Tal Design Magazine

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volume # 01

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novembro

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Ficha Técnica

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Sumário

Portugal no seu melhor - Faca Acutilante

4

Histórias da América

6

Ana Tamen

7

Noites de Lua Cheia - LXPRO

10

Perfil Roberto Barbosa - Homenagem

12

Perfil Rita Azevedo Gomes

14

Portfólio Vida de “Josely Maria”

16

Como Num Filme - Carlos Oliveira Costa

22

Moda Galateia

25

Entrevista Inês Medeiros - No Outro Lado Do Espelho

29

IADE em Festa

31

Cinema Mar Adentro de Alejandro Almenábar

32

DVD Novidades de Maio

34

Multimédia

36

Wheeler

38

A Hora do Lobo - Luís Represas

46

Discos Kepa Junkera

47

Livros Editorial - Made in Spain

48

Oração aos Jovens - Edson de Atayde

51

O Mundo dos Aromas com Farfallina Maria e Marilyn Mary

59

Arquitectura - Um Laboratório Para As Flores

63

Carros Daewoo Tacuma

65

Folhetim - Agustina Bessa-Luís

70

28/7 A Turba - Paula Moura Pinheiro

74

No Dia Em Que Fugimos De Casa Tu Não Estavas - Fernando Alvim

78

Pintura - Catarina Castel-Branco

82

TV Catástrofe

83

Jogos

84

A Mãe de Orlando Costa

88

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Beckett

Doutores em Festa

Pintura no CCB 3

Pode parecer estranho, mas “Os Dias Felizes”, a peça mais famosa de Samuel Beckett, só agora foi traduzida e publicada em português. E foi-o pela Cotovia, a única que colmata estas lacunas da edição nacional.

No dia 19 de Maio, Belém será o palco da festa de final de ano com a já habitual Benção das fitas celebrada pelo padre Feitor Pinto, Francisco Valente e com a colaboração dos representantes de cada Universidade de Lisboa.

Catarina Castel-Branco tem quase duas décadas de carreira e 22 exposições individuais no currículo que cobre o desenho, a gravura e a pintura, técnicas que, na sua obra, muitas vezes andam de mãos dadas. A inauguração será no dia 19 de Maio às 19 horas e na sua abertura um filme multimédia trará novidades tecnológicas na fusão do digital e do analógico.


No Meco – junto à praia, entre as dunas e os canaviais – nasce um novo bar. O nome diz tudo: Amo-te, Meco. A partir de sábado está aberto ao público, mas a inauguração oficial será apenas no dia 23 de Maio.

A Rádio Mix lançou o seu segundo CD, com os melhores temas deste Verão. A destacar “So Get Up”, em nova versão – o primeiro grande êxito da “dance music” nacional, pelos Underground Sound of Lisbon.

O “Bar da TV” está a entrar na sua recta final a horascada vez mais tardias. Ainda bem. Finalmente. E está mais curto. Não são anunciadas novas edições. Será que podemos ter esperança?

Meco

Mixados

Adeus, ó bar 4


Oração aos jovens

O R A Ç Ã O

A O S

j o v e n s


Há uma música muito antiga no Brasil de um compositor chamado Lupício Rodrigues. O nome da música é Oração aos Moços e começa mais ou menos assim:

“ESSES MOÇOS, POBRES MOÇOS. ELES NÃO SABEM SOFRER.” Depois a música continua e fala de maneira alegre e inconsequente da juventude que não vê que a vida é feita de contínuos sofrimentos.

BAIXO ASTRAL. Talvez. Mas há qualquer coisa de verdadeiro nessa canção.

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Sempre que vejo um jovem estagiário de publicidade fico com uma certa pena da sua alegre ingenuidade. «Ele não sabe o que é ser um publicitário« penso, sem muita vontade de lhe explicar. A verdade é que quase sempre que quis contar a um iniciante a vida que ele teria pela frente, terminei a conversa com um novo inimigo. A impressão com que eles ficam é que identifiquei neles um possível novo génio e que, por medo da futura concorrência, decidi desestimulá-lo.

Outro motivo desta descrença é a quantidade de publicitários que conseguiram subir na vida, não por competência, mas por absoluta falta de carácter, ética e, desculpem a palavra, »tomates«.

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Há toda uma legião de graxistas no mundo da publicidade, como aliás em qualquer área profissional. Talvez a única diferença é que, como a publicidade trabalha muito o ego das pessoas envolvidas, é muito difícil encontrar um publicitário que não diga que é o máximo e que venceu pelos seus próprios meios. O que em geral eles não dizem é que meios são esses. Não sei se fui eu quem ficou velho e barrigudo, cheio de valores e reminiscências de um tempo que não volta, mas não consigo encontrar muito jovens com o sentimento pragmático de que a vida não é feita à medida dos seus interesses. Em geral, o estudante de publicidade já entra numa agência disposto a, em seis meses, tornar-se sénior. Ou seja, ele pouco se importa se já aprendeu o suficiente, se já despertou todo o seu potencial, se já tem maturidade para enfrentar um cargo destinado aos profissionais de 1º nível. Ele só quer o cargo e de preferência o dinheiro que este cargo proporciona. Na minha carreira encontrei alguns velhos profissionais que foram jovens como estes. Eles tiveram uma ascensão rápida, quase sempre patrocinada por chefes incompetentes que preferem ficar cercados por gente inexperiente, sem se preocuparem em lhes dar formação, do que profissionais que podem fazer-lhes sombra. Depois desta ascensão, às vezes vem a queda. Mas da maioria das vezes vem apenas a estagnação. Ou seja, o jovem profissional agarra-se como pode ao pouco que conseguiu, sempre com a esperança de encontrar a simpatia de alguém para conseguir um pouco mais, e passados alguns anos está exactamente no mesmo lugar. Só que não é mais jovem. Já ninguém acredita no seu valor e no seu potencial. Tiveram a sua vida profissional marcada pelo comedimento. Não buscaram mais. Não quiseram mais. Não criaram ondas. Não cometeram erros. E como não cometeram erros, não aprenderam, não cresceram. Estes publicitários são aqueles que ficam à janela a ver passar a banda dos poucos profissionais que decidiram virar a mesa quando era necessário, e por isso obtiveram os louros da vitória ou a certeza de que a derrota é apenas um obstáculo a ser ultrapassado. A publicidade é uma actividade que vive muito dos jovens. É preciso permanentemente sangue novo para que o trabalho não caia na »mesmice«. Por isso, sempre trabalhei muito com jovens,. Nunca lhes prometi vida fácil. Muitas vezes cheguei a dizer claramente que, se dependesse de mim, eles provavelmente levariam anos a ser promovidos. Eu gosto de criar tigres, não gosto de criar gatos. O problema é que o nosso mercado incentiva o aparecimento de bichinhos de estimação e não de leopardos. Por isso dou aqui um conselho aos jovens. Decidam que tipo de carreira profissional preferem ser. Ou você trabalha para ser competente ou será eternamente um recalcado que vive a dizer mal de quem obtém destaque e sucesso. Em publicidade, para se ter um sucesso real e não apenas ilusório do »é-necessário-ser-político-senão-perdemos-o-nosso-empregozinho«.


Ou como diria o meu Tio Olavo: »Às vezes algumas estupidezes podem ser sensatas, desde que feitas com entusiasmo.«

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Gosto de coisas tristes mas contentes. NĂŁo disse isto, desculpa, o que quero dizer ĂŠ que gosto de coisas felizes mas tristes.

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Ora, “a mesma coisa” dirás! Talvez, mas o que quero revelar é que sinto que sempre gostei de chorar quando estou alegre.

A tristeza mais bela de todas

é a felicidade com lágrimas nos olhos.


NO DIA EM QUE FUGIMOS DE CASA TU NÃO ESTAVAS

FER NAN DO AL V IM

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Agora sim, exactamente isto. O contrário aqui não é verdade. As coisas tristes são realmente tristes, não havendo para mim qualquer beleza nelas. Ontem chorei no concerto dos Goldfrapp e pensei em ti. Não me perguntes porquê, porque não sei. Nem tudo tem que ter uma resposta. Chorei, admito, como um rapazinho que não aguenta a emoção de ver a mãe chegar de uma viagem muito longa. Há muito tempo, durante a minha infância, o meu pai fazia-me algo muito parecido quando, religiosamente, chegava a casa por volta das seis e meia da tarde. Lembro-me bem, como se fosse hoje, que a minha mãe, conhecedora como ninguém da silhueta dele me dizia “vem ali em cima o teu pai” e eu, não duvidando nunca desta sua sensibilidade, corria de braços abertos a rua inteira para encontrar o regaço do meu pai, que me dava dois beijinhos e me trazia de volta, como recompensa, às cavalitas. Tinha seis anos, talvez menos, talvez mais, não sei, mas o que guardo daí era o meu pai parado no meio da rua, a rir-se, de braços abertos como se fosse um Deus, orgulhoso e atento aos carros que passavam, à minha frente para me atirar ao ar como só um pai sabe fazer. E depois daí, do alto dos seus ombros, sentia-me maior do que tudo à minha volta e acenava à minha

mãe que, com um lenço branco e humor refinado, gritava “ai, que rico filhinho, ai que bela prendinha!” Se um dia for pai, gostava de ter um filho que fizesse o mesmo por mim, que corresse para mim como eu corria para o meu, que me amasse tanto como ele amava (e ama, presumo) e me esperasse religiosamente como eu o fazia, todos os dias, aguardando o sábio sinal da minha mãe que me dizia sempre, todos os dias antes de partir, “vai pelo passeio, pelo carreirinho (assim é que era), tem cuidado com os carros”. Ainda hoje, com 26 anos, perdi a esperança de fazer com que a minha mãe e o meu pai deixassem de fazer os mesmos pedidos, as mesmas recomendações, os mesmos avisos. Invariavelmente, “não chegues tarde a casa”, “fecha as portas do carro”, “telefona quando chegares”. Não há maneira de os fazer desistir, da mesma forma que se torna complicado desistir de alguém, de fazer as mesmas perguntas, de clamar idênticos pedidos. Não há outra forma, a não ser habituarmo-nos a isto, mesmo que nos pareça igual a sempre, mas desde que nos saiba tão bem como das primeiras vezes. Sendo assim, não resisto a uma estranha analogia entre tudo isto de que te falo e a paixão que sinto por ti. A minha paixão por ti é eu ser orfão, viver num


reformatório e esperar pela visita de alguém que me tire dali. Calma, ainda não é isto. A minha paixão por ti é estar numa fila imensa com meninos mais bonitos que eu, bem melhor tratados, mas mesmo assim, fazendo tudo para que me escolhas e me leves para fora. Porque é a ti que eu quero e a mais ninguém. E mesmo quieto, estou aos saltos cá dentro quando te vejo, mesmo mudo, estou a gritar para que me leves daqui, faço força com os olhos para que fiquem maiores à tua passagem faço força com os olhos para que fiquem maiores à tua passagem. E mesmo que não me leves desta vez, fico à espera de outra, e mais outra, até ao dia em que não sobra ninguém, em que só estou eu ali, sozinho, sem mais meninos bonitos, sem mais nada, quase nu, com uma roupa velha e suja, à espera que me agarres. E se mesmo assim, não o fizeres, quero que saibas que dali não saio sem ti, mesmo que ali fique para sempre, toda a vida, na certeza de que não me vendi a outra pessoa, na esperança de que tu voltes. Porque é o teu regresso que me importa, porque é esse bocadinho em que te vejo que me faz ficar de lágrimas nos olhos mas contente cá por dentro. Porque é mesmo isto, é mesmo isto que eu penso, a mais bela das tristezas é a felicidade com lágrimas nos olhos.

photos: Sonia Szóstak

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photos: Alban Grosdidier

A TURBA 27/8

Dos génios, nem um. Nem o próprio tubarão! A inteligência é absolutamente estraçalhada, erradicada da acção. Moral desta estória americana para grande, enorme, avassalador consumo: mais vales seres ignorante, que qualificado;

os básicos safam-se sempre, enquanto que os sofisticados é garantido que se afundam 13

na sua própria complexidade.



Paula Moura Pinheiro

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Era um filme super-cretino sobre tubarões super-inteligentes. A mim, que me divertem os filmes de série B e C e Ómega, prendeu-me sobretudo para ver até aonde é que iam desta vez. Os exageros dos filmes de aventuras têm vindo a tornar-se de tal forma hiperbólicos que são, para mim, imperdíveis. Sobretudo se for domingo e estiver a chover. O caso era que uma equipa de super-cientistas, numa super-plataforma aquática (superlativos, sempre), tinha desenvolvido a monstruosidade genética nos tubarões: fê-los super-inteligentes. O objectivo dos homens, que agora me escapa, era bondoso, mas o caldo entornou-se e os »muchachos« ficaram todos à mercê dos tubarões-génio. A verdade é que agora estavam debaixo de água vários génios, o dito tubarão e os seus »pais« humanos, os tais super-cientistas, e ainda um mergulhador pouco mais que acéfalo e um cozinheiro dado a piadolas indigentes. Poupo-vos.


A mortandade desenrolou-se ao longo de hora e meia, com criatividade e ritmo. A coisa funcionou. Dois ou três sustos assinaláveis, adrenalina q.b., e gritaria na sala em intensidade bastante para ficarmos todos convencidos da imensa diversão do programita. Eis senão quando me apercebo do critério. Do critério das baixas e das sobrevivências: só se salvam os broncos. O cozinheiro das graçolas e o mergulhador-calhau. Dos génios, nem um. Nem o próprio tubarão! A inteligência é absolutamente estraçalhada, erradicada da acção. Moral desta estória americana para grande, enorme, avassalador consumo: mais vales seres ignorante, que qualificado; os básicos safam-se sempre, enquanto que os sofisticados é garantido que se afundam na sua própria complexidade. Tudo isto, claro está, para gáudio da turba que vai consumir o filme e que é esmagadoramente mais parecida com o cozinheiro e com o mergulhador do que com qualquer cientista genético. É a indústria cinematográfica a chegar-se ao perfil das massas que a consomem. A passar-lhes a mão pelo pêlo. A dizer-lhes, deixem-se estar que vocês é que estão bem! Os emproados dos doutores não servem para nada, têm a mania, merecem é morrer. Ou, como declarou Teresa Guilherme, »Quem tem ética passa fome!« Perigoso, muito mais perigoso do que um super-cardume de tubarões super-inteligentes! Irritada por ter deixado os miúdos papar aquilo, ocorreu-me, como já dizia Simone Weill, que »amoral é cada vez menos uma questão de vontade e cada vez mais de atenção«. E vieram-me à memória outras coisa. Como nos EUA não há praticamente estátuas a músicos, filósofos, cientistas, poetas ou escritores e como toda a monumentalidade é investida em generais e políticos e soldados mortos em combate. É o primado da acção a silenciar o princípio da reflexão. E vieram-me à memória outras coisa. Como nos EUA não há praticamente estátuas a músicos, filósofos, cientistas, poetas ou escritores e como toda a monumentalidade é investida em generais e políticos e soldados mortos em combate. É o primado da acção a silenciar o princípio da reflexão. E lembrei-me ainda de como nos EUA ninguém conhece os seus políticos e decisores públicos pelos respectivos títulos académicos. Ou alguém imagina que Mrs, Albright não seja altamente qualificada? E contudo, não pode assumi-lo publicamente porque isso seria impopular. O povo americano desconfia de académicos, de intelectuais. Nenhum político se atreve a apresentar-se como algo mais que »senhor« ou »senhora«. O pensamento é mal visto e malquisto. Poder-se-á então dizer: ah!, mas isso são os americanos, aquela nação edificada com os valores dos trabalhadores humilhados e ofendidos do mundo inteiro. Voluntariosos, audazes, persistentes, mas epidermicamente hostis a tudo o que não se conquista com a força do suor. Mas não. Os valores da América há muito que são já os nossos valores também. Pois não entrego eu as tardes de domingo chuvosas (e sabe Deus como tem chovido!) a consumir-lhes as ficções? Se os EUA são a mais poderosa nação do mundo, não é tanto porque são ricos ou porque têm o melhor exército do mundo, mas porque fizeram com que os homens sonhassem quase todos com o »Sonho Americano« - do Paquistão à China, da Ucrânia à Dinamarca, de França a Portugal. E quem nos põe a sonhar assim, a desejar assim, a pensar assim são filmes que se consomem inadvertidamente, assim como este do tubarão, em família, numa tarde de chuva. Filmes que encutem há já muitas décadas uma ideia de mundo que é altamente favorável ao facilitismo e à inconsistência adequadas ao consolo da turba. Exigência, rigor, excelência são valores interditados nos produtos para grande consumo. Porque implicam dificuldade e esforço, que são coisas em que a turba não está de todo interessada. As maiorias, o chamado »povo«, são, e sempre foram, iletradas e básicas e dadas a não pensar, mas é a primeira vez na história da humanidade em que, com a democracia, são factor central de acesso ao exercício do poder. Ou seja, só chega ao poder quem convence »o povo« e para convencer »o povo« há que falar como ele, dizer o que ele quer ouvir. E o que ele quer é que os cientistas morram todos longe. Porque do que ele gosta é de Circo. E de muita autocomplacência. E é aqui, como diz Pacheco Pereira, que a democracia descamba na demagogia. A cedência, em nome dos mecanismos democráticos, ao actual culto da boçalidade e da ignorância é uma bomba-relógio que nos vai explodir a todos na cara.

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InĂŞs Medeiros

volta a passar para o outro lado da câmara.

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“O Fato Completo ou à Procura de Alberto” é o seu novo trabalho como realizadora e foi seleccionado para o Festival de Veneza, agora que a actriz se mudou de vez para Paris.

Veio de visita ao nosso país, agora que já só faz visitas a Portugal. Inês de Medeiros está a viver definitivamente em Paris. O pretexto da sua passagem por Lisboa foi a apresentação do seu novo filme, “O Fato Completo ou à Procura de Alberto”, seleccionado para o Festival de Veneza para a secção “Novos Territórios”. Fomos encontrá-la num apartamento no Bairro Alto, com uma vista lindíssima sobre a capital, a empacotar coisas. Espera o seu segundo filho.

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Este é o segundo filme que realizou… Não é bem. Fiz uma curta-metragem de ficção, de facto, mas fiz também um documentário para a Paris Première sobre Viena de Áustria. Uma encomenda. E agora também acabei um outro documentário para o Arte.

Este filme é o quê? Um documentário, um documentário ficcionado, uma mistura entre ficção e realidade? É mais um documentário. O projecto era uma coisa mais ficcionada, a ideia era fazer ficção de um modo documental. Tudo começou com um argumento que escrevi, onde haveria alguns candidatos ao papel e a ficção iria ganhando forma através dos ensaios onde vários rapazes representariam o mesmo. Só que a parte documental acabou por se sobrepor a tudo o resto.

E o que é que aconteceu? Surgiu a ideia de pedir aos rapazes que cada um contasse a sua história. Só que tive tantas surpresas em relação ao que eles trouxeram, coisas muito fortes, muito emocionantes, e o equilíbrio alterou-se. Agora é fundamentalmente um documentário. Há uma encenação na decisão de me filmar a mim, mas isso acaba por ficar para segundo plano.

O que era a ficção? Era o encontro entre uma mulher mais velha, branca, nascida em África, e este rapaz de origem africana, negro. Encontram-se num sonho de África. Ele que a imagina, que nunca lá foi, e ela na nostalgia de uma infância feliz, perdida. Embora isso não o preocupe excessivamente, na realidade sente-se português.

Como é chegou à ideia de filmar os jovens candidatos? O ponto comum entre mim e aqueles rapazes é que fazemos parte de duas gerações em que a presença portuguesa em África é completamente silenciada. Hoje começa-se a falar da guerra, mas do processo colonial não se fala de todo. Há um dos miúdos que aparece no filme que diz que a sua vida não tem história, ele não tem história porque nunca lhe foi contada.


Como é que decidiu pôr-se a realizar? Comecei a gostar de cinema, ia ao cinema como toda a gente, mas grandes revelações de cinema só as tive quando comecei a trabalhar como actriz para realizadores que me fizeram descobrir coisas que hoje são preciosas. Depois, trabalhei como assistente de realização com a Teresa Vilaverde e o João César Monteiro. O que sempre me fascinou foi a máquina. A sensação de que tudo é possível.

Como é que viu estes miúdos sem experiência e com o desejo ardente de serem actores? É natural. São fenómenos semelhantes aos de desejar ser jogador de futebol, ou cantor popular. No fundo é o desejo de ser conhecido.

Mas há uma diferença entre os miúdos que querem ser actores e os querem ser jogadores de futebol? Ser actor tem agora um lado acessível que não tinha há uns anos. Foi por um lado um fenómeno mediático, mas também o retorno do mito da pobrezinha que foi descoberta e que pode vir a ser uma princesa. É um mito um tanto hollywoodiano. Mas para se ser jogador de futebol é preciso ser-se bom, para se ser modelo também é preciso ser bonito, ter um metro e oitenta e comer pouco. No meio de tudo isto, ser actor acaba por ser mais fácil, pelo menos é a ideia que passa. A vontade de ser actor é a vontade de ser alguém, de ser conhecido, ou como os miúdos deste filme que dizem muito espontaneamente que ser actor é ganhar montes de dinheiro.

Como é que se dá com os dois lados da barricada? Ser realizadora e actriz? Desde que comecei a realizar, voltei a reconciliar-me com o lado de ser actriz. Não tinha uma relação muito pacífica com o ser actriz. Por várias razões, umas mais superficiais, outras mais profundas. Um actor está sempre à mercê do amor do outro. É de alguma forma uma profissão onde se está sempre a dizer: “Gostem de mim”»

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Não estava reconciliada? Não tinha uma relação muito pacífica com o ser actriz. Por várias razões, umas mais superficiais, outras mais profundas. Um actor está sempre à mercê do amor do outro. É de alguma forma uma profissão onde se está sempre a dizer: “Gostem de mim.” O que acaba por ser incompatível... “Gostem de mim até nos defeitos que eu te-nho”. Está-se numa sedução permanente, porque um actor sabe que ninguém aceita ir ver, durante duas horas, um filme ou uma peça com uma criatura de quem não se gosta. Este jogo constante é uma necessidade da profissão, mas torna-se cansativo, e por vezes doloroso. Depois há o lado profissional, um actor tem que fazer tudo, a mim não me apetece fazer tudo.

E como é que se dá a reconciliação? Ao realizar passei a perceber me-lhor essa parte do estar à mercê. Acabo por ficar mais disponível, mais descontraída como actriz.

Em termos académicos passou por dois cursos: Filosofia e Literatura Portuguesa. Filosofia foi rapidíssimo, nunca tive jeito para aquilo e confirmei-o. Em Paris, também estive no curso de Dramaturgia. Gosto muito de voltar a estudar de vez em quando.

E vai à procura de quê? Se pudesse, era como ir à ginástica, exercitar um pouco o espírito e o cérebro. Há um lado confortável, uma pessoa chegar a uma aula sentar-se e ouvir coisas novas. É que ser autodidacta dá imenso trabalho. (risos)

E isso não será um tanto diletante? 19

Se calhar é. Mas a posição de aluno é uma posição maravilhosa. Na maior parte das vezes, a minha maior angústia é não saber sobre o que é que vou escrever e o professor ajuda-me. De resto, não tenho nenhuma ambição de fazer uma carreira académica. Quero é fazer filmes.


O que é que a levou a mudar-se para Paris? Em primeiro lugar, sempre fiz a escola francesa, sempre tive uma grande influência da cultura francesa. A escolha era evidente. Para mim e para a minha irmã, Paris era um destino natural. Quando acabei o liceu fui para França, na altura em que filmei com o Rivette. Depois vim para cá quando se deu o “boom” no cinema português e comecei a trabalhar cá. A certa altura fartei-me e decidi que era altura de voltar para França. Achei que me fazia bem ir lá passar um ano. Depois instalei-me em Paris, casei-me, tenho lá o meu filho. Mas estar em Paris não implica estar muito longe, não se perde o contacto.

Como é que sente a comparação com a sua irmã? Viver em Paris, ser actriz e tornar-se realizadora. Como é que convive com isso? Muito bem. Não tenho qualquer problema com isso. Nunca nos provocou tensões ou nos impediu de dormir. Enquanto actriz era mais incomodativo do que agora enquanto realizadora. Nós sempre fizemos opções muito diferentes. Na realização temos os nossos projectos, somos muito mais cúmplices.

Há uns tempos teve um programa na televisão que se chamava “O filme da minha vida” em que os convidados tinham que escolher um filme. E agora qual é o filme da sua vida? Há tantos. “A Palavra”, do Ordett, é para mim uma revelação. “Rocco e os Seus Irmãos” é outro. De Bergman “A Mónica e o Desejo”. É realmente difícil seleccionar um.

É para que veja. O que está a preparar agora? Gostaria de continuar a trabalhar este filme. Entretanto, estou a acabar o argumento desta longa-metragem.

E vai continuar como actriz ou como realizadora? Espero continuar a fazer as duas coisas.

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