque tinha descoberto que sofria de câncer. Cada escritor tinha uma intérprete, e a do Darcy era muito bonitinha, a Bárbara. Perguntei para ela se o Darcy já a tinha cantado. E ela respondeu: “Ele não faz outra coisa”. Na noite de despedida do evento, em um jantar enorme, estavam a Bárbara e o Darcy, e pude ouvir a cantada dele: “Você vai para o Brasil comigo para ser uma moça famosa porque será a viúva do Darcy Ribeiro!”. Quando voltamos a Paris, Darcy começou a passar mal. Chamamos o S.O.S, um serviço que tem na França, no qual o médico opera ali mesmo. Apesar de estar com a pressão arterial estourando, Darcy continuava falando, falando, falando, falando. “Manda ele parar de falar”, disse o médico. “Os militares tentaram e não conseguiram, doutor”, respondi. Enquanto isso, Darcy gritava: “Porra, traduz, diz o que este médico está dizendo”! “Ele disse para você parar de falar”. “Manda ele ir à merda”.

Esdi Em 1962, tive a glória de participar da fundação da Escola Superior de Desenho Industrial-Esdi, a primeira escola de design da América Latina. Tinha a parte de Desenho Industrial e a parte de Comunicação Visual, na qual eu dava Comunicação Verbal e fazia a articulação. Foi uma experiência incrível. Lembro que na primeira turma os alunos eram quase da minha idade, pessoas que já tinham feito Arquitetura. Então, era uma troca, uma escola experimental muito aberta. Flávio Aquino era o diretor. Carmem Portinho foi diretora depois. Carmem foi maravilhosa. Quando eu estive preso, ela peitou os militares, era muito desaforada, de grande coragem intelectual. Eu não podia receber porque estava preso. Lá havia um estacionamento que as pessoas chamavam de Estacionamento Superior do Desenho Industrial, que faturava bastante. Carmem pagava o meu salário com este dinheiro da escola, o que na época era uma coisa arriscada. E dizem que ela me deu cobertura assim, porque eu voltei para lá e ela peitou a UFRJ. A Eco não queria. O diretor era um querido amigo meu, mas ele ficou com medo, era realmente ameaçado. Carmem bancou tudo isso e ainda me pagava com o estacionamento.

Magistério e jornalismo Eu sempre misturo magistério e jornalismo. Uma pessoa que fez o meu perfil disse que na Redação eu dava aula, e que na sala de aula eu fazia jornalismo. Estudei em uma época em que as pessoas não eram jornalistas. Saía da Redação, que não tinha hora para fechar, e ia dar aula. Sempre misturei um pouco assim. Eu acho que essa coisa de dar aula, de querer o contato físico, quando tudo é mediado pela tecnologia, quando você fala pelo telefone, pela internet. Esse corpo-a-corpo está cada vez mais raro.

Inveja, mal secreto Tem um lance neste livro, Ziraldo me contou, que é o seguinte: foi num aniversário do Ziraldo, e eu acabara de saber que estava com câncer na bexiga. Fomos para a casa dele, e eu deprimido, arrasado. Lembro que tinha aquela correria de criança e tal, e me bateu aquela depressão forte. Senti que estava irritado com aquelas crianças correndo, fazendo barulho. Me dei conta de que eu estava morrendo de inveja dele, inveja dos netos, e pensando que ia morrer sem netos. Aí foi uma das descobertas. Não é à toa que o signo da inveja é o da serpente, que morde quem está próximo. Você não inveja o seu inimigo, você inveja o amigo, você inveja aquele que está ao seu lado.

Avô Atualmente estou lendo três livros ao mesmo tempo. Fico angustiado por-

que quero acabar. Minha vida, meu cotidiano é muito simples. Eu caminho todos os dias no calçadão, acordo muito cedo, e durmo depois do almoço. Durante muito tempo eu tinha vergonha disso e pedia à Vera, minha secretária, para dizer que eu não estava. Até o dia em que li uma pesquisa realizada na Inglaterra que demonstrou que o sono depois do almoço torna as pessoas mais inteligentes e preserva a memória. ‘Quando ligarem para mim, pode dizer que eu estou dormindo, que estou ficando muito mais inteligente’, disse à Vera. Caminho, leio os jornais, entro na internet, leio um livro, o que estiver em cima da mesa, trabalho em casa. Alice, minha neta, é a cara do avô. Ainda não está falando, mas parece que a primeira coisa que ela vai dizer é vô, com acento fechado para não confundir com vó. É uma paixão. Escrevi uma crônica sobre a experiência de ser avô, que fez muito sucesso, dizendo que eu vivia gozando o Ziraldo, dizendo que todo mundo que é avô ficava babando, que era uma coisa ridícula, que ser avô é ser pai com açúcar. Todos aqueles clichês. E eu me peguei fazendo exatamente a mesma coisa. Vivia falando mal deles.

Medo da morte Vou responder como Oscar Niemeyer: só vou pensar nisso quando eu tiver mais idade. Mas isso está mudando sim. Hoje, realmente, eu não me sinto com 80 anos. Mary estava revelando a minha indiscrição, lembrando que eu dancei no sábado a noite inteira, e eu nem gosto muito, imagina se eu gostasse, no casamento da Mariana Verissimo, filha do Luis Fernando.

Projetos Em primeiro lugar, vou querer mais um neto. O Mauro prometeu que não vai me negar. Sem nenhuma demagogia, a vida me deu mais do que eu merecia. Claro que no trabalho se quer produzir mais, faz parte dessa angústia que é bom ter, se não eu morreria. Acho ótimo estar trabalhando e olha que eu nem gosto de escrever. Quero esta mesma vida, quero a mesma mulher, quero meus dois filhos e mais netos. Uma família incrível. Quero ser um honrado cidadão brasileiro. Eu não sou modelo de nada, nem espelho de nada. Tenho qualidades e defeitos, e uma coisa que hoje está fora de moda chamada otimismo. Espero que quando eu morrer o otimismo esteja na moda. Eu realmente acredito no País, na cidade. Estamos atravessando problemas que são superáveis. O Brasil tem potencial, o povo brasileiro tem energia vital, alegria, vontade de viver, de celebrar. O Rio de Janeiro não nasceu pra ser uma ‘cidade partida’. A vocação do Rio é o encontro e a celebração. Um beijo para todo mundo! Colaborou Renan Castro, estudante de Comunicação e estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.

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BRUZUNDANGAS

Lima, cronista do Brasil moderno Quase um século e meio após seu nascimento, Lima Barreto, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaías Caminha e de mais de 500 textos publicados na imprensa de sua época, continua a ser, com forte poder de atualidade, um vigoroso e irreverente crítico das mazelas do País. P OR M ARCOS S TEFANO HUGO PIRES

– A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos velozes cruzadores e formidáveis couraçados, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova… E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação… Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e bestas… Só se é geômetra com o seu placet, só se é calista com a sua confirmação e se o Sol nasce é porque eles afirmam tal coisa… E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção das mediocridades, de modo que… – Você exagera, objetou Leiva. O jornal já prestou serviços. – Decerto… não nego… mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também… É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe força e a ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos destinadas a lhes dar o mínimo sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores… Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes idéias, fundar um que os combata… (Trecho do livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha)

E

le viveu em um tempo no qual o romantismo estava em baixa e o País ansiava pelo moderno. Da Monarquia à República, do campo às florescentes metrópoles, do artesanal à inovação tecnológica trazida pelo capitalismo, tudo estava mudando. Inclusive, no mundo das letras. Tanto que os índios, os escravos e os homens simples do interior já eram personagens principais da nossa literatura. Mas a realidade ainda estava distante das páginas dos livros e mesmo da grande imprensa. Foi para corrigir essa injustiça que Afonso Henriques de Lima Barreto dedicou a sua vida. E foi tachado por muitos em sua época como “maldito”. Um castigo para quem

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ousou, em linguagem coloquial, criticar os costumes de seu tempo, denunciar os desmandos dos poderosos, a discriminação contra os negros e mostrar abertamente a situação dos mais pobres, aquilo que acontecia nos subúrbios da grande cidade. Exatos 130 anos após seu nascimento, percebe-se como o quixotesco Major Quaresma e a ingênua Clara dos Anjos, entre tantos outros de seus personagens, talvez fossem o melhor retrato de uma nação que não queria se enxergar. Lima Barreto foi o autor não somente de Triste Fim de Policarpo Quaresma e Recordações do Escrivão Isaías Caminha, apesar de estas serem suas obras-primas. Ao produzir outros romances, novelas, contos, diários, crônicas, reporta-

gens e artigos, ele se torna um dos mais importantes escritores brasileiros, com destacada passagem por jornais e revistas, veículos em que publicou mais de 500 textos. “Quando o subúrbio adentra sua obra, não entra como algo pitoresco ou folclórico, mas como lugar em que pessoas carregam seus dramas, seus questionamentos, suas angústias e suas aflições. A dimensão humana do pobre e do discriminado surge densa, complexa e contrasta com o carreirismo, a corrupção, a hipocrisia no poder público e nos extratos mais altos da sociedade. Quando ele fala sobre discriminação racial, corrupção na política, militares e a violência contra civis, violência contra a mulher, violên-

cia no futebol, ostentação social, parcialidade da imprensa, feminismo, falência do casamento, depressão, loucura e as transformações arquitetônicas de sua cidade, o Rio de Janeiro, entre outros, percebe-se como sua obra continua atual”, destaca o pesquisador Luiz Silva, o Cuti, autor do recém-lançado Lima Barreto (Summus), mais novo volume da Coleção Retratos do Brasil Negro.

De engenheiro a escritor A obra não é propriamente uma biografia do escritor, mas uma análise de sua obra. “A importância que teve devese à obra e esta obra é inseparável de sua vida, já que é fortemente influenciada por ela”, explica Cuti.


Ganha-pão Essa foi uma das contradições de Lima Barreto. Para ele, a imprensa não passava de um ganha-pão. Mas, como também o era para tantos escritores do período, um trabalho necessário para ganhar notoriedade, respeito e, como as fronteiras com a literatura ainda estavam bastante difusas, publicar seus textos. Tanto que, em 1905, consegue emplacar, ainda que sem assinar, uma série de reportagens no grande jornal da época, o Cor-

reio da Manhã. As matérias tratavam dos primeiros movimentos de demolição no Morro do Castelo, no Centro do Rio, que diziam “enfeava a cidade” e tirava dela seu “ar tropical”. Com o título O subterrâneo do Morro do Castelo, as reportagens foram adaptadas e viraram romance, publicado em 1997. “O comportamento de Lima Barreto era assim, sempre ambivalente”, conta a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Ele condenava o determinismo racial, mas temia ficar louco como o pai. Era uma voz do subúrbio, mas tinha estima pelas instituições da capital. Condenava a literatura acadêmica, que considerava por demais oficial, mas tentou entrar na ABL por três vezes. Era favorável às afirmações culturais negras, mas condenava o samba, o Carnaval. Enfim, ele era muito Policarpo Quaresma, um tipo de Dom Quixote tropical”, afirma Lilia, que está preparando uma nova biografia sobre o autor, ainda sem data para ser lançada. Até agora, a biografia de Lima Barreto considerada definitiva é a do paulista Francisco de Assis Barbosa, lançada em 1952 e vendida por editoras como José Olympio e Itatiaia. A Vida de Lima Barreto é uma obra extensa, fruto de cinco anos de pesquisas, mergulho em jornais, revistas e documentos de época, e responsável por grande parte da mudança de mentalidade de críticos em relação ao escritor. Mas com um pecado imperdoável: não entra como deveria na questão racial. É esse espaço que Cuti aproveitou e no qual Schwarcz quer entrar também, já que Barreto sempre se definiu como pobre, mulato, morador do subúrbio e fez de sua literatura uma expressão dessa condição. Revolução na imprensa As transformações dos últimos anos do século XIX e dos primeiros do XX também alcançam a imprensa, que se torna efetivamente empresarial, passando a ser organizada nos moldes capitalistas e descobrindo o valor de informar e não apenas opinar. Na sociedade carioca, os jornais transformam-se em verdadeiras fábricas de notícias, surge efetivamente a grande imprensa e quem se moderniza ganha espaço. Utilizando os avanços tecnológicos e métodos mais modernos de impressão, que permitiam melhor o uso de fotos, surgem no mercado uma variedade de revistas ilustradas, com destaque para Fon-Fon, Careta e Kosmos. Lima Barreto decide se aventurar também nessa área. Enquanto inicia o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de

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Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, exatamente sete anos antes da abolição oficial da escravidão, no Rio. Era filho da professora pública Amália e do tipógrafo João Henriques, ambos mestiços e filhos de escravos. Logo cedo, no entanto, quando o menino estava com apenas sete anos, a mãe morre, deixando o marido e quatro filhos pequenos. Apesar das enormes dificuldades e muitas mudanças de casa, graças ao apoio do padrinho, o Visconde de Ouro Preto, então Ministro da Fazenda, consegue continuar seus estudos. Com o pai, mestre de oficinas de composição da Imprensa Nacional e paginador da Tribuna Liberal, tem o primeiro contato com a página impressa. Mas num primeiro momento os números falam mais alto que as letras e Barreto se matricula na Escola Politécnica, em 1897. Quanto a se formar é outra história. Reprovado várias vezes, no último ano precisou abandonar os estudos devido à doença mental do pai. Ainda assim, a universidade teria efeito decisivo em sua vida. O Brasil começa a viver os tempos da República, surgem os primeiros movimentos de trabalhadores, capitaneados pelo anarquismo, e a idéia de liberdade envolve os estudantes. Por um lado, o jovem Lima Barreto envolve-se com o Apostolado Positivista, crença em voga na época, por outro, vê nas letras a melhor maneira de agir. Passa a ser um assíduo freqüentador da Biblioteca Nacional e a colaborar com o jornal estudantil A Lanterna. Mais à frente, junto com Bastos Tigre, publica o periódico A Quinzena, que teve pouca duração. Dessa forma, o País perde um engenheiro, mas ganha um talentoso escritor e jornalista. Em 1903, sem melhores opções e diante da aposentadoria compulsória do pai, Lima Barreto se vê obrigado a buscar saídas. Presta concurso para o Ministério da Guerra, é aprovado e começa a trabalhar como amanuense. Ainda assim, mantinha a determinação de ser um escritor. Aliás, mesmo trabalhando como copiador de documentos, era dessa forma que se apresentava. E aproveitava para fazer anotações no verso da documentação. Talvez pensando na primeira versão do livro Clara dos Anjos, trabalho em que começou a se debruçar em 1904. Já seu tempo fora do escritório era empregado com colaborações para periódicos como O Diabo e Tagarela ou como secretário na Revista da Época.

“A dimensão humana do pobre e do discriminado surge densa, complexa e contrasta com o carreirismo, a corrupção, a hipocrisia no poder público e nos extratos mais altos da sociedade.”

Sá, entra de licença para tratar a saúde e torna-se redator da Fon-Fon. Em 1907, resolve ele mesmo publicar sua revista, que recebe o nome de Floreal. Espaço de crítica voraz ao beletrismo e à estética gráfica apurada de algumas publicações de variedades, a revista não teve vida longa por conta da falta de recursos. Mas nos quatro números que teve apresentou os primeiros capítulos de um romance que prometia ser polêmico: Recordações do Escrivão Isaías Caminha, obra que narra a história de um jovem do interior que parte rumo à capital para estudar. Na cidade grande, no entanto, enfrenta muitos obstáculos, sofre preconceito racial e dificuldades financeiras. Mas consegue um emprego no jornal O Globo – não confunda com o veículo da família Marinho, que só anos mais tarde viria a existir – e conhece o cotidiano das Redações, relatando suas impressões sobre a imprensa. Como se pode ver pelo começo do texto que abre esta reportagem, o livro é uma bem elaborada sátira ao jornalismo brasileiro da época. Até aí, tudo bem. O problema é que é bastante autobiográfico e grande parte das personagens podia ser claramente identificado na Redação do Correio da Manhã. Todos com mais defeitos que qualidades. Pior: com caráter bastante duvidoso. É o caso, por exemplo, do personagem Raul Gusmão, que representa o famoso cronista Paulo Barreto, o

João do Rio, com quem Lima Barreto guardava mais semelhanças do que apenas o nome. Além de serem contemporâneos, nascidos no mesmo ano, eram mulatos, candidataram-se à ABL e faleceram com apenas um ano de diferença. Mas João do Rio foi eleito para a Academia, conseguiu superar os preconceitos, pois, além de negro era homossexual, e obteve enorme popularidade. Já Isaías Caminha prefere acentuar sua enorme arrogância: “Tentei ouvi-lo respeitosamente, mas ele tratou a mim e ao padeiro com tal desdém, com tal superioridade, que fiquei entibiado, esmagado, diante do retrato que dele fiz intimamente, de um grande literato, universal e aclamado, espécie de Balzac ou Dickens, apesar de seus guinchos de Pithecanthropus”. Classe medíocre Como em outras crônicas que escreveria posteriormente, Lima Barreto aponta os jornalistas, em geral, como uma classe medíocre, de pouca inteligência e cheia de fórmulas e receitas prontas. Mas ninguém se doeu tanto como o personagem Ricardo Loberant, fundador e diretor de O Globo. Quer dizer, Edmundo Bittencourt, chefão do Correio, a quem o protagonista acusa de empenhar-se em atividades sociais, em vez de dedicar-se aos estudos, para tentar suprir sua “fraca capacidade intelectual” e sua “mediocridade”. Recordações do Escrivão Isaías Caminha saiu com brochura em 1909, em Lisboa. E o nome de Lima Barreto passou a ser censurado, totalmente proibido no Correio da Manhã.É verdade que boa parte da grande imprensa se fechou junto para Lima Barreto. Mas ele continuou escrevendo. Tanto que, em 1911, consegue publicar, no formato de folhetim, Triste Fim de Policarpo Quaresma no Jornal do Commercio. Ele continuou colaborando para uma série de veículos: Gazeta da Tarde, Correio da Noite, a revista Careta. Enquanto isso, aproveita para publicar suas obras na imprensa, em fascículos, ou como livros, custeando essas impressões do próprio bolso. Em pouco tempo, aparecem Aventuras do Dr. Bogóloff, Numa e a Ninfa e Os Bruzundangas. Lima Barreto lutava, a ponto de afirmar num de seus diários: “Ou a literatura me mata ou me salva”. Mas a saúde não acompanhava tal força de vontade. Em 1914, após várias licenças médicas, ele é internado pela primeira vez no Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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LIMA, CRONISTA DO BRASIL MODERNO

Jornal da ABI Número 366 Edição Extra - Maio de 2011

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas.

Uma crônica de Lima Barreto

A mulher do Anacleto

Um dos grandes problemas que Lima Barreto enfrentou foi o álcool. Nem os retiros que fez para tratar da saúde livraram o escritor do vício que o levou à morte.

originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! Livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleiamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis...”. Tempos depois, ele confirmaria tal pensamento, num eco que continua a ser ouvido pelos tempos por meio de sua obra: “Aí estava a República que não foi”.

Este caso se passou com um antigo colega meu de repartição. Ele, em começo, era um excelente amanuense, pontual, com magnífica letra e todos os seus atributos do ofício faziam-no muito estimado dos chefes. Casou-se bastante moço e tudo fazia crer que o seu casamento fosse dos mais felizes. Entretanto, assim não foi. No fim de dous ou três anos de matrimônio, Anacleto começou a desandar furiosamente. Além de se entregar à bebida, deu-se também ao jogo. A mulher muito naturalmente começou a censurá-lo. A princípio, ele ouvia as observações da cara-metade com resignação; mas, em breve, enfureceu-se com elas e deu em maltratar fisicamente a pobre rapariga. Ela estava no seu papel, ele, porém, é que não estava no dele. Motivos secretos e muito íntimos talvez explicassem a sua transformação; a mulher, porém, é que não queria entrar em indagações psicológicas e reclamava. As respostas a estas acabaram por pancadaria grossa. Suportou-a durante algum tempo. Um dia, porém, não esteve mais pelos autos e abandonou o lar precário. Foi para a casa de um parente e de uma amiga, mas, não suportando a posição inferior de agregada, deixou-se cair na mais relaxada vagabundagem de mulher que se pode imaginar. Era uma verdadeira “catraia” que perambulava suja e rota pelas praças mais reles deste Rio de Janeiro.

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer. CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

Diretor Responsável: Maurício Azêdo

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda

Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

Representação de São Paulo Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

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Quando se falava a Anacleto sobre a sorte da mulher, ele se enfurecia doidamente: – Deixe essa vagabunda morrer por aí! Qual minha mulher, qual nada! E dizia cousas piores e injuriosas que não se podem pôr aqui. Veio a mulher a morrer, na praça pública; e eu que suspeitei, pelas notícias dos jornais, fosse ela, apressei-me em recomendar a Anacleto que fosse reconhecer o cadáver. Ele gritou comigo: – Seja ou não seja! Que morra ou viva, para mim vale pouco! Não insisti, mas tudo me dizia que era a mulher do Anacleto que estava como um cadáver desconhecido no necrotério. Passam-se anos, o meu amigo Anacleto perde o emprego, devido à desordem de sua vida. Ao fim de algum tempo, graças à interferência de velhas amizades, arranja um outro, num estado do Norte. Ao fim de um ano ou dous, recebo uma carta dele, pedindo-me arranjar na polícia certidão de que sua mulher havia morrido na via pública e fora enterrada pelas autoridades públicas, visto ter ele casamento contratado com uma viúva que tinha “alguma cousa”, e precisar também provar o seu estado de viuvez.. Dei todos os passos para tal, mas era completamente impossível. Ele não quisera reconhecer o cadáver de sua desgraçada mulher e para todos os efeitos continuava a ser casado. E foi assim que a esposa do Anacleto vingou-se postumamente. Não se casou rico, como não se casará nunca mais.

A República que não foi Grande parte de tudo que Lima Barreto produziu foi fortemente baseado em sua própria experiência, não há dúvida. Mas, de um jeito ou de outro, ele conseguiu antever os males que boa parte da nação preferiu e ainda prefere ignorar. E foi um autêntico precursor de um trabalho que hoje é feito por veículos como o Observatório da Imprensa e o Jornal da ABI: a análise crítica da mídia. Lilia Schwarcz conta que teve acesso às anotações do escritor na Biblioteca Nacional e uma em especial, no verso do manuscrito de Policarpo Quaresma, chamou sua atenção. Diz: “Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição, foi geral pelo País. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua injustiça

REPRODUÇÃO

Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, onde passa quase dois meses. O diagnóstico dos médicos apontava neurastenia, mas o principal problema era outro, a bebida. A ponto de Barreto ser registrado como “um alienado sujeito ao delírio do álcool”. Nos anos seguintes, a situação apenas piorou. Nem os retiros que fez em Ouro Fino (MG) e Mirassol (SP), para tratar da saúde, conseguiram livrá-lo do vício, das tremedeiras nos dedos e das alucinações. Por conta desses problemas, finalmente conseguiu aposentar-se por invalidez, em 1918. Só que Lima Barreto costumava dizer que escrevia melhor sob efeito da bebida e não a deixava. Talvez essa tenha sido a pior de suas ilusões. A que o levou à morte no dia 1º de novembro de 1922, vitimado oficialmente por uma forte gripe e infarto. Apenas dois dias antes da morte do pai e com a versão final de Clara dos Anjos em plena publicação na forma de capítulos, na revista O Mundo Literário.

Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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Jornal da ABI 366 Maio de 2011


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