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da em dança, em prosa, no cinema, rádio e fotonovela, na televisão. Levada a sério aqui, parodiada ali, empastichada além, vista acolá como tragédia, houve carmens de todos os sabores e feitios. Poucas, porém, terão sido tão intrigantes quanto a Carmem com filtro de Gerald e Daniela Thomas. Será tudo um pesadelo? Ou trata-se do inferno de um dom José contemporâneo e suicida, que abre a peça saltando da A adaptação dos Thomas para Carmem desemboca na janela? Talvez o segredo esteja com invasão da tragédia romântica pelo cotidiano, pela o tenente Zuniga, que a certa altura banalização das emoções na era atômica. queixa-se: “Uma manhã como todas as outras, gente que vai, gente que vem, tudo calmo, o sol, o uniforme, um pouco quente demais, um pouco frio demais, o vento, a poeira, a náusea...” A adaptação dos Thomas para Carmem desemboca na invasão da tragédia romântica pelo cotidiano, pela banalização das emoções na era atômica. As personagens falam interminavelmente, discursam de modo compulsivo sobre sua condição. Mas nada dizem além do lugar comum. As palavras são esvaziadas dos significativos primitivos. Em certos momentos, à maneira de Beckett, vale mais sua música que o sentido. Há longos monólogos; aliás, a fala solitária é a marca teatral mais forte do texto de Carmem com filtro. Mesmo os diálogos acabam redundando em solilóquios a dois (ou três, ou quatro). A aridez que daí resulta é desejada. As longas pausas, os hiatos, o silêncio, os tempos arrastados, tudo é proposital. O escrito foi tecido para servir à montagem, e não o contrário. Na encenação de Gerald Thomas tudo se organiza tendo por fim o espetáculo. Que é insólito e deslumbrante exercício de ritmos encantatórios, hipnótico pela morosidade. Minuciosamente despido de emoções. Buscando enquadrar Carmem com filtro em algum gênero, Carmem com Filtro é invenção de virtuose . Revela-nos o encenador classificou como “ópera em Gerard Thomas um encenador denso, maduro, que sec”. É uma imagem feliz para tradudomina com mestria a engenharia teatral. zir o que ocorre no placo do Teatro Procópio Ferreira, no horário alternativo das segundas e terças, às 20 horas. Envolta em nuvens de bruma, a encenação constitui requintado discurso ao redor da paixão, pela qual suas personagens não ardem. Antes congelam. A fumaça do gelo seco, dos cigarros e charutos, o tom de tabaco do magnífico espaço cênico (e) da maior parte dos excelentes figurinos de Daniela Thomas predomina em Carmem com filtro. Marcam a cor do drama e são realçados pelas meias sombras da iluminação, belíssima, concebida pelo diretor. O espectador é surpreendido por uma das mais sofisticadas criações visuais surgida em nossos palcos nos últimos anos. A luz, a cenografia e o desenho primeira fila [Dossiê Alberto Guzik]

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das marcações conjugam-se em visões escultóricas que, temperadas pela ótima invenção musical de Jacques Morelembaum, causam intensos impactos. Carmem com filtro é invenção de virtuose. Revela-nos em Gerard Thomas um encenador denso, maduro, que domina com mestria a engenharia teatral, colocando-a a serviço de severa estética. E, talvez o mais importante, com talento capaz de gerar obras polêmicas, perturbadoras, enriquecedoras. Espetáculos desse gênero cobram preço alto de seus intérpretes, forçados a abandonar muito da personalidade cênica para curvar-se ao minucioso traçado desenhado pelo diretor. Nesse sentido, mais aplausos merece a produção de Carmem com filtro, assinada por Antônio Fagundes. O ator e empresário bem-sucedido não busca repetir fórmulas de sucesso; investe no novo, no ousado. Com últimos resultados. Fagundes encarrega-se também de personificar um esmagado, embora frio e contido, dom José. Clarisse Abujamra, mesmo desservida pela voz, compõe com intensidade a figura sedutora de Carmem. Merecem destaque as presenças fortes de Bete Coelho (Micaela), e Oswaldo Barreto (Lilas Pastia); a máscara torcida de Luiz Damasceno (tenente Zuniga) e a figura de Guilherme Leme (Morales). Completam o elenco Ana Kfouri, Lu Grimaldi, Horário Palacios, Geraldo Loureiro e Pedro Vicente. Carmem com filtro é uma criação difícil. Não se dirige a todos os paladares e pode chocar os mais apegados ao convencional ou ao digestivo. Mas os que amam a inteligência na arte hão de ver e rever a obra, que é de tipo muito especial. Quanto mais se pensa sobre ela, mais a apreciamos.

primeira fila [Dossiê Alberto Guzik]

Jorn al da Ta rde , São Paulo, 5 maio 1986. [Divirta-se]. Ligia Feliciano, Bete Coelho e Domingos Varella em Carmen com filtro 2. Foto de Lenise Pinheiro.

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