A experiência do cinema - Ismael Xavier

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í sobressair em detrimento de todo o resto. O palco em nada pode ajudar. A arte do teatro tem aí limitações. Começa aqui a arte do cinema. A mão nervosa que agarra febrilmente a arma mortífera pode súbita e momentaneamente crescer e ocupar toda a tela, enquanto tudo o mais literalmente some na escuridão. O ato de atenção que se dá dentro da mente remodelou ~ próprio ambiente. O detalhe em destaque torna-se de repente o conteúdo único da encenação; tudo o que a mente quer ignorar foi subitamente subtraído à vista e desapareceu. As circunstân;ias externas se curvaram às exigências da consciência. Os produtores de cinema chamam a isso de close-up. O close-up transpôs para o mundo da percepção o ato mental de atenção e com isso deu à arte / um meio infinitamente mais poderoso do que qualquer palco dramático. A técnica do close-up foi introduzida no cinema um tanto tardiamente, mas não demorou. a se impor. Quanto mais apurada a produção, mais freqUente e mais hábil o uso deste novo meio artístico. Sem ele, dificilmente se poderia encenar um melodrama, a não ser recorrendo à utilização muito pouco artística das palavras escritas. O close-up supre as explicações. Se. do pescoço de um bebê roubado ou trocado pender um pequeno medalhão, não precisamos de palavras para saber que tudo vai girar em torno do medalhão vinte anos mais tarde, quando a jovem estiver crescida. Se o ornamento no peito da criança for logo mostrado num close-up que exclui todo o resto e mostra, ampliada, a sua graciosa forma, nós a retemos na imaginação, sabendo que precisamos dar-lhe toda a atenção, uma vez que irá desempenhar papel decisivo em outra seqüência, O cavalheiro criminoso que, ao tirar o lenço do bolso, deixa cair no tapete, sem o perceber, um pedacinho de papel, não tem como chamar a atenção para aquele detalhe que o incrimina. Isto dificilmente seria usado no teatro, pois passaria desapercebido da platéia tanto quanto do próprio criminoso: o papel não bastaria para atrair a atenção. Mas, no cinema, é um estratagema muito usado.' Assim que o papel cai no tapete, tudo desaparece e só ele é mostrado, muito ampliado, na tela: vemos que se trata de uma passagem emitida na estação ferroviária onde foi cometido o grande crime. A atenção se concentra no papel e nós ficamos sabendo que ele será vital para o desenvolvimento da ação.

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Um empregado de balcão compra o jornal na rua, passa os ~lhos nas manchetes e leva um susto. Subitamente a notícia aparece dIante dos nossos olhos. As manchetes ampliadas pelo close-up_ ocupa~ toda a tela. Mas não é necessário que o foco da atençao recaIa sempre nas "alavancas" do enredo. Qualquer detalhe sutil, qualquer gesto significativo que reforce o significado da ação pode ocupar o centro da consciência monopolizando a cena por alguns segundos. O amor transparece na face sorridente da moça, mas isso nos e~capa no meio da' sala chei~ de gente. De repente, por. apenas tres segundos, todo o mundo desaparece, inclusive o próprio casal de ~a­ morados , e só vemos na tela o olhar de desejo do rapaz e o .sornso de aquiescência dela. . O close-up faz o que o teatro não ~ena condições de fazer sozinho, embora pudéssemos alcançar efeIto semelhante se tivéssemos trazido para o teatro os binóculos, apontando-os naquele momento para as duas cabeças. Mas neste caso teríamos nos desvinculado do quadro que nos é apresentado pelo palco: a concentração e o foco teriam sido determinados por nós, e não pelo espetáculo. No cinema ocorre o inverso. Não teríamos chegado, através desta análise do close-up, muito perto de onde nos conduzia o estudo da perce~ção da profu~d~dade e do movimento? Vimos que o cinema nos da o mundo pl~St.ICO e dinâmico, mas que a profundidade e o movimento, ao contr~no do que acontece no palcá, não são reais. Vemos agora que eXIste ~m outro aspecto do cinema em que a realidade da ação carece de lDdependência objetiva porque se curva à atividade. subjetiv~ ~a atenção. Sempre que a atenção se fixa em alguma COIsa especIfIca, todo o resto se ajusta, elimina-se o que não jnteressa e o close-up destaca o detalhe privilegiado pela mente. , É como se o mundo exterior fosse sendo urdido dentro da nossa mente e, em vez de leis próprias, obedecesse aos atos de nossa atenção,

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