A experiência do cinema - Ismael Xavier

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onde eles se agitam. Mas se não passarem de fantoches, nossas gargalhadas soarão altas e brutais, e nem toda a noite nem todas suas brisas poderão aplacar a queimadura de nossos olhos. Destino pior para os filmes menores. fIá de chegar o dia em que rasgaremos a tela que se presta à projeção de filmes execráveis e ridículos. Man Ray, a quem o cinema já deve muito e, se não fosse escravo do dinheiro, poderia dever ainda mais, dizia-me certa vez que, nos filmes, três quartas partes eram dedicadas a abrir ou fechar portas ou arremedar conversas. Duas coisas bem inúteis, convenhamos. Por outro lado, constata-se que, salvo nos jornais da tela e ~m alguns filmes alemães, jamais se filma um enterro. :E: curioso notar que tanto o espetáculo da morte como o do amor foram banidos do cinema - e por amor entendo o amor pelo amor, com sua bestialidade e seus aspectos magníficos e selvagens. Também foi banido o espetáculo da guilhotina, que tão benéfico seria para alguns de nossos mansos compatriotas mostrando-lhes a que preço é lícito tirar a vida de outrem.. Tudo isso é rigorosamente vedado, ao passo que é lícito abrir e fechar portas ou arremedar conversas. Censor desconhecido, você chegou a avaliar bem o sentido dessas derradeiras cenas, ou seriam de aço sua alma e seu coração? Toda a melancolia, todo o desespero de nossas vidas dependem destes atos: fechar uma porta, abrir outra, falar, fingir que se fala. As portas que abrimos se abrem para paisagens desprezíveis e se fecham para outras paisagens desprezíveis. Nossos corações líricos acham-se excluídos da maioria de nossas conversas. E nossas línguas, ó heróis da tela, são talvez ainda mais mudas que as suas. Dêem-nos filmes à altura de nossos tormentos! Larguem as tesouras, censores imbecis, diante dos raros filmes decentes que, em sua maioria, chegam à França desse canto da América, Los Angeles, cidade livre no meio de terras escravas! Deixem-nos com nossas desejáveis heroínas, deixem-nos com nossos heróis. Nosso mundo é desprezível demais para que nosso sonho seja irmão da realidade, precisamos de anos heróicos. E, com toda a força, afirmo que não é na guerra que nenso quando falo em heroísmo. Precisamos de amores e amantes à altura das lendas inventadas por nossos espíritos.

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De que serve seguir dissimulando o tormento surrealista de nossa época, onde o cinema encontra o seu lugar? Noites de borrascas e de vagas espumantes, assassinatos perpetrados nas florestas d~ tela, belas paisagens! Graças ao cinema, perdemos a crença. na magta das paisagens longínquas, no pitoresco. O cinema destrwu o q.ue Chateaubriand, grande poeta, era capaz de descrever com a aluda das suas lembranças e da sua imaginação. Mas nós permanecemos sensíveis aos mistérios terrenos da noite do dia das estrelas e do amor. A revolta que em nós ruge rep~usaria de bom grado no seio de uma amante ora dócil ora indócil segundo nossos desejos. Eis que o verão se aproxima~ As ~ore.s .de Paris estão verdes como desejávamos no inverno passado, e ]a adlVlnhamos nelas as precoces queimaduras do sol de agosto, as fol~as caídas do outono e os galhos desnudos de dezembro. O homem que escreve estas linhas ainda vai tardar muito a atender ao apelo das eternas frondes das florestas longínquas, à tocante monotonia das neves eternas? LE SOfR, 7 de maio de 1927.

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