Revista Continente - Dossiê Luiz Gonzaga

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DOSSIÊ

LUIZ Esta edição da revista Continente Multicultural traz um presente aos seus leitores. Um CD com gravações de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, com 14 faixas, algumas pérolas, como a gravação original de Asa Branca, de 1947, o primeiro registro da voz do sanfoneiro (Dança, Mariquinha!, de 1945) e o raro fonograma da valsa Perpétua, de 1945. O trabalho de compilação e produção é do pesquisador Samuel Valente.

Uma série especial de matérias apresenta facetas diversas de Luiz Gonzaga, sua influência na música popular contemporânea e muitas informações de interesse não apenas dos aficionados do grande cantor-compositor nordestino, nascido em 13 de dezembro de 1912 e falecido a 2 de agosto de 1989, mas também de todos ligados aos temas da música popular brasileira, da qual ele foi um dos nomes mais expressivos.

GONZAGA

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Estrela

maior do sertão


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Luiz Gonzaga diante da casa em que nasceu, em Exu

O amor leva o jovem à coroa de Rei Não fossem algumas oportunas intervenções do acaso, teria sido Luiz Gonzaga mais um itinerante tocador de fole, sucessor do talento de um habilidoso consertador de sanfona, o “velho Januário”, nas paragens de Exu e redondezas. Essa expectativa absolutamente natural iria, contudo, ganhar novos rumos a partir de 1930. É que Luiz Gonzaga enamora-se de Nazarena, filha de Raymundo Delgado, de prestigiada família do tronco dos Saraiva. Em vista de arraigados preconceitos de parte da família da moça, o namoro – que se manifesta quando ainda eram crianças – praticamente se sustenta à distância. Todavia, Luiz Gonzaga está verdadeiramente apaixonado e quer casar. Quem sabe, seja recebido de braços abertos pelos pais da jovem? Ledo engano. Assim Raymundo Delgado imediatamente reage ao que considera autêntica insolência: “Eu não tenho filha para se casar com um sanfoneiro de meia-tigela. Vou-me entenSamuel der com esse molequinho “fulejo”. 76 Continente Multicultural

Luiz Gonzaga sente-se magoado pelas preconceituosas ofensas. No entanto, apenas uma quicé, “arma fuleja, pequena e sem futuro”, é do que dispõe para materializar as imagens que o açoitam: uma contenda de homem para homem com o pai da namorada. Claro! Também algumas doses de aguardente pura, “pra criar mais coragem”, justifica. Nas calçadas da feira, em plena Exu, frente a frente com Raymundo, o tom grave nas palavras e a formalidade inquisitória ajudamno a dissimular o corado rosto, mais de repulsa que de medo: “O sinhô tá dizendo por aí que eu não presto pra se casar com a sua filha? Que eu sou um molequinho “fulejo”? Gonzaga, porém, não consegue disfarçar as faíscas de incontidos ressentimentos logo pressentidos pela rusticidade do calejado Raymundo: “Mas o quê?! Isso tudo não passa de invenção dessa canalha. Não acredite nessas histórias. Logo você, que vi nascer, filho de Januário e Santana, que é quase uma pessoa da minha família?” Luiz Gonzaga supõe-se o senhor de todas as coragens, euforia que o leva a fanfarValente ronar.


Rapazola, Luiz Gonzaga foi discriminado pelo pai de uma pretendida. Depois de desafiá-lo publicamente, levou uma surra homérica da sua mãe e fugiu para Fortaleza. Daí seguiu para a fama

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“Tão vendo? O cabra afrouxou... Fui lá, disse o diabo, e ele esperneou que só um cabrito... quá, quá, quá!” Enquanto isso, quase não conseguindo conter a raiva, Raymundo encaminha-se à feira na esperança de encontrar Santana, mãe de Luiz. “Seu filho me desmoralizou... Me ameaçou de morte... Está armado e bêbado e é capaz de cometer alguma loucura aqui na feira...” Quase sem acreditar no que escuta, Santana procura apoio e segurança no braço de Efigênia, a Geny, a mais velha de suas filhas, com quem faz biscates na feira. Indignada, só pensa agora, o mais depressa possível, em voltar para casa. Quando anoitece e os céus exuenses entoam mais Ave Maria, meio desconfiado e já pressagiando maus momentos, retorna Luiz Gonzaga. Santana está “refungando” com Januário e o filho não percebe que ela, muito nervosa, está segurando uma forte chibata de jumento. E logo o chama à camarinha. De porta trancada, inteiramente possuída pelo rancor, baixa a cipoada no rapaz, ajudada por Januário. Quando finda a “sessão” de pancadaria, a maior sova de toda a sua vida, Luiz Gonzaga está extenuado. Por quase uma semana, enquanto cura as dores, da alma e do corpo, não conversa com nin-

guém, apenas medita sobre os rumos de suas futuras estradas. Um novo dia está amanhecendo nos céus de Exu, sombrio domingo para Luiz Gonzaga que ainda se ressente da implacável punição, para ele um injusto castigo. Está faminto e sedento. Resolve voltar para casa. Acontece, então, o primeiro “olho-noolho” com Santana. Logo percebe em seus pesarosos olhares, sinais de arrependimento, sinais desenhados pelas fadigas do rosto, visíveis sinais no jeito de falar, nervoso e consternado, mas repleto de indisfarçável meiguice materna. Entretanto, não mais dispondo das rédeas de seus caminhos, Luiz Gonzaga mente; a mentira de quem não mais saberá olhar nos olhos dos amigos, tampouco nos da namorada; a mentira – disfarce de todas as vergonhas – de quem entende que a retirada, sem deixar vestígio, torna-se uma imperiosa necessidade. “Fui contratado para tocar numa feira do Crato. Vai ser segunda-feira, mãe! Eu tenho de partir!” Mesmo a serenidade irradiada pelo filho, Santana se vê apreensiva pela longa caminhada. “Setenta quilômetros a pé, filho?” Luiz procura amenizar as aflições da mãe: “Não se preocupe, mãe! Eu já conheço esses penosos caminhos, mas eu passo a noite na casa de seu Raymundo Preto. De manhãzinha, outra vez toco a estrada. É moleza”. Chega ao Crato e a primeira providência é livrar-se da sanfona amarela, logo vendida por 80 mil réis. Pega um trem de carga e vai para Fortaleza, onde inscreve-se como voluntário das Forças Armadas. Assim, o amor por Nazarena Saraiva Milfont, a doce Nazinha, o encaminha às novas veredas musicais. Quando arriba de casa, condoído na alma e no coração – porque tivera a petulância de enamorar-se pela filha de um preconceituoso sertanejo – Luiz Gonzaga, sem imaginar o que o destino lhe reserva, abdica do reinado regional de Taboca a Rancharia. Em contrapartida, conquista as luminosas estradas que o conduzem à coroa de Rei do Baião.

O dom da sanfona foi herança do pai, o “Januário dos 8 baixos”

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No início da carreira, com visual noir, interpretava valsas e boleros

O solista e o cantor Participar de uma gravação fonográfica na famosa gravadora Victor, do Rio de Janeiro, mesmo na condição de substituto de um sanfoneiro faltoso, cai como uma luva para Luiz Gonzaga, depois das peregrinações pelos programas de calouros das rádios – incluindo o de Ary Barroso. Sua sanfona embalava os roteiros da boemia, o Mangue dos poetas, músicos, seresteiros, também das meretrizes, de um então ainda romântico Rio de Janeiro. Tão convincente é a sua performance acompanhando o artista Genésio Arruda, parecendo mesmo um calejado veterano, que o diretor artístico Ernesto Mattos, convida-o para submeter-se a teste. Luiz Gonzaga “tira de letra” todas as provas e se credencia, perante a diretoria da Victor, a gravar o primeiro disco como solista de acordeom. No dia 14 de março de 1941, acontece o histórico registro de quatro músicas: a valsa Numa Serenata e a mazurca Véspera de São João, compondo o primeiro 78 rpm, o de número 34.744, e uma outra valsa, Saudades de São João Del Rey e o xamego Vira e Mexe integrando o segundo disco, o de número 34.748. É o decolar de um grande salto que emerge do Riacho da Brígida e transpõe as cordilheiras do país. Inicialmente grava o que lhe determinam, músicas consagradas, sucessos nacionais e internacionais: Saudade de Matão, de Jorge Galati, Devolve e Não quero saber, de Mário Lago, Última Inspiração, de Peterpan, Queixumes, de Noel Rosa e Henrique Britto, Nós Queremos uma Valsa, de Nássara e Frazão, Apanhei-te, Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, Subindo ao Céu, de Aristides Borges, Farolito, de Agustín Lara, Manolita, de Léo Daniderff, e outros.


Sempre que há oportunidade, no entanto, in- tras estradas teria de percorrer. E logo uma idéia clui no repertório composições típicas de sua gleba: lhe ocorre: uma “chantagenzinha” com a colaboO Chamego da Guiomar, Pisa de Mansinho, Luar do ração de Felisberto Martins, seu amigo e diretor Nordeste, Sanfonando, Pé de Serra, Xodó. São os pri- musical da Odeon. Basta que confirme um suposmeiros tempos de Luiz Gonzaga no disco. Tempos to interesse da gravadora em sua contratação como de mazurcas, de valsas, de chamegos, de chorinhos, cantor. Felisberto logo aceita a idéia, desde logo lhe de polcas, de rancheiras. Tempos do solista de acor- propondo: “Você pode até continuar gravando na Victor deom, que não encontra como dissimular o sonho como solista. Aqui, na Odeon, com outro nome, comaior de sua vida, o de gravar como cantor. Alguns anos são passados. Vitório Lattari é o meça a sua carreira como cantor. Nada tem de erradiretor da Victor. Luiz Gonzaga com ele conversa do e não seria um suposto interesse, mas – foi você sobre o assunto. Lattari nem aceita discutir essa sua quem me deu a bola! – agora eu confirmo de veraspiração: “É pensamento da empresa conservá-lo dade: existe interesse da Odeon em contratar os tocando sanfona. Você é o coringa que temos no co- seus serviços como cantor”. Imerso na felicidade, Luiz Gonzaga mais que lete para continuarmos, ombro a ombro, brigando com a concorrente Odeon, que tem no elenco An- depressa retorna à Victor e conversa com Lattari. tenógenes Silva, um talento que todos conhece- Em nome de uma vasta experiência adquirida como mos”. São argumentos que não convencem e até en- corista em gravações de estrelas e astros famosos, justifica, perante o diretor, a pretensão de cantar. tristecem o artista pernambucano. Lattari continua irredutível. De 1941 a 1945, Luiz Gonzaga grava 24 Luiz Gonzaga encena o que tinha articulado: discos de 78 rotações, 48 músicas em solo de acor“Senhor Lattari – começa simulando encadeom, grande parte dessa obra direcionada ao consumidor do Nordeste, embora alguns desses regis- bulação – eu recebi um convite do Sr. Felisberto tros tenham boas repercussões no Rio de Janeiro e Martins, da Odeon, para gravar como cantor. Ele em São Paulo, a exemplo de Vira e Mexe, Bilu Bilu até me sugeriu (pra não complicar o meu contrato aqui na Victor) que eu usasse outro nome na grae Pé de Serra. Luiz Gonzaga, no entanto, sequer consegue vadora dele. Já que não é possível ficar como canesconder seus desprazeres por não estar gravando tor aqui...” Atento às palavras de Gonzaga e quase espucomo cantor. Ele tem plena consciência de suas possibilidades e não entende porque não lhe dão a mando de indignação, Lattari dá um sinal de mão chance de interpretar as próprias composições. O como querendo dizer chega! “Que Felisberto, que Odeon, que nada! Você que realmente o leva a supor que somente ele poderia gravá-las é o resultado do registro de Dezessete e quer gravar como cantor, não é? Pois bem: vai ser setecentos, feito pelo já famoso embolador Manezi- logo no próximo disco, uma face, apenas uma face, nho Araújo, uma interpretação que não lhe agrada é como se fosse um teste, e a outra face, bem, você e o deixa enormemente contrariado. Luiz Gonzaga continua como solista, topa?” “Tá topado!” entende que, para o seu talento de compositor, essas No dia 11 de abril de 1945, quatro anos e gravações significam autêntica vitrine no mercado quase um mês depois da primeira musical. Contudo, está convicto gravação, período em que perde que em sua voz ficariam meEle não consegue petua 24 discos como solista de lhores. Além do mais continua esconder o acordeom, o “Velho Lua” está de participando com a sanfona, sem desprazer por não volta aos estúdios da Victor para o merecer crédito no selo do disco gravar como cantor, registro do 25º disco de sua care, muitas vezes, sem cachê comreira, Dança, Mariquinha!, a priplementar, em inúmeras gravamas apenas solista gravação como cantor. Na ções de cantores famosos que inde sanfona. E tenta meira outra face, em solo de acordeom, tegram o elenco Victor. uma jogada, a polca Impertinente. Compreende, então, que, para alcançar tais objetivos, ouque deu certo Continente Multicultural 79


Cena histórica: 13 de dezembro de 1956, Luiz Gonzaga entrega sua sanfona a José Domingos de Morais – o Dominguinhos, que aos 14 anos, é coroado seu sucessor

Dominguinhos, o herde José Domingos de Morais (12.02.1941, Garanhuns – PE), aos seis anos de idade, era reconhecido como garoto prodígio. Dominguinhos – carinhosamente chamado Neném – é a sensação da sanfona de 8 baixos nas praças, nos hotéis e nas feiras das cidades interioranas. Com Neném, mais dois irmãos: Morais (pianista) e Valdo (acordeom). De passagem por um desses recantos, Luiz Gonzaga ouve falar de uma criança que, dizem, “toca igualzinho a ele”. Aguçado pela curiosidade, vai conferir para crer. Fica impressionado com a habilidade e com a apurada técnica, coisas muito difíceis de se ver num garoto daquela idade. “Esse fedelho vai longe...”, fica matutando. Tão grande é a satisfação de Luiz Gonzaga que ele se levanta e vai cumprimentar aquele “pinguinho de gente” que puxa um fole até melhor que muitos adultos. Aproveita para lhe confidenciar uma promessa: 80 Continente Multicultural

“Quando você for mais crescido, vou darlhe uma sanfona nova, presente de ‘padrim Gonzaga’, seu cabra!” O tempo passa. Cada vez mais entranhado nos segredos harmônicos da sanfona, dádiva que vem de berço, Dominguinhos logo é reconhecido como um dos seguidores do estilo Luiz Gonzaga. O mestre, sempre pelas imediações, observa a trajetória do pequeno grande artista. Até o encoraja a seguir os rumos do Rio de Janeiro. “Mas, ele é ainda quase um menino”, comentam alguns de seus colegas. “É cedo que se começa – pondera Gonzaga – e esse cabrinha, que já é um cabra da peste, tem talento que nenhum ouro do mundo compra”. Fica feliz o Rei do Baião quando sabe que o rapaz “está se garantindo” com os sucessos nas boates e nos cinemas dos arredores do Rio de Janeiro. Resolve, então, acolher de vez as suas prodigiosas adolescências, pensando até em proclamá-lo como herdeiro artístico. O primeiro passo é recomendá-lo à RCA Victor.


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eiro artístico Outras idéias, no entanto, borbulham em seus pensamentos. No dia 13 de dezembro de 1956, aniversário de Luiz Gonzaga, sua casa na Ilha do Governador fica parecendo uma “sucursal” da Música Popular Brasileira, onde estão cantores, compositores, músicos de todas as tendências, gente do rádio, da televisão e do disco. Em dado momento, Luiz Gonzaga reúne os convidados e traz pelo braço um jovem rapaz aparentando 14 ou 15 anos, de chapéu de couro, lenço no pescoço, um desajeitado pela timidez, mas exuberante no talento de grande artista do acordeom: José Domingos de Morais, o Dominguinhos. A platéia, que ainda não entende do que e de quem se trata, embora imagine ser mais um candidato a cantor ou compositor, faz profundo silêncio e aguarda a palavra do anfitrião. Gonzaga tira a sua sanfona e passa ao jovem Dominguinhos. Presente do Rei do Baião. O garoto ajeita o fole em seu peito. Treme que só vara verde. Finalmente, apontando para o rapaz, Luiz Gonzaga estufa o peito e, com todos os sotaques nordestinos, anuncia:

tico”.

“Este cabra da peste é o meu herdeiro artís-

Em verdadeiro burburinho fica a casa de Luiz Gonzaga. Todos querem conhecer de perto a nova estrela nordestina. Alguns até pensam que seja mais uma das brincadeiras de Gonzaga. E dizem: “O aniversário é de Luiz Gonzaga, mas o presente quem recebe é esse franzino, que nem pode com a sanfona”. Sempre por perto desses incréus, Gonzaga logo corrige: “O presente não é meu e nem de Dominguinhos. O presente é para a Música Popular Brasileira, que dele vai ouvir falar, e dele vai precisar”. Dominguinhos, a pedido de seu protetor, toca algumas músicas como se fosse o maior recital de sua vida. Brejeiro, de Nazareth, Vira e Mexe, de Gonzaga, e Escadaria, de Pedro Raymundo. Agora, todos concordam: trata-se de um grande talento. Poucos dias depois Dominguinhos é levado para conhecer os estúdios da RCA Victor. Gonzaga está para gravar o baião A Feira de Caruaru e Capital do Agreste, ambos do caruaruense Onildo Almeida. “Você quer entrar nessas gravações, Neném?” pergunta Gonzaga. Dominguinhos sabe que se trata de um grande desafio. Rejeitá-lo seria atestado de burrice. “Só se for agora, seu Luiz!”, responde. E o antológico solo da introdução de A Feira de Caruaru, bem como toda sua base, são tirados da sanfona e dos ágeis dedos de Dominguinhos, ele também participando da gravação de Capital do Agreste. Essas músicas assinalam o começo de sua carreira, um dos maiores talentos do cancioneiro popular brasileiro, o solista, o compositor, o cantor, o incontestável herdeiro das grandiosidades gonzagueanas, mesmo que desses tesouros, por modéstia, abdique. Dominguinhos tem consciência de que, mesmo indicado pela própria majestade, o seu reinado não tem coroa, porque Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, é único. Continente Multicultural 81


A mentira de Carlo

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Década de 60, a carreira de Luiz Gonzaga parecia ter chegado ao fim

Os anos 60 foram de impiedosas discriminações a Luiz Gonzaga e ao gênero baião. É época de Bossa Nova, Jovem Guarda, guitarras elétricas, modismos estrangeiros e caseiros. O espaço que lhes sobra são as cidades do interior. O preconceito chega ao auge no ano de 1967. Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba, e o escritor Ariano Suassuna compõem um baião, “São os do Norte que Vêm”, inscrito e classificado no II Festival Internacional da Canção Popular. Este cai como uma luva para a interpretação de Luiz Gonzaga. Tanto que Capiba, seu grande amigo, pressentindo a perfeição desse casamento – artista e música – convida-o para cantá-la, logo em seguida indo ao Rio para acerto dos detalhes de arranjo. Os organizadores do Festival vetam a idéia.

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Luiz Gonzaga está desgostoso e pensa em “pendurar” a sanfona prateada. É o reflexo de uma coroa que parece declinar dos topos do cancioneiro popular. Ao mesmo tempo reflete e tem o sentimento de que o Nordeste ainda o acolhe. Sua gleba, esses interiores tão seus conhecidos, seus rincões, sua gente que o respeita e admira, são razões suficientemente fortes para que, com sua sanfona, continue compondo e cantando. Na virada dos anos 60/70 muito se fala de “rock caipira” e “rock rural”. Uma exótica mistura de ritmos é imediatamente denominada baião-rock. Há, também, quem sinceramente veja semelhanças entre a música de Luiz Gonzaga e a “country música” americana, que é uma das bases do rock de Elvis, de Bill Halley e dos então já decantados The Beatles. Naqueles tempos, Carlos Imperial vivia o apogeu de sua carreira artística. Ator e compositor de sucesso, produtor, apresentador e “jurado” de programas de televisão, um dos pilares do movimento da “Jovem Guarda” e laureado em vários festivais de música popular, Imperial há muito proclamava a tal semelhança. Em 1968, Luiz Gonzaga por ele é convidado para participar de um de seus programas televisivos, ocasião em que se discute o “Baião-rock”. Meio sem jeito, sobretudo porque teme o que se possa dizer caso ele confirme a apregoada semelhança, o “Rei do Baião” não se define e se vê quase perdido nas sombrias encruzilhadas desses entrançados musicais. Nesse momento, Carlos Imperial bate na mesa, levanta-se e, olhando para


s Imperial

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Gonzaga (que logo pensa: “É agora, meu padrim padre Ciço, tô lascado!”), categoricamente afirma: “Esse homem que representa a simplicidade nordestina, sendo o criador e o divulgador mor do baião, na sua modéstia, não se sentiria à vontade

para comentar semelhanças entre a música dos Beatles e a sua toada, como ele próprio classifica; e que é, pelo menos, 20 anos mais antiga...” Num gesto um tanto teatral, desvia o rosto para o foco de outra câmera, como se quisesse olhar nos olhos e falar com o telespectador, e continua: “Vocês – agora apontando para os demais debatedores – críticos de Música Popular Brasileira, que abominam o xote, o xaxado, a toada, o baião e a sanfona de Luiz Gonzaga, por vocês chamada sanfona cafona da mediocridade, saibam todos, e eu tenho a prova aqui: OS BEATLES ACABAM DE GRAVAR A ASA BRANCA DE LUIZ GONZAGA”. A revelação tem efeito de um terremoto. A música de Luiz Gonzaga gravada pelos Beatles? Nem Ary Barroso mereceu tal distinção, dizem. Ora, nem Tom Jobim, e nem Chico Buarque, outros complementam. Até ele, ali presente e que desconhece as reais intenções do apresentador fica surpreso. “É verdade, seu Imperial?”, é a simplória indagação de Luiz Gonzaga. A partir de então todos se voltam para o cantor das léguas tiranas... É uma verdadeira loucura. Os focos dos refletores agora estão direcionados para o “Rei do Baião”. Jornais, rádios, revistas e a própria televisão, todos querem entrevistá-lo. Seu cachê fica mais decente. Seus discos começam a vender em maior quantidade. Veteranos e jovens, músicos e cantores, do movimento pós “Bossa Nova” ao “Tropicalismo”, todos determinam unanimidade nacional em torno do pernambucano de Exu, filho de Santana e Januário, cantador zambeta e zarolho, que lançara para o mundo o permanente vôo de uma nova música, o gênero baião. Outra vez cortejado e, por todos os méritos e direitos, reverenciado como a majestade única do baião, Gonzaga sustenta a inverídica notícia. Por questão de ética e de respeito ao público, faz isto de uma maneira singular: não a confirma e nem a desmente. Ele só pensa em pegar a “malota”, recheada de xote e de baião, e voltar a despejá-la por esses enormes brasis.

O boato de que os Beatles teriam gravado Asa Branca reacendeu o interesse de crítica e público por Luiz Gonzaga

Samuel Valente é pesquisador

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E o show continua

No começo da sua carreira, Silvério preferiu trilhar a sonoridade de Jackson do Pandeiro à de Luiz Gonzaga, que já tinha muita visibilidade

Até hoje a música de Gonzaga que a editora Irmãos Vitale está lançando. Luiz Gonzaga permanece vi- São cifras (para violão e outros instrumentos) de va, 12 anos após sua morte. mais de trinta standards do gênero sertanejo. Um exemplo: acaba de ser Essa movimentação atual vem comprovar a lançado nacionalmente um força da permanência do nome de Luiz Gonzaga, CD inédito com o registro do eleito o Pernambucano do Século, em votação poshow realizado no distante 24 de março de 1972, pular promovida pela Rede Globo de Televisão, no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro. em dezembro passado. Outro dado importante: os O espetáculo teve roteiro de José Carlos Ca- artistas que fazem música nordestina contemporâpinam e Jorge Salomão (que também fez a direção) nea, em suas diversas vertentes, invariavelmente cie foi promovido por Gilberto Gil e Caetano Veloso, tam o músico como sua maior referência. recém-chegados do exílio em Londres. Do show O cantor Silvério, ex-vocalista do Cascabuforam aproveitadas 15 faixas. Entre elas, Derra- lho, moderno grupo de forró do Recife, também é maro o Gai, Óia Eu Aqui de Novo e Lorota Boa. um dos influenciados pela obra do Velho Lua. Além de Volta Pra Curtir e de inúmeros ál- “Minha mãe era professora de acordeom. Ela cobuns dedicados a ele que estão sendo lançados nes- nheceu Luiz Gonzaga. Vovô a levava para todos os te ciclo junino, Gonzaga também recebeu a reve- programas de rádio. Minha avó era suplente de rência do cantor Gilberto Gil no CD São João Vivo! cantora. Quando alguma faltava, lá estava ela. Nu(Warner). Baseado na trilha sonora do filme Eu Tu ma dessas idas, minha mãe o viu tocando o instruEles (de Andrucha Waddington), o disco traz, fora mento e se interessou por aprender a tocar. Mamãe as músicas de autoria do baiano, clássicos do per- tinha a coleção de discos inteira”. Um desses LPs, nambucano: Olha pro Céu (Gonzaga/José Fernan- em particular, despertou a atenção do filho. “Gosdes), Óia Eu Aqui de Novo (Antônio Barros), Asa tava muito de São João no Araripe. Tanto que quanBranca (Gonzaga/Humberto Teixeira). Estas do participei do disco Baião de Viramundo (Candecomposições também estão no eiro Records) cantei a música É songbook apenas com músicas de Débora Nascimento Romeiro Só.

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Quando Silvério pretendeu ingressar na carreira artística, pensou em trilhar a sonoridade de Luiz Gonzaga. Mas, segundo confessa, o forrozeiro já tinha muita visibilidade. “Optei, então, por Jackson do Pandeiro”, afirma. “Ainda no Cascabulho, tive a intenção de fazer uma espécie de acústico com o repertório de Gonzagão, com arranjos para cordas e percussão, bandolim, cavaquinho. Queria pegar o trabalho mais antigo, as mazurcas, polcas, ganchos europeus”. De acordo com o cantor, essa idéia ainda não está engavetada. Ele apenas está deixando passar o período de divulgação do seu primeiro disco solo, “Bate o Mancá” (Natasha Records/BMG), somente com músicas de Jacinto Silva, continuador de Jackson do Pandeiro, recentemente falecido. Outro artista que não esconde sua reverência é o compositor Alcymar Monteiro: “Nasci ouvindo Luiz Gonzaga na região do Cariri. Na minha adolescência, ouvia de tudo um pouco, Elvis Presley, Bill Haley, Little Richard e o Rei do Baião, passando também por Jackson do Pandeiro”, recorda. Anos depois, o cantor foi conhecer o sanfoneiro no antigo Cavalo Dourado, danceteria do Recife, em 1985. “Entreguei meu disco Ave de Arribação. Ele prometeu que ia ouvir. Depois marcou um encontro para nós conversarmos sobre música. Ele disse: ‘você tem uma voz boa. Como está a sua carreira?’ Eu disse que andava difícil. E ele: ‘eu vou ajudar você’, Cantei com ele em dois discos meus. Há também uma gravação inédita de 1987, um dueto que não saiu até hoje”, revela Alcymar . Além de profissional, a ligação com o mestre também foi emocional. “Ele virou o padrinho do meu filho, que hoje está com 14 anos. Tivemos uma amizade muito boa. Ele dizia: ‘Você é um menino que estou gostando muito’. Mais tarde, o exuense disse para Alcymar que tinha outra surpresa para ele: o apresentou à cantora Marinês.

ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

ALEXANDRE BELÉM / TITULAR

Os artistas que fazem música nordestina contemporânea, em suas diversas vertentes, invariavelmente citam Luiz Gonzaga como sua maior referência

“Foi com ela que gravei Oi, paixão, diz paixão, fala pra mim que ama, que eu te dou meu coração’ (canta). Com ela vendi 300 mil cópias”. Já o cantor Maciel Melo conheceu Luiz Gonzaga numa festa promovida por este em Exu. Fui como integrante de uma banda. "Eu tocava teclado e violão. Nesse meu primeiro contato com ele tinha 19 ou 20 anos de idade. Como eu era fã, não fiquei muito à vontade diante dele”, relembra. “Comecei a ouvi-lo quando tinha 8, 9 anos. Era o que se tocava nas rádios”. O forrozeiro lembra que uma das frases que o Rei do Baião falou foi: “Meu filho, quanto mais cedo você começar, melhor”. Atualmente, inúmeras bandas tocam os mais diversos tipos de música denominadas forró, mas o seguidor por excelência da música e do jeito de Luiz Gonzaga é mesmo José Domingos de Morais – Dominguinhos.

Alcymamar Monteiro tem ligação profissional e emocional com Luiz Gonzaga, que virou padrinho do seu filho

Débora Nascimento é jornalista

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MANOEL NOVAES / TITULAR

Dominguinhos

“Ele dizia: Você tá muito enxerido!”

Depois do célebre episódio da apresentação de Dominguinhos como “herdeiro artístico”, o garoto não mais saiu da casa de Gonzaga. Para onde o “velho” ia, fossem shows ou gravações, lá estava lá o piralho de contrapeso. “Ficou sendo a minha segunda casa. Ele dizia: ‘Neném pega a sanfona para me acompanhar’. Numa dessas turnês nordestinas, em 1967, cheguei a ser o motorista da “van” que transportava o sanfoneiro e a banda. Se as kombis hoje não prestam, imagine naquela época. Não tinha nem janela”, recorda. Algumas vezes, o herdeiro também fez a locução dos shows. Depois, começou a tocar mesmo. Gonzaga assistia a toda a evolução do rapaz no 86 Continente Multicultural

palco, mas não o elogiava. “Ele não era de elogiar. Só dizia ‘você tá muito enxerido’. Ele usava duas sanfonas. Eu fazia o acompanhamento normalmente. Era mais um embelezamento. Ele gravava com dois e até três acordeons. Mas não elogiava. Aliás, nordestino não gosta de elogiar. O pai costuma agir assim para não estragar o filho. Ele dizia: esse moleque tá muito enxerido. Mas dizia às outras pessoas: ‘Pode confiar, ele está tocando muito’. Era o jeito dele”. Dominguinhos, por sua vez, ignora a tradição nordestina e enaltece o mestre. “Ele foi a pessoa que mais inventou moda. Aquele jogo de fole ninguém fazia. O sulista norte-americano toca batido. Com o acordeom, você toca de tudo, valsa, bolero e música erudita. Há grandes concertistas de acordeom no mundo. Há acordeonistas japone-


MANOEL NOVAES / TITULAR

ses. Na Europa, há sanfona só com botões – sem o teclado de piano. Por isso, até Sivuca e Hermeto Pascoal aprenderam com ele”, avalia. Entre os shows dos quais José Domingos participou como sanfoneiro estava o espetáculo de 1972 que originou o CD “Volta pra Curtir”. A propósito, o forrozeiro ficou surpreso ao saber que o show havia sido gravado. “Ninguém da banda sabia. Nem o próprio Gonzaga porque ele não comentou nada com a gente. Quase trinta anos depois, a gravadora me procura para pedir a aprovação para liberar o material”, conta. Para o músico, o fato de o disco ter passado tanto tempo no limbo só tem um motivo: “burrice da empresa”. Afinal trata-se de um ótimo registro de uma apresentação ímpar. “Eu tenho vários discos na BMG, mas todo ano só relançam as mesmas coisas. O mesmo fazem com Luiz Gonzaga. É uma falta de preparo. Mas elas são todas do mesmo jeito. Não chegam para o artista e perguntam: ‘há uma série de discos gravados, o que você sugere para ser relançado?’. Para fazer compilações, chamam umas pessoas que não têm competência”. Há vários 78 rotações de Luiz Gonzaga que não foram relançados. Apesar de ter ficado surpreso com a qualidade espantosa da gravação do CD “Volta Pra Curtir”, o compositor reclama que na pós-produção fizeram “um corte horroroso no disco” exatamente em uma das histórias, causos narrados pelo sanfoneiro. “Nos shows pelo interior do País, o povo cobrava: ‘seu Luiz, uma leriazinha!’ Nesse disco

cortaram muita conversa do show. Pouca gente sabe, mas ele era um grande ator”. Para o artista, que conviveu de pertinho com Luiz Gonzaga, opinar sobre o panorama atual do forró é uma árdua tarefa. “São os trios (sanfonazabumba-triângulo) quem realmente defendem o forró. Há vários pelo país, Trio Xamego, Virgulino, Sabiá, Fuba de Taperoá. Também existem outros artistas que têm esse compromisso, como Genival Lacerda, Biliu de Campina, Jorge de Altinho. Você vê isso nos recentes discos de Camarão e Jacinto Silva, que faleceu recentemente. O nome é ruim, mas o grupo é bom: Forró Sacana. O Falamansa é um momento. Não posso dizer que seja bom ou ruim. Hoje quem está lotando as casas de shows no Sudeste são eles. Pelo menos, estão divulgando a música nordestina. Agora tem também o Rastapé, o Peixe Elétrico”, lista. “Há muita gente que faz música merengueada e diz que é forró”, critica o cantor, com a autoridade de quem acaba de lançar mais um bom disco na sua carreira. “Quem começou esse movimento foram as bandas de forró cearense. Não podemos negar. Depois que a lambada acabou, colocaram casais para dançar no palco e passaram a tocar a noite inteira. Eles têm dois guitarristas, dois músicos para cada instrumento. Assim conseguem passar a noite inteira no palco. Com isso desempregaram vários artistas, inclusive eu. Com o sucesso, muitas bandas de baile passaram a tocar forró, como a Magníficos. Alceu Valença diz que essa sonoridade é meio calypso. É um forrolambada”, avalia. Ao contrário do mentor, Domingos aproveita para também distribuir elogios aos colegas de profissão. “Gostei muito do disco de Gil. Ele é muito correto. É um grande cantor, toca sanfona bem. Aliás, antes de tocar violão, tocava sanfona. Também gosto muito de Targino Gondim (autor de Esperando na Janela). Eu o conheci quando ainda era garoto. Ele tem um carinho enorme por Gonzaga e teve a mesma chance que eu tive”. No caso, quem estendeu a mão foi Gil, que, não por acaso, encarnou o personagem Gonzagão (com chapéu de couro, gibão) na capa do recente álbum, São João Vivo! (Warner), em que homenageia o professor. (DN) Continente Multicultural 87


Kadna Cordeiro ensina Asa Branca a crianças inglesas: “Gonzaga é universal”

O Rei do Baião em Londres Há 10 anos venho desenvolvendo projeto de educação musical na Inglaterra, usando ritmos brasileiros. A música de Luiz Gonzaga esteve presente desde o começo desse trabalho. A reação inicial com relação à música do Rei do Baião foi mais positiva do que eu esperava. As crianças e jovens músicos ingleses ficaram fascinados com os ritmos popularizados por Luiz Gonzaga e as histórias contadas pelo mesmo sobre a música dos cangaceiros, como por exemplo o fato do rifle substituir a dama na dança do xaxado.

Kadna Cordeiro 88 Continente Multicultural

Em 1999 realizamos um concerto em Londres dedicado a Luiz Gonzaga que contou com a participação de mais de 40 músicos amadores. A orquestra Toot Brasil formada por 30 crianças e jovens músicos ingleses encerrou o concerto com Asa Branca, a música favorita de todos. Luiz Gonzaga influenciou e influencia gerações de músicos brasileiros e agora também jovens músicos ingleses. Nas oficinas que ministro em escolas, a música do Rei do Baião é uma grande fonte de inspiração nas composições. A idéia de que a música de Luiz Gonzaga não é universal é totalmente falsa. Ela toca corações de pessoas das culturas mais diferentes, da mesma maneira que a própria música nativa o faz. Kadna Cordeiro é professora de música


Nelson Valença, parceiro dele mesmo CARLOS SINÉSIO

Criador de sucessos regionais como O Fole Roncou e Catarino, compositor relembra o seu encontro com Luiz Gonzaga. E revela, sem mágoa, que as canções assinadas pela dupla são de um único autor.

não sabia nada disso.

O senhor começou a compor com que idade? Com 17 anos, mais ou menos. Eu não sabia música, não sabia nem o que era um tom maior, um tom menor,

Valença: “Luiz passou aqui em casa e disse: – Faça um baião”

E quando foi que o senhor conheceu Luiz Gonzaga? Ele passou por aqui uma vez, passeou pela cidade, encontrou um rapaz que trabalhava na rádio (Rádio Difusora de Pesqueira), conversou com ele, disse que estava sem compositor, e o rapaz disse: “Pois eu conheço uma pessoa aqui que faz músicas...” Mas eu não fazia baião; fazia samba-canção, valsas, que era o que se tocava no tempo em que eu comecei a compor. Então ele me procurou. Quando eu disse pra ele que não fazia baião, ele disse: “Faça que eu vou passar aqui tal dia”. Isso foi em que época? O ano eu não me lembro, não. Sei que ele tava na companhia de Ermírio de Morais. [Foi em 1970, quando José Ermírio de Morais disputou e perdeu a eleição ao Senado Federal por Pernam-

Marcos Cirano Continente Multicultural 89


CARLOS SINÉSIO

pra mim na televisão (porque eu sou produtor, fui produtor de rádio, tinha facilidade de escrever). Ele disse: “Eu arranjo um emprego pra você na televisão, você fica compondo, eu, gravando, eu mando buscar sua família...” Mas perguntei: “Luiz – engraçado que nessa época eu gostava muito mais de caçar do que de música, eu fazia música sem nenhuma pretensão... – Luiz, onde é que a gente mata lambu aqui?” – “Aqui, ninguém mata, não”. – “Ah, então eu vou é embora!” – “Esse matuto dá um trabalho danado; você fica aqui, você vai ser conhecido...” – “Olhe, eu não quero ficar, não”. E vim embora.

“Compus as cinco músicas sozinho, mas ele pediu pra botar o nome dele. Eu disse tudo bem”

buco.] Eu fiz cinco músicas, gravei numa fita e deixei por aí. Quando ele passou, tava lá embaixo no coreto, gente como o diabo, discursos, aquele comício. Eu não tive coragem. Mas um amigo meu falou com Luiz Gonzaga para que eu esperasse lá na casa do prefeito. Eu fui. Luiz Neves (o prefeito) abriu lá um quarto que não tinha ninguém e entrou eu e ele (Gonzaga), e estava também Eurivaldo Jatobá (músico e professor de violão conhecido por Eurivinha). Eu cantei três das minhas músicas: Coronel Pedro do Norte, Lulu Vaqueiro e O Urubu é um Triste. Luiz Gonzaga disse: “Eu vou gravar essas músicas, eu vou gravar todas três”. No início, pensei que ele tava me gozando. Mas ele tava dizendo de verdade, mesmo. Sei que depois, uma tarde, um rapaz conhecido meu que trabalhava no cinema me telefonou e disse que a revista Veja trazia uma reportagem com Luiz Gonzaga onde ele falava das minhas músicas, que tinha encontrado um compositor em Pesqueira e outras coisas lá. [As três composições de NV fazem parte do LP lançado por Luiz Gonzaga em 1971.] Depois desse primeiro encontro com Luiz Gonzaga, como foram seus contatos com o Rei do Baião? Aí ele ficou vindo sempre. Toda vez que ele passava pra Exu, ele vinha aqui em casa. Ele até me levou para o Rio de Janeiro, eu passei nem sei direito quanto tempo lá, acho que uns dois meses. Ele me levou... levou não, eu fui por minha conta, ele queria que eu fosse. Fui de avião, cheguei lá e ele não queria que eu voltasse de jeito nenhum. Disse que era pra eu ficar, que ele arranjava um emprego

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Nunca mais o senhor quis saber do Rio de Janeiro? Não, eu fui ao Rio duas vezes. Fui só, fui muito bem tratado lá. Luiz Gonzaga era uma pessoa muito boa, ajudava muita gente, ele era um sujeito muito caridoso. A mim, ele só reclamava de uma coisa: “Olhe, eu comprei leite, porque aqui nós não tomamos leite, e você nunca abriu o refrigerador”. Ele morava num apartamento muito bom, que era do filho, Gonzaguinha, na Ilha do Governador. Eu levei uma bolsa de queijo e outra de doce de Pesqueira. Eu, com vergonha de mostrar, mas você não queira saber como o presente foi valorizado. A mulher de Luiz Gonzaga gostou tanto que passou a guardar o doce e o queijo no quarto dela, para as empregadas não comerem tudo. Depois dessas primeiras músicas suas, quais foram as próximas que Luiz Gonzaga gravou? Foi num disco dele que tem cinco músicas minhas: Catarino, Juvino, O Bom Improvisador, Mulher de Hoje e O Fole Roncou. Todas essas cinco músicas eu compus sozinho, mas ele pediu pra botar o nome dele. Disse: “Olhe, eu tô um tempo aí sem compor nada, você se importa?” Eu disse: “Não, tudo bem”. Ele até disse pra um camarada lá que era pra botar o meu nome na frente. “Bote assim: Nelson Valença e Luiz Gonzaga, porque nessas eu entrei pela janela”. Eu nunca liguei pra isso, não, mas as músicas são só minhas mesmo. Marcos Cirano é jornalista


Discografia Em LPs – Luiz “Lua” Gonzaga – RCA Victor, 1961 – O Véio Macho – RCA, 1962 – São João na Roça – RCA, 1962 – Pisa no Pilão (Festa do Milho) – RCA, 1963 – Sanfona do Povo – RCA, 1964 – A Triste Partida – RCA, 1964 – Quadrilhas e Marchinas Juninas – RCA, 1965 – Óia Eu Aqui de Novo – RCA, 1967 – O Sanfoneiro do Povo de Deus – RCA, 1968 – São João do Araripe – RCA, 1968 – Canaã – RCA, 1968 – Sertão 70 – RCA, 1970 – O Canto Jovem de Luiz Gonzaga – RCA Victor, 1971 – Aquilo Bom – RCA Victor, 1972 – São João Quente – RCA Victor, 1972 – Luiz Gonzaga – Odeon, 1973 – Sangue Nordestino – Odeon, 1974 – O Fole Roncou – Odeon, 1974 – A Nova Jerusalém – Odeon, 1974 – Daquele Jeito – Odeon, 1974 – Capim Novo – RCA, 1976 – Luiz Gonzaga & Carmélia Alves – RCA, 1977 – Chá Cutuba – RCA, 1977 – Dengo Maior – RCA, 1978 – Eu e Meu Pai – RCA, 1979 – Quadrilhas e Marchinhas – RCA, 1979 – O Homem da Terra – RCA, 1980 – A Festa – RCA, 1981

– Gonzagão e Gonzaguinha, A Vida do Viajante (álbum duplo) – EMI-Odeon/RCA, 1981 – Eterno Cantador – RCA, 1982 – 70 Anos de Sanfona e Simpatia – RCA, 1983 – Danado de Bom – RCA-Camden, 1984 – Luiz Gonzaga & Fagner – RCA, 1984 – Sanfoneiro Macho – RCA-Camden, 1985 – Forró de Cabo a Rabo – RCA-Camden, 1986 – De Fia Pavi – RCA, 1987 – Gonzagão & Fagner 2 – BMG, 1988 – Aí Tem Gonzagão – BMG, 1988 – Vou Te Matar de Cheiro – Copacabana, 1989 Compilações em LP – A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – RCA Victor, 1955 – Aboios e Vaquejadas – RCA Victor, 1956 – O Reino do Baião – RCA Victor, 1957 – São João na Roça – RCA Victor, 1958 – Xamego – RCA Victor, 1958 – Luiz Gonzaga Canta Seus Sucessos com Zé Dantas – RCA Victor, 1959 – O Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – RCA, 1962 – Luiz Gonzaga, Sua Sanfona e Sua Simpatia – RCA, 1966 – Os Grandes Sucessos de Luiz Gonzaga – RCA, 1968 – Meus Sucessos com Humberto Teixeira – RCA, 1968 – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (coleção História da MPB, da Abril Cultural) – RCA, 1970 – Luiz Gonzaga (vol. 1) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1971 Continente Multicultural 91


– São Paulo: QG do Baião – RCA, 1974 – Sanfona do Povo – RCA, 1974 – Asa Branca – RCA, 1975 – Luiz Gonzaga (vol. 2) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1979 – Discografia Básica – RCA, 1979 – Luiz Gonzaga (vol. 3) (coleção Disco de Ouro) – RCA, 1981 – Os Grandes Sucessos de Luiz Gonzaga – RCA, 1982 – Os Grandes Momentos de Luiz Gonzaga – Som Livre, 1982 – O Rei Volta pra Casa – RCA, 1982 – 45 Anos de Sucesso – RCA, 1985 – 50 Anos de Chão (caixa com cinco LPs) – RCA, 1988 Em CD – 50 Anos de Chão (caixa com três CDs) – RCA, 1988 – O Melhor de Luiz Gonzaga – BMG, 1989 – Olha pro Céu – BMG, 1990 – Forró do Começo ao Fim – BMG, 1991 – Êta Cabra Danado de Bom – Revivendo, 1993 – Forró do Gonzagão – BMG, 1993 – Espetáculo das Seis (Luiz Gonzaga e Carmélia Alves) – BMG, 1993 – Quadrilhas e Marchinhas – BMG, 1994 – Sanfona Dourada – Revivendo, 1994 – No Meu Pé de Serra – Revivendo, 1995 – 50 Anos de Chão (caixa com três CDs) – RCA, 1996 – A Triste Partida – BMG, 1998 – Eterno Cantador – BMG, 1998 – Lua – BMG, 1998 – O Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga – BMG, 1998 – O Rei Volta pra Casa – BMG, 1998 – O Sanfoneiro do Povo de Deus – BMG, 1998 – Óia Eu Aqui de Novo – BMG, 1998 – Pisa no Pilão (Festa do Milho) – BMG, 1998 – Sua Sanfona e Sua Simpatia – BMG, 1998 – Xamego – BMG, 1998 – O Essencial de Luiz Gonzaga (Série Focus Nacional) – BMG, 1999 – Luiz Gonzaga (Série Acervo) – BMG, 2000 – Eu Só Quero um Forró – BMG, 2000 – Canaã – BMG, 2000 – Luiz Gonzaga Canta Seus Sucessos com Zé Dantas – BMG, 2000 – Ó Véio Macho – BMG, 2000 – Sanfona do Povo – BMG, 2000 – São João do Araripe – BMG, 2000 – São João na Roça – BMG, 2000 Fonte: Dominique Dreyfus e site www.uol.com.br/luizgonzaga

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ROTEIRO D Durante todo o mês de junho, Caruaru é uma vitrine do forró e dos variados ritmos nordestinos. No Pátio do Forró, com seus 40 mil metros quadrados, está concentrado o maior número de atrações. O São João caruaruense deste ano homenageia o cantor e compositor Jacinto Silva, que morreu em fevereiro. Mais informações sobre as festividades na cidade pelo telefone (81) 3721-1633. Principais atrações do Pátio do Forró 18/06 – segunda-ffeira Heleno dos 8 Baixos • Josildo Sá 19 – terça-ffeira Pisa na Fulô • Jucélio Vilela 20 – quarta-ffeira Quinteto Violado • Mestre Ambrósio • Banda de Pífanos de Caruaru 21 – quinta-ffeira Fogo de Palha • Capim com Mel 22 – sexta-ffeira Cheiro de Mel • Mamulengo Arretado 23 – sábado Jorge de Altinho • Petrúcio Amorim • Jorge de Altinho 24 – domingo / Dia de São João Alceu Valença • Silvério Pessoa 25 – segunda-ffeira Totonho • Kaki com Mel 26 – terça-ffeira Arlindo dos 8 Baixos • Banda Desejo 27 – quarta-ffeira Cristina Amaral • Ademário Coelho 28 – quinta-ffeira Langerri • Forró Baquiara 29 – sexta-ffeira / Dia de São Pedro Dominguinhos • Alcymar Monteiro 30 – sábado Brucelose • Maciel Melo 01/07 – domingo Encontro de Quadrilhas


DO FORRÓ Para saber mais O baião e o forró “A origem do baião se associa ao breve trecho instrumental existente no repente nordestino, que é chamado justamente de “baião”. O termo, sinônimo de “rojão”, designa as células rítmicas que o violeiro-cantador toca na viola, ao afinar seu instrumento, antes de começar a cantar. É o mesmo som que faz quando, no meio do desafio, esperar vir a inspiração para novos versos. Com esse ritmo, ele preenche o espaço entre uma estrofe e outra. Essa seqüência serviu de ponto de partida para Luiz Gonzaga criar o baião. A invenção foi portanto conseqüência de uma descoberta. A de que, às células rítmicas do repente (de canto recitativo e monocórdio), transplantadas da viola para a sanfona, podiase justapor uma melodia cantável. Assim começou a se delinear o formato que o baião veio a ter”. (Carlos Rennó) Forró vem de forrobodó, expressão dicionarizada desde o início do século passado, que significa baile popular, no Nordeste. Seria a forma abreviada da expressão. Outra versão, não comprovada, sustenta que vem do inglês “For All”, utilizado nos bailes organizados para os trabalhadores das ferrovias britânicas no Nordeste. Inicialmente forró era o local dos bailes, depois passou a designar o tipo de música dançada nos bailes, típicas dos festejos juninos. A formação tradicional é sanfona, zabumba, triângulo e, eventualmente, pandeiro. Modernamente, o forró engloba tudo – dança e música – e vários gêneros, além do baião, como xote, xaxado, coco-de-roda etc. Bibliografia Sá, Sinval – O sanfoneiro do riacho da Brígida – Edições A Fortaleza, Fortaleza, 1966. Ferretti, Mundicarmo Maria Rocha – Baião dos dois: Zé Dantas e Luiz Gonzaga”. Editora Massangana, Recife, 1988. Chagas, Luiz – Coleção Vozes do Brasil: Luiz Gonzaga. Martin Claret Editores, SP, 1990. Ângelo, Assis – Eu vou contar pra vocês – Ícone Editora, SP, 1990. Oliveira, Gildson – Luiz Gonzaga, o matuto que conquistou o mundo – Comunicarte, Recife, 1991. Dreyfus, Dominique – A Vida do Viajante, Editora 34, 1996. Câmara, Renato Phaelante da – Compositores pernambucanos – Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 1997. Para consulta na Internet veja www.uol.com.br/luizgonzaga/ e www.mpbnet.com.br/musicos/luizgonzaga/

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