Rio de riscos, de Nuno DV

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Rio de riscos Nuno DV



Rio de riscos Nuno DV

Petrobras Cultural

Realização


Copyright © 2013 Nuno DV COLEÇÃO TRAMAS URBANAS curadoria Heloisa Buarque de HollandA consultoria Ecio Salles coordenação editorial Camilla Savoia projeto gráfico Flavia Castro diagramação Adriana Moreno Rio de riscos produção gráfica Sidnei Balbino revisão Camilla Savoia revisão tipográfica Camilla Savoia fotos Todas as fotografias fazem parte do acervo pessoal do autor.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

D984r DV, Nuno Rio de Riscos/Nuno DV. - [1. ed.] - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013. 160 p.: il.; 19 cm. (Tramas urbanas)

ISBN 978-85-7820-104-3

1. Arte de rua. 2. Grafitos I. Título. II. Série.

13-06845 CDD: 751.73 CDU: 741 05/11/2013 06/11/2013 Todos os direitos reservados Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.

Praia de Botafogo, 210/sala 502 Botafogo — Rio de Janeiro — RJ CEP: 22.250-040 Telefones: (21) 2529-6974/(21) 2239-7399 aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br


A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Rio de riscos

SUMÁRIO Agradecimentos 10

prefácio - Rôssi Alves

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Minha vida rabiscada

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Suposição

Dez anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) formataram parte meu pensamento, em diferentes aspec15 boa O filho dodo Raimundo tos, sobre o papel da academia e dos intelectuais, contraindo-se 16 Envolvimento e comprometimento daí débitos enormes a essa instituição. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelos 48 meses 20 Queria de bolsa, que me permitiram dedicação total e exclusiva, tempo e paciência para fatura deste trabalho, bem como aquisição de 21 Construindo um passado livros, viagens para pesquisa, participação em congressos etc. E ao meu anônimo, rigoroso, crítico e incentivador. 23 parecerista Primeiro contato 26 A escolha do nome Aos escritores, ativistas e intelectuais que li, conheci, entrevistei e estudei na fatura da tese, o meu reconhecimento e 34 Desorjet admiração: Ferréz, Oswaldo de Camargo, Cuti, Ruth Guimarães, 36 Audálio Dantas,o birro Cyro Del (in memoriam), Márcio Apertando pelaNero primeira vez Barbosa, Esmeralda Ribeiro, Sergio Ballouk, Sidney de Paula 40 Paulo EnfimLins, NunoAlessandro apareceu Buzo, Allan Santos da Rosa, Oliveira, Sacolinha, Ridson Du Gueto, Sérgio Vaz. Aos livreiros e edito43 Siglas res especializados em literatura negra, que gentilmente me concederam entrevistas e informações sobre seu trabalho: 52 Era SAF — A brincadeira virou vÍcio Kitabu Livraria Negra, Selo Negro Editora, Mazza Edições, Sobá Livraria Negra.deSem eles, a tese não seria possível, pois 58 Reuniões xarpi alguns capítulos e argumentos não teriam sido simplesmente 70 ou RAPichação pensados escritos. 71

O parto

Aos colegas ingressantes nas turmas de Mestrado e Doutorado em Sociologia de 2006, do PPGS/IFCH, que discutiram este projeto. Ao Rodolfo Scachetti, Daniela Ribas Ghezi, Rosane Pires Batista e à professora Gilda Portugal Gouvêa, entre outros. Em particular, Renata da Silva Nóbrega, uma das primeiras incentivadoras e defensoras deste trabalho, de quem ganhei meu primeiro exemplar de Cadernos Negros.

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Ao Vinebaldo Aleixo de Souza Filho, amigo e parceiro de trabalho, que com o Quilombhoje possível. Keila 72 tornou Vingaa—entrevista Dark Prado Costa, com quem divido os créditos de entrevistar Paulo Pichador também trabalha Lins. E77 Janaína Damasceno, amiga determinada na aventura de suprir as lacunas sobre escritores, ativistas e intelectuais ne80 Poluição visual? gros, e com quem entrevistei Ruth Guimarães. Perigando perder o 86 último ônibus de viagem Bate-papo com Ellus na madrugada, levando meses para conseguir uma entrevista, passando por corridas em laParedes e muros deiras89 íngremes e escorregadias num fim de semana de cidade interiorana, entre outros: com os três, partilhei bastidores de 94 Cevo besa larfa a sanos gualin? pesquisas inesquecíveis e formadoras. 100 Rodar

Aos professores que compuseram as bancas de qualificação e exame114 da tese, pela possibilidade de diálogo, críticas e sugestões Operação resgate ao trabalho: Maria Suely Kofes, Priscila Nucci; Alexandro TrinOs espiões da plebe dade, 118 Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, André P. Botelho, Lilia Katri Moritz Schwarcz, Josué Pereira da Silva e Renato Ortiz. 123 O vulcão adormecido

Aos grupos de estudos formados sobre literatura, imprensa e 130 Seminário de xarpi em Salvador teatro negros no Brasil (Daniela Roberta Antônio Rosa e Pris142 Morreu e nasceu o MC cila Nucci); sobre oa pichador obra de Pierre Bourdieu (Eugênio Braga, Alexandro L. Pires, Mariana Chaguri); sobre Le Dieu caché, de Música: Quando eu partir Lucien145 Goldmann (Elide Rugai Bastos e Mariana Chaguri); sobre Pensamento social e Brasil contemporâneo (Sylvio Sawaya, 148 Música: Minha vida rabiscada Maria Cláudia Curtolo, Mariana Chaguri, Yvonne Moran, Rodrigo Fessel, Aline Hasegawa, Saes, Rodrigo Ribeiro e outros). 152 Música: TszzzzzPaula (som que a tinta faz ao Aos estudantes dolata) curso em que Mariana e eu lecionamos e di sair da vidimos, no primeiro semestre de 2009, sobre Pensamento so154 eles, Despedida cial. Com aprendi muito, bem mais do que contribuí. Todos sempre dispostos ao bom debate, provando que pensar não é um ato isolado. Dadas as dificuldades de encontrar muitos dos livros, documentos e textos de que me valho no trabalho, um agradecimento especialíssimo deve ser feito às equipes responsáveis pelos sítios Estante virtual e AbeBooks, cujas ideias simples e geniais de unir sebos pela internet permitem que pesquisadores tenham 9


Rio de riscos

Prefácio

“Eu vou pro Sílvio Santos E pixo a porta da esperança E compro outra Color Gin Pra pixar o Muro de Berlim Ou a Muralha da China Se tiver branquim Porque eu pixo sim.” (Leonel - Rap do xarpi 4)

Nas minhas paisagens, eles há muito insistem em se apresentar, cheios de irreverência e mistério. Alguns riscos bastante elaborados; outros bem simples, de tranquila recepção. Que nome é este? De onde este pichador veio? Como ele será? Adolescente? Jovem? Por que escolheu este traço? — são perguntas que permeiam minha recepção destas obras. Difícil ficar indiferente a um nome indecifrável, no alto de um edifício, na Perimetral, e aos riscos que este artista enfrenta para marcar um lugar nas ruas e instaurar outras possibilidades de mapeamento e apropriação da cidade. O primeiro pichador com quem tive contato foi Nuno DV (sim, eu também gosto do topo!). Depois, conheci muitos outros e, a cada conversa, convencia-me da necessidade de desconstruir o estigma que cerca estes artistas. Trabalhadores, estudantes, pais e filhos comuns, muitos dizem entender a indignação da sociedade com seus rabiscos. Mas entendem também fazer arte. E apontam, enfaticamente, para uma preocupação com o refinamento do nome, com a estética dos traços.

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Xarpi é arte! Que os de “bom gosto” reprovam. Entretanto, o xarpi não precisa de licença, nem de legitimação das instâncias canônicas, e circula pela cidade, a construir significados, e inaugurar lugares, com sua escrita que escapa ao entendimento dos especialistas da arte visual, mas que mexe com a emoção estética dos amantes da arte urbana. Este livro é pra entender xarpi, sim, Nuno! Em Rio de Riscos, Nuno, conhecido como relíquia do xarpi, constrói narrativas de uma cidade vibrante, através de tintas, reús, TTK, códigos de ética, tiros, nomes, conduzindo o leitor, descomprometido com o belo passadista, a uma cidade de adrenalina, criatividade, ousadia. Aceite os riscos! E siga com Nuno a experimentar esta cidade vertiginosa! Rôssi Alves

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Minha vida rabiscada Sabe o escritor noturno de paredes das escaladas absurdas e impossíveis, ou quase impossíveis, que você acha um sem noção e perdido na vida? Pois é, você pode não gostar dele, mas seu filho adora! Ele agora ficou doido de vez e está fazendo a mais louca de suas aventuras. Escrevendo em um local jamais imaginado até então pela burguesia: em um livro. Ele não é o Zagallo, mas agora você vai ter que engolir esse pichador. Parando de falar na terceira pessoa e literalmente colocando a cara, talvez você tenha meu nome em seu muro. Se tiver, não pinte, pois não colocarei de novo, a não ser que você me pague e, aviso logo, cobrarei caro! Dentro do preço vai estar agregado os amigos que perdi, os tapas na cara que tomei, as noites de sono perdidas, o processo que tenho, o tiro que levei, as tintas derramadas pela madrugada, os sapatos que gastei, mas se você disser que leu meu livro, faço um preço camarada. Gostaria de agradecer por você ler isso agora. Saiba que não sou escritor, ator, cantor, jornalista, muito menos poeta, mas

A marca que Nuno deixava nas paredes virou logo sua marca.

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Minha vida rabiscada

mesmo assim fiz um livro. Pois acho que todo ser humano tem algo a dizer, uma história ou mensagem para passar. Não esperem achar aqui a história da pichação carioca, pois não vai ter! Ela é muito grande e complexa para caber em apenas um livro, e quem sou eu dentro desse mundo do xarpi pra fazer isso? Talvez se fizessem enciclopédias de uns 20 livros por década, 20 dos anos 1970, 20 dos anos 1980, 20 dos anos 1990, 2000 etc. Talvez, disse talvez, caberia. Aqui você vai encontrar apenas minha visão e algumas experiências publicáveis que vivi dentro do xarpi, apenas isso. E aviso logo: de educativo não tem nada. Este é um livro dedicado a pessoas que não gostam de ler, por isso é composto de pequenos textos. Para você ter uma ideia, este que você está lendo agora deve ser o maior texto dele! Brincadeira! Tem maiores, mas não se preocupe, não vou tomar muito seu precioso tempo. Nenhuma linha deste livro faria sentido se você não acreditasse nele, por isso muito obrigado novamente pelo crédito. Lendo minhas palavras, quero que, de alguma forma, pelo menos uma frase que aqui esteja contida, você leve para o resto de sua vida. Uma frase, uma ideia, uma rima, uma poesia, um texto ou parte dele, alguma coisa aqui você vai aproveitar. Pois além de fazer música de mensagem agora tenho livro de mensagem. E diferentemente dos muros, aqui ninguém vai apagar, pelo contrário vão pagar. Que essa mensagem se propague começando agora por você. Não esperem também que eu tente explicar ou definir o que é o xarpi, porque como falei lá em cima, quem sou eu para isso? Xarpi, apesar de todo preconceito, é algo que não tem tamanho, ou explicação, é algo que se sente, se vive ou se morre por isso. Sou apenas uma peça neste imenso quebra-cabeça e salada de tintas, vidas, motivos, ambições, ideias, crenças, descrenças, cores, nomes, bairros, idades, amores, horrores, risos, choros, sonhos, metas. Pichação é uma pergunta sem resposta. Boa leitura!

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Suposição Para não ter uma chuva de processos contra mim, alguns assuntos ficaram de fora, por aconselhamento de meu advogado. Afinal, nos textos que saíram, eu produzia provas detalhadas contra mim. Imagina só, vou falar de forma hipotética: vamos supor que eu fosse da famosa Patota da Perimetral e relatasse como pegamos as ferrugens. Seria um prato cheio para o Estado me processar por dano ao patrimônio público e, de quebra, formação de quadrilha. Vamos supor também que, ao rodar em algumas vezes, não teria sido levado para a delegacia, por conseguir argumentar com os policiais a não me levarem, dando alguma propina pra eles. Isso é suposição, obviamente, pois a polícia do Rio de Janeiro é correta e incorruptível, nunca iriam liberar alguém que estava em fragrante delito, por causa de 10, 15 ou 20 reais, isso não existe e nunca aconteceu. Mas se acontecesse e eu relatasse poderia ser processado por calúnia, difamação e suborno. E mais absurdamente ainda, vamos fazer de conta que o sistema da delegacia estivesse ruim em uma das vezes que teriam me levado para lá. Algo improvável de acontecer, mas, se por acaso, neste exato dia, tudo estivesse sendo feito de forma manual. E eu, vendo a confusão que estava, teria supostamente aproveitado para dar os meus dados como: nome, endereço, CPF e identidade errados. Toda papelada teria sido feita com dados errados, e se isso fosse verdade, coisa que não é, mas se fosse, e eu relatasse, estaria confessando obstrução a justiça, falso testemunho e falsidade ideológica. Se essas coisas que usei como exemplo, de fato tivessem acontecido comigo, eu jamais poderia pôr em um livro, só se eu fosse louco! 14


O filho do Raimundo Raimundo era porteiro na Bulhões de Carvalho Nº 195, num prédio branco e marrom claro Calmo, educado e respeitado no prédio O problema era seu filho que o tirava do sério Um moleque atentado, magrinho e metido Em tudo que era merda ele estava envolvido A previsão da polícia (antes dos 18 já teria morrido) Mais ou menos assim, era o filho de Raimundo Que hoje vocês conhecem como Nuno Este livro é dedicado à memória de meu pai, falecido em 2007, e que não me viu parar de pichar em 2009, não me viu me envolver com rap, e o homem que me tornei.

Se estiver me vendo pai, seu moleque tomou jeito!

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Envolvimento e comprometimento Hoje sou comprometido com o rap, mas sempre serei envolvido com o xarpi, pois existe ex tudo nessa vida, mas não existe ex-pichador, o que existe é: pichador parado e pichador na ativa. Ainda olho para as paredes com saudades dos tempos que ali estava, vejo os novos nomes aparecendo e fico imaginando os caminhos que a pessoa fez para chegar até ali. Ou seja, virei um espectador do show silencioso e colorido da madruga, que os pichadores fazem enquanto as pessoas dormem e sonham em preto e branco. É exatamente como digo na música Quando eu partir: Parei com esse bagulho, mas parei só com a mão, xarpi eternamente na mente e no coração. Terminei de ler, faz pouco tempo, um livro chamado O Monge e o Executivo. Nele tem uma boa definição de compromisso e envolvimento. Diz que em um prato de comida que tenha ovos e bacon, os ovos significam envolvimento e o bacon, compromisso. Pois para o ovo poder estar ali a galinha teve envolvimento, mas para o bacon estar lá o porco teve que morrer! Trazendo o bacon e o ovo para o nosso cardápio da rua, digo que não posso mais ser bacon no prato da pista, pois não estou mais dando minha vida, me arriscando, escalando, virando noites e noites na madrugada, tomando tiros, tomando facadas, correndo de seguranças, apanhando de polícia, sendo pintado, extorquido por policias corruptos, enfim, saí literalmente da ativa.

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Mas sempre colocarei ovos e mostrarei meu envolvimento nesse prato, sem deixar vocês com fome ou sede de tinta. Pois mesmo sem uma lata na mão, sinto que consigo pichar com a cabeça. Antes, quando era comprometido, por mais que tivesse espalhado meu nome pela cidade, ele chegava apenas nos muros, nos portões, nas janelas, nos topos e nas marquises das casas das pessoas. Mas as janelas e portas estavam sempre fechadas. Hoje consigo colocar o xarpi dentro da casa das pessoas, com músicas e roupas, e agora com livro! É a famosa e antiga, porém, muito eficiente tática de guerra do cavalo de Tróia, atacar de dentro para fora com elemento surpresa. Sempre achei que não ia ser só pichando que a gente ia convencer as pessoas que xarpi é arte, pois desde os anos 1970 que tentamos e não conseguimos. O xarpi é exposto de uma forma imposta, e essa imposição mexe na parte mais sensível do corpo humano, que é o bolso. Então só pichando vai ser muito difícil sermos aceitos ou compreendidos, pois a pessoa acorda e vê seu muro pichado, ela nem olha o que está escrito, se é que está escrito. Ela pensa em quanto gastou para ter aquele muro, e em quanto vai gastar para limpá-lo novamente, até porque é um direito dele. Também faz parte da liberdade de expressão a pessoa ter o direito de expressar o muro dela limpo para a cidade. A verdade é que as pessoas não gostam do que não entendem, é bem mais fácil ser negativo e contrário com o que não sabe ou não conhece do que tentar entender. Creio que as pessoas, ao olharem um nome na parede, devem se sentir como eu, quando vejo um texto em japonês: sei que ali tem algo escrito, que deve ter um significado, uma ideologia ou uma mensagem, apesar de não saber o que é. Mas nem por isso digo que não gosto. A questão é: se aquela mensagem em japonês estivesse no meu muro será que eu não ligaria? Meu muro já amanheceu pichado uma vez. Estava saindo para comprar pão e notei que o muro estava diferente. Olhei, não reconheci os nomes, eram nomes novos na cena, pensei. Provei do 17


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meu próprio veneno e ri! Depois que voltei da padaria e tomei meu café, peguei uma lata de cal e pintei. Quando estava pintando, passou um casal de idosos e comentou: “Esses meninos não respeitam nada, se eles soubessem o trabalho que dá pintar, acho que eles não fariam isso.” Olhei para o casal, fiz um sinal de positivo com a cabeça e continuei com minha pintura matinal. Dizem que o pior castigo para um pichador é fazer ele limpar seu próprio nome, mas limpar o nome de outro, descobri nesse dia que nem dói. Pra mim o pior castigo não é esse, nem ser preso, nem rodar, pois tudo isso faz parte do pacote. Quando a pessoa entra nessa vida sabe que é algo possível de acontecer. Para mim o maior castigo para um pichador é passar anos perdendo noites de sono, gastando litros de tinta na parede, e não ser reconhecido pelos próprios pichadores. É quando o tempo de envolvimento e comprometimento acaba sendo perdido, e a frustração bate! E o pichador curiosamente toma raiva da pichação, olha pra trás e vê as coisas que perdeu ou que deixou de fazer. Graças a Deus consegui este reconhecimento, apesar de não ter sido um objetivo, mas uma consequência. Nunca fiz por fama, até porque pichador só fica famoso quando morre, e aparece nas capas dos jornais a notícia de sua morte. E é por isso que digo: prefiro ficar vivo a ser um famoso morto. Na verdade, a palavra certa nem é fama, mas reconhecimento, e só vale a pena quando vem de forma natural. O pichador fica lembrado para sempre. E mesmo que seu nome seja apagado das paredes, na memória de quem viu, estará sempre lá, pois pichador eterno não é aquele que pega o lugar mais alto, pedras, ferrugens, locais impossíveis, mas aquele que consegue pôr o nome no imaginário da pessoa conseguindo ir além da tinta e atravessar os anos nas conversas de eventos e reuniões. Lembrem sempre, todo pichador é igual, principalmente na hora em que ele roda. A porrada, o esculacho, a punição, tudo 18


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isso não vai prestigiar ninguém, por ser mais novo ou antigo, ter mais ou menos nome. Então o primeiro passo para que sejamos aceitos, respeitados ou reconhecidos, enfim, que a sociedade nos desmarginalize, é nos respeitarmos, nos assumirmos e nos unirmos. “Somos iguais em nossos ideais“, já disse um dos melhores pichadores da história! Agora cabe a você se comprometer ou se envolver com isso!

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Queria

Queria ter uma banda quando era pequeno Que tocasse Legião e fizesse cover do John Lennon Queria ser da linha, mas só me colocavam no gol Queria a loirinha, mas foi a pretinha que me conquistou Queria ser pintor, virei pichador Queria ser destaque, virei destruidor Queria ouvir “Yes”, mas só ouvia “No” Queria tanta coisa, mas quem nunca sonhou? Queria ensinar, mas não sabia aprender Queria ser aluno A, mas sempre recebia B Querer é muito fácil, todos podem querer Desisti de só querer e comecei então a fazer

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Construindo um passado Sempre fui uma criança calada, tinha medo ou insegurança de falar em público, pois era gago. Era não, sou ainda! Mas quando criança isso foi péssimo para a minha autoestima, tinha medo de falar e as outras crianças rirem de mim. Então me calava. Lembro que muitas e muitas vezes quando a professora dizia aquela famosa frase, alguém tem dúvida? Eu até tinha, mas ficava quieto por medo de gaguejar na hora da pergunta. Ou havia situações que os professores faziam perguntas e, apesar de ter a certeza da resposta, deixava passar. Por conta disso fui uma criança excluída dentro de mim, isolada perante os outros, e logo depois um adolescente de poucos amigos. Porém, pelo fato de ser calado, acabei desenvolvendo a capacidade de escrever, observar e ouvir. Faltava aprender a me expressar, pôr para fora a quantidade de informação e observações que fazia. Tinha mania de tentar decorar as coisas que ia dizer, escrevia textos sobre determinadas situações e decorava. O problema é que nos ensaios mentais eu previa e controlava as respostas da outra pessoa, mas na hora da realidade nunca era como eu imaginava. Acabava gaguejando e vinha a insegurança, a vontade de sumir e de enfiar a cabeça dentro de um buraco. Já mais velho e envolvido com o xarpi, fui pego algumas vezes quando era menor, e encaminhado ao órgão de proteção à criança e ao adolescente. Tive um período de acompanhamento psicológico e o analista descobriu que minha gagueira não era constante, era em determinadas situações. Ele me disse com todas as palavras que eu não era gago, pois gago é gago 24 ho21


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ras por dia, meu caso poderia ser um distúrbio mental. Pensei: “Esse puto tá me chamando de maluco?” “Como assim distúrbio mental? Eu não sou doido não!” E ele: “Calma, Leandro, acredite se quiser, isso é mais comum do que se possa pensar, é um descompasso do sinal de sua capacidade de pensar com a capacidade de reproduzir em som esse pensamento. Seu cérebro produz a informação, mas sua fala não acompanha esse tempo. Resumindo: você pensa mais rápido do que consegue falar, então por isso trava a língua, e acredite, é um mal que só afeta pessoas inteligentes! Se você se habituar a falar pausadamente, vai treinar seu cérebro a também fazer essa pausa. Se você falar na mesma velocidade que chega a informação, vai acelerar a fala, e fatalmente vai travar.” Sempre que lembro disso, e tento falar mais devagar, pensando e pausando as palavras, na tentativa de igualar a velocidade do meu pensar com a do meu falar, o único problema é que só lembro disso depois de umas travadas. Aí você me pergunta: O que isso tem a ver com o xarpi? Na próxima página explico.

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Primeiro contato Meu primeiro contato com o xarpi foi quando vi que tinham pichado meu prédio. O síndico e o porteiro do prédio estavam olhando para as pichações e olhei também. Desde esse episódio, passei a prestar atenção nas paredes, principalmente no caminho de casa para a escola. Ir para a escola era fácil na questão da aula, da matéria, na hora de escrever e ler, mas um inferno no momento de conviver, de falar e me relacionar. Pela minha autoexclusão tentava não pensar nisso e sempre percebia nas paredes nomes coloridos, com uma caligrafia estranha. Olhava para eles, mas não conseguia ler nada, um nome ou outro que conseguia identificar, uma letra ou outra, mas não me interessava muito não. Pelo menos era o que eu achava, pois todos os dias ia olhando e tentando decifrar algum. Em pouco tempo de insistência fui conseguindo, por dedução, montar letra por letra e ia lendo o que estava escrito nas paredes. Se bem que nessa época os nomes não eram tão embolados como os de hoje, então deu uma facilitada. Dentro da escola também tinham aqueles nomes, e muitos outros também, mas o fascínio era nas ruas. Na escola era de giz de cera, de pilot ou de caneta. Na rua era com tinta, maiores, mais coloridos, e em locais que só voando ou com o tapete mágico do Aladdin que daria pra chegar. Na época, queria muito saber como alguém conseguia chegar até ali. Os nomes com carinhas (rostos) como Moita, Maggo e Stoon eram os que mais chamavam minha atenção, pois eram quase desenhos. Hoje passariam fácil fácil, como personas (aqueles desenhos e personagens, que são uma mistura de graffiti com pichação, graffiti por se tratar de desenho, ser mais trabalha23


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do visualmente, e pichação pela ideologia, de estar espalhado em vários locais aquele mesmo desenho, como uma marca). O estilo persona, em minha opinião, é uma evolução do xarpi para driblar a burguesia e a discriminação. Em breve isso vai se tornar a nova pichação, mas voltando a caligrafia, ou tipografia, outro nome que depois consegui ler e passei a ver muito era o do Glug. Sabe quando você vê alguém que não conhece? Você simplesmente não lembra, mas quando conhece tal pessoa a identifica de longe no meio de uma multidão. Assim eram os nomes que eu já sabia ler. Em um muro com vários nomes, conseguia saber quem era quem. Em todos os caminhos que fazia, esse era meu passatempo: procurar os nomes que eu já sabia ler e tentar decifrar outros. Dois nomes que eu gostava depois que me alfabetizei no xarpi eram Runk e Vulk. Gostava da caligrafia e dos lugares que via esses nomes. O nome do Vulk sempre via, e do lado vinha escrito “A peste”. Até achava que fosse uma menina, depois que fui entender que era por conta de ter tanto nome espalhado que tinha essa conotação de peste. Para a minha surpresa descobri que o Vulk era o Kleber, filho de uma amiga da minha mãe. Para você ver que às vezes conhece uma pessoa e nem sabe o que ela faz realmente. O nome do Runk tenho até hoje acesa na memória uma marquise na Barata Ribeiro, quase esquina com Rodolfo Dantas, onde é o famoso prédio Duzentão, onde ele e o Mar escreveram de verde folha, uma frase assim: “Em homenagem ao amigo Sino.” Sino foi um grande nome da pichação da zona sul do Rio de Janeiro, morto em 1990, atropelado por um ônibus ao tentar atravessar uma rua. Na escola quase todo mundo tinha e era chamado por apelido. Como estava sempre no meu canto, não tinha apelido, pelo menos no convívio social. Duvido que de longe eu não era o mudinho ou o estranho nos comentários do povo. Só quem chamava todos pelos nomes eram as professoras na hora da chamada, fora isso era por apelidos que todos se tratavam. Como não tinha apelido, resolvi achar um pra mim. Escolhi Nunk, que era 24


Primeiro contato

uma mistura de Runk com Vulk. Fiz uma mistura de opções de letras, tinha que ter a letra K e a U, tenta uma letra aqui e outra ali, muda uma, muda outra, e saiu Nunk. Nome terminado em K, bem americanizado como a maioria dos nomes da época. Mas não pichava não, era só para ter um apelido mesmo, ninguém me chamava disso, na verdade, mas pelo menos eu tinha um! Neste mesmo ano de 1990 aconteceu a copa do mundo na Itália, e as ruas estavam sendo pintadas e enfeitadas. Ajudei a pintar a rua que morava. Quando pintava sentia que era um modo de pôr para fora meus sentimentos; em meus desenhos ou pinturas, assinava Nunk. Ao olhar outras ruas, vi que tinha gente da minha escola pintando também. Pedia para ajudar e sempre deixavam, afinal de graça as pessoas aceitam até ônibus errado. Então quando assinei Nunk, para a minha surpresa, algumas pessoas que estavam também pintando a rua, me conheciam de nome. Achei aquilo super estranho, mas confesso que gostei, foi então que o apelido pegou. Sempre sobravam uns restinhos de material e como gostava de ver os nomes nas paredes, e estava eu ali com a faca e o queijo na mão, no caso a tinta e o pincel, comecei a escrever nas paredes o Nunk mesmo sem estar ao lado de nenhum desenho servindo de assinatura. Mas era muito demorado e complicado, pois a lata de tinta era grande, às vezes não conseguia abri-la; quando a lata estava cheia era pesada, e tinha que arrumar algo para abrir. Depois para limpar o pincel era ruim, pois ele secava e ficava duro, além de ser ruim para guardar e manchar minhas roupas todas. Mas como curtia fazer aquilo, e ver Nunk na parede junto de outros nomes, continuei fazendo.

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Rio de riscos

A escolha do nome Para quem acha que pichação é uma receita de bolo, que tem um passo a passo, esqueça! Na pichação primeiro se conhece a prática para depois se construir a teoria. Só o que é padrão no xarpi é a escolha do nome, cada um tem que ter um nome, que é igual ao CPF e identidade, pessoal e intransferível. Na vida de uma pessoa comum podem ter homônimos, mas no xarpi uma das regras de rua é a exclusividade na escolha do nome, raros são os casos de homônimos. Quando um pichador escolhe um nome que já existe, os próprios pichadores o alertam. Nosso nome de certidão nossos pais que escolheram, mas nosso nome de rua, o de guerra, de xarpi, cada um escolhe o seu como bem entender. Os papas, por exemplo, João Paulo II, Bento XVI, e agora Francisco, escolheram o nome que quiseram, por questões pessoais. Que Deus me perdoe por essa comparação papal, mas na pichação não tem conclave para escolha de um novo pichador, a vida se encarrega disso, e quando um pichador novo aparece não tem fumaça branca saindo de chaminé, tem fumaça de várias cores pelas ruas e paredes. Não sou a pessoa mais indicada para tentar explicar como um pichador escolhe um nome, visto que eu mesmo não escolhi o meu, foi uma situação de desespero que originou o Nuno, como vou contar mais pra frente. Então vou deixar alguns pichadores falarem como eles escolheram os seus.

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A escolha do nome

No blog “Páginas de tinta” as duas primeiras perguntas são:

1 - Qual seu xarpi? 2 - Por qual motivo resolveu pôr esse nome? Xuxão - Esse era meu apelido quando era mais novo, pois tinha o cabelo grandão e prendia com uma tiara enrolada. Então ficava maior xuxão no cabelo, geral começou a gastar e essa porra pegou! Pois era o único do bonde que não tinha apelido. Quando comecei a pixar fiquei viajando em vários nomes para escrever e não saía nada maneiro, aí fiz isso aí mesmo! Fox - Tinha um jogo de videogame chamado Star Fox. Sempre gostei desse jogo, lembra dele? Cobra - Cobra além de ser um animal muito sutil, ardiloso e enigmático tem vários outros adjetivos: pessoa perita em seu ofício ou em sua arte, sagacidade, astúcia, dentre outros. Existia uma série americana na época, Gi-Joe, em que existia um vilão chamado Cobra Commander (Comandante Cobra) que foi também uma inspiração para mim. Pequeno - Passei a assinar Pequeno, porque admirava o nome do Médio. E lancei o Pequeno, já que, além disso, alguns colegas me chamavam assim quando criança. Isak - Isak porque sempre achei esse nome radical é era o nome de um sobrinho. Fyt - Em 2001 coloquei Dã em homenagem ao meu irmão Daniel, e tinha um amigo que era Arak. Mas não levamos o xarpi a sério não, gastamos umas tintas e só. Em 2006 ele voltou com essa ideia, falou que tinha umas escoltas boas e que iríamos arrebentar, falei que já é, mas não queria colocar o mesmo nome. Ele logo me apresentou seu novo nome, Louco. Eu queria achar uma parada diferente e comecei a pensar, me veio o apelido que 27


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tinha no curso, Filtwister “Nossa, muito grande!”, disse meu amigo. Então coloquei Filt. Tentei encontrar umas letras, mas não achava um L pra encaixar no meu nome. Ele falou que eu poderia usar o nome com três letras, Fit, que ia ficar maneiro! Que ia conseguir encaixar em qualquer lugar. Coloquei Fit, mostrei pra ele, e ele falou que meu I parecia um Y. Brinquei falando: “Quem disse que é um I?” Ele riu e falou: “Estamos prontos agora.” Musk - Metade do meu apelido, Muskito. Boina - Tentei no primeiro ano colocar vários nomes, mas todos que colocava depois descobria que já existia. Como era sempre um problema pensei em pixar Boina, porque achava que não teria. Mas fiquei surpreso quando soube que já tinha também. Mas a pessoa não era do xarpi, ficou falada porque saiu com uma pessoa que já tinha fama, então apareceu rápido, mas parou logo... Dessa vez não liguei para o que iam falar e continuei colocando Boina. Até que hoje consegui ser reconhecido no mundo do xarpi. Rock - Na época só se falava no Rock in Rio. Sem ideia melhor do que pixar, resolvi começar a pixar Rock. Inclusive também foi da logomarca do Rock in Rio que tive a ideia para a caligrafia. Tata - Trama Antológica Temperada de Adrenalina. Sow - Respondi isso a vida toda. De tanto responder a mesma coisa, para alguns falei a verdade, mas de tanto repetir criei novas histórias. Sow vem de Soweto. No começo do grupo não tinha o Belo como destaque, e por isso aquele louro vocalista se destacava pelo seu cabelo. Meu estilo era bem original, sempre com cabelo descolorido, como ele, daí veio o Sow. Apenas um menor com cabelo descolorido da baixada. Daman - Porque Daman é meu nome ao contrário. (Amanda)

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Nath - Meu nome é Nathalie. Nath, meu apelido de infância, bem óbvio. Kel - Meu nome é Raquel... Mas sempre achei Kel mais bonito que Quel. Barão - Pegava onda no Arpoador com o falecido Tel (fã do Let). Como na época rolava muito arrastão, e eu ficava horas dentro d’água, meu apelido era tubarão. Mas esse nome era enorme pra xarpi, por isso cortei o “tu”, e deixei só o Barão. Depois curti por causa do Chico Buarque, que na homenagem ao malandro criou o verso “O malandro é o barão da ralé”. Assim que se escolhe os nomes, cada um faz como quer e acha melhor. Reparei que as mulheres são mais diretas e simples, os homens complicam muito pra achar um nome. Outra pergunta que faço no blog é: “Se seu filho fosse pichador o que você faria?” Anteriormente colei pedaços de entrevistas com pichadores, aqui fiz a pergunta em uma rede social e esperei para ver o que iria acontecer. Veio uma chuva de respostas. Normalmente a gente quer o melhor para nossos filhos, mas essa definição de melhor, é o melhor de quem realmente? Já perguntaram aos seus filhos o que seria melhor para eles? Você vai dizer que ele é muito novo para decidir o que é melhor para si, mas ele não é novo para dirigir, pegar um carro e pôr a vida dele e de outras pessoas em risco, não é novo para votar e escolher quem vai dirigir nosso país, entre outras coisas que menores fazem. Não vou falar de sexo, na sua cabeça menor não deve fazer sexo, muito menos seu filho. Bobinho! Perguntei para alguns filhos de vocês o que eles fariam caso os filhos deles fossem pichadores e tive respostas reflexivas, debochadas, conscientes, dissimuladas, de apoio, de retaliação, mas bastante interessante. Vou pôr aqui para os senhores pais darem uma olhada e tentar dar mais valor a opinião de seu filho. Para eles não se espelharem e darem mais ouvidos a pessoas 29


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como eu do que a vocês mesmos. Poderia usar essa influência para o mal, mas fiquem calmos, seus filhos estão seguros ao me seguirem.

Se seu filho fosse pichador, o que você faria? Jonathan Mateus Xarpiava com ele... rs. Camila Martins Ia deixar ele pixar meu quarto, ué. Jefferson Santos Fazia o máximo possível pra tirar ele desse vício! Marlon Sandro Partia pra missão com ele! Roy Ot Pedia a Deus pra proteger ele de todos os males que existem nas ruas. Cibele Mina Zika Eu apoiava e iria junto... Geórgio Sore Faria ele assinar Sore Jr-Mx Creew e daria uns rolés com ele. kk Cassiano Nunes Iria com ele... rs. Sistah Mo Respect I Pixava a cara dele e colocava ela numa aula de grafite. Toma vergonha na cara! haha Tiago Martins Conversava com ele e explicava que isso não é vida... 30


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Junyn Xiisde Iria lhe ensinar o pouco que eu sei sobre para proteger ele do perigo das ruas. Matheus TJ Vamos tacar nome junto, fdp de preto brilhante! Magrinho do Império dos Novinhos Jogava logo pro curso de grafite, pra ele não passar pelo o que eu passei. J Maikon Oliveira Compraria uma caixa de presto fosco pra ele... Clayton Duarte Iria dizer: “Filho de peixe, peixinho é!” *o* Vitor França Diria todos os dias que eu o amo... Junyn Xiisde Eu também sou filho de pichador e tenho uma filha agora. Se ela falar pra mim um dia que está tacando nome eu vou me amarrar, porém vou ficar preocupado porque ela vai correr o perigo que eu já sei me virar! Nathan Giuseppe Muita gente fala porque não tem filho. Quando ele fala que vai pichar você pensa que vai ser assim, você vai ficar puto. Pô, você tem sua opinião, agora sou novinho, daqui a um tempo vou ter mais mentalidade, aí não sei o que eu poderei fazer. Ytallo Quintanilha Pô cara, eu acho que eu apoiaria... Mas meu pai esculacha os maluco do xarpi, fala mal pra caralho, mas o filho dele tá no meio, rs.

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Daniel SB Dava logo uma moca. Marcelo Denvel Pixaria junto com ele! Carolina Santos Não ia recriminar, também não ia apoiar... Desde que ele respondesse pelos seus atos, a vida é dele, pô, mas óbvio meu papel de instruir e cobrar que ele tenha cuidado seria cumprido! Se ele mandasse uns grafites maneiros deixaria ele brincar com a casa toda... Hahaha. Toda arte tem que ter livre expressão! Paulo Kida Pedia pra ele falar de xarpi. José Junior Iria pegar uma folha dele, porém novo pichador, uma nova folha na coleção! Agata Pena Daria umas porradas!!!!! Marcus Vinicius Pow cara, di boua eu não apoiaria não, porque eu sei que corre muito risco, eu ensinaria a viver de outra forma, e uma frase pra ele: “Faça o que eu digo e não faz o que eu faço!!!!!! Felipe Miranda Sairia com ele. Matheus Medeiros Tentaria levar ele pro grafite e falaria dos riscos pra ele. Kiki Drt Botava uns nomes com ele... 32


A escolha do nome

Se algum pai que estiver lendo por algum motivo tiver uma arma, deixo como conselho a frase do Sel FR para vocês: “Antes de atirar em pichador, veja se seu filho está em casa. Pois como vocês viram, por mais consciência que tenham, não julgando a educação que vocês oferecem para ele, muitos picham.”

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Desorjet Uma bela noite, enquanto estava em casa vendo televisão, minha memória acaba de me dar um susto — era Chips que estava vendo, série com dois policiais motoqueiros. Impressionante como tudo que a gente viu e viveu está dentro de nós, a questão é saber localizar as informações quando se precisa, deve ter um Google dentro da gente, só que sem a barra de pesquisa, mas enfim, voltando. Fui até a janela, não lembro se fui abrir por causa do calor, ou se fui fechar por causa do frio, não achei essa informação em meu Google mental, mas assim que cheguei nela, vi meu primo Fernando indo em direção ao muro do mercado e adivinha... Ele pichou o muro do mercado, eu entrei em estado de adrenalina e deslumbramento total. Vi um pichador em ação, e era meu primo, e aquele nome eu conhecia das paredes, meu primo que era o Black. No outro dia, saí da escola e fui na casa dele que era no mesmo quarteirão que o meu, eu morava na Bulhões de Carvalho e ele na Joaquim Nabuco. Quando o encontrei, falei que o tinha visto. Ele riu, e perguntei o que era aquilo que ele usou que parecia água, pois a tinta escorria demais em relação às outras que já tinha visto, e às que eu usava pra pintar. Foi então que ele perguntou se eu também pichava e respondi que não, mas olhava as paredes e gostava. Então ele me mostrou uma embalagem plástica de desodorante Avanço, lembram dessa marca? Ele falou que era só pôr tinta ali dentro, misturar com água, e estava feito o desorjet, explicou que era melhor pôr o nome em paredes xapiscadas pra evitar escorrer. Fiz um no mesmo dia com tinta que tinha em casa para pintar as ruas para a Copa. Peguei na lixeira do prédio um frasco de 34


Desorjet

desodorante e fiz meu primeiro desorjet. Quando anoiteceu fui na praia, pois lá havia um muro xapiscado, bem na descida da calçada para areia. Ali ninguém ia me ver. Fui lá e escrevi Nunk. Ele só não me falou que eu tinha que ter uma distância da parede, pois a tinta batia e respingava. Voltei mais sujo que o muro, mas feliz, pois tinha pichado com uma ferramenta de pichador. Assim foi meu início com desorjet, já usava giz de cera, pilot, vela (quando queria que tivesse Nunk em vidros), mas chegou uma hora que senti a necessidade de usar o nome com spray. Sempre que chegava à escola, percebia uma divisão lá dentro de turmas, ou galeras que se juntavam por afinidade, tinha o pessoal do skate, do rock, do morro, eram vários grupos, e alguns não se davam bem com outros. Eu não era de nenhum, ia para a escola somente para estudar. Se fosse pra ser de algum grupo, estava mais propenso a ser dos CDF (os cu de ferro). Sabiam que isso que quer dizer CDF? Pois como só ficam sentados estudando, tem que ter um cu de ferro pra aguentar, mas nem pra esse me chamaram. Percebia que meu primo Black era aceito em todos os grupos, não só ele, mas o próprio grupo dele. Eles falavam com todos, mas não tinham nenhuma característica. Todo aquele grupo era de pichadores, já que ele não era surfista, skatista ou roqueiro, mas era um filho de porteiro que nem eu. Então era daquele grupo que eu tinha que ser. E como já tinha um primo ali, faltava só eu ser pichador pra pegar meu passaporte para aceitação, e isso significava ter nome com tinta de verdade na parede. Desorjet não servia mais.

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Apertando o birro pela primeira vez Tinha 13 anos e as lojas não vendiam para menor de 18. Então fiquei em frente ao Rei das Tintas com minha bicicleta. A primeira pessoa que vi, que ia entrar, pedi que ela comprasse uma tinta spray. Expliquei que era para pintar minha bicicleta, mas que o pessoal da loja não podia vender tinta spray para menor de idade. A pessoa me perguntou que cor eu queria e falei azul metálico. Eu nem imaginava que existia preto fosco, mas na hora azul metálico era uma boa cor para pintar bicicleta, eu mesmo acreditei na minha mentira. O azul deve ter sido por causa dos nomes do Pão e Elfs no meu prédio que eram em azul. Dei o dinheiro e a pessoa logo saiu com uma tinta Colorgin calhambeque azul linda. A primeira lata a gente nunca esquece. É como um troféu, devia ter guardado, mesmo que hoje já estivesse enferrujada, claro. Mas seria uma parada foda, ter a minha primeira lata. O ladrão poderia entrar aqui e levar a casa toda, mas se deixasse a lata estaria perdoado. Neste mesmo dia, a noite demorou muito a chegar por causa da minha ansiedade. Almocei imaginando como seria, não prestei atenção nos programas que vi no dia na televisão, tudo me levava a imagem de como seria pôr meu primeiro nome de colorjet, era meu batizado. O local escolhido, lógico que seria perto da escola, afinal eu também queria ver de manhã e depois todos os outro dias o meu nome na parede. Finalmente anoiteceu, nem era tarde, lembro que o Cid Moreira tinha acabado de dar o boa 36


Apertando o birro pela primeira vez

noite no Jornal Nacional quando saí de casa. Falei que ia na praia jogar bola, e eu sempre jogava realmente bola na praia, mas era em Copacabana em frente à rua Sá Ferreira. Estava silenciosa a rua, apesar de cedo. Devia ser o povo esperando começar a novela, eita povo que gosta de acreditar em ilusões. Ou fui eu que me prendi tanto na concentração que não ouvia o barulho de nada, a não ser de meus passos e de meu assustado coração. O barulho da bola1 que tem dentro da lata parecia mil vezes mais alto. Achava que as pessoas estavam me olhando e sabiam que eu ia fazer merda, mas era coisa da minha cabeça. Olhei para a escola e vi o portão, a cor azul ia ficar linda ali. Pronto, decidi que o primeiro nome de tinta ia ser naquele alvo. Atravessei a rua, já puxando a tinta da bermuda, coloquei o birro na lata, cheguei no portão e comecei a fazer o nome. N depois o U, o segundo N, a sensação de liberdade é enorme, parece que sai tudo que você quis dizer naquele momento junto com a tinta e o barulho do tzzzzzz que a tinta faz ao sair da lata parece uma canção dizendo que apesar dos pesares você está fazendo a coisa certa, e o cheiro da tinta resume os motivos de uma forma inexplicável, mas quando ia fazer a letra K para terminar, passou um carro, acendeu o farol e buzinou. Mas foi aquela buzinada que segura a buziiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii iiiiiina, terminei o K no susto, com o coração na boca e nem vi como ficou. Foi no reflexo e saí correndo, como se eu estivesse com o último bife do mundo, e atrás de mim, os quinhentos mendigos mais famintos da história, adrenalina a mil por hora, inexplicável também essa sensação. Na hora é um pânico, mas depois bate o torpor, um êxtase, é um orgasmo espiritual. Andei até em casa achando que todo carro que passava seria aquele carro que me viu. Sensação horrível de achar que está sendo seguido, mas ao mesmo tempo realizado. Coloquei um nome com spray e não consegui dormir. Flashes vinham em mi1  A bola dentro da lata serve para ajudar a misturar a tinta quando se agita a lata, mas há quem diga que é para denunciar pichadores na hora em que eles estão em ação. 37


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nha mente a madrugada toda, ia na geladeira toda hora beber água, mastigar alguma coisa, até que amanheceu. Levantei antes de o despertador tocar, tomei meu banho, me arrumei e fui estudar. Fui pra escola literalmente virado e sem sono nenhum, queria mesmo era ver meu nome. Assim que virei a esquina já bateu a decepção, não tinha ficado como no papel, estava meio torto, com o final enfumaçado, que merda que eu fiz! Fiquei até com vergonha, mas quando entrei na escola todos os caras estavam comentando que um tal de Nuno havia pichado o portão da escola, e a diretora estava uma arara, indo de sala em sala perguntando quem era o tal do Nuno, já que não tinha nenhum aluno matriculado com aquele nome. Nuno? Pô é Nunk, pensei, mas como a diretora estava querendo saber quem era, fiquei na minha só ouvindo o burburinho. Na saída reparei que o K realmente parecia uma letra O, aliás parecia tudo menos um K! Assim o Nunk morreu antes mesmo de nascer, e por acidente virei Nuno. Adorei a sonoridade do nome, pois, além de apelido, Nuno também era um nome. Só conhecia dois Nunos no mundo, o Leal Maia, o ator, e o Cobra, o médico. Mas, a partir daquele dia, tinha outro Nuno na cena, eu! Porém, para todos os efeitos, eu era o Nunk que nunca tinha pichado de verdade. Além da adrenalina que vicia a pessoa em xarpi, também tem a questão das pessoas falarem de você, ainda mais se você sempre foi invisível para aquelas pessoas. Ontem inseguro, calado e excluído, hoje com uma vontade de falar, expor a todos que eu era aquele cara que era o assunto do dia. Mas não podia, dessa vez não por medo, mas por questões de sobrevivência. A diretora ia arrancar meu pescoço. Se eu falasse pra alguém, este alguém iria falar para outros “alguéns” e algum alguém ia me entregar. E quando eu perguntasse quem me dedurou, a resposta da diretora seria que não foi ninguém!

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Apertando o birro pela primeira vez

Com os anos meu N foi evoluíndo e tomando o formato que tem hoje. É bem comum confundirem meu nome com: Suso, Dudo, Wuwo, Fufo, Tuto. Na reunião do Rocha em 1996 o falecido Scooby disse que trabalhava na Gávea e viu meu nome lá, e achou que fosse Menudo. Em 2008, na reunião da Penha, o Clady falou que achava que era Fino. Ele acertou duas letras pelo menos, rsrsr. Máximo respeito ao Clady, uma das caligrafias mais simples e, ao mesmo tempo, mais elaborada que já vi. Para finalizar, só depois que sabem que ali está escrito Nuno, é que, com muita força de vontade, as pessoas acham a letra N.

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Enfim Nuno apareceu Meu pai vivia trocando de emprego, sempre em portarias, mas sempre arrumava outro prédio para trabalhar... Já morando ali na Bulhões de Carvalho, ele sempre fazia umas paradas por fora para aumentar a renda, como: lavar carros dos moradores, fazer serviços de consertos, montar móveis etc. Em um desse serviços ele foi buscar umas roupas em uma tinturaria, que trabalhava um português de poucas palavras, mas que era amigo do meu pai. A loja era na avenida Nossa Senhora de Copacabana quase esquina com a avenida Rainha Elizabeth. Acabei indo com ele para ajudar a trazer as roupas. Enquanto esperávamos, vi um rosto conhecido, o Alcidez, um aluno de minha escola, mas de duas séries acima, e que era do bonde do meu primo Black. Ele deve ser pichador também, pensei. Falei com ele com um sinal de positivo com a cabeça, ele respondeu da mesma forma, mas meu pai logo saiu e fui junto. No outro dia na escola falei com ele da coincidência de nossos pais serem amigos. Foi só para puxar assunto, eu queria saber mesmo se ele era pichador como meu primo. Já que meu primo não tinha ido naquele dia na escola, não tinha como saber, só depois da aula, e se eu fosse lá na casa dele perguntar. Logo no início da conversa, passou alguém e falou com ele algo assim: “E aê, Gaty, tudo bem?” Ele respondeu que sim. E a pessoa: “Sabe do Geo? Nos separamos ontem na fuga e não vi ele hoje.”

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Enfim Nuno apareceu

Na hora lembrei que já tinha lido Gaty em alguma parede e não me contive (parecia aquele fotógrafo do filme do Banksy quando soube que ele estava na cidade): “Ele te chamou de Gaty? Foi isso? Caramba, tu picha!” Ele, meio surpreso, disse que sim, e que aquele cara com quem falou era o Grilo, além de me contar da tal fuga correndo dos seguranças. Trecho de uma entrevista que fiz com o Grilo mais de 15 anos depois, no blog Páginas de Tinta, em fevereiro de 2008.

33 — Você lembra onde ou quando me conheceu? Grilo: Te conheci no colégio, com o Alcidez. Nuno DV: Isso aí, foi ele que fez a conexão Nunk (antes de ser Nuno) e vocês do ginásio, Alcidez, que Deus o tenha. Alcidez acabou sendo minha ponte entre o mundo normal e o da pichação, se é que existe mundo normal. Sempre me contava as novidades, na entrada e na saída da escola. Sempre tinha uma galera parada na porta, ou passando para ir ao Arpoador. Ele sempre me dizia, aquele ali é fulano, o do lado dele é cicrano. Quando eu não sabia quem era, ele fazia o nome com o dedo em algum vidro de carro sujo, e fui me informando sobre aquilo, sem ser ainda do meio. Em umas dessas conversas de porta de escola, apontei para o portão e falei que eu era o Nuno. Ele deu uma risada e falou: “Geral está falando de tu, mas ninguém imaginava que era você.” Ele mesmo tratou de espalhar a notícia, e o pessoal do xarpi me aceitou de um dia para o outro: me davam gole do refrigerante deles, jogava bola com eles, ia nas festas com eles. Isso era maior moral na época, e na cabeça de um garoto de 13 anos, sem nada na cabeça, era o máximo, ser tipo o mascote da turma, estar ali com os caras mais velhos e ser tratado como eles. Ao mesmo tempo os amigos da minha idade não enten41


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diam nada, e entre eles passei a ter voz. Prestavam atenção quando eu falava, minha opinião passou a ser importante, afinal eu andava com os caras mais velhos. Essa parada deu uma repercussão dentro da escola que inevitavelmente, como previsto, chegou ao conhecimento da diretora que eu era o Nuno, e fui gentilmente convidado e me retirar da escola, termo que veio escrito no documento, uma forma educada de dizer expulso. Mas pelo menos me indicaram para outra escola, lá no bairro do Leme.

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Siglas A maioria das siglas se forma por pichadores que compartilham dos mesmos ideais, pensamentos, afinidades, parentesco, enfim, todo motivo é válido no processo de criação de uma sigla. A regra é simplesmente não ter regra. Sempre quis ser de duas siglas: GE – Grafites da Escuridão e DV – Destruidores do Visual, pois essas eram as siglas que eram ali do meu setor e que mais me chamavam a atenção. A GE era dos caras mais antigos que a maioria já tinha parado, mas os nomes ainda estavam nas ruas. A DV sempre aparecia novos nomes nos caminhos, e depois que li o significado achei que tinha tudo a ver com o que eu fazia. Consegui ser da DV e foi um casamento perfeito. Mesmo não sendo mais pichador da ativa, e estando no mundo do rap, trouxe a DV comigo pois sou fiel a ela até hoje. Andei lhe traindo com umas amantes que surgiram, mas foi coisa rápida, como a RM – Rebelião Maldita, lá mesmo nos anos 1990. Depois a RM rachou e uns saíram dela, o Coca fez a MT – Morcegos Terroristas, que depois, por sugestão do Jones, virou Menores Terroristas, pois só tinha menor na sigla. Mas meu amor pela DV bateu mais forte e voltei a pôr DV no nome. Em 2009 dei uma relembrada nos tempo de RM com o USA, saímos algumas vezes para pôr nome e eu coloquei em todas essas saídas RM. Em 2007 fui pôr um dia a sigla ISG – Irmandade Sagrada do Grafite, sigla que respeito demais, desde a época dos anos 1990, quando o S da sigla ainda significava “satânica”. Com a volta dos caras dos anos 1980, eles já com outra cabeça, mudaram o significado do S de satânica para S de sagrada. 43


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Para vocês entenderem o que isso significa, as siglas são como os times de futebol, só que sem uniforme e a grana envolvida. Não necessariamente são onze em cada sigla, quantidade de componentes não tem regra, cada sigla escala quantos quiserem para o seu time, o máximo que dá pra comparar é que, assim como no campo de futebol, que possui jogadores que atuam em diferentes áreas do campo, nas siglas têm pichadores especialistas em áreas diferentes da rua, uns são das pedras, outros dos topos, outros das marquises ou janelas, cada um tem uma preferência, ou gosto por um estilo, ou local de campo. Existe sigla de apenas uma pessoa, e tem outras que lotariam facilmente um ônibus com passageiros em pé e sentados. Você pode criar a sua sigla livremente, mas não pode, pelas regras de ética da rua, colocar uma sigla sem autorização dos componentes dela. Tem um caso engraçado da sigla FL – Foras da Lei. No início dos anos 1990 existiam duas FL, e que depois houve uma junção fazendo apenas uma FL. De repente começou a aparecer um nome com FL, o nome era Mark. Um lado da FL achava que ele era do outro lado, e o outro lado achava o mesmo. Resumindo, quando o Mark morreu, eletrocutado em uma noite de xarpi,2 os integrantes da FL, de ambos os lados, conversando, descobriram que o Mark não era de nenhum dos lados, e começou por conta própria. Morreu sem ninguém da FL saber de fato quem ele era. Mas isso aconteceu por conta das siglas terem sido unificadas e ter dado essa brecha para o Mark passar batido. Normalmente isso não acontece, quando um pichador começa a pôr uma sigla sem ser dela, logo alguém o cobra e se descobre se ele realmente é da sigla. A minha sigla, por exemplo, a DV, sempre teve componentes pela afinidade e amizade. A maioria dos integrantes nem tem tanto nome nos muros, a condição principal era os integran2  Neste mesmo prédio, foi onde o Tud, da Iha, morreu, e que o Taio, também da Ilha, tomou choque e ficou um tempo internado. Prédio maldito este que matou dois e feriu um. 44


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tes serem amigos fora da tinta, afinal os nomes apagam, mas as amizades ficam. Às vezes se formam em locais e situações inusitadas. Um exemplo: amigos que se encontram sempre nos bares pra beber e jogar conversa fora poderiam fazer a VT – Vinho Tinta (sigla fictícia). Outro: um pichador que sempre picha sozinho, como o Cova, poderia criar a SN – Solitário Noturno (sigla fictícia). Algumas vêm de frases que os pichadores colocaram na rua, e a frase acaba virando a sigla, como aconteceu com a CR – Cultura de Rua e a ML – Momentos de Liberdade, que inicialmente eram frases, mas que viraram siglas. Outras vêm de nomes de filmes, como CE – Caçadores de Emoção, que originalmente é um filme de surf, mas que serviu perfeitamente para a vida de xarpi. Eu e o Fyt já colocamos esta frase uma vez, mas não sei se foi de lá que viram e fizeram a sigla, não tenho como saber! Outras surgem de nomes ou trechos de músicas como: MD – Mulher e Dinheiro (Racionais MC´s) ou PD – Paranóia Delirante (Cássia Eller). Algumas remetem à região onde os integrantes moram como GO – Grafiteiros da Oeste (zona oeste) ou DSG – Desordeiros de São Gonçalo. Outras são mais específicas na questão da localidade como a GMC – Galera Maldita do Cachambi. Se os nomes fossem corpos, as siglas seriam as tatuagens. Às vezes uma tatuagem, pra quem vê de fora, não faz o mínimo sentido, mas quem tem ela no corpo, tem, na maioria das vezes, alguma explicação pra ela. Assim são as siglas, algumas têm significados que são difíceis de se entender. E como nem todos temos tatuagens, tem pichador que não tem sigla, como o Tane e o Fos. E, mesmo sem siglas, se destacaram e muito no mundo da madrugada. Aliás o Tane tem como grande incentivo justamente o fato de não ser de sigla nenhuma, porque ele foi barrado quando quis entrar em uma. Diz a lenda que ele no início de sua carreira quis ser da sigla UM — União do Mal, mas foi barrado pelo Mad, que disse que na sigla só entrava quem tivesse muito nome. Esta rejeição foi 45


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o combustível motivador para Tane explodir e derramar muitos litros de tinta pela cidade nos anos seguintes. Quem assistiu ao vídeo Documento especial, de 1991, vídeo disponível na internet, vê e ouve saindo da boca do próprio Tane as palavras: “Eu picho porque quero superar um cara aê, jurei pela minha mãe que vou superar essa cara!” E quem é do meio sabe quem era o cara. Se superou eu não sei, mas que o Rio de Janeiro foi quase todo carimbado, isso foi. Algum tempo depois o Tane fez uma sigla junto com o Pão, era a HP – Homens da Pedra, que mostrava a preferência deles pelo local a ser pichado, e deixava no ar a conotação do fato de eles serem das antigas. Eu mesmo já senti na pele essa recusa. Só que no meu caso não foi por sigla, mas por uma assinatura em um caderno. Em 1990, na lendária reunião da praça Saens Peña, estava rolando um caderno onde geral estava assinando, e de mão em mão o caderno vinha em minha direção. Quando ia chegar minha vez, o dono do caderno pegou do cara que estava antes de mim, não lembro ao certo, mas acho que era o Page ou o Mik, era um dos dois, e passou direto para o Rival. O Rival pegou o caderno e o pilot, deu na minha mão, e falou para o cara: “Deixa o menor assinar, ele vai ter muito nome em breve, pois o palha de hoje é o famoso de amanhã.” Nem lembro quem era o dono do caderno, ele deve até ter jogado a folha fora, mas desse dia em diante passei a admirar muito o Rival. Desde 1991 que não o encontrei mais. Vi em 2008 o nome dele aparecendo, ali pelo Catumbi, mas não tive a oportunidade de encontrá-lo nos eventos e reuniões que fui. Queria muito ver se ele lembrava disso. Por causa desse dia que até hoje respeito a molecada que está começando, e tento ser pra molecada o mesmo reflexo que ele foi pra mim, exemplo de respeito e humildade. Desculpe o trocadilho, mas o Rival na verdade é um aliado. Para finalizar, deixo algumas siglas que cataloguei, em uma pesquisa. Como disse na introdução, este livro não tem a his46


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tória do xarpi, então certamente vai faltar muita sigla na listagem que vem logo a seguir. Na verdade tinham mais siglas em minha relação na época da pesquisa, mas optei em colocar as que de fato já tinha visto na rua. Na pesquisa surgiram algumas que nunca tinha ouvido nem visto nada pela rua, e outras que conhecia pelo menos um integrante. Então, como não tenho setor de reclamação, saiba que se sua sigla não estiver nessa relação pode ser por quatro motivos: 1 - Não conheço sua sigla. 2 - Conheço a sigla, mas não conheço nenhum integrante. 3 - Conheço a sigla, mas não sei o significado. 4 - Sou humano e esqueci! Desculpe!

Algumas siglas significados e integrantes: AAP - Amantes da Arte Proibida (Bog’s e Today) A* - Absolutos (Anão - Bock -Fip) AC - Ato Criminoso (Lander) AC - Arquivo Criminal (Naniika - Shinoda - Crl) ACN - Arte CrimiNal (Smerk - Kinder) ADX - Adrenalina do Xarpi (Lous - Fel - Siu - Nox) AE - Amantes da Escrita (Nota) AE - Arte Enigmática (Sax e Alca) AF - Assinatura Fantasma (Aff) AJ - Anjos do Jet (Teia - Tico - Teca) AM - Amantes da Maconha (Snoop - Ação) AN - Arteiros da Noite (Sari - Raio - Sack) AO - Anti Opressão (Mila - Soma -Jack) APG - Anjos Perversos do Grafite (Pluma) APV - Acorrentados Pelo Vício (Kinho) AR - Amantes do Rabisco (Vely - Bobe - Yra) AR - Artistas da Rua (Lucas - Syg) ASV - Arte Satânica dos Vândalos (Canon - Acne) 47


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AT - Alucinados Terroristas (Mik - Nico) ATO - Amantes do Traço Oculto (Taio - King) BC - Bandidos da Cocaína (Mico) BDG - Bando Delinquentes do Grafite (Kil - Reco) CA - Crew Atividade (Pipa - Lord - Vic) CAS - Comando da Arte Social (Rici - Rak - Tiga - Phal) CE - Comboio da Escuridão (Alone - Paz) CE - Curtição dos Errados (Jorb) CJ - Comando Jet (Aga) CJ - Cruéis do Jet (Kore - Rauch) CK - Comando Killer (Ginho - Charles) CM - Cachaça e Maconha. (Tay - Sucas) CNS - Comando Nervoso do Spray (Polaco) CP - Camicases da Pichação (Fim - Bugle - Kalo) CR - Cultura de Rua (Pita - Mine) CR - Comando Rebelde (Smal - Omo) CT - Cachaça e Tinta (Quick - Sor - Focus) DD - Dependência Doentia (Niva, Ebai, Natural, Katatal) DDA - Demônios Disfarçados de Anjos (Solo) DLX - Desordeiros Loucos por Xarpi (Vamp) DN - Dedo Nervoso (Play - Damam) DR - Donos da Rua (Bola) DS - Drogados e Solitários (Esy) DSG - Desordeiros de São Gonçalo (Cubano) DV - Destruidores do Visual (Dio - Ape - Trune) EDF - Esquadrilha da Fumaça (Tokaya) EG - Engenheiros do Grafite (Musk - Paly) EL - Enigmas Legendários (Sak - Rock) EM - Estímulo Mental (Tock - Asfark) EN - Esquadrão da Norte (Ranes) EP - Espiões da Plebe (Pão - Elfs) ER - Escrita Restrita (Jet - Surf - Digo - Suk)

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Siglas

ES - Esquadrão Suicida (Bla) ET - Esquadrão da tinta (Sak - Luiz - Furto) EX - Esquadrão do Xarpi (Caslu - Rumo) E* - Exclusivos (Cano)

FJ - Falanges do Jacaré (Tuka - Scooby) FL - Foras da Lei (Piu - Ria - Ari) FNI - Falange de Nova Iguaçu (Mosca) FR - Filhos da Rebeldia (Seif - Sel - Cascão) GA - Gang Anarquistas (Tufão - Grilo) GBS - Gang Street Boys (Lolo) GCL - Gafiteiros da Cidade sem Lei (Cola) GE - Grafites da Escuridão (Mar - Zuca) GGL - Grafiteiros da Gloria (Morte) GI - Geração Irak (Cin - Mauricio - Odi - Kiva) GI - Grafiteiros Imortais (Magam) GMC - Galera Maldita do Cachambi (Gula) GN - G Nazista (Tocha - Ranes) GO - Grafiteiros da Oeste (Wganga - Moana) GT - Grafiteiros do Trabalho (Vermon) H - Humildes (Rak - Ren - Dedo) HE - Humildade Eterna (Boca) HN - Huligans da Noite (Ana - Arpa - Besta) HP - Hobby Proibido (Elite - Sheat) I! - Irreverentes (Xuxão - Sous) IC - Induzidos pelo Crime (Cool - Dynha) IF - Infratores da Tinta (Pam) ISG - Irmandade Sagrada do Grafite (Raba - Sany) ISS/PG - Irmandade Satânica do Spray Possuídos pelo Grafite (Oasis - Ripa - Marn) IU - Instinto Urbano (Runk - Skin)

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JR - Juventude Rebelde (Léo) L - Legalize (Dak - Ned) L - Loucos. (Sai - Faca) LD - Legião Diabólica (Tata - Beto - OP) LJ - Louca Juventude (Croi - Fafo) LM - Largados no Mundo (Cisco - Vuto) LN - Largados na Noite (Abra – Playboy - Leme) MA - Malditos do Arpoador (Acme - Riso) MAD - Malucos da Arte Destrutiva (Boina) MD - Mulher e Dinheiro (Vuca - Indio) ME - Maus Elementos (Maneco - Ronga) ML - Momento de Liberdade (Fty Fipi) MN - Malditos Noturnos (Riri - Peba) MP - Mania de Pichar (Trash) MR - Mente Rebelde (Raiva) MVL - Morcegos Voadores do Leblon (Tesh - Sócio - Bad) NF - Novatos da Máfia (Xoxo) NNP - (Kida) O - Orignais (Kadu - Novo - AnarKia) OCP - Ortografia Criticada e Proibida (Barco - Vigo) OD2 - Operação Diabólica (Wboy - Kik) ORV - Organização Rebelde dos Vândalos (Luki - Deny - Trok) OT - Organização Terrorista (Cool - Filó) PE - Pichadores de Elite (Jones - Ack - Vinga) PD - Paranóia Delirante (Ego - Rito - Nath - Rako) PN - Pássaros Nazistas (Zog - Nez - Peu - Taco - Ramal) QF - Quadrilha da fumaça (Rusk - Vik) 44 - Malucos 2x (Isak - Diego - Vin) RIG - Rebeldes da Ilha do Governador (Gol) RL - Rebeldes do Leme (Saf) 50


Siglas

RM - Rebelião Maldita (Coca - Usa - Lobo) RS - Rebeldes Silêncios (Pequeno) RX - Revolucionários do Xarpi (Blood - Poeta - Azak - Limite) hi (Ão) SL Sem Limite (Fliti - Teia) T - Transgressores (Sow - Kskley - Dig) TC - Turma da Constante (Tog) TI 44 - Traficando Informação (Goaboy) TM - Terroristas da Madrugada (Rival - Rats - Dost) TN - Transparente Noturno (Tranca - Panda - Mr Zoom) TPI - Turma Pirata de Inhaúma (Gugu - Stu - Soli) TP - Talento Proibido (Mat - Uruá - Santos) TS - Terrorista da Sul (Pag - Xoc Fifa) TV - Terrorista Do Visual (Sedo - Sore - Navo) TW - Trip Wave (Velho) UM - União do Mal (Mad - Plank) USS - União Satânica Socialista (Robô - Zoy) V - Vieticongs (Água - Oro) VA - Vício Arriscado (Raf) VB - Vida Bandida (Plaf - Soma) VC - Vício Constante (Manero - Shoa - Sant) VG - Vândalos do Grafite (Zoação - Vira - Bak) VM - Vicio Maluco (Arpa - Fino - Xela) VR - Vício Rebelde (Caixa - Ellus - Kel - Jax) VS - Vício Satânico (Faka - Toxa) VT - Viciado pela Tinta (Nego - Titan) VW - Vândalo do Waimeir (Salú) Z - Zion (Spain, Perk)

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Era SAF — A brincadeira virou vício Até então eu pichava apenas para fazer parte daquele grupo de amigos da escola antiga, era uma coisa de autoafirmação, um moleque tentando provar que já era homem, e querendo fazer parte de alguma coisa. Não era por vício, fama, adrenalina, mas minha ida para a Escola Municipal São Thomas de Aquino iria mudar isso. Cheguei nesta nova escola e todos já sabiam que eu tinha sido expulso da antiga por ser pichador. Então, assim que cheguei, me apresentaram o Saf, que era o único pichador da escola. Na verdade tinham outros, mas só o Saf que era mais escrachado. Para comprar tinta sempre usava aquele golpe de parar de bicicleta em frente a alguma loja, e pedir que alguém comprasse pra mim. Fui em todas as lojas de Copacabana e, quando acabaram as lojas, perguntei ao Saf onde ele comprava tintas. Ele me olhou, riu, e falou: “Não compro, eu meto!” Meter era o mesmo que roubar nessa época e quem comprava tinta era considerado mané ou playboy. Eu era mané e nem sabia. Cada pichador tinha um esquema para arrumar suas tintas sem ser comprando. O Saf entrava na Casa Matos ou nas Lojas Brasileiras e comprava uma cartolina, que vinha enrolada em 52


Era SAF — A brincadeira virou vício

forma de cilindro. Era aí que o golpe começava: dentro deste cilindro, a gente colocava uma ou duas tintas, e saía. As tintas ficavam expostas em prateleiras, qualquer um podia pegar, diferentemente das lojas de tinta, que tinham balconistas. Nunca fomos pegos com este esquema da cartolina. Com ele comecei a pichar quase todos os dias, ali pelo Leme, Botafogo, Urca, e nos bairros que ele me levava. Também o levava para os bairros que conhecia: Arpoador, Copacabana, Ipanema e outros. Ele pichava desde 1988, já frequentava reuniões de pichadores, tinha uns parentes pela zona norte e por isso conhecia algumas coisas nesta região também. Quando ele ia pichar por lá, de vez em quando, me levava junto na bagagem, e numa dessas idas me levou em uma reunião pela primeira vez, lá na Praça Saens Peña, na Tijuca. Pegamos o ônibus 415 e fomos. Tomei um susto ao chegar, pois mais parecia entrada de jogo de futebol, ou algum show. Era um formigueiro de gente. Chegamos na muvuca, ele já conhecia muita gente, vários pichadores antigos e de outros bairros logo pediram que ele assinasse uma folha e depois passaram para mim. Não é que conheciam meu nome? E assim como reconheceram o Nunk das pinturas de Copa, agora estavam conhecendo o Nuno da pichação. Nunca tinha ido na Tijuca, mas meu nome era conhecido lá. Foi uma massagem no ego. Então a coisa passou a ser por vício e também por busca deste reconhecimento no submundo das ruas. Era sagrado depois desse dia, no ano de 1990, eu estar, com ou sem o Saf, em todas as reuniões da Tijuca ou na de Madureira. A de Madureira tinha ainda mais gente que a da Tijuca, era dentro da galeria do Tem Tudo. Tinha um flipper em frente pra quem quisesse gastar umas fichas, ia para as reuniões para pegar assinaturas para minha pasta de assinaturas. Um belo dia chegou lá na Tijuca, durante a reunião, uma equipe de reportagem dizendo que queriam fazer uma matéria sobre pichação para o programa Documento Especial. Os caras mais antigos e com mais nomes naturalmente tomaram a frente disso e saíram nas imagens, tanto em entrevistas quanto incluindo seu nome. 53


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Mas em um determinado momento que o repórter estava perguntando de onde cada um ali era, saiu a minha voz de criança falando Copacabana. Este vídeo está disponível no YouTube, é só você escrever Documento Especial Pichação, vale a pena conferir Soli magrinho, Elfs, Pão, Robô, Rival, Vadio, Grega, Pagé, entre outros que fizeram história e estão lá imortalizados em imagens. Voltando a falar no Saf, tive várias histórias com ele. Vou contar a primeira vez que fui pintado. Na hora que você passa o sufoco, pensa em parar de pichar, promete coisas para santos e deuses que nem acredita, mas depois que sai da situação o pensamento acaba indo embora, e algumas rodadas acabam virando histórias que garantem boas risadas como esta que vou contar. Preparem a pipoca, chamem a família, que essa é da boa!!! Ano: 1990 Idade: 13 anos Comparsa: Ricardo (Vulgo Saf) Local: Estácio (Foto) Cor: Vermelho (Coralite) Neste dia aí da foto foi a primeira vez que fui pintado. Nem sempre quando um pichador é pego, ele é levado para a delegacia. Na verdade isso acontece na minoria das vezes, pois no Brasil toda pena menor que quatro anos é automaticamente convertida em pena alternativa. Não importa o que você tenha feito, se o martelo do juiz bateu com pena até 3 anos e 11 meses você não passa nem um dia preso e acaba prestando serviços ou pagando uma multa. Se você tiver trabalho fixo com carteira assinada, paga a multa, mas se seu emprego for de estudante ou se você for daquele bagulho escroto chamado VASP – Vagabundos Anônimos Sustentados pelos Pais, você fatalmente vai trabalhar umas horas de graça para o governo, normalmente pintando e revitalizando monumentos, escolas, prédios e praças públicas que foram pichadas. 54


Era SAF — A brincadeira virou vício

a pichação que fiz no dia em que fui pintado ainda está lá.

Ou seja, não dá nada! Se bem que em 2007 o Sel, o Brano e o Dosi ficaram 12 dias preso. Tenho na minha pasta uma cópia da carta que o Sel mandou para a esposa na época. As autoridades, os seguranças, os donos das casas, quando pegam um pichador, querem fazer justiça com as próprias mãos, batendo, esculachando, humilhando, roubando, pintando ou até matando o pichador. Isso quando não acontece tudo junto em uma mesma rodada. De todas essas opções só faltou mesmo eu morrer, mas foi por pouco. Mais à frente entro neste assunto, no dia que fui baleado. Agora é para falar sobre a primeira vez que fui pintado, já comecei bem, foi logo de vermelho, pra chamar a atenção. O Saf subiu na marquise e fiquei embaixo escoltando a rua, ele pôs o nome e desceu. Quando foi minha vez de colocar o nome, e dele escoltar, ele ficou na beira da rua olhando pra cima me 55


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vendo escrever. Não deu outra, a viatura passa, vê um doido de madrugada olhando pro alto, e um magrelo em cima da marquise zoando o plantão deles. Só ouvi o grito do Saf depois de um tapão! Olhei pra baixo, o cara nem falou nada, só fez com a mão um sinal pra eu descer. Fui dar a volta, pois a subida era por trás, e ele disse: “Na-não, tu não é foda? Quero que tu pule!” Eu me pendurei na marquise e pensei: “Se sair vivo, paro com isso.” Então me soltei, e já bati no chão esperando a porrada. Para a minha sorte, eu era muito magrelo, e o cara não quis me bater. Sobrou pro Saf, que era parrudinho, mas, como não podia passar em branco, o cara mandou eu tirar a camisa e o chinelo, e começou a fazer a obra de arte dele em mim. Devia ser algum grafiteiro frustrado, por não saber desenhar ou grafitar, e ainda me achou com cara de muro. Fez duas meias, uma até o joelho, e outra até a canela, desenhou uma camiseta regata em mim, na frente e nas costas, de longe parecia realmente uma camiseta, mas de perto, via-se que era de tinta. E eu rezando pra tinta acabar, mas a tinta coral era foda, não acabava de jeito nenhum, então ele pintou uma mão como se eu estivesse de luva e ainda pintou meu cabelo. O outro que estava segurando o Saf me deu dois cascudos, e o maluco do Saf riu. O cara virou pra ele e deu dois cascudões nele, que ele deve ter visto estrelas. Só pelo som dos cascudos eu senti a dor por ele. Depois mandaram a gente ir embora, um para uma direção da rua, e o outro para outra. Não vi mais o Saf naquela noite. Agora imagina a cena, um moleque, descalço, sem camisa, todo pintado de vermelho andando na madrugada pelo Estácio, imaginou? Pois é, era eu! Pode rir, eu não ligo não! Pedia carona nos ônibus, e quando o motorista me via já dizia que não, com um risinho no canto da boca. Quanto mais a tinta ia secando, ia dando uma coceira. Quando ia coçar, colava tudo. Hoje eu escrevo isso rindo, mas naquela noite eu chorava de 56


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raiva. “Vou parar com isso, vou parar com isso, e cafungava o nariz!” Que raiva que me deu do Saf, que ficou boiando em vez de escoltar. Andei até o Aterro pedindo carona. Só lá que um motorista deixou eu entrar, os passageiros riam muito do otário aqui, iam fazendo buchichos tipo: “Pensei que os marcianos fossem verdes!” ou “Deve ser um flamenguista doente!” E olha que sou Flamengo, mas nem tão doente pra sair de vermelho. Foi foda! Mas foi assim a primeira vez que troquei de lugar com o muro. Contar as vitórias é mole, quero ver dar a cara para contar as derrotas! Lembrei das quatro vezes que fui pintado nesta época. Além desta que contei, teve outra em 1991, que fui pintado de abóbora em Bonsucesso, sabe com quem? Adivinha? Saf! Teve outra em 1992, no muro do Fluminense com ele de novo, e uma última em 1992, em Copacabana, eu, Jones e, incrivelmente com ele, Saf. Vai ser azarado assim em outra vida, mano! Estas quatro vezes foram entre 1990 e 1992, depois parei. Voltei de 1995 a 1997 e não fui nenhuma vez pintado. Depois parei de novo e voltei entre 2007 e 2009. Fui pintado uma vez no dia que fui baleado e outra com o Pingo e o Rito no Engenho da Rainha, mas foram só as mãos e a roupa, e como a gente estava de carro, nem vale contar como foi, pois vocês querem mesmo é saber das vezes que me ferrei, não é mesmo? Mas, apesar dos pesares, Saf é uma amizade que tenho até hoje. No jeito maluco dele de ser, vai levando a sua vida em paz. Se você quiser achá-lo, é só ir no caminho dos pescadores, à noite, lá no Leme, pois ele está lá todo santo dia pescando, e procurar o Ricardo. Se ninguém souber quem é, procure o Saf. E se mesmo assim neguinho não souber, pergunte pelo Trambique que é o apelido dele herdado do pai.

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Reuniões de xarpi É reunião, mas não tem mesa, pauta, ata, secretária, essas coisas de reuniões comuns, a não ser muito papel e caneta. Reuniões de xarpi, também chamadas de reús, são encontros semanais entre pichadores, hoje são quase diários. Esses encontros acontecem em locais diferentes, em cada dia da semana. Não preciso escrever aqui onde e quando elas acontecem exatamente, pois quem é do ramo sabe onde encontrar sua reunião preferida. Fui a várias reuniões no início dos anos 1990. As minhas preferidas eram as da Tijuca e Madureira, infelizmente ambas extintas. No meio dos anos 1990 estava sempre na do Rocha e na de Madureira, que já não era mais dentro da galeria do Tem Tudo, agora era do lado de fora, no terminal de ônibus. Na geração 2000, a da Penha e a do Leblon foram as que eu mais gostava de estar por terem um formato diferenciado das outras. Em ambas, uma vez por mês, os organizadores ofereciam churrasco para os presentes. O que se faz nas reuniões? Simplesmente jogar conversa fora, trocar muita ideia, pegar assinaturas para pastas, fichários e agendas, assinar também. Um bom termômetro para saber se um pichador está sendo notado nas ruas é a quantidade de folhas que ele faz em uma reunião, pois a maioria das pessoas que colecionam nomes querem aqueles que eles já viram e estão se destacando nas ruas. Eu tenho três pastas, uma com o nome de geral independente de quem seja. Podem chamar de investimento no futuro, tenho 58


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esse hábito desde aquele episódio em que o cara me pulou e o Rival fez o cara pegar meu nome. Acredito que a gente tenha que respeitar os mais antigos, reconhecer os atuais, mas dar crédito para os que estão começando. Eles nos veem como exemplo. Se dermos bons exemplos, eles repetirão isso lá na frente; se dermos maus exemplos eles o farão bem pior por sua vez. Minha segunda pasta é selecionada com os nomes que mais respeito e reconheço o trabalho na rua, e com fotos de alguns locais que tenho nome. E a última é uma que rezo para nunca conseguir mais folhas, que é a minha pasta de pichadores falecidos. Não vejo nenhum valor em lata de cerveja ou em vinil velho, mas tem gente que coleciona, então respeito, pois cada maluco com sua maluquice. As agendas são verdadeiros registros, tem nomes que somem dos muros, mas não somem das agendas: pichadores morrem, os nomes apagam, mas ficam nas folhas. Já vi vários cadernos, uns até super organizado, como o do Ned, que vem organizado por década e dentro das décadas os anos em ordem crescente em que aquele pichador começou a pôr nome. Ou a pasta do Hair que vem por ordem alfabética. O meu é na ordem do acaso, vou pegando nome e vou encaixando, mas nem todos são relaxados como eu. Não dou, não troco e nem vendo minhas pastas. Já me ofereceram uma grana boa por elas, mas elas não saem daqui por dinheiro nenhum. Na reú é quando a gente consegue conhecer a pessoa por trás dos nomes que aparecem nas paredes. Tem uns pichadores que parecem fantasmas, que ninguém conhece. Piu e Ria, por exemplo, dá para contar nos dedos da mão as vezes que eles apareceram em reuniões. Eles picham pra eles, picham para depois passar e ver os próprios nomes, não é por fama e status de rua, é por puro vício e vontade de rabiscar. Conheço ambos, respeito essa vontade dos dois, e sem querer ser advogado deles, mas 59


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já sendo, eles têm o real espírito do xarpi, pois picham porque amam isso, e não para serem reconhecidos dentro da cultura! Fora que as poucas vezes que apareceram, arrumaram tumulto com eles, então optaram por se isolar e aparecer somente nos muros. E tem também muito pichador que é o contrário, só aparece nas reuniões e ninguém vê nos muros. Ainda falando de fantasmas, sempre quis conhecer o Cova. Queria contar uma história pra ele, mas nos anos 1990, nas duas épocas que estava na ativa, não consegui. Só o conheci em 2007, e enfim contei o caso. Sempre quis pegar uma esteira ou comporta, aquelas portas de correr de ferro de lojas. Tinha uma em Ipanema que sempre olhava, mas em frente tinha uma boate, e sempre tinha gente e seguranças por ali. Um belo dia estou passando e vejo a boate fechada. Fui correndo em casa, peguei uma tinta prata, a bicicleta, e fui até a comporta. Quando cheguei, já tinha o nome do Cova, fresquinho, fedendo a tinta ainda. Olhei para os lados e não vi ninguém. Sempre que passava por ali via o nome do Cova e o xingava ele, rsrsrs. Quando o conheci, em 2007, lá na loja do Gol, contei isso a ele, e foi motivos de boas risadas entre nós. Em dia de reú, todos compartilham de um ideal. Ideal este que o mundo todo ao redor acha que é maluquice, mas, naquele momento da reunião, ninguém ali vai te apontar o dedo e te discriminar, pois como disse muito bem o pichador Ão: “Na arte de ser louco, não se comete a loucura de ser normal.” O mundo nos chama disso, de louco, mesmo sem nos conhecer pessoalmente, nos julgam pelo que fazemos e não pelo que somos. Ali ninguém julga ninguém, não importa se você mora em uma favela, ou em um condomínio, não importa se você é drogado ou geração saúde, não importa se você é patrão ou empregado. Ali todos são pichadores. É muito comum nas reuniões você ver dois integrantes de torcidas organizadas rivais, bebendo e conversando na mesma mesa — o assunto deve ser xarpi e futebol eu presumo —, frequentadores de baile funk de briga, que nos 60


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bailes cada um defende um lado, mas ali na reú estão em sintonia. Esse clima de paz é lógico que se refere às reuniões dos anos 2000 até as de hoje, pois antigamente as reuniões eram palcos de verdadeiros combates entre pichadores rivais, qualquer rixa ou problema que acontecesse nos muros, eram resolvidos nas reuniões — quando um pichador ratava (ratar, passar por cima ou encostar no nome de outro pichador) era nas reuniões que isso era resolvido. Presenciei uma discursão épica entre o Tane e o Vinga em 1991, na Saens Peña. O Tane se intitulava o número um do Rio de Janeiro, o cara que mais tinha andado pelo Rio colocando nome, porém o nome mais conhecido e falado era o do Vinga. O Tane pichava na maioria das vezes em pedras e no baixo, o Vinga era o contrário: ia no alto, nos lugares que chamava muita atenção. É como se um panfletasse e o outro colocasse outdoor. O panfleto você entrega muitos e a maioria das pessoas pega, amassa e joga fora — até dar resultado com panfleto tem que distribuir muitos. Nome em locais baixos é assim, tem que ter em muita quantidade pra chamar atenção ou as pessoas memorizarem aquela marca, visto que muitos nomes nem os próprios pichadores conseguem ler! Quantos panfletos vocês pegam na rua e nem olham? O outdoor é posto em local de destaque, onde até quem não está nem aí para a propaganda acaba olhando. Pichar no alto é assim, chama atenção até de quem não picha! Porém as chances de se apagar os nomes aumentam, pois se quem não gosta olha, as chances de se limpar é maior. É só você olhar na rua, quantos nomes do Tane ainda têm, e comparar com os do Vinga. Enfim, o Tane estava folheando uma pasta. Antes de assinar eu também faço isso, gosto de ver os nomes que estão na pasta, e quando passou a folha com o nome do Vinga ele comentou: “Esse aqui tá querendo se mostrar, pra que ficar se pendurando que nem um macaco?” Só que o Vinga estava atrás, o Tane não viu, e teve a seguinte resposta: “Me mostrar nada, pelo menos onde eu picho o cachorro não mija no meu nome!” 61


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Outra do Vinga foi com o Canto. O Vinga tinha pichado na estação da Leopoldina, e o Canto falou que tinha ficado maneiro, mas que o Vinga tinha dado mole. O Canto nem terminou de falar, e o Vinga falou: “Mole? Vai lá e faz melhor!” O Canto não completou o que ia falar, na mesma noite pegou a estação da Leopoldina e escreveu “Missão cumprida”. Ele queria apenas falar que Vinga poderia também ter pego as persianas e janelas, porque elas estavam sempre fechadas durante o dia e dessa forma só viam o nome dele de noite. Fui em muitas reuniões, e fiz várias pastas de nomes, mas a primeira é que foi a minha pasta xodó. Em 1992, quando parei de pichar, tive aqueles ataques de ira contra a pichação que todo pichador tem, e dei ela ao Rel. Mas depois ele se desfez dela, e às vezes vejo umas folhas perdidas pela internet dessa minha falecida e saudosa pasta.

Soli e Raba na folha feita em 1990, na extinta reunião da Saens Peña, na minha primeira pasta de nomes.

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Outra reunião que fui algumas vezes foi a do Méier ali na rua Dias da Cruz, no Bob´s, a convite do Cobra. Ele só fazia folha foda, vários desenhos, valia a pena esperar quase 10 minutos pra ter uma folha dele. Pichador devia curtir um Bob´s naquela época, pois a da Tijuca também era pertinho do Bob´s, e sempre que o Bob´s de ambos os lugares estavam fechando a gente ia lá perturbar o gerente pra arrumar uns lanches, porque sempre víamos os caras jogando comida fora. Passei a frequentar as reuniões para aumentar minha coleção de nomes, e conhecer os caras que nem ligavam por eu ser menor, e me tratavam como um deles. Chato era quando o Ack me colocava pilha falando que eu era filho do Tane, eu ficava muito puto, a reunião inteira geral me chamando disso. Ou quando os caras me faziam de oficce boy, tinha que ir comprar cachorro-quente pra eles: me davam o dinheiro e ia lá nas barracas comprar, vida de mascote tem dessas coisas. Nas folhas de minhas pastas a maioria dos nomes vinha com siglas. O Saf sempre colocava RL ao lado do seu nome, perguntei o que era aquilo e ele me explicou que significava Rebeldes do Leme. Era uma sigla, e como todo pichador tinha uma, falou que era para eu pôr também já que eu não tinha nenhuma. Passei a usar Nuno RL. Mesmo não morando no Leme, estava lá de segunda a sexta por causa da escola. Como já disse, morava no posto 6, em Copacabana, no prédio em que meu pai era porteiro, e nas redondezas de onde morava assinava RL ao lado do meu nome. Um dia, em que eu estava pichando de giz de cera a arquibancada da pista de skate do Arpoador, um skatista me viu fazer o nome, e perguntou se eu era o Nuno do Leme. Disse que não, que morava ali em Copacabana, e ele questionou o fato de eu colocar RL. Expliquei que estudo lá e ando com o Saf, e ele se apresentou então como Ass da sigla DV. Já tinha visto este nome Ass, e ele me explicou que eram as três primeiras letras de assinatura. Sabe quando você escreve algo e coloca, Ass: fulano de tal? Então ele disse: “Eu assino nas paredes e ficou assim.” Depois de anos descobri 63


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que não era nada disso, mas gostei desta versão do significado para o nome dele. Tinha Ass DV em todo a área do posto 6 e do Arpoador. Justamente a parte onde morava e os caminhos que eu fazia. Depois ele disse que, já que eu morava por ali, tinha que ser de uma sigla dali, daquela área, e me deu uma rápida aula sobre siglas, explicando que geralmente elas são representadas de gente de um mesmo local. E me levou então na casa do Dio que era o dono da DV. Na verdade, me levou na casa dele, mas como os dois moravam no mesmo prédio, telefonou para o Dio e pediu que ele descesse. Nuno, tem alguns fatos que me lembrei dessa história, nós nos encontramos na casa do Ass já que ele e eu morávamos no mesmo prédio, ele no 201 e eu no 903, ele me ligou e me disse: “Você não vai acreditar quem está aqui na minha casa.” E eu perguntei: “Quem?!” Ele respondeu: “O Nuno, um molequinho baixinho... Desce aqui.” Então desci e como eu e ele já tínhamos visto muitos nomes seus no parque Garota do Arpoador, sinceramente não me lembro de nenhum com RL... Algo me disse que você tinha um grande futuro pela frente no mundo do xarpi... O que hoje está dito, escrito, feito, claro e notório... E naquela ocasião achei que a sua convocação para a DV seria uma grande aquisição para a sigla, e não tenho vergonha nenhuma em dizer que a sigla se tornou o que é hoje devido a você, realmente foi uma das decisões mais acertadas que tomei na vida... DV mais que uma sigla, um sentimento. Dio DV (Depoimento via facebook)

Veio um cara magrinho de óculos com cara de professor com uma camisa do Fluminense e apertou minha mão. O Ass me apresentou assim: “Esse que é o Nuno, ele é daqui da área, tô a fim de pôr ele na DV.” Ouvi aquilo e quase caí pra trás, DV 64


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Primeiro nome com a sigla DV, na pasta do Dio DV.

era a sigla do Nox e do Ala (aliás meu N é inspirado no N do NOX, depois com o tempo é que foi mudando e evoluindo) e eu estava sendo convocado para usá-la também. Achei que o Dio ia falar que não, afinal quem era eu? Ele veio com uma pasta cheia de nomes e reportagens e perguntou se eu conseguia encaixar um nome ali, em algum espaço. Confesso que nem vi o tal espaço, já disse que sim, que conseguia, coloquei meu nome, e ele falou: “Coloca DV embaixo!” Sei que ele tem esta pasta até hoje, com minha assinatura de contrato na sigla Destruidores do Visual. Eita! Eu estava falando de reuniões e do nada vim parar de novo em sigla? Liga não, me amarro em xarpi e falar sobre isso me deixa eufórico e acabo embolando tudo, vou me concentrar daqui pra frente. Então voltemos às reús e suas discussões. Se bem que hoje não tem mais isso, as reuniões viraram zona de trégua, não importa qual seja sua guerra na vida de pessoa comum.

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Com o retorno do pessoal da G80 para os muros, eles também voltaram a frequentar reuniões, e como eles estão ali na faixa etária de 35 a 45 anos em média, eles não querem saber de discussão, atrito, pois isso é coisa do passado, coisa de moleque empolgado. Foi bom eles terem voltado, pois deram a oportunidade da própria geração atual ver na prática este pensamento. Essa mistura de gerações está sendo importantíssima, pois os mais novos estão trocando experiências com os mais antigos, e os mais antigos se atualizando com os mais novos. Hoje é comum ver nas ruas nomes de dois ou mais pichadores de gerações diferentes. Antigamente nem em folha se via isso. Conheci pessoalmente muitos pichadores que só conhecia o nome na parede. Essa geração 2000 é a mais feliz da história do xarpi, podem acreditar. Eu mesmo tenho nome com um cara que jamais achei que fosse conhecer, nem no caderno eu tinha nome dele, que é o Pingo. Demos vários rolés pela madruga colocando nomes, hoje é um amigão, está morando em outro estado, mas sempre que tem um tempo aparece aqui no Rio de Janeiro. Acho que ele mudou de estado para ficar longe da pichação, porque ele voltou em um ritmo alucinante. Se for por isso, aí Pingo, não deu certo não, pois tenho visto pela internet que Minas Gerais está cheia de Pingos, toda noite aparece um Pingo novo, deve estar chovendo tinta o ano todo, ou tem goteira de tinta, porque é muito Pingo. Uma coisa que nos anos 1980 e 1990 não tinha, mas que hoje é bem comum, são os churrascos. Poderia ser xurrasco com “x”, já que se trata de um evento de xarpi. Aliás por que xarpi é com x? Se xarpi, vem de pichar com CH, e na língua do TTK, vira charpi? Quem meteu esse X? Voltando às reuniões, infelizmente elas acabam justamente quando estão no auge. Entendam como auge, quantidade de gente. Sempre que uma reunião está boa, os próprios pichadores acabam dando um jeito de estragá-la. Como? Usando drogas no local, pichando ao redor da reunião em dia de reunião 66


Reuniões de xarpi

e depois indo para ela. Isso gera denúncia dos moradores do bairro, dos seguranças da rua, e logo dá problema. Quantas e quantas reuniões não acabaram por nossa própria culpa. Infelizmente nós não sabemos preservar as reuniões, a gente mesmo não respeita nosso espaço, aí fica difícil de a sociedade respeitar a gente. Complexo isso, não? Visto que a gente também não considera a sociedade no quesito: “Esse espaço é seu?” Nós pensamos: “E daí, se tá na rua é meu também!” As reuniões sempre acabam, mas temos hoje os churrascos que, ao contrário das reuniões, não são diários, nem semanais, ou mensais. Podem ser em qualquer data e por vários motivos. Os mais comuns são os comemorativos, datas de aniversários de algum pichador, ou de alguma sigla. Não tem local definido, cada um que organiza faz onde achar melhor, depois vai convidando e convocando o povo. O primeiro churrasco que fui, foi o do Soma, lá em Del Castilho. Normalmente funciona com carne liberada e você paga só o que beber. Outros pedem uma contribuição para ajudar a comprar as carnes e as bebidas, e no dia quem ajudou tem passe livre, independente de quanto deu. Como disse, não tem um local definido para esses churrascos, mas um lugar que é bem utilizado é o sítio do Gocal, onde várias festas, churrascos e aniversários já foram comemorados e realizados lá. Ele cede o espaço, tem até agenda com fila dos eventos que vão acontecer no sítio, é um ambiente onde pode tocar som alto, cabe bastante gente, o dono da casa é o próprio Gocal, vizinhança não reclama do som alto, e é em um lugar que todos conseguem chegar pela acessibilidade de trens e ônibus, além de poder ir de carro também, já que não tem flanelinha te perturbando nas ruas ao redor. E dá para colocar nome lá dentro sem problemas, pois é muro livre, o problema é achar espaço. Um cara que sempre comemora seus aniversários nesse formato, de churrasco de xarpi, é o Polaco CNS, que consegue fazer de um simples churrasco um mega evento de pichação, 67


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reunindo em um mesmo local todas as gerações. Se bem que no caso dele, ninguém vai pela carne ou bebidas, mas porque todos gostam dele. Isso faz com que as pessoas voluntariamente divulguem o evento, ou no boca a boca ou em cliques pelas redes sociais, e no dia é aquela correria para arrumar mais carne e bebidas, pois sempre vai mais gente que o esperado nos aniversários do Polaco. A festa mais conhecida de rap aqui do Rio de Janeiro começou com a ideia da Kel de reunir os amigos em uma casa de festas para comemorar seu aniversário. Foi no extinto Balaio Cultural, e os MCs da noite eram pichadores: MC Leonel e Runk. Além disso, teve também show com o Comando Selva, que tem como ex-pichadores MV Hemp e Bocão. O apresentador foi o MC Sheep que também era pichador. Com o sucesso dessa comemoração, ela viu um potencial de fazer algo maior e mensal, naquele formato, e criou a festa Xarpi. Estive presente neste dia do Balaio Cultural, e em outras edições das festas, mas sempre como plateia. Ainda não tive a oportunidade de me apresentar lá, já que sou um MC que venho do xarpi e a festa tem esse nome, mas um dia eu chego lá. Outra festa que é sucesso no Rio é a XRF ou Xarpi Rap Festival, que acontece anualmente. A primeira foi na Penha embaixo do viaduto da Lobo Júnior. Mais de 500 pessoas estavam presentes naquele dia. É nesta festa que acontece a eleição dos melhores do ano do xarpi. Isso mesmo que você leu: existe uma eleição para saber quem foram os destaques do ano nas ruas em cada categoria, a coisa é organizada, cada um que entra na festa, recebe uma cédula, vota e deposita em uma urna. O mestre de cerimônia sempre avisa no microfone da votação, lembra que até tal hora pode votar e, depois dessa hora, uma banca de organizadores e alguns convidados entram em uma sala para fazer a contagem dos votos. A festa continua e no fim é informado o nome dos vencedores, que na verdade é uma brincadeira sadia, uma maneira de reconhecer quem são os que mais se destacaram, o que não quer dizer que o resultado seja de fato 68


Reuniões de xarpi

a realidade ou de concordância de todos. É uma eleição, ganha os que mais foram lembrados naquele dia, tem sempre uns e outros que não concordam com o resultado, mas isso é normal, é a grande beleza da democracia. As outras edições da XRF foram duas no clube Coimbra, na Penha, uma no Cine Lapa, e a outra na Boate Kalesa. A última, no sítio do Gocal, em 2012, participei como uma das atrações e fiz um show lá que me emocionou bastante, já que fui como plateia em todas as outras edições do evento. Lá no Kalesa eu estava envolvido com o rap, fazendo ali minhas primeiras rimas em caderno ainda, e assisti ao show da Cone Crew Diretoria — aliás um dos integrantes da Cone foi uma das pessoas que mais me incentivou a escrever este livro, não é mesmo, Papato? Assisti ao show deles me imaginando no palco, o microfone não estava bom, o som estava abafando, mas na última música o Maomé falou uma parada assim: “Eu rimo por comida no prato da minha filha. ”Caralho, aquilo mexeu comigo, e resolvi me tacar nessa vida maluca de MC. Na edição do evento do sítio do Gocal, os organizadores me deram a chance de realizar esse sonho e aproveitei! Ali começou a parceria com meu mano Ivan Florêncio que toca contrabaixo comigo nos shows sempre que pode. A festa da 288 também é de fato umas das mais bem organizadas. Em cada festa, eles lançam um lema ou slogan. Na primeira edição foi “Eles têm dinheiro, nós temos amigos.” “Eles” você pode entender como a máquina do sistema, em que seus laços se firmam pelo interesse monetário, no caso da 288 este laço de valor se faz pela amizade. Na segunda edição o lema foi: “Somos diferentes pois não vemos diferença.” Nesta festa não tem a tradicional eleição dos melhores do ano, prega-se a igualdade entre todos. Outro diferencial que gosto muito desta festa é que não é permitido o consumo de drogas no local. Também curto o fato de eles prezarem pela qualidade do equipamento de som, mas o que mais gosto é de poder dizer que fui atração em todas as edições até agora... É sempre um prazer tocar lá.

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RAPichação A pichação é o rap feito na parede O rap é a pichação feita com a voz Enquanto minha alma tiver parede Vou ter cor em minha voz Faço rap por amor, e às vezes até recebo um trocado Aê amo mais ainda, pois me sinto valorizado Faço rap por amor, mas também é por um pouco de orgulho Pra calar a boca de quem falou que eu só tinha dom pra pichar muro.

Já sem spray e com microfone como nova ferramenta de expressão.

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O parto Dedicado a todas as mães, mulheres fortes que dão suas vidas pelos filhos. Trabalhou durante toda sua gravidez Para defender o mínimo salário do mês Aturando ordens de patrão e frescura de madame Uma vez por mês, hospital, pré-natal, exames Gaúcha, doméstica, manicure e cabeleireira No Aurélio, Madalena deveria ser sinônimo de guerreira Conheceu e casou com um cearense, e sai dessa mistura Do Norte com o Sul, filho de uma geografia triste dura De pessoas que vem ao Sudeste em busca de emprego Pois em seus estados morrer de fome era um real pesadelo Em 11 de fevereiro de 1977 Finalmente o parto normal acontece Lágrimas nos olhos daquela nova mamãe No corredor o novo papai estourava champanhe Mas quando nasci já vi que o mundo não era fácil Apanhei do médico que fez o meu parto Até hoje quero pegar esse cara, bateu na minha bunda por nada Em bunda de neném não se bate, e em homem não se bate na cara.

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Vinga — Dark Conversando com o Dio DV pelo Face Brooklyn: Dio DV: Mais um pedaço de um livro que tenho certeza que lerei inteiro de uma vez só e várias e várias outras vezes, porque tem histórias como essa do Vinga que você relatou, e que ficarão para sempre. Falando em conhecer mitos do xarpi, lembrei que foi você que me disse que o Gota queria um nome meu, e quase não acreditei, logo o Gota que via nomes bem antes de pensar em começar a pichar. Acabei o conhecendo (gente finíssima), peguei nome dele obviamente, e de quebra ele ainda me apresentou ao Nado´s, outra lenda pré G-80. Nuno DV: Pode crer! Lembra lá em Copa, na Raul Pompéia, quem que eu te apresentei? Teste de memória agora. Dio DV: Pô, como eu poderia esquecer o dia que você me apresentou ao eterno número1, Vinga, lembro que fiquei impressionado que ele só ficava olhando para as marquises, imaginando como poderia subir... Nuno DV: O Rogério era doido... Vinga eterno!

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Vinga — Dark

Lendário Vinga no relógio da Central.

Voltando a falar do Vinga, acho que vocês já notaram que sou um grande fã dele, né? Neste dia, lá em Copacabana, fiz a pergunta que todos queriam fazer, e que até hoje tem gente que se pergunta! Perguntei como ele fez para ir ao relógio da Central e à Candelária. Ele já estava falando nas reuniões que tinha duas coisas lá no centro que queria pegar, que ia dar merda, e que com certeza ele ia ter que sumir depois que pegasse, mas não falava o que era. Sobre a Candelária, ele me disse que tinha nome do Pingo na varanda embaixo da cúpula. Ao olhar a varanda, percebeu que a cúpula era um bom local para pôr nome, e me disse que foi lá uma vez com o Jones, mas que no meio do caminho o Jones falou que não ia pôr nome ali não, que ia dar problema, e desceu. Neste dia ele não pegou, porque achou que o Jones tinha razão, mas depois ele mostrou a escolta para o Kil e para o Tufão. Como estes estavam também em um ritmo alucinante nesta época, pegaram a Candelária com o Vinga. Saiu em todos os jornais da época. 73


Rio de riscos

Duas coisas: 1ª - O Jones tinha razão, deu maior merda. 2ª - Hoje tanto o Tufão quanto o Pingo são religiosos faz mais de dez anos. Não tem nada a ver, mas é só pelo fato de eles terem posto o nome em uma igreja que escrevi isso. Sobre o relógio da Central, ele foi lá duas vezes na mesma semana. Na primeira ele chegou na reunião contando que tinha pego o relógio, mas ninguém acreditou. Então geral que estava na reunião foi lá no outro dia ver, e quando chegou lá estavam limpando, mas deu tempo de virar notícia. Até saiu nos jornais, mas nada comparado como o da segunda vez. Como limparam, ele voltou lá, e pegou de novo. Aí sim virou notícia nacional e talvez até mundial, e se deu início a caça ao Vinga. A mídia estava forçando as autoridades a pegar o Vinga, porque ele estava apavorando todas as igrejas da cidade. A polícia pressionada arrumou um falso Vinga, só pra dar uma notícia e falar ao povo que pegaram ele, mas não era ele não. O que mostraram, como se fosse o Vinga, mais se parecia comigo hoje, magrelo e branquelão. Este deve ter rodado em outra parada, e segurou o pepino. Isso acontece até hoje, alguém é pego fazendo algo e colocam na conta dele. Várias paradas que não foi aquela pessoa que fez, é o jeitinho da polícia brasileira de dar uma resposta para a mídia, calar a sociedade e limpar a mancha criminal. Mas logo todos viram que era um fake, pois a máscara caiu e o Vinga continuou subindo cada vez mais alto. Pegou a Igreja da Penha, na mesma noite que a polícia apresentou o suposto Vinga. Na matéria da foto também fala do Itamar, rsrsrs é o Dark, outra coisa que não deu em nada. Ele estava almoçando no trabalho e viu na televisão um plantão daqueles que interrompem a programação para dar um furo de reportagem. Falou 74


Vinga — Dark

As autoridades apareceram com um Vinga falso para dar uma resposta à mídia.

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no noticiário que a polícia iria pegar o pichador do túmulo do Cazuza há qualquer momento. Ele falou que parou de comer e ficou paralisado, mas continuou no trabalho. Ele estava parado e ouviu alguém falar Dark. Ele não olhou e a pessoa insistiu, Dark. Ele mais uma vez não olhou, mas foi detido, pois a polícia já sabia exatamente quem ele era. Chegando na delegacia ligaram para a mãe do Cazuza e ela mandou deixar pra lá, pois ele era um fã, e estava fazendo uma homenagem. Ainda sobre o relógio, ele me disse que viu como ia pôr o nome ali, pela televisão, nessas matérias sobre horário de verão. Como o relógio da Central não é digital e nem de corda, não dá simplesmente para atrasar ou adiantar, alguém tem que ficar lá segurando. Isso mesmo, segurando o ponteiro durante uma hora, e em uma dessas matérias mostrou a pessoa que ia fazer isso, e como ela ia fazer, por onde ela ia entrar e sair. A câmera mostrou lá de cima e ele viu que dava para andar e se segurar lá em cima. Como ele subiu? Por dentro, pois por fora não tem como. Hoje é complicado, muita câmera, burocracia, deixar documento na porta, tanto que o Kadu foi lá e rodou sem pôr nome. Mas antes era mais fácil, era só entrar. Ele entrou cedo e ficou escondido. Quando anoiteceu, ele fez o caminho que viu na TV (foi no prédio uma semana antes ver o trajeto) entrou na casa de máquinas do relógio, e saiu pelo buraco de onde saem os ponteiros, como mostrou na TV. Foi o comentário das reuniões e até hoje é conhecido como o grande feito de um pichador. Às vezes esbarro com o Dark aqui pela Ilha do Governador, já o Vinga o que se sabe é que teve um infarto em março de 2006. Quando a onda dos churrascos apareceu, uns pichadores foram na casa dele, e receberam a triste notícia de seu falecimento. Há quem diga que ele está vivo, porque de vez em quando aparecem uns nomes falsos do Vinga pela rua. Mas quem conheceu o Rogério sabe que se ele voltasse seria em grande estilo nas alturas. 76


Pichador também trabalha Comparando o xarpi com um empresa, escritório, ou qualquer trabalho, aqui também existem metas, planos, reuniões. Tem também aquele que mais fala do que faz, o que faz e não fala, apenas mostra resultados, tem o puxa saco, o invejoso, a gostosinha, o nerd, o brigão. Só não temos salário, como disse a Ana, no filme Luz, Câmera, PICHAÇÃO. Isso não dá dinheiro, se desse teria muita gente rica por aí! Então como vocês acham que pichador paga suas contas? Dentro da sociedade secreta dos andarilhos fantasmas, ninguém tem biotipo, cor, altura, peso definido, não tem como fazer um retrato falado de um pichador. Mesmo que faça aquele ditado de que quem viu uma baleia já viu todas, não vale para nós. Quem já viu um pichador, viu apenas um! Na verdade já deve ter visto vários, mas como isso é considerado crime, mesmo que de pequeno porte, as pessoas que picham não saem falando por aí que são pichadoras. É verdade que é um crime, quem sou eu para falar que não é, mas se pegar uma escada criminal o xarpi não chega nem no primeiro degrau dessa escada. Você já viu um pichador render alguém com uma arma, algo como “vou pichar seu muro, não se mexe se não te mato” ou fazer reféns e pedir tintas em troca? Contrabando de lata de spray? Boca de venda de tinta? Alguém morto por um nome perdido?

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Somos pais, filhos e mães, estamos em todas as classes sociais. Obviamente que tem sim uns que tombam para o lado da vida do crime, mas somos, em maioria, pessoas com hábitos comuns, salvo o fato da pichação. Somos uma espécie de carta coringa no baralho da sociedade, nos encaixamos em toda parte, cantos, profissões, empregos, subempregos. O professor que prepara seu filho para o futuro pode ser o Runk ou o Admirador da Arte. O policial que protege sua cidade pode ser o Jones, Gole, Girus, Mr Zoom, Gaby, entre outros. Você pode ter sido passageiro no táxi do Raba, Coat, Sexo, Fim, Klunk ou do Babão. Entrar em uma pet shop e comprar comida para o seu animalzinho de estimação com o Gol. Ter pego o ônibus que o Plaf dirige, assistir um filme onde o dublê era o Biriba, ter sido socorrido pelo bombeiro Soma, o contador de sua empresa pode ser o Cova, já deve ter comprado coisas nas barracas da Uruguaiana com o Tom, Sase, Ete, Brano, Mapa ou ter usado um sapato fabricado pelo Legião. Seu relógio já pode ter sido consertado com o Suíno, ter acessado a internet na lan house do Ape ou do Ponto 50, assistido uma novela que o Sereia era um dos atores, se hospedado no hotel que o Ria trabalha, ter sido tatuado pelo Placa ou o Frade. O Barão ou o Nado´s já devem ter advogado em alguma causa para você, a fechadura de sua casa pode ter sido trocada pelo Tag, o Fyt já teve ter ido trocar a máquina de cartão de sua loja. Já devem ter ajudado ou ficado com medo do Mik ou do Zak, por serem moradores de rua, e se bobear já até comeu sopa comigo lá na minha barraca. Xarpi não é profissão, então por mais que não sigamos as regras do sistema, estamos inseridos nele, e temos que sobreviver. Acabamos convivendo diariamente com vocês, trocamos ideais, conversamos, brigamos, bebemos, damos risadas, e vocês dizem que nos odeiam, sem nem saber quem somos. O valor de nossos impostos são os mesmos de vocês que se julgam normais. Já foi dito e, muito bem dito, pelo Caetano Veloso, que de perto ninguém é normal!

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Pichador também trabalha

Mas, apesar de estarmos nesses locais, sinto que faltam muitos outros locais que não estamos. Um dia pensei em um partido político de pichadores, não é doideira não, os evangélicos eram super discriminados pela maioria católica. Aos poucos, de eleição em eleição, foram colocando seus representantes lá dentro: pastores, bispos etc., formando assim uma bancada religiosa. Conquistaram espaço e terreno e hoje, lá de dentro, pode ter alguém que fale e olhe por eles. Umas das pastas ministeriais, por exemplo, é ocupadas por um deles, a da pesca. Quando o Bakana e o Rongo se candidataram, achei muito foda. Pena que não entraram, mas deram o passo mais importante que é o primeiro. Depois pensei em algo como uma associação dos amantes da tinta, algum lugar que desse apoio jurídico ao pichador quando ele fosse pego. Uma vez que tem vários pichadores que são advogados, todos precisam saber que se forem pegos andando com uma tinta, isso não é crime, e não tem porque deixarem levar sua tinta. Se fosse assim, todo pintor era pichador. Mas sobre a associação não basta só a ideia, tem que ter gente que coloque a cara e a grana para iniciar, e coragem para brigar com o mundo.

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Rio de riscos

Poluição visual? As eleições emporcalham a cidade bem mais que a pichação, com uma grande diferença, tem a foto e o nome legível de quem está emporcalhando. Aquelas propagandas do tipo: compro seu carro batido ou podre, curso de não sei o que lá, mãezinha que joga búzios, tarô, que traz a pessoa amada em alguns dias (nenhum tipo de preconceito a crença ou qualquer religião), mas essa propagandas são tão criminosas quanto as pichações, pois se apropriam do espaço público, junto com o xarpi, mas a burguesia consegue ler e não se sente incomodada. Já o xarpi, ao lado, parece de outro mundo, acham feio e se incomodam. Além da apropriação indébita dos locais, essas propagandas, muitas vezes, são chamarizes de estelionatários. O xarpi não engana ninguém. Já me disseram que o xarpi é um estupro visual, pois está invadindo espaço público, sem autorização, no caso consentimento. Sinto-me bem mais estuprado visualmente com os outdoors. As pessoas dizem que arte só é arte quando se assina ao lado, mas não assinamos nossa obra por um único motivo: a própria obra já é uma assinatura, mas seus olhos cegos não sabem ler. Essas propagandas nas ruas estão ali, também como a pichação, para serem vistas, atingir um público, é uma isca para pegar peixes do consumismo, mas como eles tiveram dinheiro para poder pagar e estar em um espaço público — se tem que pagar não é público, é privado, mas tudo bem, finjo que acredito, enfim — quer dizer que por terem dinheiro podem te estuprar visualmente com informação que você às vezes nem queria ver ou ter. Já a pessoa que foi ali de forma espontânea vira crimi80


Poluição visual?

nosa, pois não pagou para usar o público, que não é público na verdade. Se tiver algum burguês preconceituoso com o xarpi lendo esse livro, inconformado de um pichador ter escrito um, pois na sua cabeça de gênio a gente só sabia escrever na parede, me diz então, qual artista, pintor, que daria sua vida pela sua arte. Quando digo dar a vida é fazer como fez o Vuca, o Caixa, o Fele, o Seif, o Léo. Infelizmente a lista é grande dos que morreram enquanto pichavam. Assim como eles muitos outros pichadores caem ao se arriscar para deixar sua obra escrita, ou são espancados por moradores e seguranças despreparados de rua, são baleados por covardes que tem uma arma, e se sentem mais homens que o outro. Vocês falam que pichar é crime, mas crime muito maior fazem com o pichador quando ele é pego. Se vocês fossem tão justos como acham e falam que são, levariam pra delegacia! Hoje em dia a arte está vendida, não existe mais arte pela arte, o artista pinta suas obras no seu ateliê, fumando seu baseado, borra tudo, chama de abstrato, e diz que vale R$ 500,00. Pior é que tem gente que compra. Vocês vão achar que sou louco, na verdade sou, mas enfim, cadê o amor pelo que se faz? Ouço a chamada na TV, no próximo bloco: objeto de arte é roubado do Museu de Arte do Rio. Pensei: “Nossa! Como? Com aquele aparato todo?” Mas queria ver o que foi roubado, pois veio em minha mente aquela cena do filme O Código Da Vinci, aquela onde encontram o corpo com os símbolos, lembra daqueles quadros enormes maiores que uma porta? Achei que era algo daquele porte, ou então do filme Onze Homens e um segredo, devem ter feito um esquema foda pra roubar lá dentro. A vinheta do jornal começou, antes de darem a matéria do roubo entra uma outra sobre a possível privatização do Maracanã, mostram os custos previstos no início da obra e de quanto realmente custou, e que agora pode ser privatizado. Terminam a matéria dizendo “O Maraca é nosso, o Maraca é nosso!” Quanto a isso digo: “Alô torcida, se ele realmente for privatizado vocês 81


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irão ter que mudar esse grito para: “Uh! O Maraca é deles, o Maraca é deles!” Entrevistaram o Nunes, nossa como esse cara fez bonito quando usava a camisa do meu time! Acaba a matéria e vem outro comercial. Não falam nada sobre o roubo de novo, e o âncora promete, mais uma vez, no próximo bloco, falar sobre o roubo de uma obra de arte no MAR, Museu de Arte do Rio. Que maneiro, as iniciais do nome do museu formam o nome de um dos maiores pichadores da história, agora estou começando a acreditar que ali é um museu de arte de fato. Veio a reportagem, mostram a fachada do museu, os guardas municipais enfeitando a frente do prédio, as salas, câmeras de segurança, e minha curiosidade ia só aumentado sobre o objeto de arte, a pergunta em mente era: “Como?” O repórter explica que estava acontecendo uma obra do autor tal, como não considero aquilo que vi como arte, não cito aqui o autor. A ideia da exposição era uma total interação do público com as obras através de toques, e nada de falar do objeto roubado no jornal. De repente, a câmera foca em uma parede de azulejo com dois ganchos, parecidos com aqueles de pendurar pano de prato ou toalha, e começa a narrativa do repórter: “Foi justamente aqui, onde aparentemente é uma parede.” E pensei: “Como aparentemente? É sim uma parede!” E ele continua: “Foi daqui que roubaram o objeto, aqui nesses dois ganchos onde em um deles tem um abridor de garrafas pendurado, no outro gancho também tinha um outro que foi levado pelo ladrão.” Quase dei um soco na TV, mas como Newton disse que toda ação tem uma reação igual e contrária, se eu quebrasse a TV, ela poderia quebrar ou cortar minha mão, e ainda ia ter que gastar com a compra ou conserto de outra. Só pode ser sacanagem, um abridor de garrafas? Então eu tenho uma obra de arte lá na gaveta da cozinha e nem sabia? Tenho até mais, porque se eu colocar ele lá no banheiro pendurado no suporte de toalha, posso cobrar entrada pra virem no meu banheiro. Imagina que honra, você defecar ou urinar no meu banheiro contemplando uma obra de arte? 82


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Vou ficar rico. Quando disse mais acima que a arte está vendida, isso é um exemplo. As pessoas que definem o que é arte enfiam qualquer coisa em você, e pelo simples fato de se estar em uma exposição, em um lugar que só abre as portas para o que “eles” consideram arte, todo mundo acredita, na boa. É como meu irmão Rodrigo diz, vamos voltar a realidade... Pois se um abridor de garrafas é arte, todo boteco ou restaurante é uma galeria de arte então, todo garçom, com respeito total a profissão, até porque já trabalhei em buffet como tal, teriam uma obra de arte nas mãos. Quando ele for abrir sua garrafa, fotografe, reflita, sinta a emoção daquele momento, a expressão, a luz e a alma envolvidas naquele instante de inspiração de uma garrafa sendo aberta. Está decidido: vou fazer uma exposição aqui no meu banheiro, pois a parede também é azulejada e tem os ganchinhos. O nome da mostra será: Olhar cínico da cultura de bosta! Interação total com o cheiro da arte. Curioso foi a nota que o locutor leu do museu tranquilizando a população. Resumindo era assim: “A peça exposta e roubada era uma réplica e já foi substituída, sem prejuízo ao artista, à obra e aos visitantes do MAR.” Aí vem eu, no auge da minha ignorância, e te pergunto, pois de repente não entendi direito! Eles cobram entrada para uma exposição em peças não originais? A gente fica lá admirando várias réplicas? De alguma forma isso não é pirataria? Esse povo precisa ouvir Gonzaguinha, porque a gente não tem cara de babaca! Hoje tudo se justifica pelo dinheiro, é mais fácil um pai aceitar um filho ladrão e não aceitar um filho pichador, pois o ladrão, coitadinho, está roubando porque não teve oportunidades, a sociedade não o inseriu em nada. Com todo o respeito aos seguidores de Dilmas, digo que isso não existe, todos temos oportunidades, uns mais, outros menos, mas todos temos uma chance em algum momento de nossas vidas, aproveitá-las ou não é que é a questão. O ladrão teve a oportunidade de não pegar uma arma, mas desperdiçou. Eu mesmo desperdicei quase todas 83


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as oportunidades que tive, demorei, mas estou revertendo este quadro graças ao rap, e consegui me enxergar, vi no caminho que meu fim estaria bem próximo. Muitas pessoas, que hoje vejo que gostavam de mim, me falavam que eu estava doente. Mas não adianta querer ajudar aquela pessoa que não quer ser ajudada, e acabei perdendo essas chances de ajuda. A pichação teve efeito de uma droga em mim, com a seguinte diferença: as drogas convencionais, lícitas ou ilícitas, te afetam de fora pra dentro, o xarpi te afeta de dentro pra fora. Você identifica facilmente, através de sintomas ou pela aparência alguém, que usou drogas ou bebeu álcool, mas é impossível identificar alguém que acabou de pôr uns nomes na pista. Os sintomas do xarpi são lentos, indolores e silenciosos, mas deixam marcas que às vezes não tem como recuperar. Por exemplo, pichador tem uma vida dentro de outra vida: a comum, vamos dizer assim, é a diurna, e a de pichador é a noturna. Sol e lua combinam, mas não se encontram, muito menos se misturam, mas eles são dois astros, dois corpos. A pessoa que opta por essa vida dupla tem apenas um corpo e 24 horas por dia para vivê-las, então uma vida acaba entrando na outra. Se você se dedicar demais em uma, terá reflexos na outra. Amo o xarpi, e os locais que ele me coloca, mas minha família sofreu e tive muitos reflexos disso em minha vida. Por viver acordado na madrugada, fui muitas vezes sem dormir para a escola. Em médio prazo, minhas notas caíram. Sempre fui calado em sala pela minha baixa autoestima, mas era um dos melhores no quesito nota, e fui perdendo nisso também. Nos empregos chegava cansado, atrasado, ficava sonolento, até que a paciência de patrões e gerentes chegava ao fim, e acabava saindo. Perdi namoradas por acharem que era impossível eu sair na madrugada apenas para xarpi, elas cismavam que eu tinha amantes. Minhas roupas eram todas manchadas, minha mão sempre estava com resíduos de tinta, rosto com aspecto de cansaço e olheiras. Sempre fui magro, mas a alimentação descontrolada junto com as noites viradas ajudou a ficar mais 84


Poluição visual?

magro ainda. Enfim, se for colocar em uma balança as coisas que você perde são mais valiosas que as que você ganha. Uma coisa que perdi, e esta foi sem preço, e até hoje luto pra recuperar, foi o respeito e a confiança dentro da família, de tantas as vezes que meu pai e minha mãe já foram me buscar na delegacia. Tinha vezes que eu realmente ia para uma festa, e eles davam uma alfinetada. Quando eu estava saindo, falavam: “Juízo, Leandro, não vá fazer besteira!” Queria que meu pai estivesse vivo pra ver como mudei. Mas ele deve estar vendo tudo de onde estiver.

Tudo que eu fiz, sempre fiz pela metade Abandonei os estudos, não entrei na faculdade O tempo foi passando e avançando a minha idade e o sentimento só crescendo de que não dá mais, agora é tarde Pra seguir em frente, eu tive que olhar pra trás Ver tudo que não fui e não seguia mais Sei que caminhei na estrada da ilusão E tropecei na realidade, já com muito tempo em vão A carreira militar abandonei e joguei fora Diploma do ginásio nunca fui buscar na escola Vários cursos que entrei que nunca terminei A resposta disso tudo até hoje não encontrei. Trecho de Parar não tá nos planos

Desculpe voltar nesse assunto agora do abridor de garrafas, mas acabo de ouvir no rádio que na verdade é um abridor de latas, como se fosse mudar muito minha opinião saber disso!

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Bate-papo com Ellus Um dia desses no Face Brooklyn: Ellus - Fala Nuno, blz? Nuno - Salve mano! Ellus - Tudo certo? Nuno - Sim, sempre. Nuno - Tá no RJ? Ou pelo mundo? Ellus – Cara, eu tive aí no Rio em abril, mas foi meio complicado. Meu pai tava doente e veio a falecer... Eu tô morando em Genebra já faz três anos. Nuno - Meus pêsames mano, também sei o que é perder um pai. Genebra é Itália? Ellus - Suíça. Nuno - Nunca fui bom em geografia, rsrs! Ellus - Genebra cara, sede das Nações Unidas. Nuno - Tem ideia de quando vai passar por aqui no Brasil? 86


Bate-papo com Ellus

Ellus - Eu tô vendo, talvez final do ano. Nuno - Tá perto então. Ellus - Não tenho certeza ainda. Tu tá mandando no rap? Nuno - Sim, sim, o rap me tirou do xarpi. Lancei um som novo hoje. Ellus - Maneiro! Hoje penso também que xarpi foi uma fase, uma boa fase, mas muito risco pra nada. Nuno - Pode crer! Pena que só depois que sai é que percebe. Ellus - Normal né, cara. É como uma droga, exatamente uma adequação, agradeço ao xarpi muita coisa, acho que se não fosse o xarpi não teria essa formação boa. Nuno - É verdade, conviver de perto com o errado ajuda a valorizar agora e focar só nas coisas boas. Tô escrevendo um livro, acho que devo isso ao xarpi, só escrevi em paredes, mas vou deixar algo escrito onde não apaga, e as pessoas que se dizem certas não discriminam.

Ellus, um dos melhores e mais completos pichadores da geração 2000.

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Ellus - Que irado, cara, maneiro! Nuno - Vou sair daqui irmão, acordar minha filha pra ela ir pra escola, abração. Ellus - Valeu, mano, abração, saúde pra ti e sua família. Nuno - tudo NUNOsso que essa corrente e seus Ellus não se quebrem! E fica com esse som aê, fiz pro meu coroa: https:// www.youtube.com/watch?v=hO4tKHZNvz8.

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Paredes e muros “Paredes e muros não são contratos Mas muitos deles estão assinados.” “Alfabeto confuso e difuso na escuridão Contraditória história onde o herói é o vilão.” Trechos de Tszzz, de Nuno DV — Dan Martins

Não adianta entrar em uma biblioteca e pedir o exemplar do almanaque, ou guia da pichação dos anos 1970, 1980, 1990 ou 2000. Com os nomes, siglas, bairros, fotos, você vai dizer: “Não, Nuno, existem arquivos e catálogos sim, que são os cadernos e pastas.” Ok, você tem razão, existem sim, eu mesmo falei isso lá atrás, mas o arquivo das ruas tem sentimento, tem suor, tem noites de sono perdidas, brigas em casa, risco de ser preso, pego ou morto, adrenalina, histórias, caminhadas, enfim, o nome na parede fica de assinatura para lembrar daquele dia. Nossos arquivos sempre foram os muros, sempre que se pinta um muro ou uma marquise — sei que é direito da pessoa ter o muro limpo —, mas ao limpar se apaga uma página do livro ao ar livre da pichação. Hoje temos fotos, vídeos, outras formas de eternizar, mas muita coisa se perdeu no tempo. Não tem fotos do lendário do Seif no topo em ziguezague na avenida Brasil, onde ele escreveu “A todo vapor”. Ele começou a sequência de nomes com uma tinta preta, acabando a preta, continuou de azul. Mais de 30 nomes. Também não temos fotos do local onde 89


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Salada de hist贸rias, vidas, sonhos e cicatrizes.

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ele morreu, em 1994. Curiosamente ele escreveu lá: “A morte só assusta aqueles que a temem.” Sempre que passo no local fecho os olhos e vejo claramente na memória os nomes dele lá em cima. O xarpi digital infelizmente não existia nos anos 1980 e 1990. Hoje existem variedades de fotos do local de onde o Vuca caiu em 2009, do corpo do Caixa sendo removido pelos bombeiros. Fotos que poderiam não existir, pois preferia que eles estivessem vivos. Mas a covardia e a correria das ruas os tiraram de nós, e hoje só estão vivos na memória de quem os conheceu. Mesmo que apaguem seus nomes, terão fotos intactas pra quem não viu poder ver, e saber que ali estiveram. Quase chorei quando os grafiteiros tamparam o muro do Jóquei, no bairro do Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro. Estava decidido a ir lá com galão de tinta e pintar o muro, pois pintar muro não é crime. Ia fazer de manhã, só para algum grafiteiro que cobriu os nomes passar e vir tirar alguma satisfação. “Cobriram nossa história, agora vou cobrir a de vocês.” Mas são aquelas ideias que a gente tem de cabeça quente, que logo passa, e que entendemos que um erro não justifica o outro. Mas, sempre que passo por lá, um diabinho sopra no meu ouvido essa ideia! Ali tinha nomes de todas as gerações. Vejo o vídeo feito pelo Road, em que ele felizmente gravou o muro quase todo, e foi narrando e apontando os nomes que, para ele, tinham mais valor de destaque. Pois xarpi é assim mesmo, questão de visão. Às vezes você passa por lugares em seus caminhos diários, de casa para o trabalho, por exemplo, e neste caminho algum pichador tem muito nome. Outra pessoa que faz outro caminho acaba não vendo esses nomes. Quem mora na Ilha do Governador e trabalha no centro, deve achar que meu nome o segue, mas se a pessoa mora em Jacarepaguá não vai ver nenhum nome meu, ou seja, eu não existo naquele itinerário.

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Este livro é uma forma de deixar algum legado de informação para as futuras gerações. Quando chegar o dia que o xarpi for respeitado, e eles tiverem ganhando grana para pôr nome na casa dos outros, como já acontece com os grafiteiros — que foram tão discriminados quanto os pichadores, mas que se organizaram e chegaram aonde chegaram, e hoje recebem e são considerados artistas —, lembrem-se que a vitória de vocês foi graças à luta do pessoal dos anos 1970, 1980, 1990 e 2000. Não esqueçam que a gente se ferrou muito para vocês baterem no peito e poderem dizer que são pichadores com muito orgulho. Tenham respeito aos que fizeram o caminho que hoje vocês andam. Sigam em frente, mas sem pisar na gente, pois o passado sempre te encontra no futuro, e cobra seus erros. As assinaturas nas paredes mudam de geração em geração. Como os muros não crescem com o tempo, fatalmente os nomes tiveram que mudar. A caligrafia dos anos 1970 eram literalmente frases: “Celacanto provoca maremoto”, por exemplo. Agora me diz se hoje dá pra encaixar este nome em uma pedrinha? Nos anos 1980 os nomes eram extensos e parcialmente legíveis para olhos comuns: Cobra, Raba, Smal, Duran, Mar e Fol davam pra ler tranquilamente. Lembra do “o” do Tufão e do nome do Comunista? Uns vinham com uma caligrafia mais elaborada como a pirâmide Plank? E o nome do Grilo? O coelhinho Omo e o guarda-chuva do major, a capa do Manto da ilha, vários são os exemplos. Nos anos 1990 nomes de quatro ou cinco letras tomaram as ruas, e já com menos enfeites de anos atrás. Seif Cola, por exemplo, era só o nome e quase não tinha enfeites. E neste período se polarizou a coisa de pôr nomes de cabeça pra baixo nos topos do prédio. A geração 1980 achou espaço nos muros que tinham nomes da geração 1970. A geração 1990 também conseguiu achar espaço 92


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nos muros com nomes da geração 1980 e criou alguns. Seguindo essa ordem a geração 2000 queria ter nome nos mesmos locais onde tinha nomes das gerações anteriores. Mas para poder caber ali, tinha que pôr nome pequeno ou só caberiam aqueles nomes de três ou quatro letras compactados, já quase virando símbolo. Dessa falta de espaço surgiu a necessidade de criar novos espaços, daí começou a coisa de pegar segundo e terceiro andar, que logo viraria o prédio todo em sentido vertical, já que na horizontal não cabia mais nomes. E também o estilo filhotinho: nomes minúsculos que para serem feitos tinham que afinar o birro, pois com o birro na espessura normal apareceria só uma mancha. No meio dessa falta de espaço toda, eis que surge o fat cap, um birro de espessura três ou quatro vezes maior que a comum. Para você ter uma ideia eu coloco apenas cinco nomes com um fat cap, com um birro comum fica entre 20 e 25 nomes. Isso tudo se misturou em 2005 até agora. Hoje, na criatividade para achar novos espaços, vale tudo. Desde subir no ombro para chegar um pouco mais alto, subir no cão do carro, levar escada, corda, qualquer ferramenta vale na procura por novos espaços. Só não vale cobrir o nome do outro.

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Cevo besa larfa a sanos gualin? Hoje em meio a tanta tecnologia, rede sociais, informação em tempo real, as coisas mais antigas vão ficando pra trás, como o VHS, que sumiu para dar lugar ao DVD, a fita K7 e o vinil que foram eliminados pelo CD, que, por sua vez, nesta selva tecnológica, já tem um candidato a algoz chamado mp3, que virou mp4 e depois mp5. Enfim, aquela velha frase que o novo já nasce velho realmente existe. O xarpi também sofreu ou se beneficiou desta máquina evolutiva. Hoje você mora na zona norte e coloca um nome na baixada, no outro dia, através de fotos publicadas na internet, todos podem ver o nome, sem nem mesmo terem ido ao local. Virtualmente é a montanha vindo até Maomé. Já que antigamente, para você ou outras pessoas verem seu nome, era só na rua mesmo. Fui certa vez em Niterói assistir a um jogo do Flamengo e, lá pela região do estádio, achei uma lata com um restinho de tinta. Coloquei dois nomes, e nunca vi esses nomes. Era bem comum casos como este: de pichadores irem a determinados bairros para fazer alguma coisa, a trabalho ou a lazer, mas que não foram lá para pichar, e surge uma oportunidade. Encontra alguém com uma tinta, ou algum modo de acesso a tinta, e coloca uns nomes naquele lugar. Depois nunca mais teve oportunidade de voltar lá e ver o nomes. Você que é pichador e que está lendo isso, tenho certeza que tem um caso desses.

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Por um lado acho bom essas novas mídias terem surgido, no sentido de arquivamento. Já que nas ruas os nomes não possuem garantia de ficarem lá. Porém acho que a partir do momento que se popularizam as coisas, elas perdem um pouco de suas raízes. Muita gente que entra em qualquer coisa por moda, acaba aderindo ao xarpi, por moda também, achando que é só pôr nome na parede, tirar uma foto e pronto. Essas pessoas não procuram saber os fundamentos, não sabem quem são os caras do passado, e geralmente param de pichar na primeira vez que roda ou passa um sufoco. Enfim, não quero entrar nesse mérito. Mas sei que para estar na tela de um computador, primeiro, o nome tem que estar na rua. Xarpi é e sempre será RUA, como diz Rabisco União Atitude.

“Cialipo gape e tabo pra parlim dotu Só quepor eu itrudes o alsuvi guali o Nonu.” Trecho de Rap do xarpi 6 (MC Leonel)

Tradução: “Polícia pega e bota pra limpar tudo Só porque destruí o visual igual o Nuno.”

Além do alfabeto confuso, tínhamos também o dialeto confuso. Disse “tínhamos”, pois a evolução acabou transformando a língua do TTK em lembrança do passado. Com a volta do pessoal da G80, os “xarpinissauros”, ela acabou naturalmente sendo resgatada, mas em força pequena. Lá pelos anos 1980 e 1990 era tradição os pichadores, além da escrita própria, terem também uma linguagem própria, sem nenhum tipo de metodologia oficial. Quem ia entrando neste mundo da tinta, ia aprendendo a língua do TTK, que nada mais é do que a habilidade ou a capacidade de falar as palavras com as sílabas de trás para frente. Quanto mais treinado e habilidoso o pichador ia ficando, tanto em falar 95


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quanto em ouvir, mais as pessoas ao redor não entendiam nada. Pensavam que era algum outro idioma, o que não deixava de ser. Assim uma nova língua portuguesa, dentro desse já tão complicado português, onde se você colocar um baiano, um cearense, um gaúcho e um carioca — pessoas que falam teoricamente a mesma língua —, eles terão termos e gírias locais que um, às vezes, não vai entender o outro. Ao contrário do que se pensa, a língua do TTK não foi criada pelos pichadores. Foram os presos políticos da época da ditadura que a criaram. Esta era a forma de se comunicar perto de quem não poderia entender, já que muitas vezes eram planos e segredos de resistência. Conversavam assim, nas prisões ou nos comboios, quando os soldados de direita estavam perto. Tem este nome “TTK”, porque ao contrário é KTT, ou seja, CA-TE-TE, local onde se originou as primeiras palavras. Pelas histórias contadas pelos mais antigos, a capital do Brasil não era Brasília, era o Rio de Janeiro. Tenho pra mim que a capital saiu do Rio para os políticos ficarem longe do povo. A corrupção já devia comer solta naquela época e perto do povo a cobrança era quase que diária, então fugiram para Brasília. Mas voltando ao assunto, foi ali pelo palácio do Catete, onde o povo sempre tentava se manifestar, é que surgiam as covardias do governo e dos cassetetes pesados dos soldados. Hoje os cassetetes são emborrachados, mas nessa época eram de madeira. A língua se iniciou como efeito colateral da covardia, pois já que não temos meio de comunicação com vocês, vamos então criar nossos meios pra isso, pelo menos entre nós. E como disse o pichador Tribo no filme Que o mundo veja — Retratos da pixação carioca: “Enquanto houver insatisfação, vai ter aquele que contesta.” Vale lembrar que o Tribo também tem um livro publicado sobre pichação. Mas voltando ao nosso TTK, lembrei de algo muito curioso. Foi justamente nesta época, junto com o dialeto confuso, que a escrita, que não era confusa, virou crime. Pois até então o ato de se escrever nas paredes era 96


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visto como registro histórico, maneira das pessoas que viveram ali e deixaram relatos de comportamento. Será que os homens das cavernas eram pichadores? Aquelas inscrições egípcias que ninguém entende, mas que todos acham lindo, não seriam pichações da época? Será que daqui a uns mil anos as futuras gerações vão nos estudar a partir das pichações nas paredes? Tá achando que sou doido? Não ache, tenha certeza, sou louco sim! Mas são os loucos que fazem as coisas mais relevantes no mundo, pessoas normais nascem e morrem e nem são notadas, no final são os loucos que serão lembrados. Nada é mais perigoso que um louco informado. Como estava dizendo, foi nessa época que o ato de escrever na parede virou crime, simplesmente porque, com a pressão da censura, os artistas, jornalistas e formadores de opinião da época não podiam publicar nada que fosse ou insinuasse algo contra a direita política. Tudo antes de ser publicado ou exibido tinha que passar por um comitê de censura. A pichação foi um dos modos encontrados para expressar a indignação do povo e o desejo de “Fora a ditadura”. Pois como escrevi há algumas linhas acima, escrever na parede até então não incomodava ninguém, mas como o governo não tinha como combater isso, logo transformou-se em crime o ato de escrever nas paredes. Nessa época a pinchação, é isso mesmo pin-cha-ção, pois era feita com pinche, aquele material de fazer rua, mas a pichação ou pinchação, hoje xarpi, foi muito importante nesta época como ferramenta de voz popular. Tão importante que os poderosos se incomodaram e criaram medidas contra ela. Não era feita como nos dias de hoje, que você vai a uma loja, escolhe uma cor, hoje temos tintas e várias marcas de spray. Era feita com pinche quente, junto com tinta, latões pesados, mas tudo valia a pena para passar a mensagem de insatisfação popular. Após o plebiscito, finalmente caiu a ditadura, pelo menos na teoria, e vivemos em democracia. As coisas evoluíram, leis foram revistas, mas ainda acham que pichar é crime, unicamente pelo 97


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fato de as pessoas não entenderem o que está escrito. Pichação é uma espécie de propaganda, mas para um público direcionado. Como está na rua, aberto a visão de todos no meio de outras propagandas, sofre preconceito. Mas admito que de protesto a pichação não tem mais nada. Desde a época dos lendários pichadores Lefarmu e do Celacanto, que se tornou uma coisa de autopromoção, um preenchimento de egos. Hoje tem as disputas de bairro, de siglas, quem pega mais alto, quem tem mais nome, quem tem mais nome longe, mais, mais, mais e mais. Esta disputa preencheu a cidade de nomes chamando a atenção de quem se acha certinho, gente que trai a esposa, bate nos filhos, rouba a empresa, mata aula, transa com o chefe sabendo que ele é casado, pratica pedofilia nas igrejas, finge que faz regime, promete e não cumpre, vende e não entrega, tira bandido da cadeia, bate em camelô, gente que usa crianças para traficar drogas, entre todos esses exemplos de pessoas “gente boa”, o pichador é visto como vândalo, criminoso e sem nada na cabeça. Curioso é que o Gentileza era pichador, chegou lá, colocou suas frases, e hoje é tombado como patrimônio cultural. Eles consomem pichação sem saber que é. A Cissa Guimarães que me desculpe, mas ela pichou dentro do túnel que o filho dela foi atropelado, e saiu em todos os jornais como uma linda homenagem. Vai eu colocar um nome do lado para algum amigo ou parente meu que morreu, vou preso na hora. No Brasil, a lei não é igual para todos, e tem outra: a Prefeitura do Rio deu garantias que não serão apagadas as “homenagens ao Rafael”. Aí eu pergunto: se eu pichar e do lado escrever “Saudade, Rafael”, eu estou liberando para pichar? “Eu quero a paz e falo de frente pra trás Se mover pra ajudar, isso quase ninguém faz.” Trecho de Quebrando regras (SB-U Crew)

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Dotanvol a larfa do TTK. Mesmo tendo perdido força, mesmo estando com os dias contados, ainda tem focos de resistência marginal usando o TTK. Ouço em vários raps, pequenas, vamos dizer assim, pequenas sementes da língua, soltas nas letras de músicas, que às vezes são músicas que nem são sobre xarpi, mas o TTK está lá. Acho que sempre vai ter alguém usando o TTK de alguma forma, mesmo sem saber a origem. Enfim, terminada esta questão do TTK, ropees que cesvo jamtees dotangos sedes vroli.

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Rodar Rodar é o mesmo que ser pego, é quando a sorte estava naquele dia, ao lado do dono da casa. Assim como um goleiro não entra em campo pra tomar gol, um pichador não sai de casa pra rodar, mas ambos sabem que estão sujeitos a isso. No futebol, é pichador contra... Contra quem? Polícia, segurança, milícia, morador, câmeras! Este jogo não tá justo não, hein! O outro time é mais forte! Mas na vida real o pichador sai de casa com 50% de chances de rodar ou de voltar pra casa sem rodar. Esta porcentagem aumenta ou diminui, de acordo com cada pichador. Se o pichador sai de casa sem saber onde vai pôr o nome, pega a tinta e sai sem destino, ele fica mais tempo na rua, perde tempo procurando espaço para pôr o nome, perde tempo vendo por onde vai subir, escalar etc. Isso aumenta as chances de não se dar bem, independentemente se ele vai pegar algo de dificuldade extrema ou vai só pôr nome no baixo. Aliás, colocar nome no baixo parece fácil, mas eu acho muito arriscado, pois naquele momento que você vira de costas pra rua e está pondo o nome, é a hora que alguém pode passar e te dar um tiro, alguém de uma janela te ver e te denunciar. Quem coloca nome no baixo merece tanto respeito quanto os que colocam nome no alto. No alto eu só não me sentia bem colocando nome em janelas, pois nunca se sabe quem está dormindo dentro da casa, e nem qual vai ser a reação de quem acorda e vê alguém pendurado na sua frente. Eu já fui empurrado certa vez, sorte que era só um andar e destronquei apenas o pulso. Por isso aconselho a você, que é pichador e está lendo este livro, a só sair consciente do que vai fazer naquele dia, pois só 100


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o fato de estar andando de madrugada já desperta atenção. E ficar parado olhando pra cima de uma casa ou de um prédio chama mais atenção ainda. Isso se estiver sozinho, imagina estas mesmas situações com três ou quatro pessoas, é pedir pra tomar gol! Pro goleiro não tomar gol, ele treina. O pichador pode diminuir as chances de ser pego se ele perder um pouco de tempo, mapeando locais onde ele quer pôr o nome, indo no local de manhã e olhar o caminho que ele vai fazer pra subir, ver onde no local ele vai pôr os nomes. Se der, ir no local a noite pra ver como é a movimentação perto do horário que ele vai lá para pichar. Este cuidado me fez ser um cara que tomou poucos gols do adversário, mas situações inesperadas acontecem. Em Copacabana eu já havia feito todo meu dever de casa, levei o Rito PD comigo no local, porque precisava de um canhoto para pegar o outro lado do prédio. Escolhi o dia de menor movimento, dia que o bar fechava mais cedo, local por onde subir e descer, enfim, estava tudo sob controle, menos por um motivo, vou contar. Chegamos em Copacabana às duas horas da madrugada, os bares da esquina da Hilário de Gouveia e da esquina da Paula Freitas estavam ambos abertos, mas já em clima de fechar: a faxina já estava bem adiantada, e só tinha aquele povo da saideira... Que só sai na verdade quando o bar fecha! Mostrei o prédio pro Rito, os detalhes de por onde subia e fomos pro calçadão da praia marcar um tempo, até os bares fecharem. Voltamos já eram umas três e quinze. Quando atravessei a rua pra subir tinha um casal, na esquina da rua, bem de frente pra delegacia. E de frente da portaria que eu ia usar pra subir, o casal era beijo, abraço, amasso, beija de novo, beija mais, ela parava, ele puxava, ele parava, ela puxava, e tome beijo! Deu três e meia da madrugada e mais beijo, beijo de tudo que era jeito. Eu e Rito estávamos achando que eles iriam chegar ali mesmo aos finalmentes. Beija mais, de lá, de cá, vira ela, vira ele. Às três e cinquenta e cinco, não aguentei, e resolvi subir com eles olhando e tudo. Atravessei a rua, subi na grade da por101


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taria, passei para o letreiro da locadora, agarrei na marquise, e quando estava lá em cima olho pro casal e adivinha o que eles estavam fazendo? Beijando muuuuuuuuuito, se bobear nem me viram subir, mas era bem na cara deles o local da subida. O beijo devia estar muito bom pra eles não terem visto. Olhei pro Rito e o chamei por gestos. Quando ele começou a subir, a luz da portaria do outro lado da rua acende, apareceu o porteiro olhando pro Rito e depois ele me viu em cima da marquise. Olhei para o Rito, fiz sinal para que ele não subisse, e desci. Acho que ele nem entendeu. Atravessei a rua e fui falar com o porteiro. “Pô, aí, eu sou pichador, e vou fazer uns rabiscos ali, naquele prédio. Não precisa ficar preocupado não, que não somos ladrões, estou te avisando só pra você não achar que a gente é ladrão e chamar a polícia. Eu até sei que ali do lado tem uma delegacia, mas vai ser coisa rápida, valeu?” Ele fez que sim com a cabeça, com um olhar meio assustado. Então atravessei de novo a rua e fui subir pela segunda vez. Depois de dar a ideia no porteiro, lá vou eu de novo subir. Falei pro Rito só subir depois que eu já estivesse lá em cima. E querem saber o que estava fazendo o casal? Isso mesmo, beijando! Subi, coloquei o birro na lata, vi o Rito atravessando a rua, coloquei um nome e quando estava indo para o segundo andar ouço aquele motor, que mais parece o som do pesadelo. Olho pra rua e está vindo uma viatura, que parou no sinal embaixo de mim. Fiquei atento pra ver se eles iam olhar pra cima. Meu único medo era de eles terem visto o Rito tentando subir, pois aí logo eles iriam olhar pra cima e ver um doido pendurado. Mas logo vi o Rito indo em direção ao ponto de ônibus e relaxei. Eles ficaram lá parados olhando pra delegacia, conversando algo. Se eles levantassem só um pouquinho o olhar, já era! O sinal abriu, mas eles não saíam. Pensei que tivessem passado um rádio pra delegacia, tipo: “Sai aí pra vocês verem uma coisa aqui fora” ou “Vocês não vão acreditar, mas tem um doido pendurado no prédio ao lado de vocês”. O sinal já estava aberto, eles não 102


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saíam, e eu lá brincando de estátua pendurada, meus braços já estavam tremendo. Eles finalmente saíram, fiquei acompanhando a viatura — aliás ela indo embora é linda, vindo é que é feia —, eles viraram na Siqueira Campos, achei que tinham visto o Rito e me visto, e estavam blefando para o Rito vir e eles pegarem os dois na boa. Desci de novo, procurei o Rito, que não estava mais no ponto de ônibus. Achei ele lá na Paula Freitas olhando para uma janela, que, depois da primeira missão, fomos lá e pegamos. Ficamos ali na Paula Freitas, pois se eles fossem dar a volta, ali era o melhor local para vermos a viatura, mas ela não aparecia. Fomos então para o objetivo. Advinha o que o casal estava fazendo? Errou, o cara estava parando um táxi, e ela estava falando no telefone. Detalhe, aquela hora da madrugada ela ligou pra alguém! O cara foi embora no táxi, mas antes mandou um beijinho, e ela me entra falando no telefone justamente no prédio em que o porteiro tinha me visto. Olhamos a mulher beijoqueira entrando no prédio e falando no telefone. Achei que ela estava ligando pra polícia, afinal ela tinha visto tudo acontecer, pelo menos a gente achava isso. Marcamos um tempo pra ver se ia aparecer alguma viatura para verificar a denúncia, caso o telefonema dela fosse denúncia. Como não apareceu, lá vou eu subir pela terceira vez na marquise. Minha ideia era subir colocando os nomes, mas como passei um sufoco com a viatura parada embaixo de mim, falei para o Rito pra gente subir sem colocar nome e depois descer colocando, pois se a gente fosse pego pelo menos o topo estava garantido. Então lá fomos, já sabia de cor o caminho. Chego lá em cima, o Rito sobe também. Apertamos as mãos, sem falar nada, mas deixando a entender que era para dar boa sorte um pro outro, e fomos, quadrado por quadrado, devagar e respirando, de andar em andar, até chegar ao topo do prédio de dez andares. Todo mundo sabe que não se deve olhar para baixo, mas é inevitável. Olhei pra baixo, os ônibus pareciam de brinquedo e a gente 103


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passando bem ao lado das janelas. Se alguém aparecesse nem quero pensar no que poderia acontecer. Depois que chegamos ao topo não tinha mais pra onde ir, então descemos rabiscando. Ainda consegui rasgar minha camisa na portaria do prédio, ela agarrou na ponta da grade, mas eu não estava nem aí. Depois de uma escalada dessas nada mais ia me aborrecer naquela noite... Como disse, este cuidado em ver antes os locais onde ia pichar, me fez ser um cara de poucas rodadas, mas, em ingrata compensação, nas vezes em que rodei todas foram situações sérias, onde minha vida estava em jogo, como a do dia em que fui premiado com um tiro. Na história anterior com o Rito não rodamos, apenas passamos sustos. Rodei outras vezes como aquela que fui pintado com o Saf, mas essa que vou contar aqui foi a pior de todas, o dia em que fui baleado. Este texto já foi publicado no site DNA Urbano, aqui atualizei para o livro.

Um dos dois buracos que a bala fez em meu braço.

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O local Domingo, 22/11/2009 Deodoro, zona norte do Rio de Janeiro. Há uns duzentos metros da estação de trem do bairro e há uns 50 metros da avenida Brasil, próximo à favela do Muquiço, área dominada por milicianos, grupo paramilitar que se denomina liga da justiça, mas poderia se chamar liga da covardia, pois se pichar é crime, o que fizeram com a gente foi o que então? Eu e o Arpa VM estávamos vindo de duas missões bem-sucedidas em Campo Grande, zona oeste do RJ. Detalhe que em uma dessas duas primeiras missões também atiraram em nossa direção, mas não acertaram. Seria um aviso? Devia ser umas três da tarde quando fomos em Campo Grande. Isso mesmo, três da tarde, para você ter uma ideia do ritmo que a gente estava. Como havia sobrado uma tinta, e ainda era cedo, o Arpa lembrou de uma escolta dele na linha do trem em Deodoro. Então nos dirigimos para lá. No caminho ainda vimos uma das paradas que fizemos em Campo Grande. Chegamos ao local, foi tudo muito rápido. Olhamos e pegamos a escolta de ponta a ponta e, quando estávamos saindo, o Arpa cismou que nos espaços entre nossos nomes alguém desceria e se meteria em nossa sequência. Disse a ele que ninguém ia descer ali e tal, mas ele estava certo de que iriam, então combinamos de preencher os espaços (este foi o nosso erro). Quando estávamos olhando e combinando o que iríamos fazer, apareceram dois caras em cima do muro da linha. Não fizeram e nem falaram nada, só olharam pra gente e foram embora. Quando terminamos de preencher os espaços, e estávamos já de saída, fomos parados.

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Abordagem “Para, para, para!” Quando olho tem um cara há uns três metros de distância apontando uma pistola prateada pra mim. Pedi que ele ficasse calmo que eu ia descer. Fui descendo o pequeno barranco e o Arpa veio em seguida. Tomei uma coronhada e o cara me mandou deitar no chão. Fui tentar falar com o cara e recebi um cala a boca junto com chute nas costas. Preciso deixar aqui registrado que o Arpa poderia ter ido embora, pois quando o cara me abordou ele já estava lá em cima. Mas mesmo assim ele voltou, mesmo já tendo visto que o cara estava armado, que eu estava deitado no chão e que ali era uma favela. “Valeu irmão, é na hora do aperto que a gente conhece os que ficam e os que abandonam.”

O sufoco Tem uma música do Cazuza, que diz assim: ”Talento pra loucura, procurávamos ter no peito.” A canção segue e vem essa parte aqui: “Eu vi a cara da morte e ela estava viva.” O nome da música é Boas novas, mas senhoras e senhores, confesso que não vi a cara da morte não, nem poderia, estava com minha cara virada pro chão, mas deu pra sentir o cheiro e o sabor da morte. O cheiro era de mato e terra molhada, estava bem ruim de respirar naquela posição, então ficava prendendo a respiração, mas quando o fôlego acabava e precisava colocar ar nos pulmões, junto com o ar vinha o cheiro de terra e do mato. Já o sabor, para cada pessoa deve ter um diferente. Não sei e nem quero passar por isso de novo pra saber, espero que ninguém passe, mas o sabor pra mim foi de saliva. No meio daquilo tudo minha boca ressecou a ponto de começar a engolir saliva pra matar a sede. 106


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Um dos caras que nos abordou estava decidido a nos matar. Parecia que ele nunca tinha matado ninguém e queria saber a sensação de tirar a vida de alguém. Para nosso azar estávamos ali, deitados no chão, dando essa oportunidade a ele. Na cabeça do sujeito já tinha até o álibi para quando a polícia achasse nossos corpos. Ele disse ao outro miliciano: “Vamos matar esses dois e colocar armas nas mãos deles, depois ligamos para o 190 e vão achar que eles eram ladrões.” Outra coisa que eles queriam fazer era usar minha corda e deixar a gente amarrado na linha do trem até alguém nos achar. Não preciso nem dizer qual que eu preferi ali na hora! Mas para eles a primeira opção era a mais indicada. De início o outro concordou com a ideia e deu para ouvir o engatilhar da pistola. Não sei se estava em cima de mim ou do Arpa, confesso que na hora aceitei que era meu fim e desisti de viver. Fechei os olhos e esperei o disparo. Dizem que quando se está morrendo um filme sobre sua vida passa pela cabeça. Não passou filme nenhum em minha cabeça, apenas vi a imagem de minhas filhas sorrindo, eu pedindo desculpas por ir assim e deixá-las na pior. Imaginei os amigos na escola no dia da reunião de pais, dia dos pais, festas etc. Abraçando, dando presentes a seus pais e elas olhando aquilo e tendo que contar que seu pai foi assassinado pichando, ou iriam inventar alguma desculpa, por vergonha. Imaginei meu velório, minha família em volta tentando achar explicação, consolando minha mãe, minha irmã calada com lágrimas nos olhos. Enfim foi isso que havia passado em minha cabeça antes de morrer, agora só faltava passar a bala. Foi quando um deles lá falou assim: antes de matar avisa ao Nem. Não vi a reação do cara: se foi de concordar no ato ou de fazer contrariado. Só sei que o contato com esse Nem foi feito, pois dava pra ouvir o bip do rádio sendo passado. O cara pediu autorização pra matar a gente, explicou rapidamente do jeito dele o que estava acontecendo, mas o tal do Nem, sabendo que éramos apenas pichadores, não deixou. Mandou jogar a gente na linha do trem e liberar. Isso depois da gente já ter 107


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sido espancado, ter levado coronhadas, chutes, pisões, sermos pintados e roubados. Mas o que mais marcou na sessão dos esculachos foi os caras terem filmado ou fotografado toda ação com minha própria máquina fotográfica que estava na mochila e terem urinado em cima da gente.

O tiro Primeiro eles jogaram o Arpa na linha do trem, era uma altura de mais ou menos dois metros apenas. Já havia pulado de locais bem mais altos, mas nunca naquela condição de ser jogado. Quando os caras chegaram comigo na beira da linha pra me jogar deu pra ver o Arpa lá correndo descalço naquelas pedras. Por dentro eu estava rindo já, afinal, pra quem ia morrer, estava saindo vivo. Sabe gato quando tentam jogar ele na água? Era eu. Já bati no chão correndo em direção ao Arpa. Lembro que ele já estava longe, fui correndo e rindo, rindo de alívio, e não por estar achando engraçada a situação. Não sei a distância exata que já estava dos caras da milícia. Enquanto corria, ainda deu pra ouvir o som do rádio tocando, e logo depois começaram a atirar. Não entendi nada, só continuei a correr. Depois de quatro ou cinco tiros, senti que um pegou em meu braço. Nem olhei na hora, pois os tiros não paravam. Bati no meu ombro direito e meu braço estava todo dormente do ombro até a mão. Não tinha como eu saber exatamente onde o tiro havia pegado, sabia que não tinha sido na mão, pois dava para olhá-la enquanto corria. Pensava comigo mesmo: perdi o braço por causa de pichação. Curiosamente não senti dor, as pessoas falam mesmo que não tem dor quando se é baleado. Mas foi um péssimo jeito que arrumei de comprovar esta tese. Continuamos correndo até que chegamos à estação de Deodoro. Lá é que, com mais calma, procurei 108


Rodar

onde tinha pegado a bala. Alimentava a esperança de ter sido de raspão, pois, como não teve dor, tive essa esperança. Mas logo vi o buraco no braço, e falei pro Arpa onde tinha acertado. Ele tirou a camisa dele, enrolou em meu braço, e logo a camisa dele de branca ficou vermelha e molhada de sangue. Fiquei surpreso comigo mesmo com a calma que estava lidando com a situação. Subimos na plataforma da estação e dois vigias perguntaram o que tinha acontecido. Falamos por alto o que havia ocorrido, frisamos apenas que estava baleado e precisava ir a um hospital. Perguntei se algum deles tinha um celular para fazer a ligação, mas eles disseram que não tinham celulares e nos levaram até o orelhão que tem na entrada da estação.

Disque 190 Sentei no chão fora da estação ali no viaduto de Deodoro. Um calor de matar e eu morrendo de sede. O chão estava fresco e dava uma sensação de bem-estar. O Arpa ficou dentro da estação no orelhão e pedi que ele não ligasse para os bombeiros, queria que ligasse pra polícia. Na verdade não era nem questão de preferência. É porque não queria virar notícia. Quando chega alguém baleado em qualquer hospital é de praxe que se avise a polícia que deu entrada em um baleado: eles chamam de paf (perfuração por arma de fogo). A polícia já vai até o hospital imaginando um bandido, um assaltante, sei lá. Já vão achando que se trata de algo maior. E não sei como sempre aparece repórter de algum jornal ou TV junto, e sabe como é repórter: vão no mesmo pensamento inicial da polícia. Só que os policiais quando veem que não é o que imaginavam, colhem o depoimento e vão embora. Já o repórter não perde a viagem, faz a matéria. Falei isso pro Arpa e ele concordou. Fez contato com o 190 como eu queria. Ele ligou e ficamos esperando sentados em frente à 109


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estação por uns trinta minutos e nada da viatura. Achei que não fossem mais aparecer e estava com um sentimento ruim que a qualquer momento um carro ia passar por ali largando o aço em cima de nós. Arpa concordou com o meu sentimento, então descemos o viaduto em direção a Vila Militar. Parei no primeiro portão, toquei a campainha, mas ninguém atendeu. Atravessei a rua e vi um soldado. Fui até ele e perguntei onde era a guarda. Ele, de dentro da grade, apontou e fomos em direção à guarda. Chegando lá perguntei ao sentinela pelo sargento do dia. Como fui militar conheço um pouco a rotina. Logo apareceu o sargento, explicamos a situação, e pedimos que ele fizesse contato com a viatura pra gente. Ele prontamente fez e logo vieram duas viaturas. As viaturas chegaram juntas, a que o Arpa e a que o militar ligou, rasgando o silêncio da noite com as sirenes. Tínhamos combinado de contar a verdade aos PMs: pichadores, rodamos para a milícia, tudo o que houve, para caso os PMs nos separassem não caíssemos em contradição. Eles ouviram, acreditaram, e uma das viaturas nos levou até o hospital Carlos Chagas em Marechal Hermes. Só tive que ir com o braço para fora para não sujar a viatura. Achei um absurdo, mas como era minha única chance de sair dali e ir para um hospital, concordei. Queria deixar registrado também a toda guarda do Centro de Comunicações PQDT, que estava de serviço naquela noite de 22/11/2009, e nos atendeu sem pensar duas vezes. Obrigado mesmo. Selva!

No hospital Hospital Municipal Carlos Chagas. Na entrada, olhares curiosos. Chegamos em uma viatura, mas logo viram que os policiais estavam tratando a gente bem, com preocupação, e viram que 110


Rodar

Paf em anti-braço D, com dois orifícios, em região anterior e posterior. Prováveis entrada e saída. Pulso radial presente, movimentos preservados.

não éramos foras da lei. Ao menos não éramos perigosos. O próprio PM deu entrada pra mim, depois me levou em uma cadeira de rodas lá para a enfermaria. Lavaram meu braço e aí que deu pra ver os furos. Dei graças a Deus que eram dois furos, ficar com uma bala alojada era na hora meu maior medo. Engraçado era o enfermeiro discutindo com o PM qual era o calibre da arma. Um tentando defender sua tese, pela experiência na luta contra o crime, outro na experiência em socorrer baleados. Depois tirei um raio X para ver se tinha afetado algum osso, mas deu negativo. Todos os ossos estavam intactos. Enquanto era atendido pelo enfermeiro ia dando o depoimento para o PM, que depois de conferir meu CPF viu que não tinha nada constando em minha ficha, então fez o que tinha que fazer, pegou assinatura do enfermeiro, me desejou sorte e foi embora.

A volta pra casa Estava em Marechal Hermes, descalço, sujo, pintado de preto, sem camisa, com um braço enfaixado e com um raio X na mão, mas sem nenhum dinheiro. Fiquei no ponto final do 378, que é 111


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de frente para o hospital, mas a cabine do fiscal estava fechada. Ia pedir uma carona, mas pedindo informação descobri que ele só rodava no domingo até meia-noite. Isso foi em 2009, hoje não sei se permanece esta informação. Fui em direção à praça de Marechal onde tem a reunião de xarpi nas segundas-feiras e a batalha de rima da caixinha nas sextas. Sabia que ali passava um ônibus para a praça Tiradentes. No meio do caminho vi um ponto de kombi que faz o trajeto Marechal Hermes-Olaria, pedi uma carona ao fiscal, dei um papo, que fui assaltado, que estava saindo do hospital, mostrei a papelada e o cara fortaleceu a carona. Chegando em Olaria agradeci ao motorista e desci. Fui em direção a estação para pegar outra condução na base da carona. Fui fazendo a pé o caminho do 910, de Olaria em direção ao Parque União. Sabia que lá no Parque União seria fácil arrumar condução, mas se no caminho passasse um 910, pediria carona. Passou quando estava em Ramos, fiz sinal, mas o motorista negou a carona. Continuei andando, cheguei no Caracol, atravessei, e na primeira van que estava no ponto falei com o motorista. Ele nem pensou duas vezes e me levou para a Ilha do Governador.

A descoberta do braço esquerdo Tenho meu braço e mão esquerda desde que nasci, mas só agora vi que realmente o esquerdo estava aqui esse tempo todo. Sou destro e a previsão da recuperação era mais ou menos dez dias para passar o inchaço, depois mais uma semana para recuperar o movimento dos dedos, e mais uns sete dias para voltar o movimento do pulso, fora os trinta ou sessenta dias de fisioterapia. Foi aí que fui apresentado de fato ao meu braço esquerdo. Assim que cheguei em casa, fui tomar um banho e não estava me 112


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entendendo com a coordenação motora. Sabonete não parava na minha mão, depois de muito tempo mal consegui tomar um banho. Fui tentar dormir, mas não consegui. O filme vinha passando o tempo todo em minha cabeça. No outro dia de manhã, quando fui escovar os dentes, parecia que estava tentando suicídio. Era cada porradão que dava com a escova na boca. Tudo era complicado de fazer: pentear cabelo, comer, aliás comer era uma comédia. O normal é levar a comida até a boca, mas sempre que tentava fazer isso a comida caía. Então comecei a pôr a comida no garfo e ia com a boca até ela. Parecia um débil mental, fiquei dez dias sem fazer a barba, com medo de me cortar. Na primeira vez que fui me limpar com o papel higiênico, me sujei mais do que me limpei, então passei a sempre tomar banho em vez de usar o papel. E digitar no teclado: fiquei mentalizando e decorando este texto até conseguir teclar com a mão direita, mas a vontade de escrever isso foi tanta que estou fazendo só com a esquerda mesmo, catando milho. Mexer no mouse sem poder usar a mão direita é foda. Mas com o tempo fui me acostumando. Mas a pior coisa mesmo é achar uma posição pra dormir, pois umas das leis de Murphy é: sempre que você está machucado alguém bate no machucado, sempre que ia pegar no sono me mexia e doía o braço. Na hora do tiro não teve dor, mas depois que o sangue esfriou é que ela veio, e ficou por vários dias. Quero finalizar este relato dizendo pra rapaziada tomar cuidado na pista, pensarem se vale a pena essa vida de pichador. E dizer que: parar é muito fácil, difícil é esquecer.

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Operação resgate Dia 2/5/2009 - Sábado por volta de 22h30 Chego do trabalho, mas antes passei na locadora, aluguei um filme, uma comédia chamada Se Eu Fosse Você, com Tony Ramos e Glória Pires. Estava a fim de rir naquela noite. Comprei uns pães de queijo congelados, uma coca-cola, liguei o forno para preaquecer, verifiquei o gelo, e ia entrando no banho, quando toca o telefone. Olhei no visor e era o número do Kadu. Pensei na hora: ele e o Isak pegaram outro ferrugem e agora estão ligando pra dar uma gastada básica, pois a gente tinha essa brincadeira entre nós. A gente sempre se ligava depois de um ferrugem pra gastar com a cara do outro. Mas nem deu tempo de eu falar alô. Ele com uma voz assustada, falando rápido, coisas assim: “É papo de vida ou morte, irmão! Ajuda a gente aqui! Eu e o Isak! Descemos num ferrugem! PM liberou, puxou a corda, estamos presos! Resgata a gente aqui! Traz a corda!” Aqui eu dei uma organizada, na forma como entendi, mas imagina isso tudo desencontrado. Disse: “Eu tô na Ilha, irmão, vou comer.” Ele nem deixava eu falar. “Vem o mais rápido possível! Vê o que você pode fazer pela gente! É o ferrugem grande, não tem como colocar a mão, estamos equilibrados! Tô cansadão já! Já é, já é, vem, Nuno, vem!” Desligo o telefone, penso uns 20 segundos, e ligo de volta falando para eles ficarem calmos que estava indo pra lá, 114


Operação resgate

Pichações de Kadu e Isak.

para sentarem na luminária e descansar, que já ia chegar lá. Desliguei o forno, troquei de roupa, guardei os pães de queijo, peguei minha corda, e saí correndo pra lá, sem banho sem nada. Peguei uma van Castelo-Ilha, pedi ao cara que ele fosse pela Perimetral, mas ele tinha que ir em São Cristóvão por causa de um uns passageiros que iam descer lá na feira. Depois que ele fosse lá cortaria pela Perimetral e eu desceria na viatura da PM que fica ali em cima. Ele fez com a cabeça que sim, agradeci e entrei na van. Quando chegamos onde a viatura fica, ela não estava lá. Ele parou a van, mas pedi que ele descesse lá embaixo mesmo. Ele não entendeu nada, pois eu enchi o saco pedindo que ele fosse por ali para que eu descesse, e quando chegou eu preferi descer lá embaixo. Ele deve ter se questionado, era melhor eu ter vindo então pelo caminho normal. É que imaginei duas coisas! Vai que desço da van, os PMs estão olhando e vêm pra cima de mim? Eu perco a corda e os caras ficam lá! 115


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Ou também: será que os caras estão lá ainda? De repente os PMs voltaram e colocaram a corda. Então desci da van lá embaixo, atravessei correndo o canal, atravessei a rua, e nada de chegar o ferro que eles estavam. Quando chego, olho pra cima, vejo o Isak no cimento e o Kadu na luminária. Grito pra eles que cheguei, eles dão um ok e aviso que vou subir! Fui em tempo recorde, uns 20 ou 25 minutos, correria danada! Estava vendo a hora de gritarem na rua: “Pega ladrão, pega!!!” Pois fiz tudo correndo. Subo o viaduto, pra variar correndo, a viatura ainda não tinha voltado. Amarrei a corda, Kadu subiu e mandou eu descer do viaduto e ir para a rua, pois se desse alguma merda não ia pegar nada pra mim. Fingi que não ouvi, mas ele mandou eu descer de novo. Desci, fui pegar as tintas que eles jogaram lá de cima: uma bolsa cheia de tinta, cinco no total, só sobrou uma. Todas as outras estouraram com a queda, ou com carros que passaram por cima. Peguei uma tinta que sobreviveu, o boné do Kadu que estava na rua, ia voltando para o viaduto quando eles apareceram. Começaram a me abraçar, parecia aqueles jogadores que fazem um gol e geral fica em cima abraçando. Isak me deu um beijo no pescoço. “Coé, Isak! Que porra é essa? Assim eu gamo! Rsrsr.” Os caras estavam muito felizes, eu também, não ia conseguir dormir sabendo que eles estavam lá naquela situação. Quem sabe como é lá em cima sabe que tem hora que o cansaço vence. E sem corda pra voltar ou você pula ou chama o bombeiro, a imprensa pra ver a cena e aparecer no Escracha, da Record, fora o processo! Eu que queria ver apenas um filme de comédia, acabei assistindo ao vivo um que começou com ação, virou drama, depois terror e só no fim, depois do resgate, virou comédia, pois rimos depois lá embaixo das cenas. Valeu Isak e Kadu! Quem é de verdade fica até o final, não importa se pra rir ou pra chorar. 116


Operação resgate

Koe, Nuno! Podes crer, irmão! Você salvou nesse dia, tem nem como te agradecer. Na moral você é um monstro de ter nos salvado, tava ali passando um veneno do caralho, aí do nada te vi lá embaixo com a corda atravessada no ombro. Dei Graças a Deus... Valeu manoooooooo, te devemos uma!!! (Isak 44 em depoimento)

Assim como neste dia fui a pessoa que fez o resgate, já estive do outro lado da corda, no papel da pessoa que precisava ser resgatada. Aconteceu durante as filmagens do documentário Sem comédia Brasil, do Djan Cripta lá de São Paulo. Desci em uma ponte de corda, fiquei pendurado e coloquei o nome. Só que na hora do nome, a corda correu um pouco, e foi o suficiente, pra na hora de subir, não dar espaço para alcançar o parapeito. Minha sorte é que, como estava gravando, tinha mais gente lá comigo. Se não acho que estaria lá até hoje pendurado. Aquele dia foi foda! O Piu e a Kel se ligaram na tua dificuldade para voltar... Peguei o carro e fui correndo fazer a volta... Os pescadores não entenderam porra nenhuma... Quando chegamos, você frio... Como se nada estivesse acontecendo, falou: “Barão, segura a minha mão, apenas isso, deixa que eu faço a força.” E alcançou a mureta. Depois disso ainda pegou um ferrugem que o Piu bateu neurose... Tu é pica, mano! Alpinista urbano! (Barão FL em depoimento)

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Os espiões da plebe Eu nem era envolvido com o mundo da pichação e esses caras já eram meus heróis! Em 1989, meu falecido pai trabalhava como porteiro vigia em um prédio em Copacabana. O síndico do prédio não ia muito com a cara do meu pai, mas ao mesmo tempo não tinha motivos para demiti-lo. Um belo dia, quando estava saindo de manhã para ir à escola, vejo o síndico, o vigia e o porteiro da manhã na calçada em frente à portaria olhando pra cima. Naturalmente olhei também e vi dois rabiscos de azul lá em cima. Confesso que achei bonita a cor, aquele azul no mármore branco até que caiu bem! Mas só me dei conta da gravidade da coisa quando o porteiro da manhã comentou comigo: “Se fosse o seu pai que estivesse aqui ontem de noite, isso não teria acontecido, pois o Raimundo não dorme.” O síndico ouviu este comentário e teve que engolir a seco, pois as pichações apareceram na folga do meu pai, caso contrário seria até um motivo para ele ser mandado embora. Sempre que entrava ou saía do prédio, dava uma olhada para ver aqueles nomes que não fazia a mínima ideia do que estava escrito, mas sempre ria quando lembrava da cara do síndico. Acabei memorizando o formato dos nomes, e vi em outros locais com a mesma cor lá em Copacabana. Curiosamente quando me envolvi com o xarpi, minha primeira tinta foi azul. Acho que de uma forma subliminar ou inconsciente isso me influenciou. 118


Os espi천es da plebe

P찾o e Elfs - Os Espi천es da Plebe.

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Mas foi em Botafogo, dentro do shopping Rio Sul, que uma coisa incrível aconteceu. Estava em uma lanchonete escolhendo um pão de batata, era viciado naquilo, quando um moleque mais ou menos da minha idade, 12 ou 13 anos, de roupa de escola, parou no balcão, chamou o balconista magrinho de olhos claros e pediu que ele assinasse uma folha. O cara pegou o caderno, olhou pro lado, e entrou, acho que no banheiro da loja, sei lá, sei que ele não fez a tal assinatura ali no balcão. Voltou rápido e deu o caderno de novo para o moleque. Ele abriu o caderno e, para minha surpresa, era um dos nomes que estavam no meu prédio. O menino agradeceu ao balconista e saiu. “De calabresa é o meu pão, para viagem!” A mesma mão que me deu o pão de batata de calabresa tinha pichado meu prédio faz alguns dias. Não sei a palavra certa para explicar a sensação que tive no dia, mas foi muito bom. Uma semana depois, fui lá comprar meu pão de batata habitual. Ser tímido era péssimo nessas horas, mas tomei coragem e levei um caderno. Como já tinha visto o moleque fazer na semana anterior, fiz o pedido também: pedi que ele assinasse em uma folha. Foi o mesmo ritual: ele pegou o caderno, entrou, voltou e me devolveu. Sentei na praça de alimentação, comi meu lanche viajando na folha. Desse pão de batata não lembro o sabor do recheio, mas lembro que, na assinatura embolada, estava escrito Pão. E aquela folha algum tempo depois veio a ser a primeira folha de uma futura pasta de assinaturas. Foi assim então que descobri o significado de um dos nomes do meu prédio, será que é ele que faz o outro nome também? Em 1990 já estava envolvido com pichação e já frequentava reuniões. Foi na reú da Saens Peña que conheci o Elfs. Colecionava nomes e então peguei a assinatura do meu segundo herói. Na folha veio EP - Espiões da Plebe. Eu, filho de porteiro em plena zona sul do Rio de Janeiro, me sentia exatamente assim, um plebeu dentro dos castelos de Copacabana. Tem um som do 120


Os espiões da plebe

Emicida que fala assim: “Uma coisa é estar vivo, se sentir vivo é outra parada.” Eu estava ali na zona sul, mas não me sentia daquele mundo. Nos anos 1990, sempre quis pichar em Vilar dos Teles, porque sabia que lá era o bairro deles, mas era muito moleque e naquela época não tinha a facilidade de hoje, van, ônibus condução de madrugada e acabei não indo. Fui só em 2008 no meu retorno ao xarpi, junto com meu primo de consideração Miguel (TAG). Demorei, mas cumpri a missão de deixar uns nomes na terra dos meus heróis. Mas a questão era: será que eles vão ver? No meio dos anos 2000, com a febre de retorno dos pichadores dos anos 1980, fiquei muito feliz em ver nomes deles de novo. O do Pão vi na avenida Suburbana junto com o Soma e com o Vely (essa avenida hoje tem outro nome, mas quem conheceu como Suburbana, não consegue chamar pelo nome atual). O nome do Elfs vi ali no Estácio, e foi bom saber que meus heróis, ao contrário dos do Cazuza, não morreram de overdose, já que desde os anos 1990 que não os via. Em 2007, na reunião da Penha, reencontrei o Elfs. Ele estava muito louco de sei lá o quê, mas pra minha surpresa lembrou de mim. No ano seguinte encontrei o Pão no Centro. Temos um amigo em comum, Renato Sinal, e o Sinal levou o Pão na minha barraca. Fiz um show em Vilar dos Teles em fevereiro de 2013, e adivinha quem estava lá na plateia? Pois é, a dupla de espiões. O Pão levou três dos quatro filhos dele, cada moleque ligado no 220 volts, não pararam de correr um minuto. O Elfs me deu vários conselhos sobre som, afinal ele trabalhou como técnico de som por sete anos e também foi roadie da banda Biquini Cavadão, então ele sabia do que estava falando. Eu, como bom aluno, prestei muita atenção e absorvi os conselhos. Enfim, além de serem meus ídolos, acho que hoje posso dizer que hoje são bons amigos e este texto foi para expor toda admiração e respeito que tenho por esses dois caras! 121


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Quatro curiosidades sobre meus heróis: 1 - O nome do Elfs significa Estilo Livre Feito com Spray. 2 - O nome da lanchonete que o Pão trabalhava era Pão de Batata. 3 - A sigla EP - Espiões da Plebe também significava Elfs e Pão. 4 - Sei fazer o nome do Pão igualzinho.

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O vulcão adormecido Em janeiro de 2007 trabalhava em uma loja de colchões no centro da cidade na rua Buenos Aires. Estava eu na porta da loja conversando com um cliente, e quando ele foi embora confesso que pensei: “Este mala me perturbou e agora vai comprar no concorrente.” Fui vendo o mala se distanciando pela rua, quando percebi um cara que me pareceu familiar vindo pela mesma calçada da loja. “Parece o Marcelinho Soma”, falei para mim mesmo. As últimas vezes que o tinha visto foram em 2002, no Leblon, quando eu trabalhava como vendedor de CDs e ele com panificação, e depois em 2004 quando eu era gerente de uma loja de CDs no centro e nos encontramos lá dentro do camelódromo da Uruguaiana. Eu lanchando no bate entope, ele indo cortar o cabelo. Entrei na loja e fiquei com aquele sentimento de pulga atrás da orelha, mas quando o cara passou em frente à porta da loja e olhou pra dentro, pensei de novo como parecia muito o Soma. Fui então para a porta tirar minha última dúvida, e, assim que cheguei na porta, o cara estava voltando, olhou pra mim e riu. Não tive mais dúvidas, era ele mesmo. Assim que nos falamos ele disse: “Eu vi você na porta da loja e pensei, nossa parece com o Nuno!” Ele me contou que estava tendo reunião de xarpi na Lapa e era naquele dia. Eu estava desde 1997 afastado do xarpi, literalmente deletado, sem olhar para muros, sem reparar nos nomes que 123


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apareceram entre 1997 e 2007. Havia conseguido a coisa mais rara de se acontecer na cabeça de um pichador, havia esquecido o xarpi. Ele me perguntou se eu não estava vendo os nomes dos caras das antigas que estavam aparecendo nas ruas, respondi que não, que estava com outra cabeça, outras ideias, era pai de duas filhas, estava casado, trabalhando direto. Mas assim que as palavras xarpi, reunião, pessoal das antigas, muro, tinta iam surgindo no decorrer da conversa, algo dentro de mim que estava adormecido como um vulcão parecia acordar aos poucos. Acho que ele percebeu isso nos meus olhos e fez o convite: “Vamos chegar lá na reunião?” “Vamos sim, eu saio às 19h, a gente dá um tempo por aqui, come alguma coisa e vai, mas acho que ninguém vai lembrar de mim, são dez anos afastado dessa vida, quase tudo que eu tinha feito nas ruas já foi apagado. Vou lá pra ficar dez minutinhos e vou pra casa.” Chegando lá, tomei um susto. A primeira pessoa que vi lá assinando uma folha foi o Zak. Só o conhecia dos muros, uma verdadeira lenda da zona sul. Se eu estou com quase 30 anos, quantos anos esses caras devem ter? Depois vi um cara assinando outra folha e era o Tico. Olhei para ele e vi que o imaginava de outra forma, com outro biotipo. Estava de fato ali, fascinado. Sempre fui o mais novinho das reuniões e, perto daqueles caras, eu ainda era. Salvo pela molecada de pichadores atuais, que já está bem mais acostumada a conviver com as lendas do que eu, devem ter achado que eu era uma das relíquias. Devem ter pensado: “Quem é esse tio de uniforme de loja de colchão?” E me deram uma folha para assinar. Mal termino a folha e comentam: “Nuno DV?” Várias escaladas na zona sul nos anos 1990, parceria com Acme, Ape, Saf, nem sei quantas folhas fiz, entre uma folha e outra ia respondendo perguntas. Parece bobagem, mas aquilo preencheu um vazio que nem sabia que tinha. Minha mente parecia bem centrada e focada, mas 124


O vulcão adormecido

aqueles comentários banharam meu ego. Lembra que eu ia ficar só dez minutos? Cheguei em casa quase duas da manhã, minha esposa só faltou me matar. Pois o resto ela fez, desde ligar para o meu patrão e minha mãe me procurando, e deixando todo mundo nervoso, será que aconteceu algo com ele? Neste dia o que mais me marcou foi o fato de eu ter feito uma folha para o Runk. Outro cara que cresci vendo os nomes na rua, mas não conhecia pessoalmente. Aliás meu nome antes de ser Nuno era Nunk. Se você não pulou capítulos você sabe o que isso quer dizer, mas se mesmo assim sua ficha não tenha caído, tento explicar: sou flamenguista, imagina o Zico me pedindo um autógrafo? Eu fazer uma folha pro Runk achou exagero? Pois pra mim está no mesmo patamar. Escrevi assim na folha: “Quem é vivo sempre aparece!” Ele riu com aquele cabelão black power e falou que estava ligado (conhecia) o meu nome. O vulcão que tinha acordado estava agora ao ponto de explodir, só que de alegria. Revi o Tata da LD, não o reconheci no ato, as pessoas mudam muito, engordam, emagrecem, envelhecem. Quando era menor achava todo mundo muito alto, e lá vi pessoas que hoje sou mais alto, as referências e parâmetros mudaram. Revi o Blade, amigo que há mais de dez anos não via, resumindo, toda terça-feira lá estava eu na reunião da Lapa. Na outra semana que fui já estava mudado, já olhava para muros, fiquei tonto quando vi certos nomes, como Stu, Fany, Mik, Ranes, Nico, Fim, Mapa, entre outros. Desses que citei, só conhecia o Fim e, mesmo assim, foi quando fui pego no Maracanã em 1992 junto com o Pão. O Fim também rodou neste dia e lá, quando os seguranças nos colocaram no mesmo local, foi que nos conhecemos. Mas depois nunca mais o vi. Os outros só conhecia de nome em paredes. Comecei a fazer uma nova pasta de nomes, frequentar outras reuniões e churrascos. A partir daí acompanhava também pela 125


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Primeiro nome no retorno em 2007, homenagem ao meu pai.

internet os acontecimentos das ruas e de outras regiões. O Soma me falou onde o Gol trabalhava ali no Centro. Queria pegar o nome dele, fui lá e, além de pegar o nome dele, passei a ir lá sempre na hora do meu almoço. Na verdade engolia a comida e ia pra lá, para poder ficar mais tempo. Era uma pet shop, mas na hora do almoço parecia uma reunião de xarpi, pois vários pichadores que trabalhavam por ali iam lá. Todos os pichadores que iam no centro iam lá, era parada quase que obrigatória! Minha pasta engordou muito naquela loja, porém ainda era só um espectador, não tinha pichado de novo. Depois deste reencontro com meu mundo adormecido, a vontade era cada vez mais forte, mas o lado da razão do cérebro era superior ao da emoção. A lava do vulcão só entrou em erupção quando meu pai faleceu, em fevereiro de 2007. Mês de meu aniversário, olha o presente que o destino me deu! Como não bebo, não fumo, não uso nenhum tipo de drogas, a não ser a coca-cola, que estou tentando 126


O vulcão adormecido

parar, e queria dar uma extravasada, resolvi comprar uma tinta. Era para ser uma só e ia escolher um local bem visível para pôr uma homenagem ao meu pai. E assim foi feito: o local foi a avenida Brasil, porque passava ali todo dia, e queria ver a homenagem sempre que passasse por ali. Escrevi a frase: “Obrigado pai, pelo homem que você me fez!” Só que ainda sobrou tinta. Então fui ao centro, tentar pichar no outro local que seria a segunda opção para a homenagem. Chegando lá, calculei que a tinta não ia dar e não pichei. Voltei na loja de tinta, no outro dia, comprei mais duas tintas, e a lava quente do vulcão foi sendo derramada pela cidade em forma de tinta fresca. Geral sabe que sou flamenguista, mas às vezes estou na rua com uma camisa do Botafogo. É que comprei aquela camisa para dar ao meu pai, no dia dos pais. Ficou guardada, esperando chegar o dia, mas ele faleceu antes. Infarto aos 56 anos... E não pude dar o presente. Sempre que bate a saudade dele, uso a camisa. Lembro que tinha uns 10 ou 11 anos e queria uma roupa de marca, acho que era da Pier. Meu pai não me deu, falou que era caro pro que ele podia me dar, sentou comigo e disse que ia me dar coisa muito melhor, educação, comida e dignidade. Fiquei puto na época, queria a merda da roupa. Hoje entendo que a roupa ia sujar, rasgar e ia acabar perdendo, mas o que ele queria me dar e me deu, não tem preço nem prazo de validade. Não pude dizer em vida, então deixei escrito: OBRIGADO PAI... PELO HOMEM QUE TU ME FEZ!

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Não tinha mais que dar desculpas em casa para meus pais para poder sair. Nem morava com eles, pagava minhas tintas, não devia satisfação a ninguém. Pagava minhas contas, falava pra minha esposa que naquele dia ia pichar, ela não concordava, não gostava, se preocupava, não dormia enquanto eu não chegava, mas não podia impedir. Então eu saía de casa, pichava e voltava. Às vezes era rápido, outras mais demoradas, mas sempre voltava pra casa. Compare isso como um alcoólatra que ficou anos sem beber, mas deu um primeiro gole em uma recaída ou momento de fraqueza, e o vício dele voltou mais forte que nunca. Meu vício não era por drogas ou álcool, minha sede era de tinta, e matei minha sede com muitos litros de tinta. Após essa recaída, foi tanta tinta que quase me afoguei. E assim foi que o Nuno DV, após dez anos longe das ruas, voltou. Só que teve uma diferença: das outras vezes que estive na ativa, agora estava mais confiante, mais seguro, pois no quartel havia aprendido técnicas de escalada e de alpinismo, que me deram condição de misturar as coisas que sabia com as loucuras que queria fazer. O casamento foi perfeito e deu no que deu. Isso que aconteceu comigo, de usar o preparo que o Estado me deu, contra ele mesmo, acontece todos os dias em escala muito maior e mais perigosa. Quando servi o exército morava na Rocinha e os bandidos me viam indo e vindo do quartel. Nunca mexeram comigo, mas, quando saí do quartel, eles perceberam e me convidaram para fazer manutenção das armas deles. Eu não quis, mas muitos caem na sedução da grana alta e fácil. Imagina só, você sai do quartel, cheio de ensinamentos, como tática de guerra, técnicas de sobrevivência, sabendo manusear vários tipos de arma, ensinam isso tudo isso pra você, preparam você para ir a uma guerra, e de repente te mandam embora. Uma pessoa que acaba de sair do quartel com esses conhecimentos e preparos, com idade entre 20 e 23 anos, nunca vai 128


O vulcão adormecido

procurar emprego de office-boy ou atendente de lanchonete. Com todo o respeito a essas profissões, mas ele sabe que tem potencial e recursos para mais, porém, não tem prioridade em concurso nenhum, não tem um plano para empregar ex-militares recém-saídos do serviço. Ou seja: por primeira, segunda ou terceira baixa, aí chega o tráfico, oferece um bom dinheiro, e, dependendo do caráter ou das necessidades da pessoa, ela acaba sendo seduzida, e vai lá pra vida do crime, ensinar as coisas que aprendeu quando era milico. Quando a polícia sobe o morro é comum os bandidos estarem melhor armados que eles e, em certos casos, melhores preparados. Lembra do filme Cidade de Deus, cada tiro que o Zé Galinha dava era um da quadrilha do Zé Pequeno que morria? Este fato sai da tela do cinema em várias comunidades do Brasil. No próprio quartel, quando os recrutas entram, é comum os mais antigos falarem principalmente na época do acampamento que o Exército Brasileiro cria a cobra, para depois ser mordido por ela. Então, usei sim recursos do Estado contra o Estado, mas poderia ter sido muito pior se eu respeitasse bandido.

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Rio de riscos

Seminário de xarpi em Salvador Pichação não leva a lugar nenhum? Como assim? O xarpi me levou para Salvador com tudo pago! Entrevista que fiz para o seminário sobre pichação em Salvador.

1 - Fale sobre sua vida no Rio de Janeiro e como essa experiência da cidade influenciou/influencia nas suas intervenções como pichador? Minha vida não tem nada de extraordinário não. Quem estiver esperando achar isso aqui nesta entrevista, favor nem continuar lendo. Acordo, trabalho, pago minhas contas, faço meus eventos de rap, me divido em várias vidas, de pai, marido, rapper, vendedor de sopas, e há pouco tempo tinha a vida do pichador, mas como o dia só tem 24 horas a do pichador ficou para trás. Nem tão para trás assim, pois continuo um pichador de coração. Parei só com a mão, mas de coração sempre serei. Não existe ex-pichador, existe pichador parado e pichador na ativa. Saí do palco e passei para a plateia, então continuo fazendo parte do show, só mudou o ângulo de visão. Para as intervenções via a cidade como um grande quebra-cabeça, sem indicação de idade e meus nomes eram as peças, onde achava que se encaixariam com perfeição. Tentava pôr meu nome lá, ora conseguia ora não, mas estava sempre ten130


Seminário de xarpi em Salvador

Capa do material do seminário sobre pichação em Salvador, Bahia.

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tando encaixar as peças, fazer parte da cidade, mesmo que ela não quisesse. Afinal já dizia a canção: “Dizer não é dizer sim!” E como sempre fui péssimo com regras, ia lá e tentava até conseguir. Quer me ver me dedicando em algo? Diz pra mim que eu não vou conseguir. Pode parecer orgulho ou teimosia, mas pra mim vira um incentivo e direciono minha dedicação e foco naquilo.

Parte interna do material do seminário, com a entrevista e fotos em ação.

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Seminário de xarpi em Salvador

2 - Como você acha que as particularidades do Rio de Janeiro interferem nos modos de ação, no cotidiano, nos rituais e em tudo mais que envolve o xarpi carioca? Quais as características da cidade que você sente influenciar no xarpi? O Rio de Janeiro é um convite para tudo que é errado, a cidade é feita para agradar quem tem dinheiro, e quem vem visitar e gastar aqui. O Cristo Redentor está segurando uma placa imaginária dizendo: “Venham que aqui é tudo liberado, vejam essas ações para os grandes eventos que vão ter aqui, Copa e Olimpíadas, tudo está sendo preparado paras estrangeiros, nada é para nós. Único legado que vai ficar são as contas a pagar e ainda serão pagas com dinheiro público, hospitais vão continuar como estão, escolas e educação idem.” Estas ideias revoltam muito as pessoas que moram aqui e veem a cidade suja de todas as formas. Mas como alguém tem que ser o vilão dessa história, sobrou para os pichadores esta honra. E como a maioria do povo é massa de manobra, sem voz na mídia, sem consciência política, aceitam que pichação é crime e roubar é arte. A cidade de nada tem a ver em influenciar os pichadores, as pessoas que a dirigem que sim. A pichação é uma voz pintada na parede que grita colorido. Um pichador aqui do Rio estava pichando frases em letra bem legível como: “Não roubem o governo. Ele odeia concorrência... Para onde vai o dinheiro do IPVA? Ficha limpa, eu acreditei, limpa, eu acreditei.” As letras eram tão legíveis que sabe o que aconteceu? Mandaram pintar somente as frases, as pichações não foram apagadas. O que incomoda então? A denúncia ou o vandalismo? Porque apagaram só a denúncia e deixaram o crime? Pichação é voz, falta a gente saber canalizar esta voz na direção certa, falando na direção certa. Fuji totalmente da direção da pergunta, mas é isso, desculpe o desabafo. E quero deixar claro que não sou candidato a nada.

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Rio de riscos

3 - Como é o “andar e ver a cidade” de um pichador no Rio? Quais as diferenças entre um cotidiano de um cidadão comum e o cotidiano do pichador quando caminham e observam a cidade? Um olheiro de futebol assiste um jogo diferente de um torcedor normal, um produtor musical ouve música com um ouvido diferente de um fã comum, um modelo assiste um desfile com um olhar diferente de uma pessoa comum, eu edito vídeos e assisto os comercias na TV não pelo produto, fico reparando as técnicas de edições que foram usadas. As ruas, os prédios, a cidade em si, são exatamente os mesmos para todos. As pessoas que possuem visões, intenções e interpretações diferentes sobre ela. Um pichador olha a cidade como uma grande galeria a céu aberto, as ruas são os corredores, os prédios os locais onde ele irá pendurar seus quadros, as latas de spray sua aquarela, o vai e vem apressado e barulhento do trânsito seria a plateia, que, como em uma exposição de arte, às vezes ou quase sempre, não entende o que aquele artista pensou ou sentiu ao pintar. Olha e não entende, mas acaba comprando porque alguém em algum lugar decidiu que é arte, e deu um preço para aquilo. Os pichadores são artistas que não assinam suas obras, pois as obras já são as assinaturas. Cidadão comum acha que arte tem que ter assinatura, sentido e valor comercial, pichador acha que arte tem que ser de alma e sem preço. Valor é uma coisa, preço é outra. Pichação não pode ter preço, tudo que tem preço se vende e se compra. A arte está toda vendida e a pichação ainda é a única forma de expressão livre de preço. Os pichadores fazem pichação por um motivo que artistas que se vendem não possuem mais: o amor ao que se faz. Uns já deram até a vida por suas assinaturas, qual artista que arrisca a vida pra pintar um quadro? Só os que pintam usando drogas por ter risco de ter uma overdose.

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Seminário de xarpi em Salvador

4 - Como você descreveria o andarilho, este ser tão comum na pichação que vaga pela cidade sem saber para onde vai, sem destino definido e sem traçado determinado e que acaba experimentando a cidade de uma maneira mais intensa que a maioria? Como você acha que esse tipo de experiência de sair na rua sem ter mapas, contemplando a cidade, transforma a cidade em outra, mais íntima sua e dos pichadores? A pergunta já é uma resposta. “Contemplar sem mapas vagando por aí experimentando com intensidade a cidade.” Mas acrescento o fato de que o andarilho vai marcando os caminhos aonde ele já passou, como na história de João e Maria, só que mais urbana e sem migalhas. Como um cachorro marca seu território, o andarilho deixa suas pegadas nas paredes. Não estou querendo dizer que ali é dele, mas que antes de você ele já passou por ali. Nós mesmos, quando vamos a locais por mais de uma vez, temos a lembrança e nos falamos mentalmente: “Já passei por aqui.” Vendo o nome do andarilho na parede, você acrescenta ao pensamento: “Mas aquele cara ali também, só que ele comprovou, eu só tenho na mente.” Com relação aos mapas, não tem os mapas de atlas, mas tem os rabiscos pelas paredes que servem de guia das ruas de quem vaga pela madrugada. De experiência só posso falar por mim: não tenho medo da madrugada, pelo contrário, é nela que me sinto bem. Ando na madrugada para relaxar, penso melhor na madrugada, escrevo melhor de madrugada, ando pela ruas aqui do bairro, vejo pichadores indo e vindo, namorados, trabalhadores, a madrugada é calma e linda. Um caminho perfeito para os andarilhos fazerem o que gostam.

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5 - Qual a diferença entre a cidade dos pichadores e a cidade dos demais? Geograficamente a mesma, teoricamente a mesma, fisicamente a mesma dos demais, até porque os pichadores fazem parte dos demais, os demais é que não fazem parte dos pichadores. Eles também picham a cidade, não com spray, mas com propagandas pagas, e sujam e poluem a cidade mais que a pichação. O xarpi também é uma propaganda, só que imposta, e livre de impostos, por isso que ela incomoda tanto, esta é a única diferença entre as cidades dos homens e a dos nomes! Se você pagar para pôr sua propaganda, pode livremente enfiar goela abaixo de quem quer ver e quem não quer. Você tem liberdade de expressão, mas se tiver apenas liberdade de expressão, e não tiver como pagar por sua manifestação no mesmo espaço da cidade, você é discriminado e visto como marginal. Na cidade tem estuprador, pedófilo, traficantes, milicianos, ladrões, corrupção, todos os tipos de crime, dos mais leves aos mais pesados, mas a pichação é que incomoda aos que se acham donos da cidade. Desta lista maravilhosa de criminosos, a pichação é mais perigosa que qual? Saberia responder? Teria coragem de convidar algum deles para um seminário? Será que eles iriam?

6 - Quais os prazeres que agem no corpo do pichador? Qual o prazer de caminhar pelas ruas? Qual o prazer de observar o horizonte de cima de um prédio? Qual o prazer de alcançar o topo? Qual a sensação após a experiência de uma noite quando se retorna para casa? Prazer: Acredito que é o mesmo de um paraquedista quando salta do avião, de um surfista quando encontra a onda perfeita, de 136


Seminário de xarpi em Salvador

uma criança quando abre um presente. Sensação de abraçar alguém que não se vê há muito tempo, receber um telefonema com uma boa notícia, uma mistura de alívio, torpor e felicidade, mas as pessoas sempre lembram mais da adrenalina. Caminhar: Andar pelas ruas é o que todos fazemos todos os dias, porém na pressa diária só focamos em dois pontos: aonde saímos e para aonde vamos. As coisas do caminho muitas vezes passam despercebidas, por quantas ruas você passa, entre sua casa e seu trabalho? Todas elas têm nomes, vocês sabem quem são essas pessoas que deram nomes aquelas ruas? Um pichador caminha nas ruas de madrugada, acompanhado do silêncio que ela traz, conhecendo as ruas sem o lixo diurno e sem as pessoas que ali jogaram o lixo. As ruas vazias da madrugada sempre me atraíram mais que as confusas sobre a luz do sol. Visão de cima: Lá de cima tudo fica pequeno. O mundo se transforma em uma maquete viva, por um instante você se livra deste sistema que, por mais que sejamos contra, estamos inseridos. Mas lá de cima você parece controlar isso, ou pelo menos pensa que é maior do que ele. É um momento de liberdade. Único problema é que ele acaba quando se desce ao chão. Topo: Não só para um pichador, mas alcançar o topo é o auge. Chegar no objetivo, no topo, pode ser uma promoção, um aumento de salário, um amor conquistado, um sonho se concretizando. O topo é o ponto mais alto, então as pessoas que picham por ego, fama ou destaque, ao chegarem no topo de um prédio, se sentem também no topo com relação aos outros. Fora aquela sensação de liberdade do item anterior que, unido dessa chegada ao topo, podem colocar o pichador e qualquer pessoa para baixo dez vezes mais rápido que a escalada. Pois se o topo for o fim, se for o objetivo, ele é ilusão. Sempre que chegava em um topo, olhava pra baixo e pensava: “Agora meu topo é a descida.” 137


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Assim, independentemente da direção que eu seguia na vida, estaria sempre em direção ao topo. Dizem que o fim (topo) justifica os meios. Quero que os meios se justifiquem, pois a pichação nunca terá fim. Retirei isso do manual do Guerreiro da Luz, mas dei uma adaptada. Retorno para casa: Não posso falar por todos, até porque quem sou eu para isso? Mas voltar pra casa era meu maior troféu. Não ligava para os locais que colocava meus nomes. Por mais impossíveis e absurdos que podiam parecer para as pessoas “normais”, meu troféu era voltar pra casa, para as minhas filhas. Às vezes voltava arranhado, machucado, baleado, mas voltava. Só não gostava de voltar com a tinta cheia.

Com FYC, um dos melhores no alto, que coloquei nome junto.

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Seminário de xarpi em Salvador

Escalando, parei de pichar, mas não perdi o Vício das escaladas.

Destruidores do Visual, mais que uma sigla, um sentimento.

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Rio de riscos

Ao vivo pela pista.

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Pendurado na corda.

Pendurado no braço.

Folha para o irmĂŁo Rodrigo Vieira.

Mesa de debates na Uerj com Guga e Djan.


Seminário de xarpi em Salvador

Escalando a adrenalina me atrai.

NUNOtícia

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Rio de riscos

Morreu o pichador e nasceu o MC O rap me tirou do chão e agora tá me dando asas. Fui baleado em 2009 depois de uma noite malsucedida de pichação. Estava em casa escrevendo sobre este dia e postei parte do texto no falecido Orkut. O nome do texto era Minha vida rabiscada. Começaram a surgir comentários mais ou menos assim: “Mano que música maneira!” ou “Que isso mestre, tem esse som gravado já?” Olhei aquilo e pensei: “Música? De onde tiraram isso?” Mas por algum motivo gostei da ideia e fiz o texto rimando como se realmente fosse um som, mas sem gênero, só rimei.

Dos muros para as bancas.

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Morreu o pichador e nasceu o MC

Nesta mesma época, quando estava de molho, um amigo perguntou como estava pagando minhas contas, já que estava em casa. Respondi que trabalhava para mim mesmo, que não tinha dom pra aguentar patrão, e tinha uma reserva em casa. Ele falou que conhecia esse som do Marechal e eu quis saber mais. Então ele me mandou um link do YouTube e vi lá um tal de Marechal cantando que não tinha dom pra aturar patrão. Achei foda o som e comecei a ver os outros vídeos do cara. Quando ouvi A rua sabe e Espírito Independente, meu braço arrepiou, pois até então rap pra mim era só aqueles que eu via na rádio e na TV, ou seja, bem comercias. De repente vejo um rap diferente. Comecei a almoçar, jantar, ouvir e comer rap, 24 horas por dia. Via vários MCs, mas não eram todos que me prendiam a atenção. Foi assim que o rap chegou até mim. Em setembro de 2009, lembro como se fosse hoje, um amigo meu, Bili MC, estava organizando um evento de rap. Ia ter várias atrações, eu estava com ele na rua colando cartazes pra esse evento, e um MC de Teresópolis ligou avisando que o pai estava mal no hospital, que não ia poder estar no evento. O Bili MC estava preocupado, pois ia ficar um buraco na programação. Foi então que falei: “Pô, Bili, eu tenho uns raps lá, deixa eu fazer um show.” Ele olhou pra mim e falou: “Já é!” Detalhe, eu tinha um monte de letras, mas tudo sem melodia. Passei a noite na internet caçando batida e achei três. Encaixei as letras nestas três e fui que fui. Chamei minha mãe pra ver o tal show, cantei no dia 22 de agosto em homenagem ao meu pai. No meio da música avistei minha mãe na plateia e ela estava chorando. Eu me emocionei, pois sempre a fiz chorar de tristeza, e pela primeira vez estava fazendo com que ela chorasse de orgulho. Quando acabou o som, geral aplaudiu. Foi nesse exato momento que o bicho do rap me mordeu e aquela sensação de adrenalina me pegou. Resolvi fazer disso uma rotina. Fiz três músicas neste dia, mas minha simples apresentação rendeu convites para que eu me apresentasse em outros dois locais, e assim comecei a ser um MC. 143


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Porém, minhas letras são reflexivas, de mensagem, e não necessariamente sobre pichação, o que quebra a expectativa das pessoas, que acham que faço som sobre pichação. Faço som de minhas vivências e, como fui pichador por anos, em alguns momentos o tema é citado em trechos de sons. Músicas específicas sobre o tema, tenho três, e as escolhi para deixar as letras aqui.

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Música: Quando eu partir Letra: Nuno DV

Aquele episódio do tiro ao menos serviu de inspiração para uma letra de rap. Aliás a letra que mais coloco sentimento ao fazer, pois passa tudo pela minha cabeça sempre que começo a cantá-la.

Assim como Cazuza, também vi a morte viva Num filme de dois segundos reprisando a minha vida Com a cara no chão e o cheiro da grama molhada Um pé na minha cara me apontava uma arma Sem ter fé, sem ter força, prendi a respiração Imaginei o meu velório e meu corpo num caixão Família em volta reunida só ouvindo a oração A tristeza em todo mundo supera a decepção Minha mãe enterrou o marido e agora está enterrando o filho O suor e sacrifício por mim foi desperdício Minha filha tão pequena que nem vai lembrar de mim Minha esposa em desespero não tinha que ser assim Faço esse bagulho porque amo liberdade A sensação da adrenalina e pelo dom da eternidade Porque quando eu partir O meu nome vai ficar pra provar que existi

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Minha hora do pesadelo eu passei bem acordado A morte pediu carona, eu que fui agraciado Um abraço que conforta uma lágrima que cai Vão lembrar de mim quando ouvirem “Poxa, pai” Mesmo morto eu vou tá vivo, com a voz amplificada “Nuno Vive” aparecendo nas paredes rabiscadas Homenagem dos amigos que eu fiz na madrugada Ou gente que nunca vi, mas mesmo assim me respeitava Cada letra que eu faço, mais parece uma oração Tem gente me seguindo como uma religião Boto alma boto vida boto sangue boto dor Boto sentimento boto ódio boto amor N de noturno, outro de natural, U de único, O de original Nuno DV destruindo o visual, desse monte de covardes que não valem um real Faço um rap simples, porém cheio de emoção Mesmo que tape o ouvido, dá pra ouvir com o coração A palavra não liberta mais do que o sim Então eu digo não pros que querem o meu fim Corre, sai daqui, que o tempo vai fechar Vou contar até dez, e depois vou atirar Por cima do trilho fui mais rápido que o trem Não fui mais que a bala, eu não era o superman O covarde pelas costas, nem contou e disparou Sangue pra todo lado, mas eu não senti a dor Tinha que sair dali pra ver onde o tiro acertou Tive que chegar no fim, pra entender que não acabou Com a garganta seca e o corpo todo suado A roupa ensanguentada e dois buracos no meu braço A madrugada em silêncio era meu único conforto Há meia hora atrás eu poderia estar morto Lembrei de vários caras que se foram no xarpi Será que quando eu for, alguém vai lembrar de mim? Queria atenção e um pouco de destaque O vício me consumiu foi bem pior do que o crack 146


Música: Quando eu partir

O sangue foi deixando um rastro pela linha Marcando a trajetória dessa história que é a minha Parei com esse bagulho, mas parei só com a mão Xarpi eternamente na mente e no coração.

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Música: Minha vida rabiscada Letra: Nuno DV

Esta era pra ser um testemunho, em uma época que estava frequentando igreja, mas perdi a fé, e o testemunho foi transformado em um rap.

Não mudo meu estilo em lugar nenhum Qualquer bairro que invada sou sempre o Nonu Aquele que é insano, mas não bebe nem fuma Acostumado a ver de cima quando passa a viatura Marquise, recuado, topo, cabo de aço Lateral do prédio, cabeça pra baixo Janela, ferrugem, na pedrinha eu encaixo Gosto de botar meu nome em cima, mas também tenho nome embaixo N.U.N.O destruidor do visual e tudo ao seu redor N.U.N.O feio pra caramba e faz bonito no gogó Amante do silencio, inimigo do barulho Pra grande maioria só um pichador de muro Mas eu quero que se exploda a maioria Porque eu sou pureza e fecho com a minoria Desde pequeno que aprendi com meu pai Que muito não é nada e menos é mais 148


Música: Minha vida rabiscada

Vou levando a minha vida com a boca e com a mão Com a mão eu boto nome, com a boca eu faço som Levanta a mão pro alto, levanta a mão pro alto Levanta a mão pro alto quem usa preto fosco Levanta a mão pro alto, que isso é um assalto Mas não quero seu dinheiro, quero sua atenção Quero seu respeito, sua consideração Esse rap é dedicado pra quem gosta de mim Mas se você não gosta tá tranquilo pode ouvir O ouvido é seu quem sou eu pra proibir Quem sabe tu não mude de ideia quanto a mim Sou o mau exemplo pro seu filho Que acha que a tinta é uma arma e o birro é o gatilho Não sou fotografia, mas também me revelo no escuro Nas ruas me conhecem como Nuno Eu sou rato de bueiro do esgoto e do escuro Escalaram o teu prédio pode crer que foi o Nuno. Sem demagogia não quero ouvir palmas Quero que geral ore pelas almas Lembre e reflita como cada um morreu Poderia ser você e quase que fui eu Quatro andares da janela até o chão Levaram nosso Vuca coronel é irmão Correndo pela rua do bairro de São Gonçalo Nosso amigo Caixa pelas costas baleado Em qual velocidade que anda nossa vida Acidente de moto levou o mano Yra Cobra - Seif - Let - Ponga Nessa correria foram homens de honra Bin - Blood - Fele - Suak Manos que com a tinta tiveram destaque Cuma - Lek - Kik - Wboy Aonde quer que estejam, ouçam minha voz E de todos aqueles que cantam essa canção 149


Rio de riscos

O nome some da parede, mas não sai do coração Uma lenda do rabisco era o mano Risco E quase que eu fui morto por um tiro A turma pirata sente falta do Gugu E do eterno Vinga, pra mim n° 1 Ironia do destino, o Mar morreu na praia E o Sino, quando uma rua atravessava A vida do crime levou, Zuk e Faby Entre muito outro que não conheci Fuca — Zuca eu tinha que falar Sonar, como é que você está Renk e Sui, humildade acima de tudo Infelizmente não vai dar pra lembrar de todo mundo Rostos e histórias, memórias e marquises Bebida e família, rabisco, cicatrizes Sonho e meta, topos e berais Pedra e pastilha, brigas com seus pais Folha e caderno, evento reunião Atitude disciplina, humildade e união Drogas e mulheres, amigos e intrigas Birro, bairros, tintas e siglas Ação disposição, talento e ousadia Pichador é pichador de noite ou de dia Hoje canto, pois tenho muito sorte Porque faltou pouco pra eu ter minha morte Graças a Deus eu sobrevivi Morreu o pichador e nasceu o Nuno MC Quero paz, saúde, dinheiro no bolso Prefiro ficar vivo a ser um famoso morto Agora por favor ouça meu conselho Xarpi é maneiro, mas família tem que vir primeiro Estude, trabalhe, construa um futuro Xarpi no fim das contas é só um nome no muro

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Música: Minha vida rabiscada

Pra quem não me conhece, eu me chamo Nuno Aquele do ferrugem, vertical perimetral, da corda da janela, do topo e do beiral Pichei por muito tempo, mas agora tô legal Agora tô em Cristo buscando a salvação Fugindo do errado e procurando meu perdão Antes era tinta, agora eu tenho a bíblia na mão Hoje tô no palco, mas ontem estava aí contigo no chão Dedicar esse rap pra todos aqueles que já colocaram nome comigo Especialmente a todos aqueles que já rodaram comigo Pois é na hora do aperto que a gente vê quem é quem, quem é amigo Uns abandonaram que nem merecem ser lembrados. Mas os que ficaram pra sempre no peito serão guardados Fyt - Ari - Isak - Rito - Vuto - Nath Podem contar comigo em qualquer dificuldade A todos da minha sigla, de fé, de coração DV é quase uma religião - MC Coé - Acme - Sopa - Vuto - Anão - Ape - Soty - Gloye - Cove - Shark - Sebá Destruidores do Visual - nunca vai acabar, Dio, o criador do movimento DV é mais que uma sigla, é um sentimento.

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Música: Tszzzzz (som que a tinta faz ao sair da lata) Letra: Nuno DV

Neste som usei como base o significado de algumas siglas para compor a letra. Obviamente faltaram muitas siglas, mas no dia que escrevi foram essas que lembrei, ou que de alguma forma se encaixaram melhor na ideia da letra.

Filhos de uma rebeldia, momento de liberdade (FR - ML) Diabólica legião e sagrada irmandade (LD e ISG) Alfabeto confuso e difuso na escuridão Contraditória história onde o herói é o vilão Vou colorindo e rindo um eterno de preto fosco Madrugada sombria e vazia, aqui ninguém tem rosto Silencioso cada passo que dá o andarilho Atencioso na hora que rola o alpinismo Cuidadoso colocando o nome no xaspico E no desenrolo acelera o simples raciocínio Estilo fantasma sobe e desce (EF) 152


Música: Tszzzzz (som que a tinta faz ao sair da lata)

Ninguém viu, ninguém conhece O mundo dorme enquanto ele se diverte No ar ainda está o cheiro do Jet O instinto é urbano, paranoia delirante (IU - PD) Dos amantes do rabisco rebeldia viciante (AR - VR) Você sabe que eu fui lá, só não sabe dizer como Você diz que nos odeia, mas nem sabe quem somos Somos que nem você, temos metas temos sonhos Temos filhos, temos falhas, nos impomos o que expomos A gente estava aqui, só que você não viu Nos ignorou, mas seu filho nos seguiu Agora ele quer destruir o visual (DV) Quer ser da 5 estrelas ou da 40 graus (5* - 40º) É uma necessidade como água pra minha sede O vício escorre pela veia, igualzinho na parede E quando a gente sai não sabe se volta Vida de xarpi é uma pergunta sem respostas Dizem que sou um demônio, disfarçado de anjo (DDA) Porque vou transgredindo, por onde vou passando (T) Sou louco irreverente do esquadrão suicida (L - I - ES) Sou maluco desordeiro dessa arte destrutiva (MAD) Eu sou 44, Od2, 163 (44 - Od2 - 163) Sou 288, usuário de spray (288 - US) Sou fora da lei, largado pelo mundo (FL - LM) Sou mau elemento, viciado em tinta e muro (ME - VT) Sou antigo, sou novato, sou do alto, sou do chão Eu sou G80 e sou nova geração (G80) Não me confunda com bandido ou qualquer criminoso Meu grito é escrito rebelde silencioso (RS) Olhe no meu olho ao apertar a minha mão Sou pichador de elite da plebe sou espião (PE - EP) Não assino minha obra, ela já é a assinatura Falem o que quiser, mas xarpi sim é cultura.

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Despedida Todo pichador é igual, independente de estilo, bairro, cor, idade, se tem muito ou pouco nome, se é antigo ou atual, sexo, religião, crenças, ideias e tempo de dedicação, noites perdidas, tintas derramadas. Aliás de que adianta ter mil litros de tinta na rua em forma de nome se, com os que fazem o mesmo que você, não tem nem um pingo de humildade? Vamos nos unir, este é meu recado, não sou exemplo de nada, apenas fiz parte das madrugadas como a maioria. Sobrevivi, devo muito ao xarpi, sempre amarei essa vida, só não estou mais nela de corpo, apenas de alma. Máximo respeito a todos que têm coragem de fazer o que se acredita, mesmo se o mundo for contra. Usem esta dedicação que colocam na tinta em outros ramos da vida. Uso o fundamento que aprendi na rua no xarpi na minha vida de MC. Estou conseguindo aos poucos conquistar meu espaço, se eu consigo vocês também podem. Não estou falando pra vocês virarem MCs, mas usarem essa dedicação, disciplina e fundamentos da rua e do xarpi em suas vidas profissionais e em seus sonhos. Assim irão conseguir tudo o que quiserem e mais!

Carros resistentes, cavalos velozes, soldados valentes, armas afiadas. Para que quando os tambores rufarem dando sinal para o ataque, sintam-se felizes e, quando os gongos derem aviso para a retirada, sintam-se enraivecidos. Quem é assim, é forte. A arte da guerra — Sun Tzu 154


Despedida

Usando a licença poética para transformar carros, cavalos e armas em informação, pois informação é a arma para a guerra silenciosa do dia a dia. Digo que sou assim, um colecionador de confusão e fazedor de mil coisas ao mesmo tempo. Agora mesmo estou digitando, gravando CD, estampando camisas, ouvindo o noticiário na TV, só funciono assim. Se eu focar apenas em um ponto, não consigo criar nada, não consigo fazer nada. Sabe aquele armário de criança onde se abre a porta e cai tudo em cima como se fosse uma avalanche? Se abrirem minha cabeça, possivelmente é isso que vai acontecer. Fico feliz quando entro em uma luta e triste quando ela acaba. Quando digo luta não é briga corporal, mas metas, sonhos, vontades, mesmo que o mundo diga que não é legal, que não vai dar certo, vou lá e tento. Como digo em Nunca diga nunca: “O verdadeiro derrotado é aquele que desiste sem tentar.” Às vezes tento por um pouquinho de orgulho, confesso. Mas nessa onda de me informar e fazer de tudo um pouco, me transformei em uma pessoa horizontal. Verticais são aquelas pessoas que se aprofundam, estudam, se especializam em algo. Essas pessoas são importantes para o mundo, pois elas são as que descobrem as vacinas, remédios, avançam a tecnologia, para que pessoas horizontais, como eu, possam viver. Horizontal é aquele que não se especializa em nada, faz um pouco de tudo, e não muito só de um, busca conhecimento até o ponto que, com aquele conhecimento adquirido, ele possa ir adiante sozinho. Ir descobrindo seus próprios meios de fazer aquilo, criando assim o seu modo de fazer o que quer que seja. Sou adepto ao estilo trabalhe sozinho pra não dever nada pra ninguém, nem satisfação. Com a internet você pode aprender tudo. Existem aulas em vídeos, em que a pessoa pode se alimentar de informação 24 horas por dia. Nessa eu aprendi a editar e gravar vídeos, mixar músicas, criar flyers, capas, arte gráfica no geral. Eu mesmo produzo meu material, criei a In Kaza Produções (Em Casa Pro155


Rio de riscos

duções) para produzi-los. Agora resolvi dar um jeito de externar essas coisas que escrevo e produzo através desse projeto. Acho que ser horizontal me fez ter coragem de escrever este livro, mesmo sem ser escritor. Espero que vocês usem ele de forma vertical ou horizontal, como preferirem. Faltando pouco tempo pra eu me despedir, faltando muita coisa que não vou dizer aqui, enfim, já em clima de despedida, meu sincero obrigado para você que leu até aqui. Como digo em Anjo da Guarda: “Se você ouviu até aqui, valeu pela moral.” Muitos dizem que é maneiro, mas não ouvem até o final, neste caso, não leram até o final. Saibam vocês que sou uma árvore. Quero que meus frutos e folhas se espalhem, se multipliquem pra onde o vento puder levar, ou cheguem por algum outro meio. Mas independente de onde eu chegue com este livro, ou com meus raps, nunca vou esquecer e muito menos abandonar as pessoas que estiveram comigo no início, quando isso era apenas projeto, sonho distante, pouco provável e quase impossível. Mas, como disse, sou uma árvore, e uma árvore só fica de pé se tiver raízes. Vocês, do xarpi e do rap, de verdade, são minhas raízes, são vocês que me mantêm de pé! Às vezes as pessoas me perguntam se eu tenho orgulho das coisas que fiz. Olho bem dentro do olho da pessoa e respondo que a palavra certa não é orgulho, pois a gente não deve ter orgulho de nada que tenha feito nossa família e amigos sofrerem ou sentirem vergonha de você. Nas inconsequências da vida, nas escolhas erradas, fiz muitos amigos e familiares sofrerem por mim. Disse família e amigos, não confunda com parentes e colegas. Quer saber quem são seus colegas e parentes, dê uma festa. Vai vir gente que lotaria um estádio! Agora quer saber quem são seus amigos e família? Fique doente ou morra, só irão te visitar ou irão em seu enterro aqueles que merecem estar no seu coração. 156


Despedida

Então, para finalizar, não tenho orgulho não, mas não me arrependo de nada, pois aprendi com os erros, e este aprendizado árduo me fez ser o homem e pessoa que sou, sem inimigos. Posso entrar em qualquer lugar sem precisar olhar pra trás com medo de alguma covardia, não devo dinheiro pra ninguém, não devo favor pra ninguém, não vacilo com ninguém, não como a mulher de ninguém, trato bem todos que se aproximam de mim. Se pudesse voltar no tempo e mudar algo apenas iria aproveitar melhor os estudos, tentar não desapontar as pessoas que desapontei. Teria dito ao meu pai a frase “eu te amo”, que vergonhosamente nunca disse. Usaria mais tinta preto fosco em vez das coloridas. Fora isso erraria tudo de novo, noite por NUNOite, tim tim por tim tinta! Nuno DV Destruidores do Visual — Humildade é a Chave — 40º — Um Só Caminho...

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Nuno DV Carioca, aquariano, sonhador, calado, tímido, inquieto, simples, mocidade, flamenguista, religioso sem religião, um só caminho, humilde, 40º e pichador. Filho de Raimundo, um cearense que migrou para o sul, e de uma gaúcha, Madalena, que migrou para o norte, ambos em busca de melhores empregos, e que no meio do caminho se encontraram na chamada cidade maravilhosa.


Em 11 de fevereiro de 1977, nasce o “caricearucho” Leandro da Cruz Lopes, primeiro dos dois filhos desse casal. Teve uma infância normal, até os 13 anos de idade, onde foi rebatizado pelas ruas com o apelido de Nuno. Em pouco tempo foi adotado pela família DV - Destruidores do Visual. Daí pra frente o moleque, que sonhava em ser militar, foi escrevendo sua história em muros e paredes, sem ter a mínima noção que, mais que escrever seu nome nas ruas, estava escrevendo uma marca na sua vida e em várias outras também. Hoje, como rapper, escreve letras autobiográficas, de reflexão e sentimento. Assim, as pessoas que admiravam o Nuno pichador, podem conhecer o Nuno pessoa.

Noturno Nação

Nossa

Único Unida União Natural Ninguém Nunca Original

Oprime o

Ofuscará

Dedicado

Direito de

Desejo

Verdadeiro Voz

Vencer

Obs. A segunda definição foi feita por Japa da página do facebook Literatura do Rap. Sejam todos bem-vindos ao NUNOsso mundo!


Este livro foi composto em DIN. O papel utilizado para a capa foi o Cart茫o Supremo Alta-Alvura 250g/m2. Para o miolo foi utilizado o P贸len Bold 90 g/m2. Impresso pela Grafitto para a Aeroplano Editora em novembro de 2013.


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