A experiência do cinema - Ismael Xavier

Page 163

tes de uma censura imbecil. Não veremos portanto na tela mulheres nuas surgirem milagrosamente numa paisagem fantástica, não veremos portanto os gestos harmoniosos múltiplos e supremos do amor, mas o desejo amoroso não sofrerá com isso dano algum. Cuidado, censor, olhe essa mão feminina palpitando em primeiro plano, olhe esse olho tenebroso, olhe essa boca sensual, seu filho sonhará com eles esta noite e, graças a eles, escapará à vida de escravo à qual você o destinava. Olhe esse ator meigo, melancólico e audaz - que digo? esse atar: não essa criatura real e dotada de vida autônoma - , mais do que com braços de carne e osso, raptará sua filha esta noite em seu braço de celulóide e a alma dela será salva. Por que então tais indivíduos, os primeiros a acorrerem às salas de espetáculo para a festa proporcionada pelas coristas em todo o luxo de sua nudez, têm tanto medo do universo cinematográfico? Sua estupidez não é destituída de lógica. Adivinham a chave má· gica da imaginação que está sendo oferecida aos espectadores. Sabem os prolongamentJs que a intriga exterior terá nas almas dignas. Não ignoram a onijrotência da virtude libertadora do sonho, da poesia e dessa chama que brilha em todo coração altivo para que não se o compare a uma pocilga. Malgrado suas tesouras, o amor triunfará. Pois o cinema só é instrumento de propaganda para idéias elevadas. Sob pretexto da "honestidade" e da "moral" (qual?) pretendeu-se proscrever da tela o amor: cle ali se conserva permanentemente. À geração de cadáveres que nos pretende reger, abandonamos as cinzas da águia e as ferramentas dos coveiros. Que se empenhem com todas as forças para instituir o império dos mortos sobre os vivos: quanto a nós, guardamos nossa disponibilidade para o amor e a revolta. Eles não impedirão o amor de atormentar nossos corações assim como não impedirão o encouraçado "Potenquim" de deslizar a todo vapor em mar de espelho, sob um céu agitado pelo clamor das bandeiras simpatizantes e da palavra "Companheiros!", sob cujo estrépito ruirão as muralhas, mil vézes bradada pelos homens de boa vontade. LE SOIR, 19 de março de 1927.

326

2.4.5. MELANCOLIA DO CINEMA

Eis que o verão se aproxima. As árvores de Paris estão ver· des como desejávamos no inverno passado, e já adivinhamos nelas as precoces queimaduras do sol de agosto, as folhas caídas dÓ' outono e os galhos desnudos de dezembro. Nossos olhos não querem mais crer na eternidade do bom tempo: a chuva, a tempestade e o temporal parecem-nos mais naturais que o calmo esplendor do sol sobre um planeta próspero, pacífico e silente. Nascidos em suas primícias, esperamos a tempestade com seu séquito de nuvens, trovões e relâmpagos. Muitos são os que dentre nós - escrevo para as almas viris e extremas - chamam a esse cataclisma futuro e talvez próximo de Revolução. Ú! vocês, rapazes de minha geração, corações vibrantes de fé - no dizer dos velhos, céticos - onde esconderemos nossas pálpebras queimadas pelo dia, onde passaremos nossas noites sob a tormenta dos sonhos e alucinaQÕes? A noite, amiúde, só nos traz insônia, inquietude, tormentos. O cinema nos oferece suas trevas. Penetremos no drama que nos apresentam. Se os heróis não· tiverem alma de carne moída, se o objeto de seu tormento for válido, entraremos naturalmente no universo

327


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.