A experiência do cinema - Ismael Xavier

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Ampliação

hipnose muito mais violenta do que o hábito da leitura, pois esta modifica bem menos o funcionamento do sistema nervoso.

Nunca poderia dizer o quanto gosto dos primeiros planos americanos. Limpos. De repente, a tela exibe um rosto e o drama, cara a cara, me trata com intimidades e se enche de intensidades imprevistas. Hipnose. Agora, a tragédia é anatômica. O cenário do quinto ato é este canto de rosto que o sorriso rasga. Seco. A espera do desdobramento muscular para o qual convergem 1.000 metros de intriga me satisfaz mais do que o resto. Pródromos superficiais correm sob a epiderme. As sombras se deslocam, tremem, hesitam. Alguma coisa se decide. Um vento de emoção sublinha a boca de nuvens. A orografia do semblante vacila. Tremores sísmicos. Rugas capilares procuram onde clivar a falha. Uma onda as leva. Crescendo. Um músculo se exibe. O lábio é regado de tiques como uma cortina de teatro. Tudo é movimento, desequilíbrio, crise. Disparador. A boca cede como uma deiscência de fruto maduro. Uma comissura afina no bisturi o órgão do sorriso.

Não haverá mais atores, mas sim homens escrupulosamente vivos. O gesto pode ser belo, mas a semente de pensamento do qual ele escapa é mais importante. O cinema sorrateiramlinte radiografa, descasca você até os miolos, até a idéia mais sincera que você exibe. Representar não é viver. ~ preciso ser. Na tela, todo mundo está a nu, de uma nudez nova. As intenções são lidas, e pela primeira vez, evangelho! As intenções bastam nesta arte da boa vontade. Arte espírita. O pensamento é tão bem gravado que suplanta o resto e conta sozinho. Como máquina inativa, o ator em descanso pode parecer pesadão, desajeitado ou morno. Ou enfezado, ou infantil, ou pequeno, ou enrugado. A fagulha do sentimento crepita entre duas epidermes: tudo se modifica. Uma volta da adolescência flameja como a chama. A criança amadurece como um prodígio. Uma mulher se estica até o tamanho imensO do amor. A beleza é uma beleza de caráter, ou seja, de energia. Não há mais convenções porque estas estão todas contidas ali, espontaneamente, e nenhum trejeito consegue aqui substituir uma sensibilidade ausente.

O primeiro plano é a alma do cinema. Ele pode ser curto, pois a fotogenia é um valor da ordem do segundo. Se ele for longo, não experimentarei um prazer contínuo. Paroxismos intermitentes me emocionam como picadas. Até hoje nunca vi fotogenia pura durante um minuto inteiro. :B preciso, pois, admitir que ela é uma faísca e uma exceção que se dá como um abalo. Isto impõe uma decupagem mil vezes mais minuciosa do que a dos melhores filmes, mesmo os americanos. Uma dissecação. O rosto que se prepara para o riso é mais bonito que o próprio riso.

Embora a visão, como é do conhecimento de todos, seja o sentido mais desenvolvido, e considerado o ponto de vista segundo o qual nossa inteligência e nossos costumes são visuais nunca houve no entanto um processo emotivo tão homogêneo, tão exclusivamente ótico quanto o cinema. O cinema cria verdadeiramente um regime de consciência particular que envolve um único sentido. E uma vez habituados a usar desse estado intelectual novo e extremamente agradável, ele se toma uma espécie de necessidade, como o fumo ou o café. Ou eu tomo a minha dose ou não tomo. Fome de

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