A experiência do cinema - Ismael Xavier

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o paradoxo do falocentrismo em todas as suas manifestações reside no fato de que ele depende da imagem da mulher castrada para dar ordem e significado ao seu mundo. Para o sistema, já existe uma idéia de mulher como a eterna vítima: é a sua carência que produz o falo como presença simbólica; seu desejo é compensar a falta que o falo significa. 1 Artigos recentes sobre cinema e psicanálise, publicados em Sereen, não têm ressaltado de forma suficiente a importância da representação da forma feminina numa ordem simbólica que, em última instância, só fala a castração ,e mais nada. Sumarizando rapidamente: a função da mulher na formação do inconsciente patriarcal é dupla: ela simboliza a ameaça da castração pela ausência real de um pênis e, em conseqüência, introduz seu filho na ordem simbólica. Uma vez que tal função é satisfeita, termina aí o seu significado no processo, não permanecendo no mundo da lei e da linguagem exceto enquanto memória que oscila entre a plenitude maternal e a falta. Ambas estão situadas na natureza (ou na anatomia, conforme a famosa frase de Freud). O desejo da mulher fica sujeito à sua imagem enquanto portadora da ferida sangrenta; ela só pode existir em relação à castração e não pode transcendê-la. Ela transforma seu filho no significante do seu próprio desejo de possuir um pênis (a condição mesma, ela supõe, de entrada no simbólico). Ela deve graciosamente ceder à palavra, ao Nome do Pai e à Lei, ou então lutar para manter seu filho com ela, reprimidos na meia luz do imaginário. A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando lingüístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado. Para feministas, há um interesse óbvio nesta análise, uma beleza que consiste numa tradução exata da frustração experimentada sob a ordem falocêntrica. Ela nos coloca mais próxima das origens de nossa opressão, traz uma articulação mais direta do problema e nos defronta com o desafio máximo: como enfrentar o inconsciente estruturado como linguagem (formado criticamente no momento de ado1 NT: Para uma melhor compreensão de todos os termos de origem psicanalítica ver: Laplanche, 1. & Pontalis, 1. B. Vocabulário da Psicanálise. Lisboa, Moraes, 1970.

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ção da linguagem) ao mesmo tempo em que ainda se está enredada na linguagem do patriarcalismo. Não há jeito algum pelo qual se possa produzir uma alternativa do nada, mas podemos tentar uma ruptura através do exame do patriarcalismo e com os próprios instrumentos que ele fornece, dos quais a psicanálise, embora não sendo o único, é um instrumento importante. Um grande vazio ainda nos separa dos problemas mais importantes para o inconsciente feminino e que são pouco relevantes para a teoria falocêntrica: na infância, a sexualização da menina e sua relação com o simbólico, a mulher sexualmente madura como não-mãe, a maternidade fora da significação do falo, a vagina. " Mas, por agora, a teoria psicanalítica em seu estágio atual, pode, pelo menos, fazer avançar o nosso conhecimento do status quo da ordem patriarcal na qual nos encontramos.

B)

A destruição do prazer como arma política

Enquanto sistema de representação avançado, o cinema coloca questões a respeito dos modos pelos quais o inconsciente (formado pela ordem. dominante) estrutura as formas de ver e o prazer no olhar. O CInema se transformou nas últimas décadas. Não é mais o sistema monolítico baseado em grandes investimentos de capital conforme exemplificado da melhor forma por Hollywood nas décadas de 30, 40 e 50. Avanços tecnológicos (16mm, etc.) alteraram as condições econômicas da produção cinematográfica, que agora pode ser tanto artesanal quanto capitalista. Assim, é possível o desenv~lvimento de um cinema alternativo. Não importa o quanto irômco. e .a~toconsciente seja o cinema de Hollywood, pois sempre se ~estn~~ra a ur,na mise en scene formal que reflete uma concepção Ideol~gIca dommante do cinema. O cinema alternativo por outro lado cna um espaço para o aparecimento de um outro cinema, radical tanto, n.um senti~o político quanto estético e que desafia os precei~ tos basIcos do cmema dominante. Não escrevo isto no sentido de uma rejeição moralista desse cinema, e sim para chamar a atenção para o modo como as preocupações formais desse cinema refletem as obsessões psíquicas da sociedade que o produziu, e, mais além, par~ .ressaltar o fato de que o cinema alternativo deve começar espeCIfIcamente pela reação contra essas obsessões e premissas. Um

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