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Luiz Carlos Miele

MIELE O contador de hist贸rias


TV CONTINENTAL


E

, então, foi inaugurada no Rio a TV Continental. Victor Costa, que era o dono da TV Paulista, emprestou uma equipe completa para ficar

durante alguns meses no Rio de Janeiro para colocarmos uma programação no ar. Fazíamos um programa por noite, e o restante da programação exibia o jornal local, filmes, desenhos etc.. Viemos todos – produtores, diretores, câmeras, cenógrafos, ilumina-

dores – com a promessa de ótimos salários, que iriam permitir que alugássemos alguns apartamentos. Como os salários eram supostamente altos, não só essa despesa ficaria por nossa conta, mas também a alimentação e todo o resto. Mas a coisa ficou só na promessa. Morávamos seis em um quarto. As camas eram enfileiradas, como num quartel. Se bem que, num quartel, ainda se tem o “rancho” com café da manhã, almoço e jantar, regalias como as quais não contávamos. De qualquer maneira, cometemos a irresponsabilidade de montar a superprodução Os Dez Mandamentos. A direção era de Antonio Seabra, com produção de Gilberto Bréa (tio da Sandra). Cecil B. DeMille ficaria besta. A cena era a abertura do Mar Vermelho. A TV Continental tinha uma piscina no meio do estúdio. Ela ficava vazia e era onde deveriam cair os filisteus (acho que eram os filisteus). O efeito do mar se abrindo era conseguido através de uma rudimentar superposição de imagens. Mas o Gilberto desconfiou que alguns dos tais filisteus iam ficar com medo do tombo e, MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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depois de vestir-se de Moisés, muniu-se de um imenso cajado feito de cabo de vassoura. Não deu outra. Na hora em que o mar se abriu, alguns dos figurantes, que deveriam ser tragados para o fundo, se agarraram na beira da piscina. Ou seja: se agarraram na água do mar. Insatisfeito com aquele “milagre”, o Gilberto ia passando e dando uma cajadada nas mãos dos infiéis, que finalmente desabafavam, aos gritos, para o vazio. Dos dez mandamentos, achamos melhor desistir a partir do primeiro. Entrou, assim, mais um filme do Jim das Selvas, que substituía todo programa que saía do ar. A gente tinha mais duas opções: Johnny Weissmuller ou os desenhos do Pica-pau. Mas aí acabou a grana até para pagar o tal quarto com as seis camas. E, de repente, fomos todos para lugar nenhum. O José Miziara, ator e diretor dos primeiros teledramas da Continental, conseguiu um apartamento que tinha uma linda vista para o alto. Ou seja, era no andar térreo e a janela dava para o paredão do prédio vizinho, mas era um cinco estrelas para a época. Gentilmente (ou com dó), ele cedeu um espaço para mim e o Roberto Maya, também ator e apresentador, cujo nome verdadeiro era Robert Clement Altman. Descendente de alemães, seu tio era o querido Walter Foster, e ele, o Robert, era incapaz de perder a fleuma e a dignidade, mesmo nas ocasiões menos nobres, como quando jogamos a roupa pela janela dos fundos de um hotelzinho na Lapa, deixamos a mala e saímos tranquilamente pela portaria para pegar as roupas pela rua de trás. Mas, para nossa surpresa, demos de cara com uma versão de Chão de Estrelas e vimos as nossas roupas comuns dependuradas nos fios elétricos, parecendo um estranho festival. Não teve jeito. Voltamos para o quarto e sala do Miziara, que carinhosamente nos oferecia o espaço. Como não havia camas, dormíamos no 30

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chão, até que ele passou a receber inúmeros roteiros para serem encenados na TV. Bem, os roteiros tinham centenas de páginas, que passaram a nos servir de colchões; o melhor no qual eu dormi foi, sem dúvida, o texto de Sindicato de Ladrões, que nós corajosamente encenamos. Miziara era o Marlon Brando; o Maya, o Karl Maden e eu, o Lee. J. Cobb – quase o elenco original. Resolvida a questão de cama e moradia, ficou faltando a da alimentação. Havia o restaurante Lamas, ainda no Largo do Machado. Mas, depois de alguns meses sem receber, o garçom que bancava nossa comida resolveu suspender essa regalia, que inclusive causou sua demissão. Salvou-nos então (às vezes) a perícia do Miziara na sinuca. A gente reunia os eventuais trocados até fazer o mínimo de cacife razoável para que ele pudesse desafiar os craques locais. Miziara não era nenhum Toquinho ou Paulinho da Viola, mestres do violão e do taco, mas quebrava um galho. Ficávamos eu e o Maya dormindo pelos bancos da sinuca, durante a madrugada. Caso o Miziara ganhasse, tínhamos sopa ou o “picadinho iugoslavo” que era uma espécie de pot-pourri de tudo que levasse carne no dia anterior. Se não, sanduíche de mortadela (ótimo). Algum tempo depois, alguém (creio que o Daniel Filho) usou essa situação como argumento de um filme. O tempo foi passando e o Miziara foi se especializando na TV e em algumas vedetes que, com o sucesso, ele passou a namorar. Assim, tinha prioridade para ocupar o apartamento. Sobrou pra mim e para o Maya, que ficamos novamente com duas mãos na frente e duas atrás. Acabou o luxo de dormir em cima de grandes autores. Houve uma época em que encaramos como moradia as tubulações que estavam sendo usadas para a construção do Aterro do Flamengo. No início, pensei em dormir na praia, mas um colega milionário como eu me avisou: – Na praia não, que eles levam o seu tênis. MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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Até hoje não sei por que o Maya se recusava a aceitar aquelas acomodações, nem por que ele ficava mais bravo ainda, por eu conseguir repousar com a maior tranquilidade: – Porra, como é que você consegue conseguir dormir nessa situação? Acho que ele não gostava daquelas baratinhas d’água, que também ocupavam o domicílio. Pensando bem, não era tão ruim. Eu não tinha nem um ano de Rio de Janeiro, e já estava morando de frente para o mar. Passado um tempo, apareceu um novo trabalho para nós: as dublagens dos seriados americanos. As vozes eram de vários personagens, mas o único que dublava o ator protagonista era o Daniel Filho, que fazia O último dos moicanos. Daniel nos acolheu num apartamento em frente ao Antonio’s (que ainda não era o maior bar do Brasil). Um endereço nobre como aquele, no Leblon, com cinco quartos, era para nós o Waldorf Astoria. Muitos anos depois, eu me vinguei dos tempos de penúria. Entrei no próprio Waldorf em nova York, engraxei os sapatos no saguão, pedi um Martini e saí orgulhoso com minha despesa de 34 dólares. A grana não dava para me hospedar, mas deu tempo para dar um alô com a maior intimidade para Julia Roberts, que passou pelo saguão. Mas, voltando à filial do Leblon, ocupavam os luxuosos aposentos: Daniel, Hugo Carvana, eu, o Maya e um decorador e cenógrafo chamado Joel. Emocionados com aquela fartura de camas, tratamos logo de povoar aquele espaço. Ruy Guerra, um dos gurus do cinema novo, estava sempre por lá. Havia feito um tremendo sucesso com o filme Os Cafajestes, do qual o Daniel participava. Era um grande filme, e tinha ainda o primeiro nu total do cinema Brasileiro (um nu de respeito, porque era da Norma Bengell, numa sequência magnífica). Assim, era normal que aspirantes ao sucesso procurassem o Daniel. Por alguma razão, resolvemos concentrar nossas atenções no futuro das atrizes do nosso cinema, deixando para outros batalhadores da nossa 32

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cultura a incumbência de selecionar os elencos masculinos do cinema nacional. Uma das coisas mais cafajestes que antecederam o cinema novo foi o “teste da índia Kalu”. Eu já tinha ouvido falar muito daquilo, mas nunca, até então, havia participado. Uma incauta candidata a estrela ligou para o apartamento, para saber se estavam fazendo o tal teste para um próximo filme. Não sei quem deu o telefone, nem quem atendeu a chamada. Digamos que foi a comissão técnica. Avisada da importância do momento, pois estaria presente o célebre diretor americano Vincente Minnelli (é quase um Miele, ou não é?), a moça chegou rapidamente. Um amigo nosso chamado Raul (o Raul vovô, que depois se tornou personagem de Ipanema) fez as vezes do mordomo do diretor americano. Ele era alto, louro, de grande porte e estava mais bonito ainda, pois envergava a casaca do pai do Daniel, que havia encantado plateias como grande cantor de tangos. Bem, tudo que a garota esperava estava longe da figura daquele louro de um metro e oitenta, de casaca, que abriu a porta recebendo-a com um inglês impecável – o que tanto fazia, pois ela não falava uma palavra do idioma e, aliás, não era muito forte no português também. Introduzida no luxuoso apê, deparou com o Maya, o Hugo e o Daniel atarefadíssimos, com o script todo espalhado pelo chão, todos discutindo o roteiro do filme, enquanto um ridículo Miele, de cachimbo e robe colorido, martelava a máquina de escrever. (O robe também fazia parte do acervo portenho do pai do Daniel.) A situação era absolutamente verossímil para qualquer pessoa. Afinal, interpretando seus papéis, estavam ali aqueles que futuramente seriam alguns dos melhores atores e diretores do Brasil. Entusiasmada com o ambiente (e com o próprio roteiro do filme), nossa heroína se imaginou como a própria Kalu, a personagem principal. Como todo mundo sabe, Kalu, a índia, deveria ter um corpo escultural e MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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nada mais justo que a convidada para o teste revelasse à produção as suas possibilidades físicas. Ainda um pouco inibida, ela própria sugeriu um strip-tease, para o qual pediu uma música ambiente que liberasse um pouco mais a sua sensualidade. Imediatamente, Charles, o mordomo, foi chamado. Sentou-se elegantemente ao piano e ajeitou a casaca, como convém aos concertistas. Porém, infelizmente, além de ser a primeira vez em que envergava uma casaca, era também a sua estreia no piano, de maneira que a música tema, que serviu de fundo para aquela cena erótica, ficou restrita à execução de La Paloma, tocada com um dedo só. De qualquer maneira, a índia era uma beleza e sua performance convenceu imediatamente um dos componentes da equipe de produção, que, num ímpeto cinematográfico, arrastou a índia para uma das nossas cinco tendas. Terminada a sua primeira experiência com os bastidores da indústria cinematográfica nacional, Kalu dirigiu-se ao chuveiro para um banho revigorante. De repente, a cortina de plástico foi afastada. É evidente que ela não conhecia Alfred Hitchcock e a famosa cena de Psicose, por isso não gritou imediatamente, mas ficou indignada ao deparar com o nosso mordomo. Seminu, ele vestia apenas a parte de cima da casaca, mas portava também um martíni numa elegante bandeja, e ofereceu a bebida a ela, ainda com seu inglês irreparável: – Do you like a drink, madam? Ela não só entendeu como não aceitou, e ainda saiu correndo porta afora carregando as roupas, vestindo-se pelo caminho e gritando: – Eu não vim aqui pra dar pro empregado de ninguém! Bobagem dela. O mordomo era muito mais bonito que todos nós e, depois, não foi nem original, pois todo mundo sabe que a frase “eu não vim aqui pra dar pro empregado de ninguém” foi dita pela primeira vez em Hollywood, por Doris Day. 34

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Anos depois, as aventuras que aconteceram nesse apartamento serviram de tema para o argumento de A casa da mãe Joana, que o Hugo Carvana dirigiu. Foi um filme dos muitos que fizeram parte da estória do Hugo, ele mesmo parte da história do cinema nacional. Fiz uma ponta no filme, assim como no divertido O Homem Nu, em que o Hugo reviveu aquela história de eu dormir nas manilhas do Aterro do Flamengo – e olha que a Lota de Macedo Soares não tinha ainda sugerido ao Carlos Lacerda a criação do parque do aterro, e sequer imaginava que eu seria o primeiro inquilino. Cada um de nós se casou depois, mas o Roberto Maya, o Hugo e eu sentimos saudades dos momentos maravilhosos da vida de marginal.

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BECO DAS GARRAFAS


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onta a lenda que no beco localizado na rua Duvivier, no Rio de Janeiro, entre a Avenida Atlântica e a Avenida Nossa Senhora de Co-

pacabana, as garrafas voavam dos apartamentos por causa do barulho feito pelos frequentadores das quatro boates ali localizadas. Por isso, o local foi chamado de Beco das Garrafas. Quando eu cheguei de São Paulo, três das quatro boates apresentavam música brasileira e jazz: Bottle’s Bar, Little

Club e Bacarat. A quarta boate era a Ma Griffe, que operava com mulheres que nunca cheguei a saber se eram bonitas ou feias, pois, em primeiro lugar, não tínhamos a grana necessária para conferir o talento das moças. E, depois, porque só pensávamos em música (mentira). O Bottle’s, assim como o Little Club, pertencia aos irmãos Campana, Alberico e Giovanni. Eram oriundos de Ascoli Piceno e chegaram ao Rio à la O Poderoso Chefão, como o menino da cidade de Corleone. Não tinham onde morar, nem trabalhar. Dormiam nos bancos da praça Mauá, onde a grande legião de conterrâneos seus (mais ou menos quatro ou cinco rapazes) se reunia. Quando chegaram, acreditavam que iriam encontrar emprego rapidamente. Alberico havia feito a escola de hotelaria e acreditava que isso já fosse suficiente para conseguir se colocar. Nada disso. Procurou por emprego, primeiro nos melhores, depois nos piores bares, hotéis e restaurantes, sem nada conseguir. Então, quando acabou a grana que trazia, e começaram a fome e o sono, entrou desesperado num botequim da Lapa. Foi para trás MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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do balcão, começou a lavar a louça e, ante a surpresa e os protestos do português, dono do bar, gritou com cara de louco: – Ou o signore me dá uno emprego em troqui de case e comita, ô chiama la polizia. Para surpresa geral, inclusive dele e do português, o apelo teve o maior sucesso, e assim começou a carreira do Alberico no Brasil. Como vamos verificar, tinha uma grande tendência para o show business, tanto que, quando foi para seu segundo emprego, numa pensão em Copacabana, teve sua segunda brilhante atuação. A pensão tinha uns quinze fregueses, mais ou menos. Depois de algum tempo, o cozinheiro, que era também o dono do negócio, jogou a toalha. Ou melhor, jogou a toalha, as panelas, o fogão e os talheres, e abandonou o negócio. O Alberico, que completava aquela grande brigada de duas pessoas, ficou com a bomba e a freguesia nas mãos. Achou que valia a pena, mesmo porque, ali na pensão, pelo menos ele comia e dormia. Mas não dava para contratar outro cozinheiro, de modo que ele passou a empregar um tipo de serviço que jamais teria passado pela ideia dos seus mestres de culinária e hotelaria na Suíça. De madrugada, deixava já preparadas as saladas, massas e bifes, que compunham o menu fixo da casa. Recebia aqueles quinze fregueses, conforme iam chegando, colocava as garrafas de água e farinha de rosca (farinha na garrafa, não sei qual dos leitores encarou essa) e uma ou outra eventual cerveja para os chefes de seção. Então, gritava para a cozinha vazia: – Salta dois almoço pra mesa cinco! Corria para a cozinha, pegava os pratos, colocava na janelinha do salão e gritava lá de dentro: – Saindo dois almoço pra mesa cinco! Dava a volta correndo da cozinha para a sala, pegava os pratos e servia. Ficava nisso até o último freguês. Não ganhou dinheiro, mas desenvolveu excelente preparo físico, que serviu para garantir um terceiro lugar na maratona dos garçons, realizada anualmente na madrugada do Rio de Janeiro. 48

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Sobrou uma grana para investir no seu primeiro negócio, o tal Beco das Garrafas, onde Alberico e Giovanni trabalhavam como garçons. No Little Club, a crooner era Dolores Duran, por quem Alberico foi apaixonado, mas nunca teve coragem de revelar. Dolores cantava em inglês e francês, além de suas próprias composições. Mas não comovia a todos os fregueses; um deles, de nenhuma sensibilidade, ordenava sempre ao Alberico: – Diz para aquela negrinha cantar aquele negócio de Noite do meu bem e leva um sanduíche embrulhado pro meu carro, pra viagem. Billy Blanco, que também deu uma namoradinha na Dolores, viu a atitude daquele idiota e na noite seguinte trouxe a letra do samba antológico: – Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho... Os músicos começaram a frequentar o beco, ao passo que Alberico e Giovanni passaram de garçons a proprietários. Compraram tinta, martelo e pregos e se transformaram em patrões, maîtres, gerentes e decoradores. Nem sempre com a mesma qualidade. Prontas as instalações, faltavam as atrações. Dolores tinha partido prematuramente, vítima de um enfarte. Durante toda a vida do novo Little Club, Alberico trocava, a cada noite, a rosa em frente à foto da mulher por quem era secretamente apaixonado. Mas, e a música? Alberico já começara a ouvir de alguma maneira aquela coisa moderna que Dolores fazia, e o rádio começava a tocar um ou outro sucesso da Bossa Nova. Ele começou a chamar a rapaziada, que foi chegando e tocando. Sobrava até para uma concorridíssima jam session aos domingos à tarde. Contudo, o sistema de consumação era ao contrário. No início, os músicos não só não ganhavam nada, como ainda tinham que consumir um drinque para poder tocar. Não havia nenhuma maldade nisso, não. Era pura ingenuidade, mesmo. É claro que isso durou muito pouco tempo, até nascerem os primeiros “profissionais” do beco, principalmente os pianistas – Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Sérgio Mendes, Toninho, Tenório – e bateristas como Vitor Manga, Dom Um, Chico Batera etc.. DesMIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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culpem-me o etc., mas eu já peguei o bonde, ou melhor, o beco, andando, e não me lembro de todo mundo De todo modo, lembro que as estrelas eram os músicos, e não as cantoras. Cantor, não havia nenhum, até a chegada de Simonal e Jorge Ben. Aí, já foi no momento dos shows. Antes, os instrumentistas reinavam absolutos. Por exemplo, Flora Purin era casada com Dom Um, grande baterista. Mesmo assim, a rapaziada se recusava a acompanhá-la. Era só a Flora chegar, que os pianistas desapareciam. A Flora se chateou tanto que largou o Beco, o Dom Um e o Brasil, partiu para os Estados Unidos, casou-se com o Ayrton Moreira e ganhou o prêmio de melhor cantora de jazz, segundo a votação dos leitores da revista Playboy. Durma-se com um sucesso desses. Gato Barbieri, tremendo saxofonista argentino, vivia lá, tentando convencer alguém a gravar seu tema Michelle, que fizera em homenagem à sua mulher. Gostava tanto dela, que foi colocando o mesmo nome em todos os seus temas, os quais passou a numerar: Michelle 1, Michelle 2, Michelle 3, 4, 5, 6 etc.. Quando já estava em Michelle 415, sem ter conseguido nada aqui no Brasil, Gato Barbieri desistiu e foi miar nos Estados Unidos, onde Marlon Brando prestou mais atenção nele do que a gente. Gato compôs a música do Último Tango em Paris e ficou por lá mesmo. Parece que ganhou uma boa grana e dedicou-se à música que adora. Já está no Michelle 38.414. Sacha Distel também apareceu lá pelo Beco. Os músicos de seu conjunto foram convidados a dar uma canja, mas o Distel, considerado um “canário” careta, ficou de fora e não foi convidado para cantar. A turma do Beco “se achava” e Leny Andrade era a única mulher respeitada pelos músicos de lá. Ia sempre acompanhada pelo irmão, saxofonista, ou pela mãe, que desconfiava dos acordes e intenções daquela rapaziada. Leny era da mesma praia e música da turma, tocava piano e improvisava melhor que a maioria deles. Curiosamente, embora cantasse a toda hora, jamais fez lá no Beco um show com roteiro especial para ela. Leny cantava e pronto. 50

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Ela foi, de repente, contratada pela Orquestra de Dick Farney para uma longa temporada em São Paulo. Leny é a única brasileira que tem anualmente uma semana reservada no Blue Note de Nova York, onde Tony Bennett está sempre presente para acompanhar suas estreias. Antônio Benedetto, verdadeiro nome do cantor, é também pintor, e Leny tem duas telas com sua figura pintada por ele durante seu show. Não contente com o Tony Bennett, Leny tinha também na plateia, na mesma noite, Liza Minnelli. Grande fã e amiga, a atriz certa vez declarou: – Eu me considero uma profissional dedicada do show businesss. Se eu fosse cantora mesmo, queria ser Leny Andrade. Como a Liza é ganhadora do Oscar, a Leny tem esse aval importante lá nos Estados Unidos. Além disso, é a cantora Brasileira que atuou no maior número de países no mundo todo. Conhece alguém que já tenha cantado na Antuérpia? Pois é. Eu tenho a honra de fazer ao lado dela um show intitulado Um Brasileiro Chamado Jobim, com o qual temos viajado a obra do maestro soberano por todo o Brasil. (Por enquanto. Antuérpia, me aguarde!) O primeiro show que vi no Beco foi o Tamba Trio: Luiz Eça ao piano, Bebeto no contrabaixo e o Hélcio Milito na bateria. Hélcio havia inventado também o instrumento de percussão que deu nome ao trio. Acertou quem disse Tamba, é lógico. Depois aconteceu o show de Elis Regina, produzido pelo jornalista Renato Machado, com textos gravados pela Íris Lettieri, aquela locutora cuja voz maravilhosa anunciava todos os voos dos aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Logo em seguida, quando eu já estava morando na casa do Ronaldo Bôscoli, Sérgio Mendes nos chamou para fazer aquele que foi nosso primeiro show. Nosso e do Sérgio Mendes. Como todo mundo sabe, Sérgio Mendes continuou aqui no Brasil, lutando pela Bossa Nova, e Miele & Bôscoli foram se tornar milionários nos Estados Unidos. Fizemos muitos shows lá no Beco. Quase todos, daí para frente, enquanto o Beco durou. Só com o Sérgio, produzimos três: o priMIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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meiro foi o Quinteto Sérgio Mendes, com ele ao piano, Vitor Manga na bateria, Dom Um e Romão (idem), Otávio Baylle no contrabaixo, o Dr. Pedro Paulo (pediatra) ao pistom e Paulo Moura no sax alto e flauta. Houve também o Sexteto Sérgio Mendes: Sérgio ao piano, Edson na bateria, Otavio Baylli no baixo, Raul de Souza e Maciel nos trombones, Aurino no sax barítono e Hector Costita. O sexteto atacou também em outro show com Odete Lara, que foi lindíssima como cantora. Os arranjos finais dos shows foram feitos por Tom Jobim. O grupo chamava-se Bossa Rio e o disco gravado com as músicas do show levou o nome de Você ainda não ouviu nada. E não tinha ouvido mesmo. Foi um som tão marcante para a época que, se você comprar o CD que foi editado com nova remasterização, vai ver (e ouvir) que o som permanece formidável até hoje. Bem, Louis Armstrong é bom até hoje, assim como Ravel e outros. Fico pensando: quais dos sucessos atuais da música brasileira serão ouvidos em 2044? Axé, minha gente bronzeada... Naquela época, como Sérgio Mendes não gostava de falar, e eu ainda não havia percebido que podia ganhar algum como apresentador, mestre de cerimônias ou mesmo intrometido no palco, tivemos que encontrar uma maneira de “narrar” os shows instrumentais. No primeiro espetáculo, lançamos os slides, que logo depois se transformaram numa maldição nos shows. Por exemplo, quando o conjunto ia tocar Primitivo, nós colocávamos a figura de um dinossauro que tentava comer uma linda mulher. Comer com a boca, tipo Jurassic Park. Recortávamos as fotos de revistas como Esquire, assim como as letras (letra por letra) para formar as palavras. Colocávamos toda essa maravilhosa arte-final em cima de uma toalha vermelha da boate, o chiquérrimo Paulinho Garcez fotografava e o Ronaldo levava o filme para a Manchete, onde o Jaquito deixava que fizessem, no peito, os slides. Depois dessa maravilhosa primeira ideia, veio o segundo show. É claro que não poderíamos desapontar a seleta plateia, de maneira que criamos outra superprodução: Os Pássaros (ideia depois plagiada por 52

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Alfred Hitchcock). Para cada canção do conjunto, mostrávamos uma gaiola com um pássaro e o título da música num cartão, pregado na gaiola. Para Nanã, de Moacir Santos, arrumamos uma gaiola rústica, com um daqueles pássaros pretos, que ficava agitadíssimo durante a canção. Para a canção de Luiz Gonzaga, não furamos os olhos do pássaro como sugeria a letra: “Furaram os óio do assum preto, oi, pra ele assim, oi, cantá miór”. Quanto aos tímpanos, já não posso garantir. Com Primavera, de Vinicius e Carlinhos Lyra, era a vez de uma gaiola de porcelana, com aquele passarinho de dar corda. Um verdadeiro mimo. A música O amor em paz, de Tom e Vinicius, tinha até uma mensagem politicamente correta. Uma grande gaiola, onde havia uma pomba branca, aquela da paz (percebeu a sutileza?). E, sobre a pomba, uma ameaçadora granada. A bomba, da pomba. Genial. Uma noite, por alguma razão da qual não me lembro mais, tive uma briga com o Sérgio e, num acesso de idiotice, acabei com metade do elenco, jogando as gaiolas na rua (digo, no beco). Destruídas as gaiolas, o assum preto e a pomba voaram para longe e levaram consigo até o passarinho de dar corda. Como não encontramos substitutos à altura, o show terminou naquela noite. Vieram os shows do Simonal, que depois de fazer grande sucesso como cronner na boate Drink, foi convidado por nós para fazer o seu primeiro espetáculo. Ele chegou e arrebentou. Seu primeiro trabalho foi ao lado de Darlene Glória, e a seguir Simonal volta com Rosa, quando lançamos a Rosa Maria, que depois estourou com California Dreamin’. Veio então o primeiro show da Elis com a dupla Miele & Bôscoli. Com o trio de Luiz Carlos Vinhas, um ótimo pandeirista e passista chamado Gaguinho e a formidável Marly Tavares. Ela consagrou-se como estrela num espetáculo chamado Skindô, que foi realizado no Copacabana Palace, com direção de Abelardo Figueiredo, roteiro de Aloysio de Oliveira e produção de Abrahão Medina – pai e Roberto Medina, o criador do Rock in Rio. MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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Minha paixão pela Elis, assim como os muitos trabalhos que fiz com Simonal, não cabe somente nas modestas medidas do Beco das Garrafas. Peço licença para falar disso em outras páginas. Fizemos também dois shows com Lennie Dale, bailarino americano que tinha vindo para o Brasil, contratado por Carlos Machado para dançar num de seus espetáculos. Era a grande promessa da Broadway, segundo Hermes Pan, grande coreógrafo, que fez, por exemplo, Cancan no cinema (lembram? Sinatra, Shirley MacLaine, Maurice Chevalier, Louis Jordan). Pois bem, o Lennie, que tinha vindo só para dançar, apaixonou-se pela música brasileira e montou um show espetacular no qual cantava muito mais do que dançava. Ensaiou com o Vinhas durante dois meses, quatro horas por dia. Os músicos queriam matá-lo, uma vez que ninguém tinha feito isso no nosso tipo de show, mas o resultado foi maravilhoso. Eu só fui conhecê-lo na noite de estreia e, daí pra frente, fiquei completamente envolvido pelo seu talento, como a maioria dos artistas Brasileiros. Assim que terminou a temporada no Au Bon Gourmet, elegante night club do Rio de Janeiro, levamos Lennie para a precariedade do Beco das Garrafas. No beco, não existia iluminação. Instalamos algumas lâmpadas comuns, envolvidas com um cone de cartolina, que tinha um papel celofane colorido na frente. Devíamos ter uns quatro ou cinco desses “refletores” e duas lanternas. Lanterna, mesmo, aquela Eveready de três pilhas. Mas, como se fosse possível, tínhamos um iluminador, que acionava todo esse imenso quadro de iluminação. Era o Zé Luiz, que depois foi diretor da RCA, em Nova York. Havia todo um zelo com a criação (lembram-se das gaiolas?) e o público passou a adorar isso. No show do Lennie, evoluímos em termos de superprodução, de maneira que tínhamos direito a gastar uma folha de papel vegetal por noite. Colocávamos o papel na frente do balcão do bar e o Lennie ficava em silhueta, enquanto uma gravação anunciava: – Senhoras e senhores, o Bottle’s Bar, o bar da bossa, orgulhosamente apresenta Lennie Dale, mais um show Miele & Bôscoli. 54

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A entonação do locutor (eu mesmo, é claro) era pretensiosa, como se estivesse anunciando um grande espetáculo da Broadway, principalmente na parte “mais um show Miele & Bôscoli”. Paramos de fazer isso quando, num show do maravilhoso quarteto vocal Os Cariocas, a Tônia Carrero teve um acesso de riso na plateia. A plateia que eu digo, eram aquelas mesinhas baixas com quatro pufes em volta. De qualquer maneira, o Lennie arrebentava o tal papel, pulava no palco (um estrado de madeira de um metro de largura) e cantava: – Rio, Copacabana, Rio, Copacabana... Era um sucesso total. Aprendi muito com ele, principalmente quando discutia comigo, durante os ensaios: – Miele, meu amor, tem que mudar a dinâmica desse número. – Tá legal, Lennie. Vamos ensaiar de novo. Aproveita e me explica o que é essa tal de dinâmica. Em outra ocasião, quando Lennie ia cantar O pato, um dos garçons interrompia o show, trazendo uma salva de prata (“emprestada” do Au Bon Gourmet). Lennie ficava muito surpreso, abria a tampa e dentro estava um patinho lindo. Vivo, é claro. Quase sempre, quando se levantava a tampa, o pobre patinho, que já estava preso há algum tempo, grasnava. Lennie, assustado, dizia: – O pato? E continuava cantando: – Vínia cantando legrimente, quém-quém... Era um sucesso. O patinho, contudo, durava pouco: ou o roubavam, ou tinha piores destinos (ratos), de maneira que fizemos um trato com uns garotos de morro, que nos traziam um patinho novo, toda noite. Mas acho que a ninhada acabou, porque numa certa noite, quando Lennie abriu a tampa, saiu voando de lá o maior pato que podia caber na tal salva. Saiu voando pela plateia. Filho da pata. De todo modo, fizemos trabalhos maravilhosos. Além dos seus shows, Lennie deixou uma escola e um estilo da dança moderna no Brasil. Depois MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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fomos para São Paulo, onde montamos um show muito instigante com ele e Maria Bethânia, cujo título era Um homem – Uma mulher. Pouco antes da noite de estreia, eu fui informado pela direção da TV Record que deveria ir para Paris gravar um programa de uma hora de duração com Elis, que iria começar a temporada no Olympia. Oba! Paris, tudo pago. Ronaldo enlouqueceu: – Ô Miele, eu não vou porque tenho pavor de avião. Mas você também não vai me deixar aqui sozinho com essas duas feras, o Lennie e a Bethânia. Na dupla, Ronaldo era o dono das ideias, mas ficava comigo, em todos os shows, a parte de palco, luz, som, ensaios e neuroses. Assim, sabendo que tinha de deixar alguém em meu lugar, saí pela noite de São Paulo, depois dos ensaios, e entrei no Gigetto, onde a classe artística se reunia. A primeira pessoa que vi, quando entrei no restaurante, foi o Fauzi Arap, que eu só conhecia de vista. Contei-lhe a história e pedi que assumisse a direção. Sorte dele, e da Bethânia. Aconteceu uma sintonia maravilhosa entre eles e viveram felizes, quase para sempre. Depois, na minha volta, o Lennie pegou hepatite e deixou o show. Estávamos os dois num café e eu achei que os olhos dele estavam um pouco amarelados. Levei-o a uma farmácia para tomar um remedinho para o fígado. Quando entramos, o farmacêutico começou a gritar apavorado para eu levar aquele homem dali direto para o hospital. Como nenhum hospital quis aceitá-lo, afirmando que hepatite tem que ser tratada em casa, levei-o para a minha, lá em São Paulo. Qualquer doente desse tipo dá uma boa mão de obra, mas em se tratando de alguém enérgico como o Lennie, rolou uma verdadeira dor de cabeça, tronco e membros. Mas valeu. Entre os shows de Sérgio Mendes, Simonal, Lennie, Os cariocas, Elis etc., eu e Ronaldo começamos a ensaiar outros tipos de pocket shows. Por exemplo, Consuelo Leandro & Bossa 3. Consuelo era uma comediante extraordinária. Imagino como foi o casamento dela com o Agildo Ribeiro. (Que dupla, hein?) Ela fazia o show 56

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vestida com um smoking; era o humor do teatro de revista, acompanhado pelos garotos da Bossa Nova. Outro show marcante foi Rosana Tapajós & Trio Irakitan. Esse era diferente mesmo. Rosana era uma manequim e cantora lindíssima, que depois virou estrela e milionária no México. Chamamos para os arranjos Tenório Jr., excelente pianista que adorava jazz e o instrumental da Bossa Nova. Quando começou o primeiro ensaio, Rosana apareceu com um gato angorá no colo, e o Trio Irakitan cantando: – Ô minie, gato de ti dô, se já skim bim bauim bauei. Tenório levantou do piano, pediu o boné e se despediu: – Miele, vai me desculpar, mas nessa do Vaudeville eu não estou. Nunca mais o vi, infelizmente. Durante uma temporada em Buenos Aires, acompanhando Vinicius e Toquinho, ele saiu do hotel para comprar cigarros, foi confundido com um terrorista, preso e assassinado pela ditadura militar argentina. Apesar de todos os esforços de Vinicius, poeta e diplomata Brasileiro, Tenório nunca foi encontrado. Muitos anos depois, um elemento da repressão confessou a autoria da sua morte. Durante muito tempo, fizemos quase todos os shows do Beco. Acho que apenas três deles não foram feitos por nós. No Bacarat, Armando Pittigliani produziu o primeiro show de Jorge Ben. Por causa de Você e Mais que Nada começaram a estourar por lá. Samuel Wainer ia inaugurar o jornal Última Hora em Belo Horizonte e resolveu prestigiar a garotada. Eu e Ronaldo produzimos um show com quem estava disponível e levamos para BH: Sérgio Mendes e conjunto, Dóris Monteiro, Walter Santos, um cantor que era o João Gilberto de São Paulo, duas bailarinas que iriam fazer a dança da Bossa Nova. E o Jorge Ben. Íamos de trem, à noite, no Vera Cruz. Marcamos encontro no Beco, mas Jorge chegou partindo, quer dizer, veio para dizer que não ia: – Olha, rapaziada, eu não vou nessa, não. Vou fazer um programa de TV em São Paulo. Pintou uma chance legal, um lance lá na capital, vocês me desculpem. MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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Desculpar era o de menos – Jorge Ben era, e continuou sendo, Pedra 90 – mas como é que a gente ia ficar? Nessa altura, o pandeirista que tocava com ele, Nelsinho, arriscou: – Ô chefia, eu estou trabalhando com o homem há três meses. Sei todo o repertório e me defendo. Me dá mais uma graninha que eu ataco no lugar dele numa boa. Beleza. Ainda não havia a TV em rede, acho que nem o videoteipe, e em Minas as pessoas haviam apenas escutado, e não visto, os primeiros sucessos do Jorge. Atacou o Nelsinho mesmo, anunciado com o nome do patrão. Tem mais: ficamos hospedados no mesmo hotel que a seleção russa de basquete. Tínhamos uma gravação na qual eu imitava o Nikita Khrushchov apresentando a Bossa Nova: – E agora, diretamente da Praça Vermelha em Moscou, as palavras do premiê Nikita Khrushchov. E imitava: – Kavranski protraika merdinska yavrotz tovarich the bassanava da camarad Sérgio Mendessssss... Em seguida, entrava uma música americana com a banda de Johnn Philipp Souza. Colocamos a fita no serviço de som do hotel às quatro da manhã e fomos para o saguão, assistir à briga entre o gerente do hotel e o representante dos russos. O gerente achando que era uma molecagem dos jogadores de basquete e os dirigentes soviéticos reclamando da falta de respeito com o seu premiê. Na volta, Pittigliani dirigiu Nara Leão, que cantava no Bacarat. Sérgio tocava no Bottle’s. As casas eram vizinhas e tivemos que combinar para que a Nara esperasse o Sérgio terminar, pois o som do conjunto Bossa Rio atravessava as paredes. Só as paredes, porque no beco não se atravessava o ritmo. Outro show foi feito por Aloysio de Oliveira para a maravilhosa Silvinha Telles. Ela havia gravado o melhor disco de “cantora & orquestra” naquela época, com arranjos formidáveis de Lindolfo Gaya. Aloysio apre58

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sentou, então, o primeiro show feito com playback no Brasil. Ficava escondido atrás de uma cortina de plástico que mandou pendurar, pois não havia espaço para ocultar aquele enorme gravador de rolo. Depois, os artistas foram sendo requisitados para a fama e para outros trabalhos. A Bossa Nova foi chegando aos teatros e casas bem mais elegantes começaram a contratar aqueles que ali haviam sido lançados. Eu e Ronaldo combinamos um novo encontro com o Alberico para dentro de alguns anos, encontro que aconteceu realmente no Pujol. E assim, repentinamente, como nessas lembranças, o Beco das Garrafas acabou. Acabou? Não acabou. Atualmente, Amanda Bravo, filha do Durval Ferreira, grande guitarrista e um dos fundadores, batalha pela reabertura e tem apresentado shows lançando novas promessas da música brasileira. Muita gente boa tem dado a sua colaboração. Marcos Valle, João Donato e Simoninha já estiveram presentes e a Lilian, uma das intérpretes de Elis – a musical reviveu a presença da nossa maior cantora. Eu também já dei a minha modesta e emocionada contribuição. Boa sorte para a Amanda. E já havia voltado ao beco antes, vinte anos depois das nossas aventuras. O Little Club ainda estava lá. Fui à tarde, com a casa vazia; não tinha vontade de entrar à noite, pois não sabia como os fantasmas queridos iriam me receber. O mesmo palquinho ainda estava lá também. Como era possível que ali coubessem piano, baixo, bateria, Elis, Gaguinho e Marly Tavares ao mesmo tempo? Pois cabiam, cantavam e dançavam para as quarenta pessoas que lotavam a casa. Um orgulho para os artistas e produtores, todos em início de carreira. Pego o gancho aqui para recordar como o sucesso da Elis foi vertiginoso. Em poucas semanas, ela passou a ser requisitada para shows em todo o Brasil. Não havia como segurá-la. Ela passou a faltar sempre nos fins de semana, deixando todo mundo louco. Não havia dinheiro para os cartazes, e o muro que ficava no fundo do beco era o nosso outdoor. Lá ficava, em toda a extensão do muro, o anúncio “Hoje: Elis Regina”. Ronaldo pegou um MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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balde de piche e um pincel, e “pichou” o nome da Elis, colocando um ponto final na temporada. Foi a partir dessa atitude que toda a turma passou a comentar: – Rapaz, você viu? O Bôscoli pichou a Elis Regina! A expressão ficou famosa no Rio de Janeiro. Ronaldo não se incomodou com a autoria, pelo contrário, tornou-se campeão sul-americano de pichação. Elis, é claro, ficou uma fera e jurou horror eterno ao Ronaldo. Algum tempo depois, passado o primeiro ano de enorme sucesso de O fino da bossa, programa comandado por Elis e Jair Rodrigues, Manoel Carlos, que era o produtor, achou que estava na hora de se transformar num dos maiores autores de novelas do Brasil e deixou o programa. Luizinho Eça, que era o diretor musical do programa, sugeriu a contratação da dupla Miele & Bôscoli. A reação da Elis foi imediata. Foi ao Paulinho de Carvalho, dono da TV Record, decidida a justificar o apelido de Pimentinha que foi dado a ela por Vinicius. – Paulinho, eu soube que a Record está pensando em contratar Miele & Bôscoli. Pois bem, se eles vierem para cá, para qualquer programa, mesmo que não seja o meu, eu vou para a Tupi. É óbvio que essa contratação foi adiada, mas o Luizinho continuou a campanha a nosso favor e, além dos arranjos musicais que fazia para o programa, foi fazendo outros arranjos, procurando a harmonia certa com a Elis. Finalmente, ela concordou. Em parte. – Ok, Paulinho. Pode trazer a dupla dinâmica. Mas eu só falo com o Miele. Com o Ronaldo, nem pensar. Ele que dê as ideias, faça os textos e o Miele dirige o programa. No primeiro encontro, na casa do Luizinho, criou-se uma situação ridícula. Criávamos uma nova canção para a abertura do programa. A Elis e o Luizinho numa sala, o Ronaldo em outra. Luizinho tocava as primeiras frases musicais e gritava para o Bôscoli: – Tá ouvindo daí, Ronaldo? E o Ronaldo gritava de volta: 60

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– Alto e claro, deixa comigo – e escrevia o primeiro verso da letra. Eu levava o verso para o Luizinho ler e a Elis aprovar. Luizinho tocava as frases seguintes, Ronaldo escrevia os versos seguintes, eu levava os versos para serem aprovados. E era uma composição “pra viagem”. Durante essa palhaçada, Vinicius de Moraes, que entrava sem bater, tanto nas casas quanto no coração da gente, abriu a porta da rua e deparou com aqueles personagens. Deu meia-volta e foi escrever Eu sei que vou te Amar em outra freguesia. Na décima viagem, eu disse ao Ronaldo que aquela situação, além de absurda, estava ficando cansativa. A resposta foi: – Não esquenta não, Miele. Assim que ela me cumprimentar, eu caso com ela. E casou. Eu fui um dos padrinhos, junto com o Dener e a Laurinha Figueiredo. O casamento foi na Capela Mayrink, na Floresta da Tijuca. Na hora da cerimônia, o sacristão faltou, o padre me entregou um livrinho e me avisou: – Cada vez que eu fizer um sinal com a cabeça, você lê uma das frases do livro. Assim, eu participei da cerimônia no altar, de terno preto e barba. Talvez por isso, o repórter da Folha de São Paulo escreveu: “Estranhamente, o casamento de Elis Regina e Ronaldo Bôscoli foi oficiado por um padre católico e um rabino”. O casal foi morar numa casa linda, na encosta da avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, com uma tremenda visão do mar – de onde Elis, numa das discussões com Ronaldo, atirou no próprio (no mar, não no Ronaldo) toda a maravilhosa coleção de LPs do Sinatra, tão adorada pelo “velho”, como ela o chamava (o Ronaldo, não o Sinatra). Foi engraçado: eu vinha chegando de moto e vi passando toda aquela coleção de discos voadores. E logo do Sinatra. MIELE – O CONTADOR DE HISTÓRIAS

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O casamento durou pouco, para uns, e até muito, para outros. Eram dois temperamentos altamente combustíveis e a combinação explodiu logo. Outros casamentos vieram para eles, assim como outros filhos. Ronaldo já se foi, Elis também. Ruy Castro escreveu que “Miele enxugou as lágrimas e foi em frente”. Agora, eu ligo às vezes para o João Marcelo Bôscoli, diretor de gravadora, ou ouço o CD do Pedro Camargo Mariano, ou vou assistir ao show da Maria Rita. E vou em frente.

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