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Introdução

INTRODUÇÃO

A vigorosa posição do valor da liberdade e da autonomia do sujeito 13 moral enquanto legislador de si próprio, princípio racional da normatividade e da causalidade prática, constitui a matriz da moral kantiana. Mas, se a autonomia engendra a subjectividade prática, opondo-se à tirania passional ou patológica da sensibilidade heterónoma, a autonomia evoca também uma espécie de auto-afecção do incondicionado intrínseca à lei, que a voz simbólica da consciência e o seu horizonte de perfectibilidade infinita, remete para um acontecimento paradoxal de produção e doação endógena da lei. Com efeito, para Kant, na experiência do «Faktum» da lei e no sentimento do respeito que suscita, há uma conexão entre passividade e actividade, afecção e geração, acolhimento do dom da lei e acto de auto-legislação moral. A existência da lei moral é uma evidência universal que surge como um «facto da razão» («Faktum der Vernunft») que desvenda uma espontaneidade absoluta, não derivável e irredutível. A arqueologia da lei desemboca na claridade inexorável da consciência de si que acompanha a consciência da lei moral e que impede todo o progresso para além de si própria ou a possibilidade de um antecedente mais originário. Se, em mim, a consciência da lei é um «Faktum»1 , é porque se põe 1 KANT, I., KpV, AK V, 31-32, 47. Preview

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Manuel João Matos

e impõe a si própria. Assim, na linha das categorias do entendimento puro, a lei moral exprime uma actividade sintética a priori. Nas categorias teóricas tal como na lei moral, o entendimento engendra a priori a estrutura ou a forma de um todo articulado por uma necessidade interna: o sistema da natureza formalmente concebida (natura formaliter spectata) que, na ordem prática, deve ser qualificada de sistema da natureza supra-sensível. A lei moral universal revela que a razão é imediatamente prática, formadora e legisladora de um sistema submetido a uma necessidade interna: uma natureza supra-sensível. Contudo, a lei moral revela a 14 natureza da própria razão que aparece como tabula formaliter inscripta onde se pode ler uma lex naturae insita, uma lei comum a todos os seres racionais possíveis. Razão e lei, logos e nomos, espontaneidade e necessidade, são os pares conceptuais da filosofia crítica. A evidência da sua unidade dá-se graças à co-pertença a uma ipseidade que é a claridade qualitativa e activa que se manifesta como uma doação endógena da lei. Pelo «facto da razão», a razão humana submete-se a uma necessidade interna, mas a sua interioridade não se abre para que se perceba plenamente a dinâmica do seu trabalho gerador de necessidade e universalidade. A razão prática legisla constitutivamente: exercendo-se não poderá, pela sua natureza, não legislar. Na apercepção transcendental prática dá-se um «Eu quero» que, na sua pureza, coincide originariamente com o «Eu devo» da razão sob o auto-constrangimento da forma universal, necessária e incondicionada da lei. Na Religião2 , a ideia da lei moral como respeito que lhe é inseparável, revela a existência na natureza humana de uma disposição à personalidade, disposição estritamente racional que, ao contrário da 2 KANT, I., Rel., AK VI, 26-28. Preview

O princípio da Autonomia na Ética de Kant

disposição à animalidade (amor de si físico), não pode ser negada sem aniquilar a própria possibilidade da natureza humana. A consciência da lei é originária e co-pertence necessariamente à possibilidade do ser racional capaz de acção. Ora, tal facto originário da razão testemunha a constituição da natureza humana que define a própria personalidade: a ideia de lei e a da humanidade são indissociáveis. A investigação sobre as condições de possibilidade da lei moral conduzida na Crítica da razão prática, apresenta a lei originariamente independente e legisladora, livre de qualquer móbil heterónomo. Ora, a posição originária da lei e da razão explicam-se reciprocamente, uma 15 não podendo ser pensada sem a outra, como se tratasse de uma tautologia de uma só e mesma natureza, porque a lei é naturalmente uma forma universal e a razão é naturalmente uma legislação necessária. A lei é constitutiva da natureza da razão que não a pode suspender, nem transgredir a sua legislação sem se contradizer a si própria. A razão reconhece-se como pessoa no dom da lei, dom que envolve um acto racional puro, portanto, autónomo e autárquico. Para Rogozinski, a autonomia está do lado do Nomos e «a doação da Lei pela razão é, na verdade, auto-doação e auto-revelação originária da Lei em si própria. Dom da Lei pela Lei que se oferece logo de início a nós»3. O sentido da revolução prática kantiana reside na ipseidade da Lei: «Nada senão a Lei, que não é lei de um Outro, nem aquela de Deus, ou mesmo do ser, que não é a Lei senão de si própria – Lex index sui –, a Lei da Lei»4 . Se a lei exprime a autonomia, a lei é de imediato a «coerção interior»5 da razão prática que no exercício do seu poder, sofre e produz a sua própria necessidade como auto-afecção da sua pura espon3 ROGOZINSKI, J., Le don de la Loi. Kant et l’énigme de l’éthique. Paris, PUF, 1999, p. 91. 4 ROGOZINSKI, J., Le don de la Loi. Kant et l’énigme de l’éthique, p. 123. 5 KANT, I., KpV, AK V, 32. Preview

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taneidade incoercível. Assim, o «Eu devo» contém «Eu posso dever» e «Eu quero dever», fórmula matricial do Bem, quer dizer, da boa vontade que implica, pelo menos para a vontade, que se identifica à razão prática: «Eu não posso senão querer o dever». O exercício da razão prática é originariamente a constituição normativa do Si da razão segundo a sua própria lei moral. Assim, a vontade reconduz-se a uma «determinação unicamente pela representação da lei»6 , a qual, em última análise, não pode ser senão absolutamente necessária, conexão integral do Si prático com a

Lei, que torna inválida a distinção entre acto livre e não livre no seio 16 da boa vontade, em favor da vontade qua razão no acto legislador. Se a liberdade parece vulnerável na asserção hipotética e problemática de uma causa noumenon, tal vacuidade teórica é ultrapassada pela função do postulado da razão prática e pela elevação desta Ideia, fundamento de inteligibilidade da realidade da lei prática, ao nível de res facti7 , graças à demonstração suficiente da sua efectividade causal pela lei, contrariamente às Ideias de imortalidade da alma e da existência de Deus que se confinam na esfera da possibilidade e são objectos de crença (res fidei). Se «Eu devo» cumprir a lei, então é necessário que «Eu possa querer o meu dever». A racionalidade do agir absorve a bondade do agir e, portanto, a «vontade absolutamente boa» é também uma razão produtora de representações universalmente válidas, uma legislação universal, um mundo estritamente inteligível cujas acções decorrem puramente do Si prático, sem o concurso da sensibilidade e da alteridade. A bondade seria a «forma do dever em geral», o dever livre, objectivamente e subjectivamente «verdadeiro», que comanda ao infi6 KANT, I., KpV, AK V, 55. 7 KANT, I., KU, AK V, 468-469. Preview

O princípio da Autonomia na Ética de Kant

nito todo e cada um dos seres racionais, para o máximo assimptótico que é a perfeição ou a santidade, acordo perfeito entre a razão e a vontade. No sistema prático de Kant, a forma do querer instaura uma representação auto-determinante, cuja objectividade reside no acordo da razão com a vontade. Kant propõe na interioridade da voz moral racional o incondicionado do bem absoluto. Mas o absoluto e o incondicionado que acompanham a lei moral repousam unicamente na razão, fundamento auto-suficiente do acto da legislação moral. A Ideia do ser moral supremo não se identifica com a Lei: a teologia emerge da ética e Deus justifica-se na Lei como o Soberano Bem. 17 Preview