A experiência do cinema - Ismael Xavier

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a heterogeneidade material do medium; tentativas de conter este risco afloram na linguagem da ideologia da unidade orgânica. No discurso dos técnicos, o som é "casado" com a imagem e, como diz um engenheiro de som em um artigo sobre pós-sincronização, "um dos ohjetivos básicos da indústria cinematográfica é fazer a tela parecer viva aos olhos da platéia ... "6 Acompanhando a exigência de uma representação tal-e-qual a vida, está o desejo de "presença", mil conceito o qual não é específico para a trilha sonora cinematográfica, mas que atua como um padrão para medir a qualidade na indústria de gravação sonora como um todo. O termo "presença" oferece uma certa legitimidade ao desejo de reprodução pura e passa a ser o ponto de venda na construção do som como uma mercadoria. O anúncio comercial na televisão pergunta se nós podemos "dizer a diferença" entre a voz de Ella Fitzgerald e a do Memorex (e desde que o nosso representante no comercial - o ardente fã - não pode, a única conclusão que se pode tirar é a de que possuir um gravador Memorex é o equivalente a ter Ella cantando na sua sala). Os avanços técnicos em gravação sonora (tais como o sistema Dolby) são planejados para diminuir o ruído do sistema, escondendo o trabalho do aparelho, e reduzindo assim a distância percebida entre o objeto e sua representação. As manobras da indústria de gravação sonora mostram evidências que apóiam a tese de Walter Benjamin que liga a reprodução mecânica como um fenômeno à destruição da "aura" na sociedade contemporânea ("aura" que ele define como "o fenômeno raro de uma distância não importando quão perto esteja").7 De acordo com Benjamin: A decadência atual da aura... liga-se a duas circunstâncias uma e outra correlatas com o papel crescente desempenhado pelas massas na vida presente. Encontramos hoje, com efeito, dentro das massas, duas tendências igualmente fortes; exigem, de um lado, que as coisas se lhe tornem, tanto humana como espacialmente, "mais

próximas", de outro lado, acolhendo as reproduções, tendem a depreciar o caráter daquilo que é dado apenas uma única vez." 8 Entretanto, enquanto o desejo de trazer as coisas mais para perto é explorado ao se fazer o som vendável, as qualidades de singularidade e autenticidade não são sacrificadas - não é ~ma voz qualquer que a fita traz ao consumidor senão a de EUa FItzgerald. A voz não é separável de um corpo que é bem específico, o da estrela. No cinema o valor de culto e a "aura" reemergem no star system. Em 1930 'um escritor sente a necessidade de assegurar às platéias que a pó~-sincronização como técnica não implica necessariame~te a substituição de uma voz estranha por uma voz "real", e que a mdústria não perdoa a má combinação de vozes e corpO.9 Assim, a voz serve como suporte e apoio para o espectador, no seu reconhecimento e identificação da, e igualmente com, a estrela. Assim como a voz necessita estar ancorada em um determinado corpo, o corpo necessita estar ancorado em um determinado espaço. O espaço visual fantasmático que o filme constrói é suplementado por técnicas planejadas para espacializar a voz, localizá~la" d~r-Ihe profundidade, emprestando assim aos personagens a conslstencla do real. Uma preocupação pela qualidade de som da sala, reverberações características e perspectiva sonora manifestam um desejo de recriar, como diz um montador de som, "o buquê que envolve e circunda as palavras, a presença na voz, a maneira como esta se encaixa no ambiente fisico." 10 Os perigos da pós-sincronização e dublagem derivam do fato de que a voz é desengajada de seu "próprio" espaço (o espaço conduzido pela imagem visual) e de que a credibilidade desta voz depende da habilidade do técnico de fazê-la retornar ao seu lugar de origem. A falha nisto, arrisca expor o fato de que a dublagem é "narração mascarada em diálogo".u O diálogo é definido não simplesmente em termos do estabelecimento da re-

Ibid. p. 223. George Lewin, "Dubbing and its Relation to Sound Picture Production". Journal of the Society of Motion Picture Engineers, 16, n.o 1 (Jan. 1931), 48. 10 Walter Murch, "The Art of the Sound Editor": Uma entrevista com Walter Murch, entrevista dada a Larry Sturhahn, Filmakers Newsletter, 8, n.o 2 (De1; 74), 23. 11 Ibid. 8 9

6 W. A. Pozner, "Synchronization Techniques", Journal of the Society of Motion Picture Engineers, 47 n.O 3 (september 1946), 191. 7 Walter Benjamin, "The work of Art in the Age of Mechanical Reproduction", in I/luminations, ed. Hannah Arendt. NT: usamos aqui a tradução, para o português, de José Lino Grunewald - ver A Idéia do Cinema, pág. 65.

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