Manifesto do Naturalismo

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Manifesto Do Naturalismo Integral – Pierre Restany Alto do Rio Negro, 3 Agosto – 21 Agosto de 1978

A Amazônia constitui hoje em nosso planeta o último reservatório, o refugio da natureza Integral. Que tipo de arte, qual sistema de linguagem pode provocar um ambiente tão excepcional, exorbitante, em relação ao senso comum sob qualquer ponto de vista? Um naturalismo do tipo essencialista e fundamental, que se opõe ao realismo e à continuidade da tradição realista. É um espirito realista além da sucessão dos seus estilos e de suas formas. O espírito do realismo em toda a história da arte não é o espírito da pura constatação, o testemunho da disponibilidade afetiva. O espírito do realismo é a metáfora. O realismo é a metáfora do poder: poder religioso, poder do dinheiro da época do renascimento, poder político – em sequência-, realismo burguês, realismo socialista e poder da sociedade de consumo com a Pop Arte. O naturalismo não é metafórico. Ele não traduz nenhuma vontade do poder, mas opera uma transformação da sensibilidade, uma abertura maior da sensibilidade, uma abertura maior da consciência. A tendência em objetivar o constatado traduz uma disciplina da percepção, uma disponibilidade plena à mensagem direta e espontânea dos dados imediatos da consciência. Um jornalismo, só que transferido no universo da sensibilidade pura: a informação sensível sobre a natureza. Praticar esta disponibilidade em relação aos dados naturais é admitir a modéstia da percepção humana e seus próprios limites quanto a tudo que é um fim em si. Esta disciplina, consciente de seus próprios limites, é a qualidade de um bom repórter: assim ele pode transmitir aquilo que vê “Desnaturalizando” os fatos o mínimo possível. Um naturalismo assim concebido implica não somente uma grande disciplina da percepção, mas também, uma maior abertura humana. No final das contas a natureza É, e nos supera na percepção de sua própria duração. Porém, no Espaço-Tempo da vida de um homem, a natureza é a medida da sua consciência e da sua sensibilidade. O naturalismo integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora do poder. O único poder que reconhece não é aquele abusivo da sociedade, mas aquele purificador e catártico da imaginação, a serviço da sensibilidade. Este naturalismo é de ordem individual - a opção naturalista oposta à opção realista é fruto de uma escolha que envolve a totalidade da consciência individual. Esta opção não é só critica, não se limita a expressar o medo do homem frente aos perigos que afetam a natureza pelo excesso da civilização industrial e urbana. Traduz o advento de um estado global de nossas percepções, a transição de uma consciência individual para uma consciência planetária.


Nós vivemos em uma época de dois balanços. Além de fim de século, um fim de milênio, com todas as transferências de tabus, de paranoia coletiva repetida, a começar pela transferência do medo do ano 1000 para o medo do ano 2000: o átomo no lugar da peste. Vivemos, assim, uma época de balanceamento. Balanço de nosso passado aberto sobre nosso futuro. Nosso primeiro milênio deve anunciar o segundo. Nossa civilização judaico-cristã deve preparar uma segunda Renascença. A volta ao idealismo em pleno século 20 super-materialista, como o aumento do interesse pela história das religiões e das tradições do ocultismo, além da intensificação da pesquisa sobre novas iconografias simbolistas. Todos esses sintomas são a consequência de um processo de desmaterialização do objeto, iniciado em 1966, e que foi o fenômeno maior da história da arte contemporânea no ocidente. Apôs o século da “tirania do objeto”, a arte duvida de sua justificativa material, com sua culminância na apoteose da aventura do objeto como linguagem sintética da sociedade de consumo. Ela se desmaterializa, ela se conceitualiza. O percurso conceitual da arte contemporânea faz sentido, observado através dessa ótica de autocrítica. A arte se coloca em posição crítica. Ela se interroga sobre sua imanência, sua necessidade e sua função. O naturalismo Integral é uma resposta. E, justamente, por sua virtude de integrismo, seja de generalização e de extremismo da estrutura da percepção, seja da planetarização da consciência, ele se apresenta hoje como uma opção aberta, um fio condutor no caos da arte atual. Autocrítica, desmaterialização, tentação idealista, percursos subterrâneos simbolistas e ocultistas: esta aparente confusão se organizará, talvez um dia, a partir da noção do naturalismo expressão de uma consciência planetária. Esta reestruturação perceptiva corresponde a uma verdadeira mutação e à desmaterialização do objeto de arte, sua interpretação idealista, bem como a volta a um sentido oculto das coisas e as suas simbologias, constituem um conjunto de fenômenos que se inscrevem como preâmbulo operacional à nossa segunda renascença, etapa necessária à mutação antropológica final. Nós vivemos hoje dois sentidos da natureza: aquele ancestral - dos dados planetários- e aquele moderno- da conquista industrial urbana. Pode-se optar tanto por um quanto por outro ou negar um em proveito do outro; o importante é que esses dois sentidos da natureza seja vividos e assumidos na integridade de suas estruturas ontológicas, na perspectiva da universalização da consciência perceptiva. O EU abraçando o Mundo e fazendo UM, em acordo e harmonia com uma emoção assumida como a última realidade da linguagem humana. O naturalismo como disciplina do pensamento e da consciência perceptiva é um programa ambicioso e exigente que ultrapassa de longe as balbuciantes perspectivas ecológicas atuais. Trata-


se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva - a poluição dos sentidos e da mente, muito mais que a do ar e da água. Um contexto tão excepcional como a Amazônia suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene de nossa percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco catalisador e acelerador de nossas faculdades de sentir, de pensar e de agir .

Pierre Restany. Rio Negro


Comentário de Pierre Restany sobre o Manifesto À posição autocrítica da arte, própria à nossa época, o naturalismo integral oferece uma opção alternativa. Através de uma higiene da percepção e da reestruturação global da sensibilidade que isso implica, ele responde a grande questão de hoje: o porquê da arte. A natureza precisa da arte para sensibilizar o homem, para recarregar seu afeto, renovar seus estímulos emocionais. Frente à conceitualização do processo artístico, o naturalismo integral propõe uma alternativa de ordem ética. Através da antropologia a arte volta à moral. Agosto 1978


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