A experiência do cinema - Ismael Xavier

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tuações sem pé nem cabeça; sem começo, meio ou fim; sem direito nem avesso; pode-se vê-las de todo jeito; a direita transforma em esquerda; sem limites de passado ou futuro, elas são o presente.

2.3.2. BONJOUR CINtJ:.MA - Excertos

Ver, é idealizar, abstrair e extrair, ler e escolher, é transformar. Na ~ela revemos o que a câmera já viu uma vez: dupla transformaçao ou, uma vez que se multiplica, elevada ao quadrado. Uma escolha de uma escolha, um reflexo do reflexo. A beleza é aqui ~olarizada como uma luz, beleza de segunda geração, filha, mas fIlha prematura de uma mãe que adimirávamos a olho nu. Filha um pouco monstruosa.

E~s porque o cinema é psíquico.

Ele nos apresenta uma quinMeu olho me propicia a IdeIa de uma forma. Também a película contém a idéia de uma forma, idéia inscrita fora da minha consciência idéia sem consciência, idéia latente, secreta, mas maravilhosa; e da' tela eu obtenho uma idéia de ~déia, a i~éia de meu olho tiradà da idéia da objetiva (idéia), de uma algebra tao leve, que é uma raiz quadrada de idéia . A

tes.se~cla, um produto duas vezes distilado.

o cinema é

verdade, uma história é uma mentira. Isso poderia ser dito e mantido com aparência de razão. Ou melhor, prefiro dizer que as verdades de cada um é que são diferentes. Na tela, as convenções são vergonhosas. O artifício teatral no cinema fica simplesmente ridículo e se Chaplin expressa tanto de trágico, é um trágico que faz rir. A eloqüência transborda. Inútil, a apresentação das personagens; a vida é extraordinária. Amo a angústia dos encontros. Ilógica, a exposição. O acontecimento nos prende as pernas como uma armadilha aos lobos. O encadeamento não pode ser mais do que uma passagem de elo a elo. De tal modo que não se varie muito de altitude sentimental. O drama é contínuo como a vida. 0s gestos o refletem sem nO entanto adiantá-lo, ou atrasá-lo. Então, por que contar histórias ou relatos que suponham sempre acontecimentos ordenados, uma cronologia, uma gradação de fatos e sentimentos? As perspectivas não são mais do que ilusões de ótica. A vida não pode ser deduzida como essas mesas de chá chinesas que se multiplicam sucessivamente em doze, uma saindo da outra. Não há histórias. Nunca houve, aliás. Há apenas si-

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. A câmera Bell-Howell é um cérebro de metal, padronizado, fabncado, reproduzido em alguns milhares de exemplares, que transfonna em arte o mundo exterior. A Bell-Howell é um artista e é apenas atrás dele que vêm outros artistas: diretores e operadores. Enfim, uIJ1a sensibilidade que é comprável, que se encontra no comércio e que paga direitos de alfândega como o café ou os tapetes do Oriente. Sob este ponto de vista, o gramofone tem sido um fracasso; simplesmente, precisa ser descoberto. Seria necessário pesquisar o que ele deforma e o que ele é capaz de escolher. Já se gravou em disco o barulho das ruas, dos motores, das plataformas de estação? Bem poderíamos perceber um dia que o gramofone está para a música assim como o cinema para o teatro, ou seja, não está, simplesmente. Ele tem seu próprio caminho. ~ preciso pois utilizar esta descoberta inesperada de um sujeito que é objeto, sem consciência, isto é, sem hesitações nem escrúpulos, sem venalidade, sem complacência nem erros possíveis. Um artista inteiramente honesto, exclusivamente artista, um artista - tipo.

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