A experiência do cinema - Ismael Xavier

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Ora, eis aqui uma máquina a cujos resultados não se Ousa atribuir ainda nenhuma subjetividade e que, aliás, parece fazer ,excelentes retrat~s. De modo surpreendente, esta mecânica, cuja engrenagem dommamos e que parece não poder dissimular nem a malícia nem o risco, reproduz, de um homem, uma imagem que ele jura ser de outr?; ou que, em todo caso, ele jura não ser a sua imagem fiel. Ao hesItar entre os dois retratos, e na medida em que se supõe a subjetividade como uma abundante fonte de erros deve-se dar maior cré.d~to à imagem mecânica do que à represen;ação psíquica que. o sUjeito tem de si mesmo. Mas esta verdade foto-ql1ímica é desIgual e~ relação a si mesma; ela tem seus ângulos e seus caprichos; mamfesta preferências inexplicadas; expressa ~inceridades sucessivas : discordantes; é influenciável e parcial; deixa vir à tona, ela tambem, uma espécie de subjetividade. O sujeito que esperava encontrar nela um gabarito seguro, uma pedra de toque com poder de apontar o certo e o errado em todas as suas outras imagens encontra apenas uma instabilidade e uma confusão novas. O home~ deve decididamente procurar a figura do seu eu em meio a uma mul!id~o. de 'person~lizações possíveis e mais ou menos prováveis. A llldlVl~ualIdade e um complexo móvel que cada um, mais ou menos conscIentemente, deve escolher e construir para si, reformulando-a se~ parar a partir de. uma infinidade de aspectos que, intrinsecamente, estao longe de ser sImples ou permanentes. Em meio a esta massa de aspectos, o indivíduo dificilmente chega a se reconhecer e a conservar para si u~a forma nítida. Então, a suposta personalidade torna-se u~ ser dIfuso, de um polimorfismo que tende para o amorfo e que se dIssolve na correnteza das águas-mãe. E eis que reencontramos esta similitude suspeita pela qual os extremos do nosso conhecimento se tocam, desenham figuds que se podem superpor como que saídas do mesmo molde. O eu esta estru~~ra psíquica dos organismos materiais muito complexo~,' ê uma vanavel da qual esta ou aquela configuração só consegue realizar ~a de?tre as in~eras possibilidades mais ou menos prováveis de eXIsten~l.a. A realIdade do eu apresenta um caráter aproximativo e probabilIsta, tal como a da partícula material e energética a mais simples. Isto é dizer que a personalidade obedefe a uma lei g~ral, segundo a qual toda realização depende de uma quantificação no espaço-tempo. Assim, um eu com variantes insuficientes não consegue constituir uma individualidade enquanto que outro descrito difeA

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rentemente, abundantemente situado, não consegue 'mais se concentrar com o grau de precisão necessário para definir um ser único. Um excesso de possibilidades divergentes dispersa evidentemente a probabilidade de localização bem como o efeito quântico de realização. O princípio de Pauli diz que um elétron só é identificável, ou seja, só existe, se pudermos atribuir-lhe quatro valores diferentes e simultâneos de referência espaço-temporal. Esse mínimo de quatro relações é o limite antes do qual o efeito de realidade não se produz, do mesmo modo que, por exemplo, o efeito de relevo não aparece sem o aspecto duplo das coisas dado pela visão binocular. Todavia, se uma quinta referência - diferente das quatro primeiras e irredutível a elas - vier tentar identificar melhor o elétron, ela perturbará de tal maneira a idéia que podemos ter dessa realidade que ela poderá desaparecer, voltar ao seu estado original de virtualidade matemática. As famosas desigualdades de Heisenberg dão a precisão algébrica dessa fuga ao real, desse eclipse da identidade num caso padrão: o de um corpúsculo que não consegue reunir nele mesmo o quorum de quatro relações concorrentes, embora possa aceitar uma infinidade de outras referências dispersas no tempo e no espaço. Como a do elétron, a realidade do eu, isto é, sua identidade, é um fenômeno inscrito dentro de certos limites de quantidade, de número. Resultado de um cálculo, média de probabilidades, o eu é um ser matemático e estatístico, uma figura do espírito tanto quanto o triângulo ou a parábola, cuja nitidez e constância específica são imaginárias e abrangem uma zona ampla com inúmeras realizações aproximativas possíveis. A abstração de um eu único e permanente procede de um sem-número de personalizações locais e momentâneas das quais ela representa o modo de ação mais provável. A esta abstração puramente subjetiva, atribuímos o máximo de realidade, mas uma realidade que permanece exclusivamente funcional e virtual, sendo a integral de todas as mínimas realizações descontínuas que consideramos aberrantes. Entretanto, são estas que constituem aqui a verdade fundamental. A gama do realizável - senão em substância, pelo menos, de fato - de onde emerge o eu unificado e racionalizado, forma ela própria uma ilhota, cercada por um mar de probabilidade cada vez mais raso, e de um mar de improbabilidade cada vez mais profundo que significa, enfim, a irrealidade completa. O que não quer dizer que não exista nada aí, mas sim que o que aí existe não está sufi-

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