Setúbal Revista Nr. 17

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Revista Bimensal | N.º 17 - II Série - 3º Ano Junho / Julho 2019

Tarte de Morango com Mascarpone

GONÇALO ROSA EM ENTREVISTA

UM DESAFIO AOS ESTUDANTES E UMA PROVA DE SOLIDARIEDADE ‘Homeopatia no Coração da Medicina’



EDITORIAL

E porque o TODO É MAIOR que a SOMA DAS PARTES... `tÜ|t ]ÉûÉ YxÜÜÉ Diretora Editorial

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e volta, neste início de Verão, apresento-vos a nossa edição número 17, com novas aventuras, novas crónicas e novos saberes. Iremos partilhar convosco, o tema Solidariedade através da entrevista de destaque a Gonçalo Rosa que participou no Rally solidário e nos conta as suas aventuras e experiências, por terras de África. Na realidade “O todo é muito maior que a soma das partes”, este conceito da Escola da Gestalt traz-nos a convicção de que é preciso continuar em frente, dando mais valor aos grupos de trabalho solidário, contribuindo para o seu desenvolvimento. Somos muito mais se estivermos juntos, se nos ajudarmos mutuamente, se praticarmos a reciprocidade, se estivermos focados num objetivo a atingir, se estabelecermos relações saudáveis com os nossos pares, relações positivas onde a motivação seja

FICHA TÉCNICA

um denominador comum a todos os membros. Somos muito mais se formos um todo, nos mais variados contextos das nossas vidas, na família, no trabalho e na vida social. Esse será o todo que é superior à soma das partes, à soma do individual, ou seja, ser Solidário implica uma enorme complexidade da dinâmica relacional de um grupo, uma dinâmica próxima do sucesso, que só alguns conseguem atingir, e fazem-no porque se ultrapassam a cada momento através da plasticidade comportamental. Só alguns são capazes de despir a sua individualidade em prol de uma causa, ou de um objetivo. Só alguns conseguem deixar à porta dos projetos solidários os títulos, os nomes e os cargos. Ser verdadeiramente solidário é praticar a entrega total a uma causa, não é projetar-se a si mesmo, através dessa mesma causa. Não é fácil, mas alguns conseguem e são esses alguns, cujos tes-

temunhos estão registados neste número 17 da SER. “O todo é sempre superior à soma das partes” e talvez seja, por isso mesmo, que tanto na solidariedade, como no nosso grupo de trabalho da Setúbal Revista, somos “um todo” juntos muito maior, que a mera soma de partes individuais. Vamos abordar o tema solidariedade, vamos continuar um serviço de informação, e em especial neste número 17, vamos apresentar como destaque a história de um conjunto de jovens, estudantes universitários dinâmicos e empreendedores, que abraçam a aventura, abraçam a competição e se predispõem à ajuda das comunidades mais carenciadas de Marrocos. Deixo-vos também, neste número da SER, as restantes crónicas para vossa apreciação e análise, esperando que sejam do vosso agrado. Obrigada por ficarem por perto... Bem Hajam! n

Setúbal Revista – Registo na ERC: 126664; Depósito Legal Nr. 390882/15 Propriedade: João, Pedro & Armindo, Lda. [Sócios: Armindo Manuel Fernandes da Conceição (33%); Maria João Moreira da Conceição Ferro (33%); Pedro Manuel Moreira da Conceição (33%)]; Diretora Editorial: Maria João Ferro; Editores: Maria João Ferro. Colaboram nesta edição: Maria Pereira; Isabel Marques; Maria do Carmo Branco; Nuno Castro Luís; Jorge dos Santos Forreta; Paula Cunha e Silva; Eugenia Canito; Silvia Silva; José Gomes; Alexandra Aleixo; José Nobre; Carolina Bico; Alexandra Mendes; Cristina Pinho; Sara Loureiro. Contactos: redacao@setubalrevista.com - Avenida 5 de Outubro, 111, 2900-312 Setúbal; Publicidade: 967 122 006 - Estatuto Editorial em www.setubalrevista.com

Setúbal Revista respeita a opção dos seus colaboradores quanto ao Acordo Ortográfico Setúbal Revista

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SUMÁRIO ENTREVISTA

P.21 A 29

CULINÁRIA

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Tarte de Morango com Mascarpone Gonçalo Rosa: “Temos que aprender a dar valor ao que temos”

OPINIÃO

P.34 E 35

Gonçalo Rosa aceitou o desafio do UniRaid, uma aventura solidária pelo deserto de Marrocos destinada a estudantes de vários países. O Uniraid consiste num Rally Solidário, onde estudantes dos 18 aos 28 anos atravessam Marrocos, de norte a sul, numa prova de velocidade. Este Rally tem, ao mesmo tempo, como objetivo a ajuda humanitária às populações e comunidades mais carenciadas do deserto. Podemos falar de uma atividade 3 em 1, ou seja, é uma viagem-aventura, um Rally e uma competição de velocidade, e, uma atividade solidária.

VIAGENS

P. 10 A 12

A Europa dos nossos dias SAÚDE

A Alsácia é nossa! Foi em 1805, mais precisamente em agosto, segundo reza a lenda, que terá sido lavrada a última ata da Câmara de Olivença em português.

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P.8 E 9

“Homeopatia no Coração da Medicina”


CENAS DA VIDA FAMILIAR

JORGE SANTOS FORRETA Médico cenasdavidafamiliar.blogspot.pt

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inou-se a velha E, despedi-me dela, por escrito, para a Conservatória. Ab alio extectes alteri quod feceris, atirem-se a mim, não sou capaz. Era má como as cobras, por sorte alijou-se com o Shylock da Barca do Inferno, já se queixava o baselga à Morte, não era grande ou rica mas escondia-se com os

A velha Professora de Português e Latim

lagartos! Professora do Liceu, sentia-lhe o prazer do nove e da pedinchice, melhor que o quatro, chumbado e pronto. Foi minha professora, do Gil e do Pajó, da Isa e da Clara, do Paulo e da Paula, ele Curto, ela não, e de mais uns quantos, todos burros mas quatro a cursarem Medicina no primeiro ano de numerus

clausus, bem feito, ela que adorava o Latim, e em que entraram pouco mais de duzentos no país inteiro, agora é difícil e entram mil e seiscentos. Ela era o burro do Malhadinhas, salvo seja, o recoveiro barbiteso, rei do facalhão, que damejava a prima, mais o cavalo do Barão que mais depressa se doutorou que o João da Ega, o Carlos enamorado da menina dos rouxinóis, quanto mais prima mais se arrima, tanto nome e o outro, Carlos, também, a tratar literalmente da saúde à mana Maria Eduarda, a Ilha dos Amores Trocados, certa é a Morte e o Ricardo Reis sabia-lo bem, tamanho predestinacionismo e teve que vir o outro pôr-lhe um fim em trinta e seis, muytas e muyto estranhas cousas e eu não minto, depravação nos usos e costumes, escrevia o Cesário, está-se bem no campo, salva-se o Reverendo Bonifácio. Convocado o burro para a primeira audiência ia sempre alguém para a rua, a festanga na sala, a pandilha a rir de caga merdeira, entrecosto de carrapato enxertado em camarão, seiscentos hímens fingidos, fosse para o Inferno e ía meio mundo com a Brísida, verdade e a outra metade a esperar na fila, o borracho fanado e aborregado pelo Padre, a missa pr'ó Diabo, julgas-me Deus?, e alguém destinado a gamo, razão tem o Barão, com as pernas a cambar, Baco não é inimigo dos portugueses e as brasileiras são, mesmo, as melhores. Setubalense e elmanista, ansiava pelas aventuras do fodaz Ribeiro, preto na cara e enorme no mangalho que arromba as paredes quando mija, ah, grande Bocage!, bebeu, comeu, sem ter dinheiro, foi ele que escreveu, é arte, é poesia e era disto que a malta queria! Por acaso, fiz uma rima, creio-me a ganhar o jeito, a velha E., deve estar orgulhosa. n Setúbal Revista

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SOCIEDADE

EUGENIA CANITO Professora

O tempo e a história

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ARLOS RODRIGUES mais conhecido por MANUEL BOLA, foi um ator português. Teve um percurso rico na televisão, no teatro, no cinema, tendo recebido variadíssimos prémio, destacando-se o de Melhor Actor Ibérico, atribuído pelo lll Festival de Cinema Ibérico. Com o seu desaparecimento, em 2016, Setúbal ficou culturalmente mais pobre. Perdeu-se uma grande referência, um homem com uma enorme grandeza, do ponto de vista humano e cultural. Manuel Bola, era um homem do povo que falava com toda a gente, apurado sentido de humor, mordaz e satírico, sempre respeitador e respeitado pelos seus pares e pelos Setubalenses. Manuel Bola nasceu em Setúbal a 3 de setembro de 1944 na freguesia de S. Julião no número 10 da Travessa de Cristóvão, sendo filho de mãe costureira e de pai trabalhador rural. Participou nos primeiros trabalhos da “Ribalta” do Grupo de Teatro do Ateneu Setubalense e foi fundador e ator da “TEIA” – Teatro Amador de Setúbal. Trabalhou desde 1978 no Teatro Animação de Setúbal (TAS) como ator profissional, pertencendo ao elenco permanente desta companhia, até se reformar. Fez como ator, mais de sessenta peças de teatro, diversas personagens no cinema e na televisão, tendo também participado na criação de vários espetáculos e ações culturais. Participou em trabalhos televisivos, ganhando bastante popularidade com a série humorística “Malucos do Riso”. Realizou e produziu ainda várias ações pedagógicas para a divulgação do tea-

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tro, poesia e da literatura portuguesa junto das escolas do ensino Secundário, no distrito de Setúbal, nomeadamente com “Versos Falados” onde dava a conhecer aos alunos a poesia portuguesa durante uma aula da disciplina de português, iniciativa que foi considerada de interesse cultural pelos Ministérios da Cultura e Educação. Como ator, além de peças para teatro, escreveu também letras para canções infantis, para música ligeira e marchas populares e publicou ainda o livro de poemas “Sem Amor”. Deixo-vos com um poema do ator Fernando Guerreiro, também já desapare-

cido, dedicado a Manuel Bola: Com a boina posta ao lado A gritar o seu bom dia Pelas ruas do mercado A despejar alegria Com a bengala na mão E o seu falar agitado A termos a sensação De haver um Golpe de Estado Ao vermos o desempenho Deste seu ar de estarola, Julgamos pelo desenho Que é assim O Manuel Bola (……..) Manuel Bola onde estiver, com certeza que reina o riso e a boa disposição. n



SAÚDE

CRISTINA PINHO Médica Gastroenterologista / Homeopata cristinapinhomedica@gmail.com

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o dia 25 de maio falei sobre este tema no evento “NO CORAÇÃO DO TROINO” promovido pela Associação de Integração e Promoção do Desenvolvimento Sénior (AIPDS). “A medicina é uma das muitas áreas do conhecimento ligada à manutenção e restauração da saúde. Ela trabalha, num sentido amplo, com a prevenção e cura das doenças humanas e animais num contexto médico” (1). A palavra vem do latim mederi que significa “saber o melhor caminho”. O con-

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“Homeopatia no Coração da Medicina”

ceito assenta em várias ciências sendo a principal a biologia. Entendo a medicina como técnica e como arte. Aqueles que sentem vontade de estudar o ser humano (ou animal) adquirem um conjunto de conhecimentos e práticas que lhes permite colaborar na restauração da saúde de todos. Mas cada médico é uma personagem com determinada aparência e comportamento, próprios da sua história pessoal. E, desta maneira, a medicina torna-se uma arte. Cada profissional tem o seu estilo próprio e a sua forma peculiar de lidar com os pacientes e a doença.

Eu, na minha evolução enquanto médica, comecei por me dedicar ao aparelho digestivo para depois descobrir, através da PNEI (psiconeuroendócrinoimunologia), que mente e corpo estão íntima e permanentemente conectados. A PNEI revolucionou a medicina por que levou a mente para todo o corpo através de “cascatas” bioquímicas modeladas por proteínas chamadas neurotransmissores. TUDO INFLUENCIA TUDO. Não há afecção das partes sem haver afecção do todo. Não há doenças locais. A doença é uma afecção total do


SAÚDE corpo/mente. Mente/Corpo são duas faces da mesma moeda. Depois descobri outro modelo de medicina, a Homeopatia - cultura de saúde criada por Samuel Hahnemann (17551843). Baseia-se no cuidado integral do ser humano e pratica o atendimento centrado no paciente e não na doença. Há 200 anos, este médico alemão, concluiu: “No estado de saúde, a força vital de natureza espiritual, que dinamicamente anima o corpo material, reina com poder ilimitado e mantém todas as suas partes em admirável atividade harmónica, nas suas sensações e funções, de maneira que o espírito dotado de razão, que reside em nós, pode livremente dispor desse instrumento vivo e são para atender aos mais altos fins da nossa existência.” Para aqueles que encaram o corpo como um mero instrumento bioquímico, regido por neurotransmissores que circulam entre o cérebro e a periferia, consoante o sistema de crenças que a nossa mente

apresenta, fica claro que a força vital é o eixo PNEI, conceito usado pela medicina convencional para explicar o funcionamento do binómio mente-corpo. Para os que entendem, como eu, que tudo está interligado e provém de uma consciência una, que nos dá vida, sustenta, protege e cura constantemente, é fácil aceitar a natureza espiritual da nossa forma humana e sentir a sua interdependência e ligação constantes com a mente e o corpo (PNEI). Aquilo que a medicina convencional considera um corpo físico dotado de um sistema de regulação chamado mente, para a homeopatia é um instrumento vivo com um espírito dotado de razão (mente), que a ciência ainda não alcança (e alcançará?...). E assim fica a “Homeopatia no Cerne / Core do Melhor Caminho”, uma vez que escuta, observa e engloba num mesmo remédio, todas as facetas do ser humano (ou animal). A homeopatia como técnica e como arte enriquece a medi-

cina precisamente por que liga tudo com tudo. E também a liberta por que permite que a medicina se possa dividir e fragmentar nas suas diferentes especialidades sem perder a essência do seu objetivo primordial: “primum non nocere”. Considero ainda o mecanismo de placebo (o cérebro não distingue aquilo que vê, daquilo que imagina) como outra das técnicas que engrandece e alivia a medicina, permitindo-lhe brilhar de uma forma extremamente barata. Também o placebo pode ser uma via para “saber o melhor caminho”. Reflicta caro leitor ……… talvez encontre, no coração da medicina, meios menos agressivos e mais fáceis de lidar com alguma patologia que o esteja a molestar! n Notas e Bibliografia: (1) Wikipédia (2) Pinho, Cristina (2017) “Médico Unicista”, Mahatma.

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TURISMO

ALEX-EM-LUTÉCIA Correspondente em Paris, França

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oi em 1805, mais precisamente em agosto, segundo reza a lenda, que terá sido lavrada a última ata da Câmara de Olivença em português. Não obstante as diversas tentativas realizadas pelos vários grupos nacionais constituídos no sentido da recuperação desta povoação - que ao longo dos séculos da história se foi abrigando ora debaixo das asas portuguesas, ora das asas espanholas (onde ainda hoje se mantêm), a verdade é que nesta permanece, sem que os nuestros hermanos a neguem sequer, a lusa herança, pavoneando-se a mesma sem contemplações tanto nos empedrados da praça principal da cidade, como nos nomes das ruas, entre outros aspetos menos evidentes… Apesar da subserviência a Sua Majestade Filipe VI, “Olivença é nossa!” A Alsácia é uma região única no modus vivendi de França. Localizada junto à fronteira com a Alemanha e perto da Floresta Negra, foi desde a Idade Média objeto de disputa entre os dois países, tornando-se a situação ainda mais aflitiva para os seus habitantes aquando do deflagrar da última Grande Guerra, com os nazis muito focados no que lhes havia sido há pouco tempo atrás subtraído. Haviam feito de Estrasburgo a joia da coroa como forma de demonstrar à Europa a superioridade da germânica cultura. Facto é que, com todas estas trocas de nacionalidade, a cidade acabou por beneficiar de uma atenção especial que a tornou apetecível para quem a visita, até porque, não obstante a língua oficial ser o francês, tanto a toponímia das ruas, como a arquitetura, costumes, gastronomia e feições dos locais são, sem sombra da dúvida, alemãs… Elsass ist unser Em abril, com os primeiros raios de sol a

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Alsace nous appartient / Elsass ist unser / A Alsácia é nossa!


TURISMO brilharem gloriosos por sobre uma Paris a despedir-se de um inverno cinzento e já com a perspetiva das férias da Páscoa para muito breve, resolvemos fazer uma pequena viagem em família e respirar os ares mais leves e puros da sempre tão celebrada campagne française. Decidimo-nos pela Alsácia, depois de o Luís, após uma breve incursão aí realizada em trabalho, ter-se declarado perfeitamente seduzido com a beleza e particularidades desta região. Um tirinho de 500 kms por autoestradas de fácil navegação, cujo maior stress a experimentar seria sem dúvida a saída sempre caótica da Cidade Luz - os franceses e em especial os parisienses, em tudo que toque o tema férias ou fins-de-semanas prolongados, não deixam os seus créditos por mãos alheias: empilham cuidadosamente a bagagem, marcam hotéis e abandonam o burgo sem olhar para trás. E desta forma, também nós o fizemos, perfeitamente encantados com a magnifica paisagem que se foi desdobrando ao longo do caminho, lindíssimos campos lavrados, coroados de flores amarelas que quando se inclinavam graciosas, empurradas pelo vento leve, revelavam caules verdes e longos… Uma suave ondulação numa perfeita continência à bandeira brasileira… Depois de uma viagem sem estórias chegamos a Estrasburgo, tendo ficado instalados num hotel situado em frente a um dos vários canais que serpenteiam

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TURISMO a cidade, numa zona moderna, que, viemos a descobrir depois, era também frequentada pelos estudantes, localizando-se aí várias das muitas residenciais universitárias… Dez minutos a pé do centro, através de alamedas ajardinadas junto à agua dominada pelos muitos cisnes que nesta altura constroem os ninhos onde desejam… Um casal havia ocupado inclusive uma parte de um passeio e enquanto ela cuidava que os ovos chocassem, o macho, na sua marcha de deselegância que os caracteriza em terra, vigiava muito atento para que ninguém perturbasse a família… A nadar, o que da janela dos nossos quartos imaginamos enormes ratazanas, eram afinal ocupados castores. Estrasburgo foi uma grata surpresa, uma cidade bonita e cuidada, caraterizada por prédios das diferentes épocas completamente conservados e perfeitamente integrados nas rotinas locais, como a catedral de Notre Dame de Estrasburgo, símbolo da cidade e uma das mais antigas em termos góticos, a Praça Gutenberg que abriga uma estátua do inventor… A pequena França, bairro romântico em que as casas de varandas floridas se debruçam por sobre as eclusas percorridas pelos barcos turísticos e que em tempos idos abrigaram as tropas francesas aí confinadas por serem portadoras da Franzosenkrankheit ou French Diasese (forma pela qual a Sífilis era então conhecida). O Palácios dos Príncipes de Rohan e a Kammerzell House, a Barrage Vauban construída com o propósito de impedir o avanço do inimigo e hoje em dia o perfeito terraço panorâmico com vista para o intrincado de canais que percorre a cidade… A escolha é imensa e nunca desilude! Num dos dias optamos por ir passear até Colmar o postal mais ilustre da Alsácia e que faz parte da Rota de Vinhos franceses… A última cidade ser a libertada no final da II Guerra... Pejada de turistas e completamente cercada pelos fanáticos chineses, revelou-se difícil de calcorrear, sempre interrompidos por algum oriental ocupado a tirar uma selfie debruçado por sobre uma ponte ou a sorrir apoiado nas paredes medievais de um antigo celeiro… À saída, uma estatua da Miss Liberty, em tamanho bastante razoável, recorda-nos que foi aí que morou Fréderic Barthold. Pelo facto de estarmos ali ao pé e também porque era um desejo nosso,

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mesmo antes de iniciarmos a viagem de regresso fomos até Baden-Baden, famosa por ser um local de banhos muito procurado na Belle Époque e pelos vistos, obrigatória para jovens casais russos com alguma capacidade financeira. Não desiludiu, antes pelo contrário - o

único passeio público em que alguma vez encontrei mesinhas trajadas a rigor, enfeitadas com vasos de flores cujo cartaz bilingue convidava muto delicadamente o transeunte a descansar… Au revoir, Um bisou. n



VIAGENS

Pelo Dubai / Abu Dhabi em cadeira de rodas

Sofia em Viagem Após um acidente de viação, no qual ficou paraplégica, Sofia passou a deslocar-se em cadeira de rodas. O facto de fazer algumas viagens e as dificuldades que encontra, desde o planear até à viagem em si mesma, levaram-na a partilhar as suas experiências com o objectivo de inspirar ou facilitar essa tarefa a outras pessoas. É no blog JustGo by Sofia que o faz, sendo, também, um espaço de divulgação e promoção de boas práticas de turismo, em termos de acessibilidades, para pessoas com mobilidade reduzida. http://justgo.com.pt

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VIAGENS

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onfesso que tinha alguma curiosidade em conhecer o Dubai por se tratar de uma cidade erguida no deserto, onde tudo parece ser possível. O Emirado do Dubai situa-se na costa do Golfo Pérsico e no deserto da Arábia. Fala-se árabe e o Islão é a religião oficial. Existe uma monarquia absoluta e uma série de leis e regras que convém ter conhecimento, para evitar problemas, como a proibição da homossexualidade, o consumo de álcool restringido, a maneira de vestir que não pode ser muito ousada e demonstrações de afecto entre casal como beijar e andar de mãos dadas não são permitidos. Luxo, riqueza e ostentação definem a zona moderna onde a arquitectura dos edifícios deixa qualquer um de boca aberta. É impressionante a quantidade de arranha-céus e as suas formas modernas e tão diferenciadas! No Dubai é muito fácil estar em qualquer lado que seja o maior do mundo. O maior prédio do mundo, o maior centro comercial do mundo, o maior aquário do mundo, etc. Ilhas artificiais, canais artificiais, pistas de ski artificiais, enfim, há tudo o que é possível imaginar e o que não é também!! Estávamos em final de Maio e um calor quase insuportável. Chegámos por volta das 8 da manhã já com 28º e, talvez, tenha sido esta a temperatura mais baixa que por lá apanhámos. O bom é que estavam umas noites maravilhosas, para mim, claro, que adoro noites quentes! Já durante o dia era quase impossível andar na rua com tanto calor. O melhor é optar por visitar alguns edifícios e, até mesmo, entrar num centro comercial para refrescar. Não esquecer, no entanto, de sair sempre com um casaco, ou um lenço pois passado algum tempo dentro de qualquer edifício começamos a gelar, tal é a baixa temperatura a que estão regulados os ares condicionados. Em caso de "emergência"podemos, sempre, entrar numa paragem de autocarro porque sim, estão equipadas com ar condicionado! Andar pelas ruas do Duabi, principalmente nas zonas modernas, em cadeira de rodas, não traz grande dificuldade. Os passeios estão rebaixados, o acesso a edifícios está garantido, o metro está adaptado e é muito fácil de entender. Não pudemos deixar de visitar o mer-

cado do ouro em Deira, o famoso Gold Souk. Optámos por ir de metro apesar de existirem outras opções, como por exemplo, o barco, onde não é compli-

cado ir em cadeira de rodas. Chegámos a uma realidade completamente diferente pois são dezenas de lojas carregadas de ouro e outros meSetúbal Revista

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VIAGENS tais e pedras preciosas. Como não estávamos para compras, não sei porquê?!, não nos demorámos muito. Ruas mais sujas, alguns buracos mas os passeios estavam rebaixados. Não fui à praia mas fiquei com pena, porque parece que a água é quentíssima. Estivemos pouco tempo e, sinceramente, não consegui perceber se existe algum local com acessibilidade para cadeira de rodas e cadeira adaptada para ir à água. Tirámos um dia para ir a Abu Dhabi e visitámos a lindíssima mesquita Sheikh Zayed, uma das maiores do mundo e, talvez, também, das mais bonitas. Mais de mil colunas, em mármore branco, e o maior tapete persa do mundo, feito à mão. Tudo em grande, como costume por aqueles lados! Tivemos um guia para nos levar e correu tudo na perfeição. O turismo é uma das grandes apostas do Dubai pelo que existem muitas opções para passeios e actividades por onde escolher. Apesar de não termos comprado nenhum pacote turístico, pois estivemos pouco tempo, do que

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VIAGENS

consegui perceber uma limitação física, ou uma cadeira de rodas, não é impeditivo de o fazer. Não, não ficámos no Burj Al Arab, o 7 estrelas do Dubai, mas ficámos, e muito bem, hospedados no JA Ocean View Hotel. O quarto era praticamente do tamanho da minha sala! Até me cansava de cada vez que precisava de qualquer coisa da mala! E, claro, estava muito bem adaptado. Como pontos negativos do quarto aponto a alcatifa que, para mim, não é uma vantagem porque dificulta a deslocação da cadeira, e um pequeno degrau para a varanda Do Dubai seguimos viagem para Hong Kong e iniciámos a viagem à China. JustGo!! Ano da viagem: 2016 n

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CULTURA

ISABEL OLIVEIRA MARQUES Poema Sobre Imagens Ana Teresa Gama Correia

“O lugar onde a fotografia e as palavras se encontram.”

"enquanto o mar dormia viemos espreitar a noite" noite controversa apaixonante amante de todos os amantes companheira de poetas guardadora de segredos noite autora de todos os medos que se esconde inventando sombras noite que nos envelhece tatuando rugas cobardemente no rosto que adormece noite que não é princípio nem passado não tem futuro apenas fim e que morre cada vez que o dia a atropela e NASCE longe demasiado longe vai o tempo em que o PORTINHO apenas conhecia a luz do luar a noite juntava vozes e grupos que se riam que cantavam e desafinavam espalhados pelo chão e eu timidamente enterrava na areia a minha mão a tua me esperava em concha e juntas desenhavam uma ESTRELA DO MAR

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Dois olhares sobre...


CULTURA

JOSÉ NOBRE Ator

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asse bem, passe bom, passevite, passe-vida, passeie, vadie, passe-se. Passámos as passinhas-do-Algarve, mas aqui estamos, de cu-tremido para o que der e vier. Eia comboios (como se espantava o Álvaro de Campos), eia autocarros, metros, pontes, ligações, aproximaram a lonjura, é tudo perto e barato e possível. Iremos antes, mais cedo, e voltaremos mais tarde, andaremos mais a pé, leremos mais, contemplaremos mais, sentir-

Passe

nos-emos mais vivos e próximos uns dos outros do que dentro dum carro, abandonados à solidão passiva e mecânica do pára-arranca, do cola-te-ao-dafrente-senão-metem-se, do não-apites-que-não-vale-a-pena, do respira-que-está-quase. O que se poupa, material e espiritualmente, no bolso e na paciência, é demasiado para não nos sentirmos, no mínimo, eufóricos. Setúbal é o meu Lar, Lisboa o meu Escri-

tório, hoje ir daqui até lá e por lá andar, de acolá para acoli, indo e voltando, se necessário for duas vezes ao dia, é-me, é-nos, igual ao litro — está pago. Tem sempre que se validar, que se puxar para fora e mostrar, o passe é um exibicionista compulsivo. É tudo o que temos que fazer, mostrá-lo e seguir. No século XV começámos a circum-navegar o mundo, nos anos 90 a net, hoje já podemos descobrir Lisboa. Passe(m) bem. n Setúbal Revista

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ENTREVISTA

GONÇALO ROSA “Temos que aprender a dar valor ao que temos. A pobreza que se vive hoje em Portugal não é comparável à pobreza das comunidades de Marrocos” Texto: Carolina Bico

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ENTREVISTA

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onçalo Rosa aceitou o desafio do UniRaid, uma aventura solidária pelo deserto de Marrocos destinada a estudantes de vários países. O Uniraid consiste num Rally Solidário, onde estudantes dos 18 aos 28 anos atravessam Marrocos, de norte a sul, numa prova de velocidade. Este Rally tem, ao mesmo tempo, como objetivo a ajuda humanitária às populações e comunidades mais carenciadas do deserto. Podemos falar de uma atividade 3 em 1, ou seja, é uma viagem-aventura, um Rally e uma competição de velocidade, e, uma atividade solidária. Nesta prova os participantes têm que ultrapassar obstáculos, desafios e variadíssimas etapas, entregando ao mesmo tempo e durante o percurso, bens e materiais nas comunidades,

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“Pensei que ia ser desafiante mas quando cheguei lá ainda foi mais complicado”

com as quais se vão cruzando. A Setúbal Revista foi ao encontro de um jovem que participou nesta prova, e pretende divulgar a iniciativa, dar a conhecer e direta ou indiretamente, influenciar outros jovens na promoção de ações solidárias. Gonçalo Rosa é um jovem Setubalense que tem o mérito e a coragem de participar nesta atividade. Partiu de Setúbal, juntamente com o primo Bernardo Barreto, a 22 de fevereiro de 2019, para embarcar numa das “experiências da sua vida”. Na bagagem trouxe uma visão diferente do mundo e muitas histórias para contar, histórias essas que irá guardar para sempre na memória. Gonçalo Rosa, natural de Setúbal, tem 22 anos é estudante do 3ª ano de Engenharia Civil, na Faculdade de Ciên-


Av. Dr. António Rodrigues Manito, 51D, Loja 1A 2900-065 Setúbal Tel.: 928 022 080 De segunda a sexta das 9h às 20h Sábados das 8h às 16h


ENTREVISTA

cias e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT/UNL), jovem dinâmico e empreendedor. Durante nove dias atravessou o deserto de Marrocos, percorreu aproximadamente 3000 quilómetros num Renault Twingo, com 24 anos, e trouxe desta viagem memórias e experiências que o enriqueceram en-

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“Foi entusiasmante pela aventura e desejo de superação pessoal”

quanto pessoa. O Uniraid onde Gonçalo Rosa participou concentrou-se essencialmente no objetivo de entregar brinquedos, roupas e materiais escolares, a crianças carenciadas do interior do país. Tudo começou no universo das redes sociais e das novas tecnologias, ao


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pesquisar no feed de notícias do Facebook, Gonçalo Rosa encontrou algumas fotografias de edições anteriores do UniRaid e ficou desde logo interessado. Carros velhos a atascar no meio do deserto e acima de tudo equipas de jovens empenhadas em trazer alegria e sorrisos a tantas crianças desfavorecidas do interior de Marrocos. “Assim que encontrei esta atividade desafiei de imediato o meu primo Bernardo, porque ele é um apaixonado por carros e por este tipo de atividade…ele aceitou de imediato”, conta o jovem à Setúbal Revista.

Depois de se inscrever, as expetativas foram crescendo, Gonçalo sentiu-se atraído pela “aventura e superação pessoal”, quando chegou ao deserto encontrou uma realidade muito mais dura do que a que estava à espera, “Pensei que ia ser desafiante, mas quando lá cheguei compreendi que iria ser muito mais complicado”, explica. No Uniraid de 2019 participaram um total de 112 equipas, 12 portuguesas e as restantes espanholas. Gonçalo e o primo Bernardo formaram a equipa “Os Areias”. Cada uma tinha de distribuir, pelo menos, 40 quilos de bens, mas os

dois jovens ultrapassaram a meta, uma vez que conseguiram encaixar 110 quilos na bagageira do seu Renault Twingo. Estes dois jovens encontraram variadíssimas dificuldades que foram potencializadas pelos kilos que transportavam a mais. Tiveram que enfrentar vários obstáculos, fizeram trilhos do “tipo Dakar” e os mais variados caminhos. Este percurso foi guiado exclusivamente por um road book (livro de estrada), que marcava as distâncias, em quilómetros, entre pontos de referência já assinalados e conhecidos. A Setúbal Revista

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ENTREVISTA

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ENTREVISTA

viagem levou-os a passar por Algeciras, Tanger, Mèkens, entre outras cidades. Mas foi no acampamento em Rica, que viveram os momentos mais marcantes desta road trip. Gonçalo Rosa não esconde a emoção e surpresa face à pobreza extrema que encontrou no interior das comunidades locais, “Temos mesmo que dar mais valor aquilo que temos. Aqui há pobreza, mas não chega nem aos calcanhares das comunidades de Marrocos. Passei por povoações onde não há água, onde

“Devem preparar bem o carro, levar muita água, mantimentos de reserva e mentalizar-se que vão dormir poucas horas e conduzir muito”

não existe uma árvore sequer, embora estejam a poucas horas da civilização. Por isso toda a ajuda é bem-vinda”, revela. Traz também consigo as experiências interpessoais que teve, com as outras equipas, o espírito de grupo e a camaradagem entre equipas. Este antigo aluno da Escola Secundária de Bocage sublinha ainda a importância do trabalho em equipa, “porque em algumas partes do percurso era impossível fazer-se alguma coisa, sem o apoio do resto das equipas”. Setúbal Revista

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ENTREVISTA

A experiência foi tão “enriquecedora” para Gonçalo, que o jovem já se inscreveu na edição do próximo ano do UniRaid – Uniraid 2020. Durante o percurso vai contar novamente com a companhia do primo Bernardo. Para quem quiser aceitar o desafio, o jovem deixa alguns conselhos: “Devem preparar bem o carro, levar muita água, mantimentos de reserva e mentalizar-se que vão dormir poucas horas e conduzir muito”. Esta equipa Portuguesa da Uniraid 2020 será constituída por Gonçalo Rosa e por Bernardo Barreto, 21 anos é estudante do 4ª ano de Engenharia Mecânica, no Instituto Superior Técnico (IST). Ficaremos por aqui a aguardar as suas aventuras e as ações beneméritas que realizam. Bem Hajam! n

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ENTREVISTA

“Passei por povoações onde não há água, onde não existe uma árvore sequer…. mas estão a poucas horas da civilização”

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CULINÁRIA

Tarte de Morango com Mascarpone

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sta época do ano é rica em fruta deliciosa, que quase nos implora para a trazermos para casa. Os morangos abundam e são sem dúvida uma fruta que fica muito bem em sobremesas, assim hoje trago-vos uma tarte divinal.

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CULINÁRIA Ingredientes para o cheesecake: Ingredientes para a base da tarte: 3 gemas 140 g de açúcar 150 g de manteiga, à temperatura ambiente 200 g de farinha, sem fermento 1 pitada de sal 1 colher de chá de fermento em pó Ingredientes para o recheio: 250 g de queijo mascarpone 100 ml de natas, bem frescas 100 g de açúcar em pó 1 colher de chá de essência de baunilha Morangos a gosto

Modo de preparação Massa Comece por juntar a farinha o fermento e o sal e peneire. Bata as gemas com o açúcar até esbranquiçar e incorpore a manteiga. Adicione a farinha e misture com as mãos até formar uma bola. Coloque a bola em cima de película aderente e achate com as mãos. Envolva a massa com a película para selar e reserve no frigorífico cerca de 2 horas. Após o tempo de repouso no frigorífico, estenda a massa, em cima de uma folha de papel vegetal, até ficar com cerca de 8 mm de espessura.

Utilizando um aro, usei um de 22 cm, corte um círculo de massa que ficará dentro do aro. Com a ajuda do papel vegetal, transfira para um tabuleiro e leve ao forno, pré-aquecido a 175ºC, cerca de 10 / 15 minutos (depende do forno). Não deixe cozer de mais, depois de fria a massa acaba por endurecer. Retire do forno e deixe arrefecer completamente em cima de uma grelha e dentro do aro. Recheio Bata o queijo mascarpone até ficar macio. Junte as natas, que devem estar frias, e bata mais um pouco. Adicione o aroma de baunilha e o açúcar em pó e bata novamente até estar bem firme.

Montagem Utilizando uma espátula cubra a superfície da massa com o creme e decore com morangos. Reserve no frigorífico até à hora de servir.n

Com o apoio de Merengue & Chocolate email: merengueechocolate@gmail.com Setúbal Revista

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PSICOLOGIA

SILVIA SILVA Psicologa, Psicoterapeuta Torres Vedras psicologa.silviasilva@gmail.com

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alteração de comportamento nas crianças e jovens nas últimas gerações é preocupante. Hoje podemos dizer que os jovens estão mais mal comportados, irresponsáveis e, arriscaria, com atrasos de desenvolvimento psicológico a vários níveis, mas sobretudo na sua autonomia o que alastra e contamina as mais variadas áreas das suas vidas. “As crianças fazem birras em todo o lado e os jovens são insuportáveis, não têm respeito por ninguém e não fazem nenhum. Passam a vida agarrados aos telemóveis. Crianças e jovens.” Já os há (e num número crescente e preocupante) que à conta da utilização desmedida quer de jogos

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Comportamento infantil e juvenil

quer de redes sociais, tente o suicídio. É assim que a sociedade descreve as gerações mais novas. Talvez seja assim que as gerações mais novas são. Já em 2012 aquando de uma pesquisa minha sobre as alterações do comportamento infantil e juvenil, descobri o livro de Javier Urra “O pequeno ditador”, onde explica parcialmente as razões desta metamorfose drástica de gerações. As alterações políticas que resultaram em democracia e liberdade, provocaram nos filhos de então, hoje pais, uma necessidade desmedida de compensarem os seus filhos pelo que não tiveram, seja material, emocional ou

socialmente. Se pensarmos que qualquer situação extremada traz consequências graves, percebemos que este passar do 8 para o 80 acabaria mais tarde ou mais cedo por trazê-las também. O sentimento exagerado de protecção e a constante minimização e desculpabilização dos comportamentos das crianças e dos jovens faz com que não tenham que lidar com a frustração. E aqui, de uma forma geral está o cerne da questão: Lidar com a frustração. É ao lidar com a frustração que crescemos cognitivamente. O nosso cérebro ao ouvir um não, busca alternativas. Quando concordamos sempre com a


PSICOLOGIA

pessoa, habituamos o seu cérebro a seguir uma linha que se vai enfatizando e cravando como sendo a certa, de uma forma absoluta e inquestionável. Lidar com o não e aprender a esperar, cria no nosso cérebro opções, dito de outra forma, passamos a perceber que não é assim tão grave que a autoestrada por onde costumamos ir para o nosso objectivo esteja daquela vez fechada, porque o NÃO fez-nos descobrir outros caminhos, alguns mais longos, menos fáceis, mas igualmente interessantes e superiormente enriquecedores a nível psicológico e consequentemente de desenvolvi-

mento pessoal com efeitos benéficos socialmente. O que nos distingue das outras espécies é a nossa capacidade de pensar. Quando privados desse exercício, por acreditarmos que o nosso primeiro pensamento é imediatamente correcto e válido, ficamos desprovidos dessa nossa humanização, a tal que nos distingue dos animais e passamos tal como ele a reagir de forma agressiva quando, ao contrário do que fomos acostumados, a vida não corre como previsto. Porque é que alguém agride outra pessoa quando esta decide já não querer mais se relacionar consigo?

Porque não tem estruturas mentais para lidar com a frustração de querer aquela pessoa consigo e não lhe ser vetada essa possibilidade. Os pequenos ditadores que estamos a “educar” são estes futuros adultos que não admitem ser contrariados. Lidar com a frustração prepara-nos para as intempéries, para as contrariedades. Então, se sabemos que a vida é tudo menos uma linha recta, será justo enquanto pais privarmos os nossos filhos de, por si, com a nossa supervisão, desbravarem caminhos que os possam tornar pessoas mais capazes de viver em sociedade? Os pais! Quando se estuda o comportamento de uma criança ou jovem (e até de um adulto) não podemos fazê-lo de uma forma correcta sem percebermos de que forma, o enquadramento parental influenciou a pessoa. Alguns pais (“coincidentemente” aqueles que dificilmente dizem NÃO), ficam ofendidos por acharem injusto que se faça uma associação directa entre educação parental e comportamento infantil ou juvenil. Importante relembrar que, de facto, todos nós temos algo de inato em nós e na nossa personalidade. Outro facto é também o de que tudo o resto é adquirido, sendo conveniente ter sempre presente que a maior parte do que adquirimos vem da forma como somos educados e de como é o nosso enquadramento familiar. As crianças e jovens mal educados, que tantas vezes são diagnosticados pelos próprios pais e professores como hiperactivos são, grande parte, resultado de práticas educativas pouco assertivas e ambientes familiares pouco saudáveis, estáveis e regulares. As crianças e jovens insuportáveis e desrespeituosos precisam de aprender. Precisam de ouvir NÃOS e precisam de saber que todos os actos têm uma consequência e que, se agirem de forma correcta, a consequência é positiva e que, se agirem incorrectamente são penalizados. E isto, algo aparentemente tão básico, é simultaneamente tão essencial como difícil de pôr em prática pelos pais que se desresponsabilizam com “falta de tempo”. As crianças e jovens de hoje precisam de aprender a crescer por dentro, para não serem só crescidos por fora. n Setúbal Revista

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OPINIÃO

MARIA DO CARMO BRANCO Vogal do Conselho de Administração da UNISETI (Universidade Sénior)

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alar da Europa, uns dias após as eleições para o Parlamento Europeu, é falar dos seus desequilíbrios internos e desejar um verdadeiro reforço das instituições e dos mecanismos sociais. A Europa em que vivemos foi construída com silêncio e com uma certa discrição, para não criar pânico em alguns países que iam entrar e que tinham estruturas e Leis diferentes das dos países que iniciaram a CE. Isso foi conseguido com algum debate, mas com um certo desinteresse por parte dos países menos desenvolvidos, que queriam a todo o custo usufruir dos fundos comunitários, aceitando uma Europa burocrática, que ia contra os valores culturais de cada um deles, uma vez que na Eu-

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A Europa dos nossos dias

ropa não há uma cultura homogénea, mas sim um mosaico de culturas. Do ponto de vista português, sempre foi mais importante a cultura da Europa Ocidental, por haver um maior parentesco cultural que não podemos menosprezar. É certo que não se pode pôr em causa a nossa condição de europeus, mas isso não deve ser incompatível com a nossa condição cultural. É preciso fazer ajustes sem que percamos a nossa identidade nacional. Contudo, a integração europeia representou para Portugal uma estabilização democrática, tendo em atenção não só os interesses dos apoiantes da ditadura mas, também, os enormes conflitos que surgiram a seguir à Revolução.

O que é surpreendente é o desequilíbrio que ainda existe entre os países da CE no que respeita às práticas sociais. É certo que a Europa nos tem ajudado a resolver algumas questões estruturais, mas, no que respeita às pessoas, ainda estamos muito distantes dos nossos parceiros europeus mais avançados. A queda de um modelo social-democrático tem vindo a desagregar a articulação entre o capital e o trabalho, potenciando grandes perigos nos anos mais próximos. O défice da proteção social corre graves riscos, pondo em causa o que foi conquistado a partir da metade do século XX. Não só o trabalho não está garantido, como as reformas serão postas em


causa. Só nos países onde se ganha o suficiente para poupar os trabalhadores podem garantir a segurança na velhice. A CE não pode continuar a esbanjar o dinheiro a rodos, que é pago pelos contribuintes, exigindo o desmantelamento do velho sistema produtivo e a perda de relações com o passado, sem propostas alternativas, o que obriga, em alguns casos, à importação de produtos que podem, perfeitamente, ser produzidos nos próprios países e evitar o crescente aumento do desemprego. Assiste-se a um descompromisso

entre o estado, o capital e o trabalho. Quando qualquer cidadão europeu questiona como foi construída e como tem sido modificada a Comunidade, chega à conclusão que nunca foi consultado a pronunciar-se, embora tenha no Parlamento Europeu os seus representantes. Há uma falta de clareza para com os cidadãos. A Comunidade, em vez de consultar os cidadãos, prefere negociar com os governos. Não está preparada para debates democráticos com aqueles que elegem o Parlamento Europeu. Tem de haver uma reforma neste Parlamento, de modo a exigir mais responsabilidade à Comis-

são. Tem de ser possível alargar competências e os poderes do Parlamento no destino da Europa. Todos nós temos de contribuir para uma responsabilidade política, exigindo maior transparência nas decisões tomadas por Bruxelas. A CE tem de ser baseada na responsabilidade e no respeito democrático pelos cidadãos, evitando o despertar nacionalista que tem vindo a crescer em alguns países, e que pode vir a destruir o espírito europeu que esteve na origem na criação da Comunidade a que aderimos, e onde queremos pertencer. n Setúbal Revista

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CONSULTÓRIO JURÍDICO

NUNO CASTRO LUIS Advogado

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odos nós identificamos imediatamente o gesto feito com o dedo indicador junto dos lábios como sendo um pedido de silêncio. Foi esse gesto que Álvaro (chamá-lo-ei assim por questões de confidencialidade) me fez quando, por erro de pontaria, me acertou com um grampo, disparado de uma fisga, no meu dedo mindinho. Eu tinha sete anos, andava no 2º ano, numa escola primária da cidade de Setúbal. Álvaro também. Apesar da inadequação do ato daquele miúdo, sei que o objeto não me era destinado, pois tinha em Álvaro um grande defensor desde o dia em que, ao escolhermos equipas para uma brincadeira no pátio, selecionei a sua irmã mais velha (Rita, assim a designarei) para o meu grupo. Rita não era normalmente escolhida por ser muito mais velha do que todos os outros, havendo uma ostensiva ostracização etária por parte dos miúdos da turma. Não sei se por casualidade, ou por eventual sentido de proteção, escolhi Rita e isso valeu-me, a partir desse dia, a cumplicidade daquele que era considerado o miúdo perigoso da escola. Naquela tarde, porém, em que Álvaro procurava ofender a integridade física de algum outro miúdo a quem queria demonstrar o seu poder, fez aquilo a que, em direito penal, se chama “aberratio ictus”, ou seja, erro de pontaria (ou na execução), definido nos manuais jurídicos como sendo a situação em que alguém pretende atingir um objeto, mas, inadvertidamente, acaba por atingir outro que não pretendia ofender. Neste caso, fui eu o atingido. Imediatamente, ao ver o que tinha feito, Álvaro

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O valor do silêncio


CONSULTÓRIO JURÍDICO levou o seu dedo indicador aos lábios e pediu-me silêncio. Chorei. Fui levado à diretora da escola que, com o seu sentido prático, me tirou o grampo do dedo e desinfetou a ferida, pedindo-me, sem sucesso, que eu dissesse quem tinha feito aquilo. Nada disse. Alguns anos mais tarde, talvez vinte, já advogado, encontrei Álvaro a arrumar carros no parque de estacionamento existente, na altura, nas proximidades do Tribunal. Acho que não me reconheceu e eu quase não o reconhecia. As marcas de uma vida de dificuldades e de consumo de estupefacientes tinhamlhe alterado muito as suas feições, mas não o seu olhar. Nada dissemos e seguimos o nosso caminho até que, alguns meses depois, a vida encarregou-se de nos pôr em contacto. Fui nomeado seu defensor oficioso para um caso de cariz criminal em que estava envolvido, com dois outros arguidos. Após consultar o processo e trocar impressões com os meus outros dois colegas, defensores dos co-arguidos de Álvaro, concluí que não havia provas suficientes no processo que pudessem comprovar a sua responsabilidade, a não ser declarações do ofendido (que, na verdade, e não querendo falar do caso em concreto, era um queixoso com muito poucas razões de queixa, tendose aproveitado até de uma clara situação de debilidade provocada pela dependência dos arguidos para obter favores de natureza sexual). A estratégia de defesa dos defensores era a mesma: o silêncio dos arguidos. Em Direito Penal há um princípio de não imposição da auto-incriminação, pelo que o arguido poderá não falar sem que o seu silêncio seja interpretado contra si. Assim, não havendo outras provas, o silêncio do arguido pode ser uma boa forma de se defender! No dia da audiência do julgamento, não se fez qualquer prova… o queixoso não compareceu, o que constava do processo era escasso e expliquei a Álvaro a importância de nada dizer. Álvaro, porém, achava (e porventura bem) que o seu sentimento de Justiça não permitiria que se calasse. Segundo ele, e talvez com razão, aquele processo penal nunca deveria ter existido. Quando o juíz lhe deu, como é normal num processo, a última palavra para se defender, Álvaro fez uma tentativa para falar e expressar a sua opinião…

Fiquei num dilema, mas percebi que, perante a sua vontade de desabafo seria muito mais eficiente manter a estratégia inicial. Pedi-lhe várias vezes o que, anos atrás, Álvaro me pedira. Fiz-lhe o mesmo gesto com o dedo indicador nos lábios, por diversas vezes. Álvaro acabou por, com alguma dificuldade, aceder ao meu pedido. Calou-se. O seu silêncio ajudou-o. Foi absolvido e continuou a sua vida. Foi a decisão mais justa, pelo menos a mais justa possível, mesmo que Álvaro não o tenha percebido no momento. Teremos feito bem? Terá o silêncio sido justo nestas situações? Foi ato de coragem? De cobardia? O silêncio, em Direito Penal, pode ter

valor. Na vida, por vezes, também. Numa altura em que tanto se fala e diz, muitas vezes sem verdadeiro conhecimento, ao abrigo de sentimentos de Justiça e de liberdade de expressão, talvez fosse bom pensar e refletir no valor do silêncio, principalmente quando, apesar de tudo o que nos impele a evitá-lo, o nada dizer nos é favorável e justo. E ao falarmos, que o não silêncio seja bem refletido. Como Pablo Neruda dizia, no seu poema silêncio, em Presente de um poeta, nem sempre falar é o melhor. “Porém, por que peço silêncio não creiam que vou morrer; passa-se comigo o contrário sucede que vou viver!” n Setúbal Revista

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LIVROS E LEITURAS

SARA LOUREIRO Mestre em Ciências da Educação Mediadora de Leitura Produtora Cultural Co-fundadora da PLUS Academy

Nem choros, nem medos, nem gritos, nem muros, nem mal...

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á livros que nos convocam e incitam. Alguns muito intensamente. Aconteceu-me com MUROS – Os muros que nos dividem, de José Jorge Letria, editado pela Guerra e Paz, em finais de 2016. Associando as fragilidades e as contradições dos muros às próprias fragilidades e contradições do Homem, o autor convida-nos a uma caminhada que, remontando à Antiguidade, se fará inevitavelmente pelo presente, pelos muros que habitam e ferem a contemporaneidade e pelos muros que somos nós com os nossos medos e o que eles ditam. E o autor diz que sempre assim foi e assim será: o Homem e os seus muros-medos. Diz-nos o autor, e faz questão de o pôr em evidência, que a História da Humanidade é também feita de muros e de muralhas, muitas vezes construídos na ilusão da paz e da pacificação, da contenção, da segurança e da protecção, acabando, contudo, por funcionar, frequentemente, não só como estratégia de defesa, mas também como táctica, mais ou menos velada, de ataque, com efeito ofensivo e desestabilizador. A caminhada que o livro propõe e para a qual remeto começa na Grande Muralha da China, hoje um pólo de atracção turística pela sua história, dimensão e implantação. A sua construção teve início em 220 a.C., prolongando-se por dois milénios, envolvendo mais de um milhão de operários, oitenta por cento dos quais não terão sobrevivido à dureza das condições em que trabalhavam e terão, mesmo, perecido nas entranhas amuralhadas daquela que é, desde 2007, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno, atribuindo-se-lhe também o apodo de “maior cemitério do mundo”.

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Rosa Nunes Grito Claro, 2016 Instalação, Pormenor de Porta da Prisão (pequena abertura para contacto dos presos com o exterior) Antigo Quartel do 11, Setúbal ©Rosa Nunes


LIVROS E LEITURAS Este peregrinar pelos muros, físicos e/ou ideológicos, demarcando e delimitando fronteiras e zonas exclusivas, onde se arrisca a vida pela sobrevivência, quer no que diz respeito aos que os constroem, quer para aqueles que os tentam desafiar e transpor, implica um esforço de reflexão e de compreensão nem sempre fácil de gerir e integrar. A inquietação será, porventura, a companhia mais presente e constante nesta viagem, que é intercalada por uma outra viagem feita por entre poemas e excertos de textos de diferentes autores, numa revisitação proposta por J. J. Letria, e em que se recupera e apresenta toda uma imagética associada à existência e significado dos muros e à liberdade que se almejada e que está para além deles. Assim, ao interesse suscitado pelas histórias de muros e muralhas edificados pelo Homem ao longo da sua própria história, junta-se o interesse pelos textos revisitados e citados e a vontade de os conhecer e fruir na íntegra. E assim se deambula pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa, Florbela Espanca e também pelo pensamento de Aldous Huxley, Clarice Lispector, Isaac Newton, entre outros... Num primeiro momento do livro são as construções defensivas-ofensivas da Antiguidade que catalisam a atenção, quer pela sua dimensão, quer pela sua concepção arquitectónica e estratégica. São sucintamente apresentadas e descritas a Muralha de Adriano e a Muralha de Antonino, o objectivo que preconizavam e os fins para que serviram. Contudo, são as muralhas e os muros construídos em pleno século XX, a partir da Segunda Guerra Mundial, que preenchem grande parte do livro e que mais insistentemente nos interpelam, pelo que configuram e insinuam. Muitas destas linhas defensivas, por serem, ainda assim, consideradas vulneráveis, eram/são fortalecidas por valas, minas, canhões, tanques, material bélico de diverso tipo, postos fortificados, torres de observação e vigia, gradeamentos metálicos, redes electrificadas, holofotes, sofisticados sistemas de alarme e detecção de pessoas e movimento, cães de guarda e tudo o que o medo pudesse/possa considerar exigível e justificável. O Muro de Berlim, a “Cortina de Ferro”, como Churchill lhe chamou, era um desses exemplos, um muro de tensões ao rubro, flanqueado por faixas de

Rosa Nunes Grito Claro, 2016 Instalação, Porta da Prisão, in situ Antigo Quartel do 11, Setúbal ©Rosa Nunes

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LIVROS E LEITURAS morte, altamente controlado, fortalecido e sofisticado, que marcou, de forma indelével, a história da Europa, a geografia e a história das duas Alemanhas e a de muitas famílias e amigos, separados, de forma trágica, ao longo de 28 anos, entre 1961 e 1989. Alguns muros do século XX vegetam numa espécie de esquecimento evasivo (veja-se o Muro de Chipre...), existindo para evidenciar as contradições dos homens e dos inexoráveis muros que os habitam. A algumas destas construções chamaram os homens “muros de paz” (peace lines e peace walls que separam, na Irlanda do Norte, particularmente em Belfast, os bairros católicos dos bairros protestantes), tendo estes sido concebidos, em 1969, como estruturas temporárias, mas que se mantêm até hoje. E há muros que o são, efectivamente, sem que o sejam. Há linhas fronteiriças e faixas de segurança que configuram verdadeiros muros, pelo que representam, por aquilo a que vinculam. As Coreias estão, deste modo, separadas. Com tantos muros cegos, surdos e mudos a merecer cair, tardando a derrocada, o século XXI continua a acoitar a construção de novas muralhas em nome da contenção da violência, do combate ao tráfico e à imigração ilegal, da segurança e da paz. Promessas de construção de muros salvíficos são usadas em campanhas eleitorais, mobilizando gente, garantindo votos. Muros de betão, altas barreiras de proteção e tecnologia “state-of-the-art”, muros de preconceitos e barreiras ideológicas separam, hoje, ao longo de muitos quilómetros de extensão, o México dos EUA. A sua construção, iniciada em 1991, continua, intensificando-se, em nome da segurança. Assim se passou em Ceuta (Muro que separa Marrocos da cidade autónoma de Ceuta), onde outros muros e valas de segurança, com justificações e lógicas de construção não muito díspares das precedentes, entraram para a História da Humanidade. Muros de morte, todos eles. Assim é, também, o Muro da Cisjordânia, a que uns chamam “Cerca de Segurança” e outros “Muro de Segregação”. Defensivo para uns, ofensivo para outros, ilustrando um conflito que parece insanável, o muro vai prosseguindo o seu crescimento, dando asas ao medo que vai emparedando o Homem, confinando-o a lógicas cristalizadas condenadas e condenáveis. Impa-

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Rosa Nunes Grito Claro, 2016 Instalação, Derrubes de Portas/Barreiras incluindo Porta da Prisão do Antigo Quartel do 11, Setúbal ©Rosa Nunes

ráveis, os muros físicos, ideológicos e/ou políticos crescem, no mundo, na mesma proporção dos discursos falaciosos, xenófobos e segregacionistas e de uma práxis repressiva, persecutória e discriminatória. Assim nasce o Muro da Hungria, considerado por observadores, políticos e jornalistas “(...) como um dos mais severos sinais das novas formas de repressão, da perseguição aos emigrantes e da atitude agressiva do Leste em relação às movimentações demográficas resultantes da crise.” (Letria, 2016, pág. 144). Os muros-medos invadindonos a todos: Ceuta, Mellila, Nea Vyssa, Hungria, Bulgária, Calais... Pontes, que eu saiba, nenhuma... Existe, há vários anos, um projecto de construção de uma Ponte Intercontinental da Paz, ligando o Alasca à Sibéria, mas a ideia

ainda não terá descongelado. Este livro traz-nos os muros, na urgência de se pensar e agir para além deles, vencendo-os. Interpela-nos a respeito de liberdade, de direitos humanos, de guerra, de paz e de travessias e contendas para lá se chegar, mas também a respeito dos nossos próprios medos e de como, também eles, nos cercam, toldam, coíbem e apoucam. Fica-nos esta “inquietação, inquietação” e o dever de agir. MUROS – Os muros que nos dividem José Jorge Letria Guerra e Paz, Editores Revisão: Inês Figueiras Design de Capa e Paginação: Ilídio J. B. Vasco 1ª Edição: Novembro de 2016 173 páginas n




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