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OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT

capítulo i OS FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT

19 As duas edições da Crítica da razão pura (1781/1787) deixam em aberto a questão da existência da liberdade transcendental e, portanto, a da razão prática. O Prefácio da Crítica da razão prática, no seu começo e por meio de uma questão sobre o título da obra, define a sua finalidade que é estabelecer que há uma razão pura prática: «O seu objecto é somente o de estabelecer que existe uma razão pura prática e é com este objectivo que critica todo o poder prático da razão»8 . O Prefácio da Crítica da razão prática está dividido em duas partes. A primeira parte (§1 a §6) afirma a realidade objectiva do conceito de liberdade do ponto de vista prático enquanto a razão teórica não tinha senão estabelecido a possibilidade. Tal mostra a superioridade da segunda Crítica em relação à primeira e esclarece «o enigma da crítica»: acordar ao uso prático das categorias o que tinha sido recusado no seu uso teórico. Mas se os dois usos da razão são distinguidos, é da mesma razão que se trata, considerada nas duas grandes tarefas indispensáveis: o conhecimento e o agir. Kant afirma a identidade da vontade, ou seja, da própria razão prática, com a lei moral, necessária e universal, presente na consciência comum de cada homem. 8 KANT, I., KpV, AK V, 3. Preview

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Manuel João Matos

Na segunda parte (§7 a §17), Kant prevê as objecções que surgem de uma compreensão falaciosa do seu sistema. Ele responde àquelas que já lhe foram apresentadas depois da publicação da Fundamentação da metafísica dos costumes e defende-se de ter querido inventar uma teoria nova, relembrando o seu desejo de ser compreendido pelos seus leitores: a seu respeito, estabelece a diferença entre os amigos da verdade que caminharão com ele na procura da verdade e aqueles que, seguros do seu sistema, desdenham da sua filosofia. O Prefácio da segunda Crítica termina pela evocação do empirismo na sua forma absoluta que, se fosse verdadeiro, arruinaria a empresa crítica. 20 O Prefácio à Crítica da razão prática começa por uma questão que Kant põe a si próprio, mas que supõe que lhe possa ser dirigida por um leitor sensível ao paralelismo entre a primeira e a segunda Crítica. Os leitores esperavam ver o termo «pura» no título da sua obra: Crítica da razão pura prática em vez de Crítica da razão prática. A resposta de Kant permite-lhe definir de imediato o seu desígnio: estabelecer a realidade da razão pura prática. Para tal, Kant fará uma Crítica da razão prática na sua totalidade, que lhe permite distinguir uma razão pura prática, ou seja, a priori, universal e necessária e uma razão prática simplesmente empírica. O que Kant põe como premissa é que «enquanto razão pura, ela é efectivamente prática, prova a sua realidade e aquela dos seus conceitos e nenhuma argúcia pode contestar a possibilidade de ser prática»9 . Há uma notável mudança da primeira para a segunda Crítica que, no §3, Kant vai explicitar de uma maneira que é o ensinamento principal do Prefácio. O conceito de liberdade, que é a pedra de toque de toda a filosofia crítica, é aqui promovido a um papel fundamental no interior do sistema kantiano: «O conceito de liberdade enquanto a 9 KANT, I., KpV, AK V, 3. Preview

O princípio da Autonomia na Ética de Kant

realidade é provada por uma lei apodítica da razão prática, forma o fecho da abóbada de todo o edifício do sistema da razão pura, compreendendo aí a da razão especulativa»10 . Kant utiliza uma imagem arquitectural afirmando a realidade (Realität) de um conceito que, até então, não era senão problemático. Kant insiste sobretudo no papel da ideia de liberdade que assegura a unidade do todo, isto é, da razão pura nos seus dois usos teórico e prático. A liberdade surge como o «fecho da abóbada» que permite às duas partes do edifício manterem-se em conjunto sob a égide da razão prática. A ideia de liberdade cria esta unidade e a sua realidade prova-se pela lei da razão prática cuja 21 necessidade é certa e indubitável. Todavia, a lei moral é a priori universal e necessária e imediatamente acessível à consciência comum bem como à minha existência, como afirma Kant na Anotação 7 do capítulo primeiro «Dos princípios da razão pura prática», pois repousa num «facto da razão» (ein Faktum der Vernunft)11. Assim, a lei moral mostra, de uma maneira incontestável, a realidade da liberdade, mas as outras ideias como a de Deus e da imortalidade da alma que, no plano teórico, tiveram um estatuto problemático, pelo seu laço com o conceito de liberdade adquirem com e por ele consistência e realidade possível. Kant precisa que se trata da sua possibilidade, mas no plano prático opera-se uma mudança de estatuto, de problemática a possível, bem como a mudança de estatuto da ideia transcendental da liberdade, de possível a real, que é revelada pela lei moral. O ensinamento do §4 da Crítica da razão prática é o de que temos o saber (wissen) da lei moral em nós e o da possibilidade da liberdade que é a condição da primeira. Ora, não há aqui um círculo que Kant evoca 10 KANT, I., KpV, AK V, 3. 11 KANT, I., KpV, AK V, 31. Preview