A Lenda de Argaios

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A Lenda de Argaios


A Lenda de Argaios

A ESTRANHA CIGANA O sol começava a se pôr quando Bártolo e seus homens – grupo seleto, com os melhores soldados de Nevrata, montaram em seus cavalos e tomaram a trilha de barro que os levariam de volta para casa... Servindo ao grande rei Benthor, aquele comandante completava mais um dia de coleta dos tributos das cidades dominadas por Nevrata. O peso extra das sacas que comportavam ouro em sua capacidade máxima reduzia o ritmo das montarias, exigindo atenção redobrada de Bártolo, que seguia em prontidão, garantindo, assim,

que as

moedas chegassem em segurança à cidade. Restando alguns poucos quilômetros para completar o regresso, uma mulher maltrapilha e de cabelos grisalhos surgiu à frente da cavalaria, chamando a atenção de Bártolo. Surpreso com aquela aparição repentina, imediatamente ordenou à tropa que se colocasse em posição de guarda; a quantia que transportava era extremamente valiosa, o que despertava a cobiça de oportunistas. Era preciso muita tenção e cautela. – Alto lá! Identifique-se, em nome de Benthor, rei de Nevrata! – disse Bártolo empunhando sua espada em direção da senhora. – Desculpe-me, meu senhor, não tive a intenção de assustá-los! Eu me chamo Dálitha. Sou apenas uma humilde cigana tentando ganhar seu sustento. – esclaresceu a senhora numa voz tranquila e suave. – O senhor não gostaria de ajudar uma pobre velha? Embora Dálitha aparentemente não representasse ameaça alguma, era preciso encará-la como um perigo iminente, pois poderia se tratar de uma isca colocada ali por saqueadores para distraí-los. Bártolo olhou atentamente à sua volta e não avistou mais ninguém ao longo da trilha; talvez aquela senhora estivesse falando a verdade. – O que faz sozinha nestas trilhas? Por acaso desconhece que estas terras são infestadas de saqueadores? A senhora olhou fixamente para o comandante e respondeu num tom resoluto: – Nenhum saqueador perderia seu tempo comigo! Tudo que carrego é a roupa do corpo e esta pequena sacola contendo alguns poucos pertences de valor insignificante. – colocando à mostra a sua sacola a fim de provar o que dizia. Bártolo pôde ver que ali dentro não havia nada além de algumas quinquilharias... Olhou compassivamente para aquela mulher, por mais uma vez. Seu vestido era um


A Lenda de Argaios verdadeiro trapo e seus cabelos, emaranhados, pareciam não ser lavados há muito tempo. Certamente se tratava de uma mulher paupérrima e talvez estivesse com fome. – O que você deseja? – indagou o comandante em tom condescendente. – Diga o que tem a dizer, pois temos que seguir nosso caminho! – Gostaria de oferecer meus serviços ao senhor. Posso lhe mostrar o que Deus lhe reserva! Bártolo imaginava que aquela mulher de feições marcadas pelo tempo fosse lhe pedir esmola, mas ao invés disso, ela lhe oferecia seus serviços. Como o comandante era um ateu convicto e não acreditava em misticidade, apanhou um punhado de moedas do tributo que fora recolhido ao longo de todo o dia e ofereceu àquela pobre senhora: – Tome! Leve um pouco com você. Terá alguns dias de comida e bebida garantidos. Apesar da oferta pomposa, Dálitha não apanhou as moedas que estavam sendo ofertadas. – O que foi? Acha pouco?! – Primeiro meus serviços, senhor! – Sinto muito, mas estou com pressa; além disso, não acredito em Deus e, ainda que Ele existisse, tenho certeza que não olharia por mim. – disse Bártolo, recolhendo a mão que continha as moedas. – Vamos, homens! O comandante reiniciava o retorno a Nevrata com seus soldados, quando Dálitha, em voz alta, insistiu: – Entendo que seja um homem de pouca fé, afinal teve uma infância difícil e conseguiu tudo o que tem por meio de muita obstinação, mas saiba que Deus nunca o deixou sozinho em nenhum momento de sua vida, nem mesmo, quando criança ainda, você decidiu abandoná-lo. As palavras da cigana fizeram o comandante estremecer. Pouquíssimas eram as pessoas que conheciam sua história. Era espantoso o fato de uma estranha saber sobre a vida difícil que tivera quando pequeno. Uma força inexplicável emanada de seu interior o fez desmontar de seu cavalo e caminhar em direção à Dálitha. – Seja rápida! – disse o comandante de Nevrata enquanto espalmava uma das mãos para a velha maltrapilha.


A Lenda de Argaios A senhora segurou a mão que lhe fora estendida, contudo não se deu ao trabalho de lê-la como as típicas ciganas. Dálitha ficou observando fixamente os olhos de Bártolo e, após alguns poucos instantes, falou numa voz grave: – Ouça bem! O sopro de vida contido em seu corpo físico está para se extinguir. Se não der ouvidos aos meus dizeres, o tempo de sua permanência entre os encarnados chegará ao fim ainda hoje! – Que besteira é essa?! – retrucou Bártolo com as palvras daquela velha. – Você não sabe o que está dizendo! Isso é loucura! – exclamou, ameaçando voltar para seu cavalo. – Se for embora não haverá meios de salvar-se, e você será o resposável pela morte daquele que está predestinado a libertar Nevrata das forças malévolas! – salientou a senhora num tom repreendedor. – Do que você esta falando?! Quem está predestinado a libertar Nevrata das trevas? – Seu filho! – respondeu a cigana. – Suas previsões estão enganadas! Não tenho filhos... Tome! Isto deve ser o suficiente para pagar por esta farsa! – estendendo novamente a mão com as moedas. – Coloque essas moedas onde estavam, pois me oferece algo que não lhe pertence! – disse Dálitha, recusando-se a pegá-las. – Que tipo de cigana não cobra por seus serviços? – O que de fato sou vai além de sua capacidade de compreensão! Estou aqui porque você obteve a graça de ser alertado. Aproveite esta oportunidade! – Alertado sobre o quê? Dálitha aproximou-se do comandante, ficando a menos de um palmo de distância, e então respondeu sua pergunta: – Sua morte se fará por motivo de traição. Sua partida prematura colocará em risco a vida de seu descendente, que está predestinado a chegar ao trono de Nevrata e salvar por mais de uma vez aquele reino que se encontra submerso nas trevas. Ouça o que digo! Você e seu filho serão alvos de um desejo mórbido de vingança... Fuja para bem longe com essa criança!


A Lenda de Argaios – Isso é loucura! Como posso proteger alguém que nem sequer existe? Já lhe disse ainda há pouco e vou repetir: eu não tenho filhos! – exclamou Bártolo, visivelmente irritado. – Vamos homens, mexam-se! Já perdemos tempo demais por aqui! – exclamou o comandante retornando ao seu cavalo. – Ah, Pai! Perdoai este teu incrédulo cordeiro! Ele desconhece que do amor proibido que cultivou, um filho não planejado já está a caminho! Que os bons espíritos protejam esta criança que virá ao mundo. – disse Dálitha consigo mesma, observando atentamente o grupo de soldados que se afastava.


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