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ensaio geral

Nesses casos, o cenário mais comum é aquele no qual compositores e sonoplastas atuam apenas no último estágio de criação. Ainda que seja possível nessa etapa apostar em construções mais substanciais da música e dos sons, mesmo com as cenas já prontas, a natureza mercantil desses meios1 impede qualquer atitude experimental. Ou seja, não se trata apenas dos limites criados pelo fato de o profissional de som e música lidar com uma história que já está montada e coerentemente narrada com os recursos da fala, os da atuação e aqueles específicos da linguagem audiovisual, mas sim da lógica industrial que aliena estas diferentes etapas. Do ponto de vista da indústria a produção deve ser feita em massa e em série. Para tanto, é necessário que seja padronizada e racionalizada segundo um modelo de eficiência. Adota-se a divisão técnica do trabalho: o processo é composto por etapas realizadas separadamente inibindo os profissionais de conhecê-lo por inteiro. Como resultado, resta-lhes incorporar irrefletidamente os padrões consolidados, conservando a obra de arte em formas engessadas que limitam por sua vez o interesse por novos conteúdos. Sendo assim, música e som acabam sendo incorporados de forma marginal, mas ao mesmo tempo e contraditoriamente como algo a que não se pode recusar. Para superar esta condição, o componente musical e sonoro deve ser planejado durante a encenação, ainda que sua realização definitiva seja feita posteriormente, e, portanto, como parte daquilo a que Jean Pierre Sarrazac2 chama de “reescritura” do texto pelo encenador e que aqui chamaremos de dramaturgia sonora e dramaturgia musical.

Rel ações de trabalho no teatro Em seu texto “Realismo e encenação moderna: o trabalho de André Antoine”, Sarrazac celebra o fato do diretor francês acrescentar ao texto dramatúrgico um conjunto de gestos, de significados contidos no cenário e na iluminação que atuam como uma segunda voz, voz essa que reescreve o texto. Para tanto, não bastaria acionar estes elementos em uma etapa posterior à correta marcação dos atores no palco. Caberia ao encenador se apropriar do cenário, da luz e dos gestos. Experimentar na sala de ensaio, ao longo da montagem, a possibilidade de empregá-los em cena como elementos narrativos. O autor lembra que há nesta postura do encenador moderno certa 1. Interesses comerciais, tais como a capacidade de circulação da arte como mercadoria pautam e superam qualquer outro tipo de orientação. 2. Jean Pierre Sarrazac, Realismo e encenação moderna: o trabalho de André Antoine, in Sergio de Carvalho, O teatro e a cidade. São Paulo, Prefeitura do município de São Paulo, 2001, p. 121.

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tentativa de traduzir no teatro os avanços conquistados pela literatura: a e n s a i o g e r a l descrição minuciosa, a argumentação do narrador, por vezes descolada da fábula e da ação. Expedientes que permitiriam ao leitor interrogar a natureza do mundo representado. Para que música e sons sejam incorporados seguindo essa mesma lógica, ou seja, que possam atuar como elementos que reescrevem o texto, lançando sobre a cena uma voz narrativa, é necessário em primeiro lugar que se repense a maneira pela qual músicos e sonoplastas são inseridos no processo de produção de uma peça. Para ilustrar a questão, tomo como exemplo a produção musical do período mudo do cinema, em que o som ainda não era sincronizado ao aparato e a trilha sonora era realizada ao vivo por profissionais contratados pelas salas de exibição. Mesmo que sua realização estivesse condicionada, na maior parte dos casos, a uma etapa posterior à construção narrativa, a falta de Para que música e sons possam constituir uma voz padronização e o caráter artesanal narrativa, é necessário que se repense a maneira abriam caminho para inúmeras pospela qual músicos e sonoplastas são inseridos no sibilidades de experimentação forprocesso de produção de uma peça. mal. No entanto, esta situação contrariava a essência do cinema, que como já ressaltei, é industrial, pressupõe a cópia e a produção em série. Sendo assim, na tentativa de uniformizar o repertório executado pelos músicos, e evitar arbitrariedades que pudessem contrariar a natureza de seu negócio, a indústria, em um esforço conjunto com os editores de partituras, passou a publicar as antologias musicais. Eram livros que organizavam uma série de temas derivados do repertório erudito, da música de salão, bem como do vaudeville. Os temas eram separados em um índice por categorias que contemplavam uma ideia geral da cena, da ação ou do lugar no qual a ação se passaria: música para perseguição, música misteriosa para assalto, música para duelo, música para cena de morte, música oriental, música indígena. Os mais conhecidos foram o Sam Fox moving picture music, o Kinothek e o Motion picture music for pianists and organists. Quando os filmes eram distribuídos, os produtores enviavam uma planilha especificando o momento no filme e o tema que o intérprete na sala de exibição deveria executar, ou sobrepor às cenas. É compreensível que tanto no cinema, como na televisão certa essência dessa lógica contida nas antologias ainda sobreviva. Muitas vezes, sobretudo na televisão, o compositor trabalha inclusive sem ver as cenas. Conhece apenas uma ideia geral do conteúdo da trama e recebe instruções genéricas, equivalentes às categorias presentes nas antologias. A trilha sonora trabalha para uma cena pronta, já constituída. E o músico é constrangido a repetir os padrões considerados mais eficientes, e que acabam perdurando por décadas.

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