Revista Sotaques Nº 02 Julho

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Junlo / 2014 Nº 02 Gratuito

Chico Buarque o artista em construção


Editorial Chico Buarque: o artista total Nesta edição de Julho, falamos de Chico Buarque de Holanda. Um artista total, que cumpriu este ano o seu 70º aniversário, e que continua a ser uma referência incontornável não só da música, como da literatura em língua portuguesa. A grandeza de um artista deve ser medida pela variedade de talentos que ele consegue abarcar. Neste sentido, Chico Buarque foge a qualquer padrão normal: músico, letrista, escritor, dramaturgo, mas também cidadão empenhado contra a Ditadura militar brasileira, homem de causas e de intervenção que homenageou a Revolução de Abril de 1974, em Portugal, através da música “ Tanto mar”. O músico é um prodígio de harmonia. Um poeta da palavra que nos deixou hinos universais da música popular brasileira como “ Construção”, “ A banda”,” Que será, que será” ou “ Quando o Carnaval chegar”, que influenciaram gerações de artistas em todo o mundo. Mas Chico é um artista total, renascentista: não podemos esquecer o fulgurante escritor que irrompeu com força com romances como “ Budapeste”, “ Estorvo” e “ Leite Derramado”, que receberam o prestigiado prémio Jabuti. Obras que revelam uma maturidade literária invulgar. Outra dimensão artística que deve ser realçada é a ligação ao Teatro e à Dramaturgia. Peças como “ Gota d’água”, “ Ópera do Malandro” mostram-nos um homem identificado com o seu tempo, um observador das injustiças sociais e políticas, alguém que não prescinde de afirmar uma voz crítica e acutilante sobre o quotidiano. Chico Buarque também é um amigo de Portugal. Recordamos, por exemplo, a visita que fez a Lisboa em 1967, onde foi recebido pela banda da Carris a tocar o clássico “ A banda a passar”, ou as suas inúmeras digressões no nosso país com as indispensáveis peladinhas de futebol com artistas portugueses e brasileiros. Não podemos esquecer também o Chico solidário com os valores da democracia. Aquele que escreveu a célebre música “ Meu caro amigo”, dedicada a Augusto Boal, na altura exilado em Lisboa, e que se associou à Revolução de Abril com a canção “ Tanto mar”. Por todas estas razões e muitas mais, a revista Sotaques Brasil/Portugal não podia deixar de lembrar a trajectória deste artista invulgar, que se tornou numa referência cívica e cultural incontornável para brasileiros e portugueses.

Arlequim Bernardini

Editor: António Bernardini Diretores: Rui Marques e António Bernardini Colaboradores

Ficha Técnica

António Granja Fátima Gonçalves Gonçalves Guerra António Santos

Telefone: 351 917 852 955 - 916622513 E-mail: antonio.sotaques@gmail.com - rui.sotaques@gmail.com

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Índice Pág. 5

Pág. 9

Leite derramado, um retrato desencantado do Brasil Glauber Rocha, o génio que iluminava a Bahia

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Cidades : o sotaque de Belém do Pará

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Luís Caracol

Pág. 19

Moda: Biquini brasileiro, menos é mais

Pág. 33

Cinco músicas de Chico Buarque

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Brasileiros em Portugal

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O olhar do artista: a paleta das cores do Fado 3


Livro

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“ Leite derramado” um retrato desencantado do Brasil Com a obra “ Leite derramado”, Chico Buarque atingiu o seu auge como escritor. Viagem de dois séculos pela história brasileira a partir do olhar de um ancião, este livro é um catálogo de muitos dos problemas que assolam o país até aos dias de hoje. No percurso literário de Chico Buarque, “ Leite derramado” ocupa um lugar especial. Trata-se de uma síntese magistral da evolução do tempo contada pelo patriarca de uma família à filha, numa cama de hospital: desde a ascendência portuguesa até à afirmação social com o exercício de cargos de prestígio como os de Barão do Império, de Senador da primeira república, ou até à delapidação da fortuna às mãos de um menino rico e aburguesado no Rio de Janeiro actual. Essa herança histórica é contada num monólogo teatral pela personagem principal: um monólogo não isento de dúvidas, de interditos, de meias verdades e meias mentiras, num jogo perverso que deixa o leitor em suspense, à espera da próxima revelação ou confissão, ou do silêncio esclarecedor sobre um tema do qual não quer falar. A palavra retalha, como uma navalha, as acções. Ora nos entusiasma, com as descrições das glórias familiares, ora nos faz descer aos infernos da decadência e do obscurantismo moral. Os espaços, as casas ocupadas pelo homem ao longo da vida, também exprimem a mudança de estatuto social. A cronologia é implacável como uma escada descendente: dos inícios gloriosos numa propriedade em Copacabana, nos anos 20, descemos socialmente para um edifício mais modesto ao lado daquele, a espiral continua e, anos mais tarde, o narrador já mora num apartamento na Tijuca, o Palacete familiar de Botafogo é vendido, e torna-se no estacionamento de uma embaixada, enquanto a fazenda da infância, igualmente perdida, se transforma numa favela, perto da qual jaz a campa do avô. A mulher também está presente na figura inesquecível de Matilde. Que ele acaba por asfixiar com o seu machismo doentio, conduzindo-a a um trágico desenlace. “ Leite derramado” é um extraordinário livro que nos mostra uma visão pessimista sobre a sociedade brasileira. Mas de um pessimismo construtivo: é um espelho que nos revela vícios como o machismo, o compadrio, a corrupção, o oportunismo, a destruição da natureza, males que se podem e devem corrigir. Cabe às novas gerações, àquela filha que ouve as confissões no leito de morte do pai, cabe-nos a todos (re)começar de novo e construir um país melhor todos os dias.

Texto Paulo César

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Cinema

“ Inventar-te-ia antes que os outros te transformem num mal-entendido�

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Glauber Rocha

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Cinema

o Génio da Bahia que iluminava o povo A Bahia é uma terra de revolucionários. Revolucionários na música – Caetano ou Maria Bethânia – revolucionários na Literatura – Jorge Amado – e revolucionários no cinema – e, nesse caso, o nome de Glauber Rocha é obrigatório. Glauber da Rocha nasceu em 1939 em Vitória da Conquista, numa família com fortes convicções religiosas e ligações à Igreja Presbiteriana. Com a mudança dos pais para Salvador da Bahia, o jovem Glauber começa a interessar-se pelas artes performativas e pelo cinema, enquanto frequenta o Colégio 2 de Junho. Ingressa, mais tarde, na Faculdade de Direito da Bahia, período no qual realiza filmagens para o seu primeiro filme – a curta metragem “ Pátio” – em 1959. Abandona, porém, o Curso e dedica-se ao Jornalismo e à realização dos seus primeiros filmes. É na década de 60, que a estética muito própria de Glauber se materializa em filmes como “ Barlavento”,” O Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em Transe” ou o “ O Dragão da maldade contra o Santo guerreiro” entre outras longa-metragens e documentários. Estes três últimos, sublinhe-se, foram premiados em três anos sucessivos em Cannes, o que mostra bem o reconhecimento internacional que teve o cinema de Glauber. Os traços essenciais dos seus filmes passam pela denúncia das injustiças sociais e políticas, pela valorização do povo como entidade viva, concreta, real, e pelo poder da metáfora, da imagem para simbolizar aquilo que escapa ao nosso entendimento mundano. Glauber Rocha é o pai do cinema novo, de um cinema que se impregna da realidade e que toma partido – não é, por acaso, que o cineasta baiano viverá muitos anos no exílio, hostilizado pela Ditadura militar. À imagem de Jorge Amado, na Literatura, o cinema de Glauber resgata a dignidade do povo dos lugares comuns. O seu génio está na iluminação desse povo que vive na penumbra da História, mas que ele procura reabilitar e colocar no centro dos acontecimentos, fazendo dessa tarefa uma obrigação ética e estética. Com a sua morte, aos 42 anos, em 1981, Glauber transformou-se num ícone cultural. Para além das modas, ele é um dos rostos da criatividade brasileira, e a maior referência do cinema brasileiro. Ninguém filmou o Brasil e a Bahia como ele o fez. Com amor e espírito crítico, iluminando a nossa visão para sempre. Texto Paulo César

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Cidades Capa

O sotaque de

Belém do Pará

A cidade debruçada sobre o rio acorda ao som dos pô-pô-pôs, o vai e vem de gente com frutas, pescados, p que faz o mercado do Ver-O-Peso em Belém não parar.

A maior Feira ao ar livre da América Latina nunca dorme: há sempre um movimento intenso de trabalhad pouco além, conhecem nossos cheiros nas barracas de ervas, nossos sons e artesanato, entram em contacto os velhos casarios do entorno da velha cidade, como o prédio que dá nome à Feira, o velho Mercado de ca guesas que ainda resistem como a Casa Chama, onde se encontram artigos para todas as necessidades e g

O Veropa como é chamado por alguns que já são íntimos do lugar, presenciou grandes manifestações rel Nazaré recebe homenagens dos trabalhadores locais, e é nesse momento que os homens ricos, os trabalha riência religiosa e social como uma comunidade . A Feira do Ver-O-Peso consegue agregar, mesmo duran pessoas que vão matar o calor de Belém com uma cerveja gelada acompanhada de um tira-gosto de peixe

Belém guarda entre as heranças dos irmãos lusitanos, não somente a influência arquitectónica, as artes amazónico, o Pirarucu, grande peixe que encontramos nas águas doces dos rios da Amazónia, de farta ca tínhamos aqui belíssimos cafés que serviam de pontos de encontro para a população. Hoje a nossa cidade e do povo brasileiro como um todo. Texto e Foto Hernany Fedasi

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peneiros de açaí no ombro, vai aumentando a cada raio de sol que se intensifica e reluz na pele do caboclo,

dores, turistas que vieram conhecer as frutas, os cheiros, os peixes da Amazónia e acabam encontrando um o com um Universo imenso de cores, sabores, timbres únicos, tudo isso tendo como testemunhas seculares arne todo em ferro inglês, parecido com os Mercados de Lisboa, e os poucos comércios de famílias portugostos.

ligiosas e politicas: a grande Procissão do Círio de Nazaré passa pela Feira, onde a imagem de Nª. Sr.ª de adores, os moradores de ruas, os bêbados e as mulheres da vida ficam todos iguais ao partilhar esta expente o dia, uma multidão que está ali para comprar artigos que se vendem normalmente numa Feira, como e frito.

e a musica, mas também os hábitos alimentares o gosto pelo bacalhau que aqui encontra o seu parente arne salgada. As Padarias foram trazidas para cá no período da colonização, na época de “Belle Époque” ainda guarda muitos ‘sotaques’ e peculiaridades, que contribuíram na formação da Cultura do Belenense

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MĂşsica

Luiz Caracol Influenciado pelo sotaque doce e quente da mĂşsica brasileira.

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13 Foto Alfredo Matos


Música

Luís Caracol é um dos artistas portugueses cuja música tem atravessado o Atlântico, com sucessivas parcerias com músicos brasileiros. São exemplos dessa ligação as colaborações com Fernanda Abreu ou Pierre Aderne. A revista Sotaques Brasil/Portugal falou com este músico, criativamente influenciado pelo sotaque doce e quente da música brasileira.

P- Quais são as referências musicais do Luiz no flexo de todas essas influências, e é como dizia Fernando Pessoa ”a minha pátria é a lingua PorBrasil? tuguesa”.

R - Ui, são tantas… Desde João Gilberto, Jobim, Caetano, Gil ou Chico Buarque, até Zeca Baleiro P – A Revista Sotaques fala da diversidade dos Soe Lenine. Mas poderia ficar aqui a noite inteira citando taques. Como é que é o sotaque do Luiz Caracol? nomes de grandes artistas do Brasil que admiro. R - Diria que é um sotaque mestiço, onde se misturam Portugal, a Africa lusófona e o Brasil. P – E as referências em Portugal? R: São muitas também. Zeca Afonso, Fausto, Vitorino, Jorge Palma, Sérgio Godinho, Trovante, Heróis do Mar, Clã, Sara Tavares, entre muitos outros. Alfredo Matos.

P – Como caracteriza este álbum “ Devagar”?

P – Como vai ser a sua agenda de espectáculos em 2014? R: Está a ser boa e vai continuar a ser, com concertos quer em Portugal, quer noutros paises na Europa e em África, e espero ainda este ano poder tocar também no Brasil e talvez noutros paises da América Latina.

R - Acho-o mestiço e lisboeta, mas também é urbano, étnico e lusófono. Onde vão conseguir encontrar uma mistura P – O que gostaria de realizar, nos próximos anos, grande de influências que são também o reflexo no mundo da música? do que sou. R - Gostava apenas de poder continuar a fazer a música que sinto e que há em mim, e de poder P – A ligação à lusofonia está muito presente neste levá-la a cada vez a mais sitios e a cada vez mais novo trabalho do Luiz Caracol. Que importância tem gente.

esta ligação para a sua identidade como artista?

R - Tem uma enorme importância em mim e na música que faço, porque sempre me senti um cidadão lusófono, mais até do que português, talvez seja por isso que a minha música é o re-

Texto Arlequim Bernardini Foto Alfredo Matos

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P – Teve parcerias com vários artistas brasileiros como Fernanda Abreu ou Pierre Aderne. Como correram essas colaborações? R - Correram muito bem. Na verdade, nós já eramos amigos antes e já tínhamos uma grande cumplicidade, o que fez com que essas participações fossem ainda mais especiais para mim. No caso do Pierre, nós somos amigos desde 2001, e foi ele que me apresentou a Fernanda Abreu, mais ou menos em 2012, aquando da gravação de um documentário em que participei com eles chamado “MPB-Música Portuguesa Brasileira”. Este documentário foi gravado aqui em Lisboa, para homenagear as músicas de Portugal e do Brasil, onde tivemos muitos momentos de partilha musical e artística realmente interessantes. Foi transmitido na televisão, em Portugal na RTP, e no Brasil, no Canal Brasil da Globo.

17 Foto Alfredo Matos


Moda

BiquĂ­ni Brasileiro : Menos ĂŠ Mais

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a

Quando Louis Réard criou o biquíni, em 1946, provocando ondas de indignação e de fascínio em iguais proporções, estaria talvez longe de imaginar que, nas próximas décadas, o ultrajante fato-de-banho de duas peças se tornaria a opção favorita para grande parte das mulheres num dia de praia.

agradar à mulher. Actualmente, tanto a parte inferior com a parte superior, dispõem de mais duas variações para além da original.

Na sua primeira versão, era composto por uma parte superior que consistia em dois triângulos, cobrindo os seios, e alças finas que apertavam atrás, no pescoço e nas costas (triangle-top); e por uma parte inferior comumente chamada de tanga e que apresenta um corte que assenta no cimo das ancas e que mal cobre o osso pélvico.

O biquíni brasileiro é uma opção provocadora que celebra a anatomia feminina. Como tudo na moda, não deve ser usado levianamente, mas tendo em conta o formato corporal de cada um e deve fazer sempre acompanhar-se por duas coisas: primeiro, uma grande confiança e autoestima; e, segundo, uma outra dádiva vinda do Brasil: a depilação brasileira.

No que diz respeito à tanga, evoluiu primeiramente para a Asadelta, que aproximou os limites da parte de trás do biquíni, deixando muito mais dérriere à mostra (engraçado como o franQuando, no início da década de 70, surgiu o fa- cês dá outro ar às palavras difíceis); e, por fim, moso biquíni brasileiro, a peça era já de uso ge- apareceu o fio-dental, que dispensará descrição, neralizado nas zonas menos conservadoras do pois, com certeza, todos sabemos do que se traglobo, sobretudo na Europa, onde inclusive já ta. se praticava o topless. Quanto à parte superior, a sua primeira deriMas o que distingue, então, o biquíni brasileiro vação terá provavelmente surgido em atenção do biquíni “regular”? às mulheres com um peito mais amplo: assemelha-se em forma ao original, mas usa mais A primeira característica que sobressai é que tecido para que proporcione melhor suporte o biquíni brasileiro é, sem sombra de dúvida, e denomina-se de halter-top. A última versão, mais revelador, denotando uma preocupação o bandeau, trata-se de uma peça em forma de em minimizar ao máximo as zonas do corpo tubo, que envolve o peito, e que aperta nas cosque ficam por bronzear pelo quente sol do Bra- tas, podendo ser cai-cai ou ter as tradicionais sil. alças a apertar atrás do pescoço.

Com o passar dos anos, estas duas peças ganharam novas versões, conferindo ao biquíni brasileiro uma versatilidade que não pode deixar de

Texto António Granja

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Moda

Curiosidades - As modelos daquela altura recusaram-se a vestir o primeiro biquíni criado por Louis Réard, razão pela qual a peça teve que ser fotografada no corpo de uma bailaria de cabaret, Micheline Bernardini. - O biquíni foi proibido em vários países, inclusive em Portugal, onde, na altura, se vivia o Regime Salazarista. - O nome Biquíni tem origem no pequeno atol de Bikini, no Pacífico, onde os norte-americanos realizaram uma série de testes atómicos. Réard achava que o biquíni teria o mesmo efeito que uma bomba.

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Parceiro

Atlas violeta associação cultural É uma Associação Cultural sem fins lucrativos que visa promover a língua portuguesa junto dos países de língua portuguesa, das comunidades portuguesas, e de todos os interessados a nível global na nossa língua.

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Teatro

Chico Buarque é um autor clássico. E como todos os clássicos tem uma capacidade de reinvenção notável: “ Gota d’água” é a adaptação da peça da tragédia grega Medeia de Eurípedes à realidade das favelas do Rio de Janeiro em 1970, e é considerado o ponto mais alto da sua incursão na dramaturgia e na linguagem teatral. “ Gota d’água” foi um grito de liberdade no cenário cultural brasileiro. Ideia original que derivou de um trabalho de Odualdo Viana Filho, adaptado à Televisão, ganhou novas tonalidades no teatro através da escrita cuidada de Chico e da direcção do encenador Paulo Pontes. Em plena vigência da Ditadura militar, a peça foi censurada. No entanto, apesar dos cortes, o essencial da sua mensagem persistiu : Medeia é aqui uma sofrida Joana, mulher do povo, que abandona o seu marido mais velho e se junta à personagem de Jasão, representada por um sambista, autor da música com o título “ Gota d´água” que se torna num grande êxito na rádio. Contra eles, está a personagem de Creonte – aqui interpretada pelo Dono do conjunto habitacional onde moram os nossos heróis- que conspira para que a sua filha alma, noiva de Jasão, volte para ele. O conflito de classes sociais completa-se com figuras como mestre Egeu – na peça original o rei Egeu de Atenas – e o coro da tragédia grega é aqui substituído pelas vozes dos vizinhos e vizinhas de Joana, e pela sua amiga Corina. Na tragédia brasileira, o mestre Egeu e Corina entram na cena final na festa de Creonte, carregando os corpos de Joana e dos seus filhos. No final da peça, todos os actores sobem ao palco e cantam a música de “Gota d’água”, enquanto ao fundo é projectada uma manchete que notícia uma tragédia, mostrando o escasso valor que a morte e a tragédia tem na sociedade. Símbolo de resistência e de denúncia da Ditadura, “ Gota d’água” recebeu o prémio Molière para melhor texto teatral, mas Chico recusou-se a recebê-lo em protesto contra as prisões do regime contra outros criadores. Um sinal de coerência artística e cívica que não é assim tão vulgar encontrar noutros autores ou escritores, agraciados por prémios dados pelos regimes ditatoriais. Texto António Santos

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“Gota d’água” de Chico Buarque 23


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AM/FM arts & crafts atelier É um Atelier de artes que junta a produção artística com o design de produto, afirmando-se em múltiplas áreas criativas.

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O poeta da

palavra

A palavra é uma jóia que Chico Buarque esculpe com carinho e devoção. Ao longo das últimas décadas, ouvirmos Chico tornou-se um exercício literário, um ensaio, um tratado de amor sobre a música e a poesia.

bram pela sua musicalidade, embora necessitem de parcerias criativas com outros autores . Há outros que suprem uma voz menos capaz com letras excepcionais.

Ao ouvirmos músicas como “ Construção”, “ Que será, que será”, “ A Banda” ou “ Tatuagem”, percebemos que nenhuma canção é igual às outras. Todas são um universo próprio, E depois existem milagres uma bandeira, um epicentro como Chico. Precoce como de emoções que sorve tudo o Entrar na sua discografia é todos os fenómenos: desde o que está à sua volta, como se a mergulhar num tesouro infi- Festival de música popular música fosse uma entidade dinito. São mais de 350 canções brasileira, que venceu com o vina que cria e recria o mundo da sua autoria ou em parceria êxito “ A banda a passar” até a cada letra, a cada palavra, a com outros músicos, e êxitos aos dias de hoje, com um ní- cada nota de uma poeta. que ecoam nas vozes de ge- vel qualitativo difícil de iguarações no Brasil, em Portugal, lar. E a voz, claro, aquele tom Chico é, definitivamente, o no mundo. mágico, doce e aveludado que poeta da palavra. Apaixonaenfeitiça as plateias e gera a -nos porque nos faz amar mais Por onde começar? O que des- admiração das mulheres e a e melhor os outros, a música, tacar? inveja dos homens. a vida. O tributo que lhe devemos é É tão difícil escolher entre “ Voz herdeira dos mitos da ouvi-lo e sentirmos a sua granMulheres de Atenas” ou “ Te- música popular brasileira – de deza a entrar dentro de nós, resinha”, “ Ela faz cinema” ou Tom Jobim, Vinícius de Mora- em músicas que jamais esque“ Construção”. Canções tão des ou João Gilberto – mestres ceremos, porque já alcançaram diferentes e, ao mesmo tempo, na arte da entoação perfeita. o estatuto de obras-primas. tão iguais na sua busca inces- Chico recebeu essa herança e sante da genialidade, do amor, transformou-a num estilo próda ternura. prio, intransmissível, que não Texto Paulo César admite cópia porque é demaHá cantores que nos deslum- siado original e único .

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Ilha dos Amores

Vida na noite, a no A solidão não tem cura Pra quem não bebe e só vive na amargura. O tempo apura o sujeito e o predicado. Eu rejeito o sujeito e o mau-olhado. Estou sujeito a crescer e a ser posto de lado. Ou já fui... e nada obtive. O futuro é relativo por não existir E por não ter nada que me cative. Mas ele vive. No amor e na minha mão. Entre o peito e as costas há um tesouro E não um coração. Há vícios... um cigarro. Há vícios... uma cerveja. Há vícios... sem atenção. Pôr dinheiro em cima do balcão Tornou-se pecado... Tornou-se tentação. Vida na noite, a noite é dura. A solidão não tem cura Pra quem não bebe e só vive na amargura. O tempo apura o sujeito e o predicado. Eu rejeito o sujeito e o mau-olhado. Estou sujeito a crescer e a ser posto de lado. Ou já fui... e nada obtive. O futuro é relativo por não existir E por não ter nada que me cative. Mas ele vive. No amor e na minha mão. Entre o peito e as costas há um tesouro E não um coração. Há vícios... um cigarro. Há vícios... uma cerveja. Há vícios... sem atenção. Pôr dinheiro em cima do balcão Tornou-se pecado... Tornou-se tentação. 26 26

Paulo Henriques


oite é dura.

Ilha dos Amores: Nesta edição da Ilha dos Amores, percorremos os caminhos das almas atormentadas. Das cicatrizes da alma que queimam mais que as do corpo, da palavra que cicatriza as feridas e, simultaneamente, as abre cruelmente. Deixemos que a ferida da escrita nos atinja. Só assim mudaremos o mundo. Gonçalves Guerra

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Capa

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Chico Buarque de Holanda

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“A felicidade Morava tão vizinha Que, de tolo Até pensei que fosse minha”

Texto Paulo César

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Cinco músicas da vida de Chico Buarque de Holanda

É um privilégio ouvir uma música de Chico Buarque. Mas é um exercício complexo escolher as melhores músicas deste mestre da música popular brasileira – fizemos esse esforço, mas a qualidade do que ficou fora de uma lista restrita é imensa. Antes de mais, por ordem de preferência, escolheríamos “ Construção”. Primeiro pela beleza do poema – um dos grandes poemas não só da canção como da Literatura brasileira. “ Construção” é um epitáfio sobre a vida de um homem e da sua resistência aos poderes estabelecidos, sobre os dilemas da sua existência, sendo um testamento vital que evoca esse milagre quotidiano, tantas vezes negligenciado, que é estar vivo. O que é mais extraordinário desta música, é o facto de ter sido tocada em 1971. Numa altura em que Chico Buarque voltava de Itália, exilado por causa da Ditadura militar – “ Construção” foi considerada pela revista Rolling Stone como a maior música brasileira de todos os tempos. Em segundo lugar, seleccionaríamos “ Eu te amo”. Extraordinária música de amor, criada em parceria com Tom Jobim, que evoca os sentimentos de confusão, dor e prazer que se interligam numa relação amorosa. “ O que será, que será” ocuparia o terceiro lugar. Canção sobre o destino, sobre aquilo em que nos transformamos ao longo do tempo. Composta para o filme “ Dona Flor e os seus dois maridos”, que adaptou o romance de Jorge Amado. Curiosamente o próprio Chico declarou ao Jornal do Brasil “acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar. No quarto lugar temos de colocar o Chico mais festivo. “ A banda a passar” é um clássico intemporal, apresentado no Festival da canção Record de 1966, que venceu ex-aequo com “ Disparada” de Geraldo Vandré, cantada por Jair Pereira, é uma crítica subtil à Ditadura militar e às suas bandas, enaltecendo a outra banda – a poesia, a arte, a liberdade – como sinónimo de resistência aos autoritarismos. No quinto lugar, pelo seu simbolismo de afinidade entre Brasil e Portugal, o nosso voto iria para “ Tanto Mar”. Música escrita por Chico, surgiu em 1975 para saudar a Revolução dos Cravos – ainda hoje nos emocionamos ao ouvir esta sincera saudação do grande artista brasileiro aos valores de Abril. Estas são apenas cinco das músicas da vida de Chico. E das nossas, mas haveria tanto, tanto para escolher ….

Texto Paulo César

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Brasileiros em Portugal Conferência de Fernando Gabeira em Portugal O escritor brasileiro, Fernando Gabeira, deu uma conferência em Lisboa, em Junho, na Faculdade de Letras. O autor abordou a chamada trilogia do retorno constituída pelas suas obras “ O que é isso, companheiro”, “ O crepúsculo do macho” e “ Entradas & bandeiras” sobre a sua experiência de exílio durante a repressão da Ditadura militar brasileira.

Fotógrafa Letícia Ramos vence prémio BES Photo A fotógrafa brasileira, Letícia Ramos, foi a vencedora do prestigiado concurso português prémio BES Photo no valor de 400.000 euros . O trabalho premiado intitula-se “ Nós teremos sempre Marte”, e é uma homenagem à ficção científica e aos descobridores de mundos distantes.

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Revista Sotaques com Ivan Lins

Arlequim Bernardini e Ivan Lins

O cantor brasileiro Ivan Lins participou num tributo a Tom Jobim, que decorreu em Junho, na Casa da Música do Porto. Ivan Lins tem uma longa ligação a Portugal, com parcerias com músicos portugueses como Paulo de Carvalho, e vindas frequentes ao nosso país. Nesta fotografia, os responsáveis da revista Sotaques Brasil/Portugal, Rui Marques e António Bernardini, posam ao lado de Ivan Lins no final do espectáculo.

Rui Marques e Ivan Lins

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A Paleta de Cores do Fado

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Se perguntarmos aleatoriamente, a quem se cruza connosco na rua, quais são as cores do fado, as respostas serão muito pouco variadas: todas indicarão o preto e algumas mencionarão o vermelho. A pergunta que me coloquei foi: donde surgiram estas referências cromáticas do fado? Que factor estará na génese desta associação? Como cor da morte, do pecado, da tristeza, da solidão e da melancolia, é natural e lógico que o preto se veja conectado com um género musical que chora todos esses temas e cujo nome significa precisamente “destino negro”. As tradicionais vestes negras que os fadistas envergam nas suas apresentações serão outra justificação para esta ligação. Todavia, nem sempre assim ocorreu. Quando o fado surgiu, no séc. XIX, entre pescadores e prostitutas, segundo consta, o preto não era comum no guarda-roupa de quem o cantava e mesmo o usual xaile não era negro, mas colorido (de uso popular em dias de festa) e assim se manteve até aos anos 30 do séc. XX. O quê (ou quem) levou, então, a que, a partir desta altura, se desse uma alteração tão significativa na imagem do fado e dos seus intérpretes? A resposta é simples: Amália Rodrigues. Começando a sua longa carreira no final dos anos 30, é com ela que aparece o xaile negro e toda a carga dramática que acompanha hoje este estilo. À semelhança do que Maria Callas fez no canto lírico, Amália subverteu as regras até aí aceites no fado e ousou inovar, imbuindo-o de novas nuances, novos temas, nova intensidade, e uma nova imagem. Tomemos em conta o seguinte excerto dum artigo jornalístico publicado no Newsweek, a 10 de Fevereiro de 1969, de nome “Queen of Sorrows” (Rainha das Tristezas): «Na semi-obscuridade do palco, apenas a sua pálida beleza luminosa, o seu rosto de maças salientes e boca generosamente ampla aparecem à luz do projector. Quanto ao resto, um vestido de noite negro, de pregas flutuantes, com mangas, que só não lhe esconde as mãos. Não usa nem um anel, nem uma pulseira, nem uns brincos, apenas um enorme alfinete de diamantes, colocado na cintura, que cobre com a mão, quando canta. É a tragédia clássica esculpida na Terra. Antígona depois de Tebas, Cassandra depois de Tróia. (…)» Além de corroborar o que até aqui foi dito sobre o negro, há uma passagem neste texto que me leva, ainda, a conjecturar a razão pela qual algumas pessoas elegem o vermelho como segunda cor do fado: «boca generosamente ampla». Claro que devemos ter presentes os aspectos semânticos envolvidos, como o facto de o vermelho ser a cor do amor e do erotismo, ambos patentes no reportório fadista. Mas não será também verdade (e até mais provável) que a “boca generosamente ampla” de Amália, normalmente pintada de encarnado, ficou tão vincada no imaginário popular que tenha contribuído em grande conta no aparecimento do vermelho no universo fadista? Ou será que a saia da figura feminina (supostamente a lendária Severa), do quadro “O Fado” de José Malhoa, ressoa nas nossas mentes como o elemento que mais se destaca na composição? Perguntas a serem feitas, talvez, aos historiadores do fado. Inegável, porém, é o papel de Amália Rodrigues na imagem actual da canção nacional, em muitas das suas referências e, quem sabe, na sua paleta de cores. Texto António Granja

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