Revista E - janeiro/2024

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Revista E | janeiro de 2024 nº 7 | ano 30 Cidade plural

Feito inédito

Leny Eversong

Mireya Luis

Marcelino Freire e Lúcia Helena Gama celebram vida em SP

Pela 1ª vez, mulheres e homens em igual número nas Olimpíadas

A voz que conquistou o mundo e foi esquecida pelo Brasil

Atleta cubana que desafiou estereótipos dentro e fora do vôlei


6 DE JANEIRO A 18 DE FEVEREIRO Se joga no esporte! Aulas abertas, instalações, festivais, apresentações e recreações

esportivas de diversas modalidades em todas as unidades do Sesc. Participe e compartilhe nas redes.

#sescverao24

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CAPA: Ilustração presente no álbum Viver Gonzaguinha (2024), lançamento do Selo Sesc que celebra a origem sambista do músico Gonzaguinha (1945-1991). O disco apresenta 14 canções compostas pelo artista e interpretadas pelo sambista Sombrinha, com participações de Martinho da Vila, Elba Ramalho, Criolo, Larissa Luz e Zélia Duncan. O álbum chega às plataformas de áudio, ao Sesc.Digital e à Loja Sesc a partir de 24/1. Ouça em sesc.digital/album/vivergonzaguinha Ilustração: Alexandre Calderero

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Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Tempo de recomeços O início de um novo ano é também a oportunidade de reafirmar propósitos, de repactuar metas e objetivos e de planejar os caminhos para o período que vem pela frente. Não se avança na construção do futuro sem olhar para trás a fim de reavivar o que nos trouxe até aqui e o que nos motiva a seguir adiante. Pois foi em 1945, na cidade de Teresópolis (RJ), que autoridades do setor produtivo brasileiro firmaram o compromisso de contribuir para o desenvolvimento do país e para a promoção do bem-estar. Um ano depois, era criado o Sesc - Serviço Social do Comércio, com o intuito de proporcionar qualidade de vida aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, seus familiares, bem como a toda a comunidade. Mais de sete décadas depois, a entidade segue em sua ação, ofertando diversas programações nos campos da cultura, do lazer, dos esportes, do turismo, da saúde e alimentação. Seus mais de 40 centros culturais e esportivos espalhados pelo estado oferecem espetáculos, cursos e oficinas, promovendo encontros, ampliando repertórios e gerando crescimento interpessoal. Que 2024 seja também um ano de consolidação e de expansão desse projeto emancipador de reconhecida importância para a sociedade. Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo


Esporte: caminho de emancipação Para além do papel de entreter ao qual os esportes estão mais comumente associados – de modo especial, na grande mídia –, é também reconhecida a importância da prática físico-esportiva na promoção da saúde e do bem-estar, e também na sociabilização. A presença dos esportes no cotidiano traz benefícios comprovados, seja por condicionar o corpo e a mente para o movimento, seja por promover encontros e construir vínculos com o local onde vivemos e as pessoas que nos cercam. Deste modo, cresce na sociedade o debate sobre maneiras de incentivar e promover uma vida ativa, gerando, inclusive, reflexões sobre o esporte no campo do direito e da cidadania. O Sesc São Paulo oferece, de modo permanente, oportunidades de iniciar e aprimorar a prática esportiva por meio de seus espaços planejados, como salas de ginástica multifuncional, quadras e ginásios, sempre numa perspectiva plural e agregadora. Além disso, realiza anualmente o Sesc Verão, entre janeiro e fevereiro, com ações que estimulam o público frequentador das unidades a se movimentar, o que também reafirma o papel educativo da instituição. Esta primeira edição do ano da Revista E também aborda o tema do esporte, com uma reportagem que trata da presença das mulheres na história dos Jogos Olímpicos e uma entrevista com a ex-jogadora de vôlei cubana Mireya Luis Hernández, uma das referências da modalidade, que vem ao Brasil neste mês para uma série de atividades nas unidades do Sesc. Bom ano e boa leitura! Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO Presidente: Abram Abe Szajman Diretor Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Marco Antonio Melchior, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adauto Fernando Perin, Adilson Humberto Gomes Filho, Adriano Ladeira Vannucchi, Alexandre José de Azevedo Cesar, Aline Ribenboim, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, Andrea de Oliveira Rodrigues, Anita de Souza Cleto, Antônio Tavares Aranha Neto, Bruno Corrente Andriani, Camila da Silva Wanderley, Camila Freitas Curaca, Camile Lopes Magalhães, Carla de Souza Monteiro, Carla Lira Mendes dos Santos, Carolina Balza, Caroline Figueira Zeferino, Caroline Souza de Freitas, Cesar Melo Ribeiro, Chiara Regina Peixe, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Cassia de Campos, Cláudia Maria de Melo Silva, Cristiane Toshie Komesu, Danilo Cava Pereira, Danny Abensur, Denise Minnicelli Marson, Denise Ramos da Fonseca, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eduardo Santana Freitas, Elmo Sellitti Rangel, Erika Luzia da Silveira, Estevão Denis Silveira, Everton Miranda Eugenio, Fabia Lopez Uccelli dos Santos, Fabiana Della Coletta Monteiro, Fabiola Larissa Tavares Milan, Felipe Campagna de Gaspari, Felipe Veiga, Felipe Veiga do Nascimento, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Flavia Teixeira S. Coelho, Gislene Lopes Oliveira, Grace Kelly Lobo Teixeira, Guilherme Luiz de Carvalho Souza, Ivan Lucas Araújo Rolfsen, Jade Stella Martins, Jefferson de Almeida Santanielo, Jose Goncalves da Silva Junior, Juci Fernandes de Oliveira, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Goncalves Ramos, Jusileia Rocha de Oliveira, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Laise Ferreira Guedes, Lizandra Magalhães, Lucas Geraldo Andrade Costa, Lucas Matos Santana, Luciano Domingos da Silva, Marcelo Paulino de Souza, Marcos Villas Boas, Mariana Lins Prado, Mariana Martelli da Costa, Marina Borges Barroso, Marina Burity Francisco, Marina Reis, Mario Augusto Silveira, Mateus de Oliveira Santos, Nelson Jovel Modolo Filho, Priscila dos Santos Dias, Priscila Rahal Gutierrez, Rachel D’Ipolitto de Oliveira Scire, Rafaela Queiroz de Sena, Raphael Cutis Dias, Rejane Pereira da Silva, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Renata Gonçalves de Souza, Romeu Marinho C. Ubeda, Ronaldo Domingues de Araújo, Sabrina da Paixão Brésio, Samuel dos Santos Almeida, Sandra Ribeiro Alves, Sara Regina Centofante, Silvia Cristina Garcia, Sofia Calabria Y Carnero, Stephany Tiveron Guerra, Tamara Demuner, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thais Ferreira Rodrigues, Thiago da Silva Costa, Thiago de Oliveira Machado, Vanusa Soares Souza, Vinicius Pereira de Oliveira. Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Amanda Lobos, Ariane Ramos de Azevedo, Walter Cruz • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488) A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS). Fale conosco: revistae@sescsp.org.br


SUMÁRIO

Confira os destaques da programação do mês, como a estreia do espetáculo Karaíba, adaptação de livro do escritor indígena Daniel Munduruku

O talento estelar da cantora brasileira Leny Eversong, fenômeno internacional nas décadas de 1950 e 1960, e esquecida no próprio país

Pela primeira vez na história dos Jogos Olímpicos, Paris 2024 garante paridade de gênero entre atletas mulheres e homens

dossiê

entrevista

esporte

bio

gráfica

crianças

Artista Giselle Beiguelman propõe reflexão sobre escolha da nomenclatura usada na botânica clássica ao reproduzir estereótipos e preconceitos

Qual a importância de ocupar desde cedo espaços culturais e áreas verdes para a ampliação do repertório e o desenvolvimento integral das crianças?

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p.16

p.24

p.34

p.40

p.54

Acervo pessoal da artista (Bio); Série Flora mutandis (2022), de Giselle Beiguelman (Gráfica).

Tricampeã olímpica e bicampeã mundial de vôlei, ex-atleta cubana Mireya Luis Hernández segue inspirando jovens dentro e fora das quadras


Conheça cinco centros culturais em São Paulo que ampliaram seus espaços e acervos de arte

Vinicius Romanini Premiada diretora de teatro, Christiane Jatahy derruba as fronteiras entre realidade e ficção

encontros

inéditos

depoimento

almanaque

P.S.

Márcia Wayna Kambeba (texto) e Karen Suehiro (ilustração)

em pauta

Adriana Vichi (Encontros); Karen Suehiro (Inéditos); Casa das Rosas / Foto: André Hoff (Almanaque)

No mês em que São Paulo celebra 470 anos, textos de Marcelino Freire e Lúcia Helena Gama visitam memórias da capital paulista

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Mariana Martelli da Costa



Matheus José Maria

em cena

De volta aos palcos do Sesc, Marco Nanini experimenta o delírio psicológico de um ator que acredita viver a soma de todos os personagens da história do teatro. O espetáculo TRAIDOR, que esteve em cartaz no Sesc Vila Mariana em novembro e dezembro do ano passado, marcou os 75 anos de vida de Nanini, e também o reencontro do artista com o diretor Gerald Thomas, que escreveu a peça especialmente para o ator.

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Artistas residentes no Brasil, com idade entre 15 e 30 anos, podem se inscrever individualmente ou em coletivos para a 31ª edição da Mostra de Arte da Juventude com obras em suportes diversos. Voltada às artes visuais e realizada pelo Sesc São Paulo na unidade de Ribeirão Preto desde o final dos anos 1980, a mostra terá nova edição no segundo semestre de 2024. Inscrições a partir de 8 de janeiro de 2024 Saiba mais em sescsp.org.br/maj


DOSSIÊ

Brasil-Pindorama Baseado em obra de Daniel Munduruku, espetáculo infantojuvenil Karaíba une mitologia indígena e aventura para reforçar que a nossa história não começa em 1500

Elenco de Karaíba, espetáculo que entra em cartaz em 23 de janeiro, no Sesc Pompeia.

Annelize Tozetto

Karaíba é uma forma bonita, forte e potente de aproximar crianças e jovens das pautas indígenas e do movimento decolonial Juliana Gonçalves, idealizadora e produtora do espetáculo

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maginar é o que permite aos seres humanos conceber outras realidades e histórias. Adaptação do livro O Karaíba - Uma história do pré-Brasil (Melhoramentos, 2010), do escritor e professor indígena Daniel Munduruku, Karaíba é um espetáculo teatral que faz um convite para imaginar o Brasil antes da chegada dos portugueses, quando o território era conhecido como Pindorama. Sua estreia está marcada para o dia 23/1, no Sesc Pompeia. A peça mescla mitologia indígena e aventura, com o intuito de repensar algumas lacunas na

pré-história brasileira, reforçando que o encontro com os europeus foi apenas uma passagem, e não o início de tudo. Idealizada e produzida por Juliana Gonçalves, e com direção de Rafael Bacelar, a produção teatral propõe um exercício de imaginação sobre como seriam os povos [como os Tupinikin, Turyaçu e Anhangá, retratados no livro] e a vida nessas terras, seus conflitos e modos de ver o mundo. “Karaíba é uma forma bonita, forte e potente de aproximar crianças e jovens das pautas indígenas e do movimento decolonial”, explica Juliana Gonçalves. O projeto teve como meta principal o compromisso ético de uma equipe majoritariamente composta por artistas indígenas não só no elenco, protagonizado pelos atores Danilo Canindé, Jéssica Meireles, Ludimila D’Angelis e Yumo Apurinã, como também em funções técnicas, nas áreas de iluminação, visagismo, fotografia, design, arte gráfica, assessoria de comunicação, figurino etc. “Estamos construindo uma nova e linda trajetória com esse projeto, carregando um ineditismo em diversos âmbitos”, destaca a idealizadora. O espetáculo, que segue em temporada até dia 17/2, é uma ferramenta para o desenvolvimento de uma geração mais consciente da diversidade étnico-cultural brasileira, segundo a perspectiva de seus realizadores. Além disso, busca democratizar o acesso à literatura e expandir debates sobre pautas atuais pela ótica indígena. Saiba mais sobre o espetáculo em sescsp.org.br/pompeia 11 | e


DOSSIÊ

Chico do Bandoneón é um dos músicos entrevistados no documentário Bandoneando, a busca pelos bandoneonistas negros da Campanha Gaúcha, que estreia este mês no SescTV.

QUE SOM É ESSE? Você já ouviu o som de um bandoneón? Muito comum no Rio Grande do Sul e em países como Uruguai e Argentina, esse instrumento com teclado de palhetas, quase uma gaita de mão, é um dos símbolos sonoros que dão dramaticidade ao tango. Inventado no século 19, e popularmente ligado à imigração alemã na região, o bandoneón também foi popularizado, em terras gaúchas, por diversos bandoneonistas negros, personagens que a história

oficial acabou invisibilizando. É esse resgate que o SescTV celebra com o filme Bandoneando, a busca pelos bandoneonistas negros da Campanha Gaúcha, que estreia no canal dia 20 de janeiro, às 22h. Dirigido por Diego Müller, o documentário em formato de road movie procura, em vilarejos do interior gaúcho, histórias de músicos negros responsáveis pela introdução do bandoneón no estado e a preservação de sua tradição ao longo do último século. Assista: sesctv.org.br

O Sesc 24 de Maio abre alas para a folia e entra na avenida do ano novo com uma série de cortejos nas rampas da unidade. Sempre aos sábados, às 17h, o projeto Eu vou botar meu bloco na rampa convida quatro grupos paulistanos para carnavalizar os

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fins de semana de janeiro: no dia 6/1, o bloco afro Ilu Inã promove um quilombismo poético-sonoromusical com tambores, vozes e sopros; no sábado seguinte, dia 13/1, é a vez da fanfarra Filhos de Gil tocar clássicos do tropicalista baiano; o Bloco Agora Vai desfila

no dia 20/1 com composições marcadas pelo bom humor e irreverência; e para encerrar o esquenta para o Carnaval, o bloco Sainha de Chita se apresenta dia 27/1, com um desfile especial para as crianças. Caia na folia: sescsp.org.br/24demaio

Federico Bonani

Carnavalizar


DOSSIÊ

Corpos que dançam Em sua segunda edição, o projeto Noites Quentes de Verão, do Sesc Avenida Paulista, reúne, durante o mês de janeiro, manifestações culturais diversas que celebram os corpos e a dança em seu potencial criativo. Entre aulas, apresentações, bailes e batalhas de dança, contemplando artistas e públicos de diversas origens

e idades, o projeto celebra a possibilidade dos encontros como agentes transformadores. Um aulão de bate-cabelo, técnica de jogar as madeixas no ritmo da música, com a drag queen Gysella Popovick, é a atividade que dá início à programação, no dia 4/1. Outros destaques são Drags 40º, uma noite de batalhas

de performances de drag queens, no dia no dia 11/1, uma aula aberta de ritmos paraenses, como o tecnobrega, no dia 12/1; e nos dias 13 e 14/1, uma batalha musical entre grupos de dança de diferentes estilos, com Preta Rara e DJ Simoníssima, entre outros. Programação completa: sescsp.org.br/avenidapaulista

Matheus José Maria

Palco em retrato A história do Festival de Teatro de Curitiba, que completou 30 anos em 2022, confunde-se com a trajetória profissional de Lenise Pinheiro, especializada em fotografia de cena, que cobre o evento desde sua primeira edição, no ano de 1992. Para registrar essa união, as Edições Sesc São Paulo lançam, neste mês, o livro Festival de Teatro de Curitiba. A publicação resgata, em quase 400 páginas com centenas de imagens, a potência criativa de um dos mais importantes e longevos eventos de teatro da América Latina pelas lentes de uma profissional que há décadas retrata o que há de mais expressivo nos palcos brasileiros. Neste ano, a 32ª edição do Festival de Teatro de Curitiba está marcada para o período de 25 de março a 7 de abril, na capital paranaense. Conheça o livro: sescsp.org.br/edicoes

Cena de Uma leitura dos búzios, espetáculo cujo registro audiovisual pode ser visto na plataforma Sesc Digital a partir de 15/1.

BÚZIOS EM VÍDEO No dia 15/1, o Sesc São Paulo lança o registro audiovisual do espetáculo musical Uma leitura dos búzios, que esteve em cartaz em diversas unidades entre novembro de 2022 e maio de 2023. O espetáculo foi concebido como resultado de um trabalho processual e colaborativo realizado ao longo de quase um ano com uma equipe de mais de 30 artistas. Com direção e

roteiro de Rafael Grillo e Marcio Meireles (que também dirigiu o espetáculo), o vídeo apresenta, na íntegra, a narrativa cênica que se inspirou na Conjuração Baiana (1798-1799) para refletir sobre as desigualdades sociais, o racismo e o apagamento histórico do povo negro. A partir de 15/1, o conteúdo fica disponível gratuitamente na plataforma sesc.digital 13 | e


Ricardo Ferreira

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entrevista

Sonhar alto Tricampeã olímpica de vôlei, cubana Mireya Luis Hernández desafia estereótipos ao longo de uma premiada carreira dedicada ao esporte POR MARIA JÚLIA LLEDÓ COLABOROU: ADRIANA REIS PAULICS

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la simplesmente voava. Com o corpo a mais de três metros do chão, deixava o público boquiaberto cada vez que defendia seu time ou enfrentava um adversário nas quadras. A potência desse salto permitiu à jogadora de vôlei cubana Mireya Luis Hernández, de 1,75m de altura, provar sua capacidade para todos que um dia disseram que ela era “muito baixa” para jogar profissionalmente. Tricampeã olímpica (Barcelona 1992, Atlanta 1996 e Sydney 2000) e bicampeã mundial (Brasil 1994 e Japão 1998), Mireya não imaginava que o esporte pelo qual havia se apaixonado na infância poderia mudar sua vida. Ela tinha apenas 11 anos quando Mirta, sua irmã, a acompanhou para um teste de admissão na Escola de Iniciação Esportiva da cidade de Camaguey, onde morava com os sete irmãos e os pais. “Eu simplesmente parei em frente à professora, dei um salto e toquei o teto do lugar. Foi uma surpresa para ela, que logo pediu que me colocassem como a primeira da lista”, recorda Mireya, considerada por alguns críticos a melhor jogadora de voleibol de todos os tempos.

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Depois de uma carreira brilhante, marcada também por famosas alfinetadas da mídia brasileira – que a considerava o grande obstáculo da seleção nacional feminina de vôlei –, Mireya anunciou sua aposentadoria em 2001, um ano depois da terceira medalha de ouro, nos Jogos Olímpicos de Sydney (2000). Fora das quadras, ela integra o Comitê Olímpico Internacional (COI), é comentarista esportiva e atua no desenvolvimento do vôlei de praia da Federação Cubana. Grande parte dessa história é contada pelo jornalista Oscar Sánchez na biografia Entre cielo y tierra (sem edição no Brasil), publicada em 2016. Neste mês, a campeã olímpica pousa no país que já foi seu maior adversário nas quadras para participar de 12 encontros durante a programação do Sesc Verão 2024, entre os dias 6 e 21 de janeiro [Leia mais em Saque campeão]. Nesta Entrevista, ela compartilha sua história e os ensinamentos das quadras, o legado que pretende deixar para as futuras gerações e a expectativa para esse reencontro com os brasileiros.


Humberto Rodriguez Gonzalez

entrevista

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entrevista

Você é um dos grandes destaques do vôlei de sua geração e até hoje seu nome é lembrado como um dos ícones desse esporte. Como o voleibol surgiu na sua vida e em que momento você sentiu que se tornaria uma jogadora profissional? O voleibol chegou à minha vida por meio de uma irmã que já jogava na seleção da província onde eu nasci, em Camaguey [localizada no centro da ilha cubana]. Ela levava uma bola da escola, nos finais de semana, e no pátio de casa aprendi as primeiras técnicas de voleio e recebimento. A partir daí, fiquei motivada para entrar na chamada Escola de Iniciação, que existe em todas as cidades e províncias do meu país. Ali eu comecei com um pouco de dificuldade, já que era uma menina de estatura baixa e não tinha as exigências físicas para fazer parte da equipe que estava se formando. Graças à minha vontade de jogar voleibol, pude demonstrar pelo salto que, sim, eu era capaz de ser integrante da escola. Lembro do dia em que eu fui fazer as provas para integrar a equipe e muitas garotas estavam fazendo uma série de testes, mas não pediam nada a mim. Então, eu simplesmente parei em frente à professora, dei um salto e toquei o teto do lugar. Foi uma surpresa para ela, que logo pediu que me colocassem como a primeira da lista. Nessa escola, eu permaneci por cinco anos participando dos jogos nacionais escolares. Lá o treinador da seleção nacional decidiu me levar e testar se eu, apesar de ser uma jogadora de baixa estatura, poderia ingressar na equipe da seleção nacional. A partir daí, fui chamada para participar dos jogos de inverno e pude demonstrar meu rendimento e a capacidade que eu tinha para atacar. Desse momento em diante, soube que poderia me tornar uma profissional. Foi aí que me dei conta de que eu me diferenciava das demais jogadoras, mesmo não sendo alta.

Como todo esporte coletivo, os bons resultados no voleibol são fruto de um trabalho colaborativo que representa a soma de talentos e esforços. Quais as singularidades presentes no grupo do qual você fez parte que formaram uma combinação perfeita para o sucesso do trabalho realizado por vocês? Nossa equipe era formada por jogadoras que vinham de famílias humildes. Vínhamos de famílias de agricultores, de trabalhadores, e conseguimos integrar essa equipe principalmente por causa do nosso rendimento demonstrado e dirigido pelo treinador Eugenio George Lafita [(1933-2014) eleito o melhor técnico de equipes femininas do século 20 pela Federação Internacional de Vôlei]. O fundamental para nossa equipe sempre foi aquilo que nossos treinadores nos ensinaram: encontrar formas para atingir um rendimento e sustentá-lo com o tempo. Eu acredito que a disciplina e a constância nos mantiveram num alto nível e foi o que nos levou ao êxito. Foi o que nos deu concentração e um “estresse esportivo”, como dizia nosso treinador, algo que precisamos ter em um nível muito alto para alcançar nossas metas. Tínhamos um coletivo muito bem preparado e respeitado, integrado por médicos, fisioterapeutas, psicólogos, nossas famílias e nosso povo, que sempre nos estimulou a manter nosso rendimento e, assim, nos acostumamos a levar conosco essas vitórias. O eixo fundamental foi manter esse coletivo, essa união que sempre nos manteve como uma fortaleza. Treinávamos por até oito horas e meia, todos os dias, e ficávamos fora de casa por muito tempo, viajando por diferentes países do mundo, como China, Japão, Rússia… Graças a tudo isso, conseguimos nos manter, por longas etapas, muito concentradas e como uma família, pensando, todas, de

Esta foi uma linha que seguimos e foi fundamental: o trabalho, a perseverança, a seriedade, o compromisso e a fé, tudo que sempre levamos às quadras


entrevista

maneira coletiva. Atingir esse objetivo não foi fácil, porém, eu acredito que foi a meta e a vontade de todas as jogadoras que nos ajudaram. Ninguém nunca nos disse que tínhamos um compromisso com isso ou aquilo, ou mesmo com o país, porque nós já nos sentíamos comprometidas com nosso país e com a nossa gente. Esta foi a linha que seguimos: o trabalho, a perseverança, a seriedade, o compromisso e a fé, tudo que sempre levamos às quadras.

E que ensinamentos essa experiência trouxe para sua vida fora das quadras? O voleibol é um esporte que requer antecipação, pensamento tático, disciplina tática, preparação física e psicológica. Todos esses elementos são fundamentais para a vida. Eu acredito que se os jogadores e jogadoras de voleibol pudessem levar para a vida o que fizeram em um determinado momento nas quadras, seríamos vencedores. Hoje eu posso dizer que sou uma pessoa que faz o seu melhor, levando o voleibol para a vida, colocando em prática tudo o que aprendi nas quadras.

trabalho desse atleta, que depois acaba se tornando um exemplo. Isso sempre foi uma preocupação, um projeto do país, que começou com Fidel [Castro (1926-2016), primeiro-ministro de Cuba, entre 1959 e 1976, e depois presidente do país de 1976 a 2008] e segue até os dias de hoje. Eu me sinto orgulhosa de ter praticado esporte em Cuba, de ser cubana, de ter pessoas tão preocupadas com esse alto rendimento que tanto êxito deu ao nosso país.

Mireya durante treino com a seleção cubana em Itapecerica da Serra (SP), para o Campeonato Mundial de Vôlei Feminino, realizado em Belo Horizonte (MG) e São Paulo (SP), no ano de 1994.

Pisco Del Gaiso / Folhapress

Atletas cubanos se destacaram mundialmente na época em que você competia, não somente no vôlei, mas também em outras modalidades. A valorização do esporte no âmbito educacional e por meio de políticas públicas permanentes também foram um marco desse período. A que você atribui essa campanha bem-sucedida de atletas cubanos nas mais importantes competições internacionais? Meu país, no esporte, é um exemplo de educação e de políticas públicas que contribuíram para o seu desenvolvimento. Em Cuba, a pirâmide de desenvolvimento do esporte fez com que mantivéssemos um rendimento sem comparação, desde crianças até jovens de alto rendimento. O primeiro incentivo que recebemos no país é a educação, tudo o que necessita um ser humano para ter êxito. Educação, atenção, apoio e exemplo. Posso falar desse tema, particularmente, porque meu esposo, Humberto Rodríguez Gonzalez, foi ministro do esporte em Cuba [entre 1997 e 2005] e aperfeiçoou a pirâmide do esporte e seu desenvolvimento. Ele colocou em prática políticas públicas para que Cuba se mantivesse entre os primeiros países em nível olímpico, em mais de 14 esportes. Esse foi um trabalho árduo que possibilitou nos destacarmos em competições internacionais. Outra coisa que poderia ressaltar é que para os atletas cubanos é obrigatório estudar. Não há um atleta cubano que não estude de acordo com sua idade. Isso é um compromisso do país consigo mesmo. Assim, ele garante seu desenvolvimento e a continuidade do

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Isto é o que me inspira: ter sido esportista, ter conquistado tantas coisas e poder compartilhar com crianças e jovens

As seleções femininas de vôlei do Brasil e de Cuba disputaram partidas antológicas na época em que você integrava o time cubano. Que lembranças você traz daquele período e dessa “rivalidade” bem-vinda do esporte como um combustível para as jogadoras? Tenho ótimas recordações das partidas entre Brasil e Cuba. Um sentimento muito especial pela equipe brasileira, por seus treinadores e todo o coletivo. Demonstramos o que era patriotismo e o que era querer conquistar uma medalha, e todas as coisas que se podem fazer para conquistar uma premiação. Eu me lembro de Atlanta, em 1996, quando tivemos uma partida espetacular, por ambas as seleções, e a equipe cubana estava impressionada com a tática esportiva da equipe brasileira: como estavam jogando, como estavam concentradas e focadas em ser campeãs olímpicas. Nós também estávamos, mas as brasileiras estavam demonstrando algo mais do que havíamos notado em competições anteriores. E o combustível era chegar ao máximo, era tocar a glória com as mãos. Fizemos todo o possível para levar para casa essa medalha, e essa foi uma mostra do que uma equipe é capaz para alcançar grandes conquistas. Não acho que houve nada desagradável ou grosseiro [nessa rivalidade], foi simplesmente uma demonstração do que é querer, da vontade de ficar na história e de querer alegrar seu povo, que é o que mais se busca quando se sobe ao pódio mais alto e se canta o hino nacional.

Dentre os tantos prêmios conquistados ao longo de sua carreira, sua participação nos Jogos Olímpicos de Barcelona, em 1992, foi especialmente memorável, por seu protagonismo na conquista do ouro inédito cubano. Qual o significado dessa medalha e de que modo ela consolidou sua trajetória no esporte? Os Jogos Olímpicos de Barcelona foram, para mim, a consolidação da minha carreira. Em 1992, eu já estava há quase dez anos na seleção nacional, depois de ter entrado muito jovem e não poder participar dos jogos

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de 1988 [em Seul, na Coreia do Sul]. Quando eu cheguei a Barcelona, estávamos ansiosas para participar e ver os outros atletas, essa manifestação tão bonita e única [que são as Olimpíadas] e, claro, já com uma visão mais centrada e focada numa possível medalha de ouro. Lembro que durante a preparação alguém perguntou ao Eugenio George [Lafita] o que era preciso fazer para ganhar os Jogos Olímpicos. E ele respondeu: “Treinar todos os dias num nível alto, 365 dias por ano, durante um período de quatro anos”. Nós nos olhamos e dissemos: “Como vamos fazer isso?”. Mas já era isso o que estávamos fazendo. Nossa preparação nos permitiu conquistar essa medalha. Depois desses Jogos foi que eu realmente entendi que, sim, estávamos preparadas para ganhar. Foram os Jogos mais bonitos de todos os que eu participei. E a partir deles, eu me senti uma jogadora consagrada. Eu havia ganhado tudo, ou quase tudo. Minha esperança cresceu, e meus projetos pessoais também. Já tinha mais experiência, queria ver mais e já sabia como me direcionar para as próximas conquistas. Foi como começar a viver uma nova vida.

E como você avalia a presença crescente das mulheres nos Jogos Olímpicos, uma vez que neste ano em Paris, pela primeira vez, haverá paridade de gênero? Os avanços são reais? É indiscutível que houve um crescimento do protagonismo das mulheres no esporte. Em 2024, pela primeira vez, vai haver uma paridade de gênero, e isso demonstra todo o esforço das mulheres ao longo de tantos anos, tudo o que elas tiveram que vencer, tudo o que tiveram que estudar, trabalhar, destacar-se para igualar esse rendimento. Demonstramos ao mundo que isso, sim, é possível. Tenho certeza de que foi um verdadeiro avanço porque, por exemplo, nos Jogos Olímpicos de 1984 e 1988, não existia essa mentalidade e a mulher seguia sendo uma minoria. Nesse momento, vamos eliminar essa palavra, essa expressão, porque a mulher pratica o que quer, não há distinção de esporte – esporte feminino e esporte masculino –, a mulher pode praticar quase todas as modalidades.


entrevista

Apesar de não mais competir, você continua totalmente ligada ao esporte, inclusive integrando o Comitê Olímpico Internacional (COI). Como sua atuação hoje pode contribuir para inspirar crianças e jovens por meio do esporte? Depois de ter terminado minha carreira ativa no esporte, e de ter sido, por três vezes, campeã olímpica, fui selecionada como membro do Comitê Olímpico Internacional, e com muito orgulho participo dessas jornadas no COI representando meu país e todos os atletas olímpicos do mundo. Isso é mais do que um trabalho, é uma paixão que eu tenho por devolver tudo aquilo que recebi quando eu era uma criança até me tornar uma mulher profissional no esporte. Penso que todos os seres humanos que passam por esse mundo devem deixar algo. Isso é o que me inspira: ter sido esportista, ter conquistado tantas coisas e poder compartilhar com crianças e jovens, deixando para eles mensagens como a de que o esporte é uma das manifestações mais bonitas que existe porque nos educa, nos faz ser melhores seres humanos. Quero, até o último momento da minha vida, ensinar, trocar, dar e promover sorrisos e lágrimas de alegria de crianças e jovens que tanto necessitam.

Quando esteve no Brasil, em 2016, durante os Jogos Olímpicos do Rio, você lançou uma biografia: Entre cielo y tierra. O que motivou você a publicar suas memórias em livro? Você acredita que essa obra possa contribuir para as futuras gerações do esporte? Entre cielo y tierra [Entre céu e terra] é uma vida em forma de livro, mas eu não o chamo de “minha história de vida”, e sim, a história de vida da família de Mireya, especialmente da minha mãe, Catalina. A sensação que eu sentia quando

via as pessoas publicando suas memórias era a de que essas pessoas pensavam que já iam morrer ou que tinham pouco tempo de vida. E Humberto, meu esposo, me disse algo tão bonito: “A juventude precisa de exemplos, de histórias de vida reais, de gente viva que possa falar, transmitir e responder”. E assim surgiu a ideia do livro. Fizemos um planejamento, escolhemos uma pessoa para escrever, que foi Oscar Sánchez, “meu oitavo irmão branco”, como digo a ele. O primeiro que ele fez foi entrevistar a minha família, porque eu não queria que fosse um livro contando quantos remates eu fiz. Teria de ser um livro que contasse onde nasci, minhas origens e as origens dos meus pais, que são os autores de toda essa obra. Sem eles, nada disso seria possível. Eles que foram grandes educadores, pessoas que não tinham um “nível cultural alto”, mas tinham um sentido de vida muito importante e uma educação inigualável. Graças a eles, hoje eu me encontro onde estou. Toda essa homenagem é para meus pais e, em especial, para minha mãe, Catalina.

Neste mês, você estará no Brasil para integrar a programação do Sesc Verão. Quais são suas expectativas para esse reencontro com o público brasileiro? Minhas expectativas são grandes. Gosto de estar entre as crianças e os jovens, e de poder estar com esse público brasileiro que tanto ama o voleibol, que são fanáticos por nossas equipes e jogadoras. Eu me sinto parte desse grupo. Poder trocar com as pessoas, dizer que nós nos admiramos mutuamente, que podemos nos escutar e aproveitar um momento bonito. Tudo isso nos faz aprender e viver. Vai ser muito especial estar com esse público. Também quero muito encontrar com minhas amigas das quadras, dos Jogos Olímpicos, de lágrimas e sorrisos. Quero deixar algo a mais. E vou com o coração aberto.

Quero, até o último momento da minha vida, ensinar, trocar, dar e promover sorrisos e lágrimas de alegria de crianças e jovens que tanto necessitam


entrevista / para ver no sesc

Neste mês, vôlei e outras atividades físicas e esportivas fazem parte da programação do Sesc Verão, realizada em todas as unidades do Sesc São Paulo.

SAQUE CAMPEÃO Durante o Sesc Verão 2024, Mireya Luis Hernández circula pelas quadras de 12 unidades do Sesc SP na capital e interior

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VÁRIAS UNIDADES

Circuito de voleibol com Mireya Luis Hernández Dia 6/1. Sábado, das 13h às 15h30, no Sesc Santo Amaro. Dia 7/1. Domingo, das 15h30 às 17h30, no Sesc Pinheiros. Dia 9/1. Terça, das 18h às 21h, no Sesc 24 de Maio. Dia 10/1. Quarta, das 18h30 às 21h30, no Sesc Belenzinho. Dia 11/1. Quinta, das 19h30 às 21h30, no Sesc Campo Limpo. Dia 12/1. Sexta, das 19h30 às 21h30, no Sesc Mogi das Cruzes. Dia 13/1. Sábado, das 14h30

às 17h30, no Sesc Guarulhos. Dia 14/1. Domingo, das 10h às 12h30, no Sesc Ribeirão Preto. Dia 17/1. Quarta, das 19h30 às 21h30, no Sesc São Carlos. Dia 18/1. Quinta, das 19h às 21h, no Sesc Piracicaba. Dia 20/1. Sábado, das 16h às 18h30, no Sesc Taubaté. Dia 21/1. Domingo, das 15h30 às 18h, no Sesc São José dos Campos. GRÁTIS Programação completa: sescsp.org.br/sescverao

Tania Van den Berghen / Pixabay

A ex-atleta cubana Mireya Luis Hernández, tricampeã olímpica e bicampeã mundial de vôlei (entre 1992 e 2000), desembarca no Brasil neste mês para uma série de 12 encontros nas unidades do Sesc na capital e interior do estado de São Paulo. Entre 6 e 21 de janeiro, Mireya conduz vivências práticas e bate-papos com o público, ao lado de atletas brasileiras, como Karin Rodrigues, Virna Dias, Fofão, Fátima Santos, Ana Moser e Spencer Lee. Os encontros com a ex-jogadora fazem parte da programação do Sesc Verão 2024, promovido pelo Sesc São Paulo até 18 de fevereiro, em todas as unidades do estado.



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Jonne Roriz / Exemplus / COB


esporte

Jogos Olímpicos de Paris 2024 atingem marca histórica ao igualar, pela primeira vez, número de atletas mulheres e homens POR LUNA D’ALAMA

Enquanto se prepara para disputar Paris 2024, a atleta Duda Arakaki, capitã da seleção brasileira de ginástica rítmica, se diz feliz em ver cada vez mais mulheres se destacando nos esportes.


esporte

C

riados para resgatar uma antiga tradição grega fundada no ano de 776 a.C., os Jogos Olímpicos da Era Moderna foram realizados pela primeira vez em 1896, em Atenas, capital da Grécia, somente com participação masculina – assim como ocorria na Antiguidade. Por pressão sobre o então recém-criado Comitê Olímpico Internacional (COI), 22 atletas mulheres (que representavam menos de 2% do total de inscritos – 997 homens) foram admitidas na edição seguinte, Paris 1900, na capital francesa, em esportes como tênis, golfe, vela, natação e hipismo, todas consideradas modalidades “belas e delicadas”, sem contato físico. A tenista britânica Charlotte Cooper (1870-1966) se tornou, então, a primeira mulher a ocupar o topo do pódio nas categorias simples feminino e duplas mistas. Mas não levou nenhuma medalha de ouro para casa, pois naquela época as mulheres não eram consideradas, oficialmente, atletas, e recebiam apenas um certificado. Apesar dos entraves iniciais, os avanços femininos nos Jogos não pararam por aí: em 1936, em Berlim, na Alemanha, as mulheres foram, finalmente, consideradas atletas olímpicas. Em 1968, na Cidade do México, a mexicana Enriqueta Basilio (1948-2019) entrou para a história como a primeira atleta feminina a acender a pira olímpica. Já em 1981, duas mulheres passaram a integrar o COI e, três décadas mais tarde, em Tóquio 2020, no Japão [competição realizada em 2021, em

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razão da pandemia de covid-19], a neozelandesa Laurel Hubbard se consagrou como a primeira competidora transgênero, no levantamento de peso. Este ano, de 24 de julho a 11 de agosto, em Paris, a presença e a potência das mulheres nas Olimpíadas alcançarão outro marco inédito: haverá igualdade de gênero em número de participantes femininos e masculinos (5.250 de cada). “O movimento olímpico moderno foi feito por homens e para seus pares. No início, participavam apenas jovens europeus, brancos e com recursos financeiros. Até Montreal 1976 [no Canadá], quase 80% do quadro de competidores era do gênero masculino. Foi só em Londres 2012 [no Reino Unido], que as mulheres entraram no boxe (esporte olímpico desde 1904) e passaram a disputar todas as provas que os homens, mas ainda em quantidade inferior”, explica a pesquisadora Larissa Galatti, livre-docente em educação física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte, na mesma instituição. Segundo a especialista, isso ocorreu porque a mulher foi, tradicionalmente, considerada procriadora e cuidadora dos filhos, do marido e do lar, de corpo frágil, que não aguentava muito esforço nem contato. “Tudo isso a ciência já provou que está errado. Inclusive, há um movimento grande de atletas-mães nos Jogos Olímpicos lutando pelo direito à maternidade nos esportes de alto rendimento, para que não seja preciso escolher entre carreira e família”, destaca Galatti. Além disso, desde Tóquio 2020, o COI aprovou uma diretriz para que somente sejam incluídas novas modalidades


Wagner Carmo / COB

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A pernambucana Joanna Maranhão durante prova de natação nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, no México, em 2011, de onde saiu com três medalhas.

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nos Jogos se for considerada a participação de homens e mulheres. Isso valeu para o surfe, o skate e a escalada. Nesta próxima edição, serão disputadas 38 modalidades nas categorias feminina e masculina, incluindo os estreantes breakdance e canoagem slalom extremo. “Igualdade no número de participantes, infelizmente, ainda não representa equidade em outras esferas. Continuam as disparidades de salários, oportunidades e visibilidade na mídia. Além disso, o acesso ao esporte por meninas e mulheres, no Brasil e no mundo, é mais difícil do que para meninos e homens. Sobretudo quando falamos em alto rendimento e em mulheres negras, periféricas, trans, com deficiência, com corpos diversos ou de baixa renda”, analisa Galatti. Segundo ela, competir em modalidades olímpicas também prevê que a pessoa tenha treinamento adequado, espaço físico, patrocínio, alimentação balanceada e uma equipe multidisciplinar em torno dela. “No esporte brasileiro em geral, de acordo com uma pesquisa que fizemos na Unicamp, as mulheres praticantes são brancas e ganham mais de cinco salários mínimos por mês. Por isso, precisamos de políticas públicas e privadas para conquistar uma maior participação feminina, nos inspirar em nomes do passado e da atualidade, como a ginasta Rebeca Andrade, e prestigiá-las quando estiverem competindo”, completa.

AS PIONEIRAS Entre as precursoras do esporte de alto rendimento no país, está a nadadora paulistana Maria Lenk (1915-2007), primeira brasileira e sul-americana a competir nos Jogos Olímpicos em Los Angeles (Estados Unidos), em 1932. Ela fez o trajeto num navio cheio de homens, aos 17 anos, e vendeu café no porão da embarcação para custear a viagem. Em 1939, bateu o primeiro recorde mundial de natação pelo Brasil, no estilo peito, e é considerada inventora do nado borboleta. Além de Maria Lenk, destaca-se a velocista Melânia Luz (1928-2016), primeira atleta olímpica negra do Brasil, que estreou nos Jogos de Londres, em 1948. “Naquela época, os atletas não recebiam pagamento pelos treinos, por isso Melânia trabalhou por 30 anos como técnica de laboratório no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Treinava nos horários livres, aos finais de semana”, conta a pesquisadora Larissa Galatti. Em 2023, o São Paulo Futebol Clube lançou uma mascote em homenagem a Melânia, que competia pelo clube paulistano. As primeiras medalhistas olímpicas do Brasil vieram apenas em Atlanta 1996, nos Estados Unidos, ao passo que a primeira medalha do país no masculino havia sido em 1920, no tiro esportivo. Em 1996, o Brasil conseguiu três pódios de ouro, três de prata e nove de

TEMOS PLENAS CONDIÇÕES DE ESTAR ONDE QUISERMOS, E CONQUISTAMOS ISSO POR MÉRITO, NÃO POR IMPOSIÇÃO Janeth Arcain, medalhista olímpica no basquete


É UMA LUTA GRANDIOSA E NÃO POSSO PARAR, POIS SOU ESPELHO PARA MUITAS OUTRAS PESSOAS QUE TAMBÉM SONHAM EM SER ATLETAS DE ALTO NÍVEL Tifanny Abreu, primeira atleta trans da Superliga feminina de vôlei

bronze, com grande destaque para o vôlei de quadra, vôlei de praia e basquete feminino. Já as primeiras medalhas individuais de atletas brasileiras foram conquistadas em Pequim 2008, na China: a saltadora em distância Maurren Maggi levou o ouro e a judoca Ketleyn Quadros, o bronze. Esse atraso nos resultados femininos se deve, em grande parte, a um decreto-lei que vigorou no país entre 1941 e 1979, proibindo as mulheres de praticar esportes, pelas “condições de sua natureza”. Em 1965, uma segunda lei especificava as modalidades às quais elas não poderiam aderir, como lutas, futebol, rúgbi e halterofilismo. Pertencente à geração de Magic Paula e Hortência, a ex-jogadora de basquete Janeth Arcain – medalha de prata em 1996, e de bronze em 2000 – conta que foi histórico ter subido ao pódio em Atlanta, quando vivia uma ótima fase da vida e da carreira, que vinha desde o ouro no Mundial de 1994, apesar de jogar em um clube sem patrocínio. “Foi extraordinário ter feito parte do seleto grupo das melhores equipes de seleções olímpicas. A superação foi ainda maior por eu ser uma mulher preta, vinda de uma família e de uma comunidade muito simples. Sempre me dediquei muito, sou disciplinada, centrada. Tracei metas e, aos 16 anos, fui convocada para a seleção brasileira, conquistei vários títulos. Até a minha geração, o basquete ainda era olhado como um esporte masculino, pelo alto contato. Mas quebramos esse paradigma, e tenho certeza de que as novas gerações de mulheres vão chegar ainda mais longe”, torce Janeth.

A campeã olímpica, paulistana de nascimento, acredita que as conquistas femininas vão acontecendo gradativamente, e que é preciso celebrar a equidade de gênero nos Jogos de Paris, feito a ser seguido pelas Paralimpíadas, que este ano ocorrem de 28 de agosto a 8 de setembro. “Essa equiparação no número de mulheres e homens mostra que nós temos plenas condições de estar onde quisermos, e conquistamos isso por mérito, não por imposição. Ainda precisamos quebrar diversos tabus, pois os desafios são muitos, e isso leva tempo. No fim das contas, a igualdade de gênero vai ao encontro de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor para todos nós”, afirma a ex-jogadora de basquete.

CONTRA PRECONCEITOS E ABUSOS Primeira brasileira a disputar quatro edições dos Jogos Olímpicos, de 1996 a 2008, a ex-judoca e atual professora Edinanci Silva lembra, aos 47 anos, que começou no esporte aos 14, na Paraíba, para ajudar no tratamento de uma labirintite. Encantou-se pela filosofia do judô, uma ferramenta, segundo ela, para disciplinar o corpo e a mente, e não para defesa pessoal. No início de sua participação olímpica, porém, Edinanci se viu em meio a polêmicas e discursos preconceituosos por ser uma pessoa intersexo, ou seja, com características sexuais que não se enquadram nas noções normatizadas de masculino e feminino. A atleta passou, então, por uma cirurgia de 29 | e


FIBA

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redesignação sexual, e pôde competir na categoria feminina. “Foi um caso altamente exposto na mídia, com muitos debates, olhares e julgamentos. Mas tive um apoio enorme das pessoas à minha volta, da família e da equipe do judô”, recorda. Medalhista olímpica, mundial e pan-americana, Edinanci Silva considera importante a equidade de gênero nos Jogos de Paris. “Esse número igual demonstra que estamos evoluindo, mesmo que a passos curtos”, ressalta a atual professora de judô. Outra voz potente em defesa das mulheres no esporte é a ex-nadadora recifense Joanna Maranhão, que revelou, em 2008, ter sido abusada sexualmente pelo próprio técnico, quando tinha 9 anos de idade. A repercussão do caso foi tanta que levou à criação da Lei Joanna Maranhão (nº 12.650/2012), que dá mais tempo para as vítimas denunciarem – e a Justiça punir – os abusadores. “Em Atenas 2004, na minha estreia olímpica, as mulheres brasileiras tiveram um resultado melhor que o dos homens na natação. Fiquei em quinto nos 400 metros medley, a melhor colocação já obtida por uma nadadora brasileira (mesmo feito de Piedade Coutinho [1920-1997], em 1936). Vivemos a sororidade bem antes de essa palavra entrar na moda. Foi algo bonito que acabou se traduzindo numa edição histórica para a natação feminina do nosso país”, lembra Maranhão, que termina neste mês seu mandato de um ano como presidente do Conselho de Ética do Comitê Olímpico do Brasil (COB). A ex-nadadora, que agora atua como educadora física, afirma que a equidade de gênero nas Olimpíadas de Paris, ainda que por um viés numérico, é muito simbólica. “Isso é parte da revolução. As mulheres ainda precisam estar em mais lugares de tomada de decisão, que estejam realmente abertos às necessidades e ao bem-estar

Campeã olímpica, a ex-jogadora Janeth Arcain foi convocada aos 16 anos para a seleção brasileira de basquete feminino, época em que as mulheres não eram plenamente aceitas no esporte.

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femininos – seja das atletas, treinadoras, comissões técnicas ou funcionárias administrativas”, pontua. Além disso, Maranhão observa que ainda é preciso abranger mulheres em situação de vulnerabilidade. “O Brasil ainda tem muito a avançar e, no Conselho de Ética do COB, onde ficarei como integrante por mais três anos, tento levar às vítimas (a maioria atletas) um pouco de conforto durante os processos investigativos”, explica Maranhão.

PRECISAMOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS E PRIVADAS PARA CONQUISTAR UMA MAIOR PARTICIPAÇÃO FEMININA, NOS INSPIRAR EM NOMES DO PASSADO E DA ATUALIDADE Larissa Galatti, pesquisadora em pedagogias do esporte pela Unicamp

Aos 20 anos, Duda Arakaki é capitã da seleção brasileira de ginástica rítmica. Em agosto de 2023, no Mundial de Valência, na Espanha, ela e a equipe conquistaram a vaga para os Jogos de Paris, além de ir à final da prova de cinco arcos. Ainda no ano passado, o grupo ficou com o terceiro lugar na Copa do Mundo da Grécia, foi campeão na final de cinco arcos na Copa de Portimão, em Portugal, e, na etapa da Romênia, levou três medalhas: uma de ouro, uma de prata e outra de bronze. Duda lidera esse time vencedor desde 2020, mas também conhece a dor de perto: já passou por uma cirurgia no joelho e uma lesão no pé, faltando apenas quatro dias para o Mundial da Espanha. Segundo Duda, as mulheres no esporte ainda são discriminadas em modalidades consideradas masculinas, sofrem diversos tipos de assédios e carecem de patrocínio, entre muitas outras adversidades. “As mulheres são menos incentivadas a ingressar no alto rendimento. Merecemos um maior reconhecimento, por isso fico muito feliz em ver cada vez mais atletas se destacando nas categorias femininas dos esportes em geral”, ressalta a capitã.

ATLETA TRANS O Brasil ainda não tem uma atleta trans na seleção olímpica, mas está próximo da inclusão. A jogadora de vôlei tocantinense Tifanny Abreu se tornou, em 2017, a primeira transexual a competir na Superliga feminina, a elite do voleibol brasileiro. O time que ela defende, o Osasco, terminou a edição 2022/2023 em terceiro lugar, e Tifanny foi eleita a maior pontuadora da temporada, com 491 pontos – uma média de 5,2 por set. A consagração de medalhas começou ainda na adolescência, em 2000, quando ela passou por um campeonato paulista, em 2018, depois de voltar da Itália, onde jogou, pela primeira vez, em um torneio oficial feminino. “Não imaginava que ocupar esse lugar seria tão importante para a comunidade LGBTQIA+, e tenho muito orgulho em representá-la. É uma luta grandiosa e não posso parar, pois sou espelho para muitas outras pessoas que também sonham em ser atletas de alto nível”, diz Tifanny, que atua nas posições de oposta e ponteira. Segundo a jogadora, cujo maior sonho é ser campeã e disputar um Mundial pelo Osasco, mulheres cis e trans vivenciam lutas e desafios diários por mais espaço, inclusão e acessibilidade.


para ver no sesc / esporte

SE JOGA NO ESPORTE! De 6 de janeiro a 18 de fevereiro, Sesc São Paulo realiza mais uma edição do Sesc Verão, estimulando a prática de uma variedade de atividades físicas e esportivas

Ao longo de seis semanas, entre os dias 6 de janeiro e 18 de fevereiro, o Sesc São Paulo realiza a 29ª edição do Sesc Verão. Com o tema “Se joga no esporte!”, o evento deste ano é inspirado nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, que acontecerão entre os meses de julho e setembro de 2024, em Paris, na França. Também se baseia na pedagogia do esporte, metodologia utilizada nos programas esportivos do Sesc, compreendendo os jogos como ferramentas de ensino e aprendizado. Como ocorre a cada ano, o Sesc Verão oferece, gratuitamente, diversas atividades físicas e esportivas ao público, de forma que as pessoas experimentem várias modalidades e as incorporem em seu dia a dia. A programação proposta nas unidades da capital, Grande São Paulo, interior e litoral – com mais de 1500 aulas abertas, recreações, vivências e bate-papos, entre outras ações – divide-se em cinco categorias: jogos de rebater (voleibol, vôlei de praia, tênis, tênis de mesa, badminton), invasão (basquete, handebol, futebol), expressão (ginásticas, skate, salto ornamental, breaking), lutas ( judô, boxe, taekwondo, esgrima) e marca (natação, atletismo, ciclismo, triatlo, vela, remo, canoagem). “As unidades do Sesc São Paulo prepararam uma programação diversificada de atividades, abrangendo distintas modalidades e abordagens. Nesta edição,

destacamos metodologias de ensino do esporte fundamentadas no acolhimento, na pedagogia esportiva e no acesso à prática para todas as pessoas. O objetivo é fazer com que os participantes se encantem por uma ou mais modalidades e, a partir daí, possam literalmente se jogar no esporte ao longo de todo o ano”, reforça Carol Seixas, gerente da Gerência de Desenvolvimento Físico e Esportivo do Sesc São Paulo. Confira alguns destaques da programação deste mês:

18h30, e de 10 a 31/1. Quartas, das 17h30 às 19h. GRÁTIS.

CONSOLAÇÃO

Batalha de breaking O mais novo esporte olímpico, que estreia nos Jogos em Paris 2024, é apresentado em batalhas-shows com b-boys e b-girls (atletas dançarinos) da Confederação Brasileira de Breaking, ao som de ritmos como funk e rap. Dia 27/1. Sábado, das 16h às 17h. GRÁTIS.

SANTANA

Jogo de abertura – Basquete 3x3 Jonatas Julio, Kawanni Silva, “Branquinho”, Luana Batista, Rayane de Freitas e Will Weihermann, atletas da seleção brasileira de basquete 3x3, apresentam a modalidade e conduzem uma vivência com o público. Dia 6/1. Sábado, das 14h às 17h. GRÁTIS.

PINHEIROS

O protagonismo feminino no movimento olímpico Bate-papo com a ex-nadadora Joanna Maranhão e a ativista Paula Korsakas sobre igualdade de gênero nos Jogos Olímpicos modernos. Dia 31/1. Quarta, das 20h às 21h30. GRÁTIS.

BIRIGUI 14 BIS

Skate Apresentação esportiva com Raicca Ventura, skatista da seleção brasileira na categoria park. Dias 6, 13, 20 e 27/1. Sábados, das 17h às 18h30. Dia 25/1. Quinta, das 17h às

Vôlei Bate-papo e vivência com Jaqueline Silva e Sandra Pires, primeiras campeãs olímpicas femininas do Brasil, que conquistaram ouro em Atlanta 1996, como dupla no vôlei de praia. Dia 21/1. Domingo, das 15h às 18h. GRÁTIS. 33 | e


bio

SEMPRE

canção

POR MANUELA FERREIRA

V

er uma estrela cadente cruzar os céus é um momento que, de tão inusual, costuma emocionar o espectador. Estes corpos siderais são meteoros que, ao entrar na atmosfera terrestre, deslocamse em alta velocidade, em combustão, deixando um rastro de brilho para trás. É preciso um olhar atento, uma noite clara e alguma sorte para avistá-los: o rasgo de luz move-se por segundos, vertiginoso, a ponto de causar dúvidas sobre a natureza do que se viu. Os eventos que fundamentam a vida de uma pessoa podem se assemelhar ao fenômeno, às vezes pela singularidade, outras pela beleza ou brevidade. Na música brasileira,

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a trajetória de uma cantora extraordinária esteve apagada por muito tempo, tal qual a matéria estelar dispersa no cosmos após atravessar o horizonte. Seu nome: Leny Eversong (1920-1984), um sucesso radiofônico dos anos 1950 e cuja fama, enquanto artista brasileira nos Estados Unidos, poderia ser equiparada apenas à da cantora e atriz Carmen Miranda (1909-1955). Coube ao escritor, jornalista, historiador e crítico musical Rodrigo Faour investigar a trajetória da artista e homenageá-la no recém-lançado A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (Edições Sesc São Paulo, 2023). Na obra, Faour redimensiona o apogeu e o declínio de uma estrela ainda pouco conhecida em seu próprio país – e dona de uma biografia marcada por tragédias e proezas. “Nunca ouvi uma voz feminina de tamanha amplitude na história de nossa música popular. Também salta aos ouvidos a musicalidade dela: uma mulher que não falava nenhuma língua, além do português, e que conseguia cantar perfeitamente em inglês, francês, espanhol e italiano, é algo impressionante”, destaca Faour. Segundo o biógrafo, Leny recebeu críticas positivas nos Estados Unidos e na França, algo que poucos artistas estrangeiros conseguiram. “Dentre os brasileiros, nunca vi uma cantora ser comparada em nível de excelência a ícones deles, como Billie Holiday (1915-1959). Leny cantou nos palcos de um dos maiores cassinos de Las Vegas, enquanto Sarah Vaughan (1924-1990) e a orquestra de Count Basie (1904-1984) atuavam em palcos menores, no foyer dos cassinos”, detalha o autor.

Acervo pessoal da artista

O legado da cantora brasileira Leny Eversong, que conquistou palcos mundo afora, mas segue desconhecida no próprio país


Hilda Campos Soares da Silva (nome de batismo de Leny Eversong) nasceu em Santos, no litoral paulista, e começou a cantar aos 12 anos, na Rádio Clube Santista.


bio

Leny pertence a uma geração de intérpretes brasileiros de voz marcante que se criaram na chamada Era do Rádio, na qual se incluem nomes como Angela Maria (1929-2018), Cauby Peixoto (1931-2016), Dolores Duran (1930-1959) e Claudette Soares (1937-), sobre quem Faour também já escreveu. “Em cada livro, escolhi um enfoque. No da Leny, entendi que, embora fosse dessa mesma época, ela não foi uma típica cantora de rádio, pois seu sucesso retumbante não foi exatamente no rádio, mas muito nos palcos internacionais e na televisão, ainda que a alavanca tenha sido sua participação na inauguração da Rádio Mundial do Rio de Janeiro, em 1955, cidade onde realmente as coisas aconteciam artística e culturalmente”, analisa. Segundo o pesquisador, Leny Eversong é difícil de ser classificada por permanecer fora dos padrões, sejam eles vocais, corporais, estéticos ou musicais. “Ela passou por vários estilos e, de raspão, em alguns movimentos musicais, além de ter feito cinema, teatro e TV, equilibrando-se entre a cantora e a atriz bissexta que também foi”, ressalta.

Hilda Campos Soares da Silva (nome de batismo de Leny) nasceu em Santos, no litoral paulista, e cantava desde os 12 anos na Rádio Clube Santista. Adolescente, ficou órfã e, aos quinze, casou-se. “Por volta de 1935, conheceu Carlos Baccarat, gerente da Rádio Atlântica de Santos, que lhe daria sua identidade artística. E Hilda Campos foi rebatizada de Leny ‘Eversong’ – literalmente, ‘sempre canção’ [em tradução para o português]. Nessa fase, mesmo já entoando seus foxes, queria mesmo era ser cantora de ópera, mas ele [Baccarat] a convenceu de que ela morreria de fome se optasse por tal carreira, porque o canto lírico era algo muito elitista naquela época e uma atividade promissora apenas para moças da alta sociedade que pudessem incrementar os estudos na Europa ou nos Estados Unidos”, escreveu Faour em seu livro. “[A cantora] Inezita Barroso (19252015) também a considerava ‘uma das vozes mais lindas do Brasil’ e uma pessoa ‘muito querida, sem frescura – não era chata!’. Trabalharam na mesma emissora (Rádio Nacional de São Paulo) e num show coletivo em 1955. A voz dela empolgava quando cantava 'Babalu' (1958), bem antes de Angela Maria gravar”, relatou o jornalista.

No ano de 1968, junto ao cantor e amigo Cauby Peixoto, que a convidou para gravar com ele um LP ao vivo em sua boate Drink, no bairro de Copacabana (Rio de Janeiro-RJ).

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Acervo pessoal da artista

VOZ DE OURO


bio

PALCOS DA VIDA A artista demorou para conquistar a fama. Ancorou no Rio de Janeiro em 1937, cantou na Rádio Tupi e no Cassino da Urca, mas voltaria para São Paulo pouco depois. Foi crooner de orquestras e, até 1951, cantava apenas em inglês – ainda que não dominasse a língua. Quando chegou aos EUA, já era uma das cantoras brasileiras do rádio mais bem pagas. Lotou temporadas em casas de espetáculos e, na televisão estadunidense, fez uma histórica participação no programa The Ed Sullivan Show, em 1957. Suas interpretações eram intercaladas com apresentações do cantor e compositor Elvis Presley (1935-1977), à época um jovem roqueiro em ascensão. Leny também encantou plateias na França, Argentina, Chile e Cuba, entre outros países. Foram mais de 700 shows no exterior. “O fato de cantar em vários idiomas e de ter feito mais sucesso com músicas em outras línguas também a fazia diferente. Por isso, resolvi problematizar questões como o nacionalismo da imprensa e da intelectualidade da época, que não achava seu trabalho tão ‘brasileiro’ ou digno de comparação a outros que cantavam ritmos da terra e em nosso idioma, e a gordofobia que ela sofreu, para além dessa, digamos, dificuldade de classificação do seu legado”, reflete Rodrigo Faour. Em gravações como "Jezebel" (1957) e "Granada" (1955), Leny exibe a plena dimensão de seu alcance vocal, ora flertando com o jazz, ora se aproximando da dramaticidade de uma primadonna. Apesar do talento, da voz poderosa e do sucesso internacional, a vida pessoal da artista se sobrepôs à carreira em momentos significativos.

Acervo pessoal da artista

ESTÉTICA DA DOR Era julho de 1941 quando teve seu único filho, Álvaro Augusto de Campos Filgueiras. Traída pelo marido, optou pela separação – no processo, perderia a guarda do menino, que pôde visitar a mãe apenas uma vez por mês, ao longo dos sete anos seguintes. “Ela chegou a ser considerada a mulher mais bonita de Santos. Era, inclusive, esportista. Praticou arremesso de peso, além de vôlei, na posição de levantadora no Vasco da Gama de Santos”, narrou Faour em seu livro. Aos 21 anos, o biógrafo conta que Leny teve um desequilíbrio hormonal e engordou muito. “Por volta dos 30 anos, passou a usar os cabelos oxigenados, ornando um belo rosto, de sorriso cativante. Era uma figura que chamava a atenção”, escreveu o autor.

Ao lado da cantora e amiga Dalva de Oliveira.

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A beleza e a vivacidade que Leny exibia, no entanto, ocupariam menos espaço na imprensa da época frente às críticas ao seu físico, algo que, segundo o escritor, contribuiu para o apagamento da história da cantora. “Basta fazer um levantamento das atrizes, vedetes e cantoras que se celebrizaram no século 20. Se não sofressem por fatores estéticos, isso era compensado pela incompreensão, ciúme ou sabotagem de seus maridos, namorados e empresários. No caso de Leny, um corpo gordo como o dela era muito incômodo. Os cronistas – tanto homens, na maioria, mas também algumas mulheres – não conseguiam puramente elogiar o trabalho dela sem fazer alusão à gordura. Ela, por sua vez, entrava na brincadeira (de mau gosto) porque se não o fizesse, falariam da mesma maneira, o que acabou se tornando uma espécie de marketing perverso”, explica o jornalista.

BRILHO ETERNO Em agosto de 1973, Leny sofreria outro profundo baque. Seu segundo marido, Francisco Luís Campos Soares da Silva, desapareceu sem deixar pistas enquanto viajava de carro da capital para o litoral paulista. O corpo jamais foi oficialmente encontrado ou reconhecido. Acredita-se que ele tenha sido assassinado por agentes da ditadura militar ao ser confundido com um sindicalista. Tomada pela tristeza, e com graves problemas de saúde, a cantora afastou-se dos palcos definitivamente, em 1978. O desaparecimento do marido traria uma adicional dificuldade à cantora. Impossibilitada de comprovar o óbito, também não podia movimentar as economias que reuniu ao longo da carreira, administradas em conjunto com o marido. Leny nunca quis morar nos Estados Unidos e, muito apegada ao filho, não se dispôs a abraçar a rotina cansativa de turnês internacionais. “Todos os artistas brasileiros que conseguiram fixar seu nome naquele mercado – e consequentemente, estendendo-o por outras praças europeias e asiáticas – sempre precisaram morar um bom tempo por lá. Foi assim com Carmen Miranda, depois com Tom Jobim (1927-1994), João Gilberto (1931-2019), Sergio Mendes e outros. Anitta atualmente está tentando, por isso mora lá", analisa Faour. Mesmo assim, a cantora chegou onde poucos artistas brasileiros chegaram. E, com sua voz e talento, cruzou o céu deixando, para sempre, um rastro de luz.

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Acervo pessoal da artista

A cantora na capa do disco A Internacional (1958-1959), lançado pela RGE.


para ver no sesc / bio

TONS DE UM ENCONTRO A incrível história de Leny Eversong é fruto de três décadas de investigação sobre a cantora brasileira

O argumento que originou a recém-lançada biografia A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (Edições Sesc São Paulo, 2023) é resultado do arrebatamento que Rodrigo Faour experimentou ao ouvir a cantora pela primeira vez, no início dos anos 1990, quando ainda era estudante de jornalismo. “Tudo aconteceu por acaso, quando um colega de curso me deu uma fita cassete para que eu gravasse por cima algumas canções para um trabalho. Na capa da fita estava escrito 'Sereno – Leny Eversong'. Como sempre via esse nome americanizado de cantora, tão diferente no meio de tantos outros, quando folheava a Enciclopédia da Música Brasileira que minha mãe tinha em casa, resolvi ouvir a fita antes de qualquer coisa. Encantado com a sua voz portentosa, telefonei para o historiador Jairo Severiano (1927-2022), que me disse se tratar de uma grande intérprete e me copiou também em fita dois álbuns da cantora”, recordou no livro. Nessa altura, Faour tinha apenas 20 anos de idade e, desde então, passou a colecionar tudo o que achava sobre a cantora – revistas, fotos, discos etc. O livro lançado agora é uma adaptação de sua

Em 1955, ano em que Leny participou da inauguração da Rádio Mundial do Rio de Janeiro.

dissertação de mestrado, defendida em 2020 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e joga luz, ainda, sobre as lacunas que ficaram de fora da grande maioria dos estudos da música popular feitos até o momento, segundo o escritor. “Com todos os percalços, uma cantora brasileira ter conseguido chegar aonde chegou, notada por Elvis Presley, Frank Sinatra (1915-1998), Sammy Davis Jr. (1925-1990) – e tudo isso sem falar inglês –, ela realmente não pode ser apagada da história”, arremata.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu (2023) De Rodrigo Faour Acesse o site das Edições Sesc São Paulo para adquirir o livro.

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Anohpecbrealya isrmsunsiade. Série Flora mutandis (2022).


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TAXONOMIA DO PODER Artista Giselle Beiguelman pesquisa plantas conhecidas por nomes que naturalizam preconceitos e utiliza inteligência artificial para criar seres híbridos como alternativa à botânica clássica POR LUNA D’ALAMA

Todas as imagens presentes nesta seção integram a série Flora mutandis (2022), de Giselle Beiguelman, e foram criadas com inteligência artificial usando redes neurais StyleGAN2.

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o visitar, durante a pandemia, um casarão na capital paulista tomado por trepadeiras, em uma ocupação do artista paranaense C.L. Salvaro, a também artista e pesquisadora Giselle Beiguelman avistou uma planta de que gostava muito, mas cujo nome desconhecia. Ganhou uma muda de folhas verdes e roxas da espécie Tradescantia zebrina e soube, então, que ela era conhecida popularmente como “judeu-errante”. O termo despertou um gatilho imediato em Beiguelman, que é judia. A partir daí, a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) decidiu estudar exemplares da botânica que naturalizam preconceitos, misoginia, racismo, xenofobia, antissemitismo, colonialismo e projetos de poder. Encontrou uma série de espécimes no Brasil e no mundo, como Thunbergia alata (apelidada de “bunda-de-mulata”), Senecio jacobsenii (“trança-de-cigana”) e Impatiens walleriana (a popular flor “maria-sem-vergonha”), entre muitos outros – sobretudo para designar ervas daninhas, consideradas intrusas ou indesejadas. “A taxonomia [ramo da biologia responsável por descrever, identificar e nomear os seres vivos de acordo com critérios genéticos, fisiológicos, morfológicos e reprodutivos] permitiu pensar, a partir do século 16, que nós, seres humanos, somos o topo da cadeia alimentar. Apostamos no Antropoceno [era geológica atual, caracterizada pelo impacto do ser humano na Terra] e em diversas formas de violências sociais e históricas”, explica a artista, autora de livros como

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Políticas da imagem: vigilância e resistência na dadosfera (Ubu, 2021) e Memória da amnésia: políticas do esquecimento (Edições Sesc São Paulo, 2019). “Porém, precisamos superar as noções de natureza e cultura, e incorporar a ideia da diferença como nossa razão de existir. Necessitamos da convivência entre os diferentes, e é isso o que as plantas e os animais nos ensinam, numa lógica de espécies companheiras, mutualistas, que dependem umas das outras e vivem juntas”, analisa. Toda essa pesquisa culminou na exposição Botannica Tirannica, que ocupa, até fevereiro deste ano, o Sesc Taubaté [leia mais em Plantas insurgentes], depois de passar pelo Museu Judaico de São Paulo, pela Itália e pelo Paquistão. Para compor a mostra, a artista utilizou, ainda, recursos de inteligência artificial para gerar imagens de seres híbridos, uma mistura de vegetais, animais e minerais. Um conjunto de 24 trabalhos (mescla de impressões, vídeos e um ensaio audiovisual) formam esse mosaico, e as 18 imagens da série Flora mutandis foram batizadas por um algoritmo que embaralhou nomes de plantas e criou alcunhas longas e impronunciáveis, como Tiacaomotli acuamtns, Huotrhcni aupidtnoaeohgnotib e Eosmabta aitralenolunnoh. “Usei grandes conjuntos de dados que eliminam as particularidades dos seres e chegam a similaridades genéticas entre eles. A inteligência artificial abre vários caminhos possíveis, sem separar natureza e cultura. Ela transcende essa visão”, pontua. As próximas páginas trazem alguns dos trabalhos que compõem a exposição.


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Sibinisi essprarpaeuba. Série Flora mutandis (2022).

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À direita, Nafii baitdakhrum. Abaixo, Sibinisi essprarpaeuba. Ambas da série Flora mutandis (2022).

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Nesta página, Tiacaomotli acuamtns. Ao lado, Eosmabta aitralenolunnoh. Ambas da série Flora mutandis (2022).

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Este é o espaço reservado para a legenda da imagem. Este é o espaço reservado para a legenda da imagem.

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À esquerda, Oean aomorpoenctho. Abaixo, Paropautaetci dmatoshlanco. Ambas da série Flora mutandis (2022).

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Huotrhcni aupidtnoaeohgnotib. Série Flora mutandis (2022).

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Satratnt theoten. Série Flora mutandis (2022).

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para ver no sesc / gráfica

PLANTAS INSURGENTES Exposição Botannica Tirannica ocupa espaços do Sesc Taubaté e propõe reflexões sobre a interferência humana em espécies vegetais

Por meio das obras de Giselle Beiguelman que questionam as relações entre a ciência hegemônica e o colonialismo, historicamente presente na percepção da natureza, a exposição Botannica Tirannica, em cartaz até 25 de fevereiro no Sesc Taubaté, demonstra que a botânica clássica não é um campo científico afetuoso nem inocente, como poderíamos imaginar. Ao classificar e nomear seres vivos, a taxonomia – assim como a linguagem popular – impõe visões de mundo e apaga narrativas. Dessa forma, utiliza as mesmas categorias usadas socialmente para legitimar discursos de ódio e o extermínio de grupos étnicos, por exemplo. Segundo Juliana Braga, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, Bottanica Tirannica é um importante projeto de pesquisa artística e de conscientização crítica sobre vieses preconceituosos que permeiam silenciosamente o nosso cotidiano. “Especialmente, em tempos de tantas violências e cristalizações de olhares sobre diferentes povos, grupos e suas histórias, é preciso saber denunciá-los”, destaca.

A curadoria da exposição no Sesc Taubaté é da arquiteta e mestranda pela FAU-USP Aline Ambrósio, que, assim como Beiguelman, pesquisa as intersecções entre arte e tecnologia. “Sou uma mulher afro-indígena de Minas Gerais e sempre tive um contato muito próximo com a botânica, com as florestas e os saberes ancestrais. Eu e Giselle mantemos uma troca muito rica, o que tem permitido a continuidade da pesquisa”, destaca. A atual versão, Botannica Tirannica, reúne sete núcleos focados em grupos de plantas cujos nomes fazem alusão a negros, mulheres, judeus, ciganos, colonialismo (império), LGBTQIA+ e idosos (etaristas). Os três últimos são os mais recentes, para os quais foram aproveitadas espécies nativas da própria unidade para constituir a mostra. Plantas como Thunbergia mysorensis (“sapatinho-de-judeu”), Dracaena trifasciata (“espada-de-são-jorge” ou “língua-de-sogra”) e a bananeira Musa paradisiaca, entre uma centena de outras, formam o Jardim da Resiliência, um espaço sensorial para convivência do público. Ao lado de cada espécime, uma plaquinha conta um pouco das histórias por trás das folhas.

“Trata-se de uma exposição viva, em permanente transformação. Trabalhamos com milhares de espécies, e esse diálogo deve se ampliar na interação com os visitantes. As relações interespécies na natureza se assemelham às nossas relações sociais”, ressalta a curadora. “Essa exposição serve também para pensarmos sobre os corpos dissidentes e divergentes, sobre a cultura do padrão, ainda tão forte em nossa sociedade. Hoje minha pesquisa vai além, abrangendo ainda as plantas ‘proibidas’: as afrodisíacas, alucinógenas, venenosas”, arremata a artista, propondo novos desdobramentos ao projeto. Ainda em 2024, a exposição deve continuar sua itinerância e seguir para o Sesc Itaquera, na zona Leste da capital paulista.

TAUBATÉ

Botannica Tirannica Por Giselle Beiguelman. Curadoria de Aline Ambrósio. Até 25 de fevereiro de 2024. Terça a sexta, das 9h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. GRÁTIS.

Csosraar saptpetea. Série Flora mutandis (2022).

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Centros culturais, como o espaço expositivo do Sesc Santo Amaro, fomentam sociabilização e criação de repertórios a partir do contato com novos conteúdos.

H

oje o alarme do trabalho não vai tocar. Chegaram as tão sonhadas férias! Para muitas famílias, janeiro é o momento de colocar a mochila nas costas e viajar por outros lugares ou ser turista na própria cidade, visitando espaços ainda desconhecidos da vizinhança. Para as crianças, esse período de descobertas, brincadeiras e interações é tão valioso quanto aquele na sala de aula. Isso porque no momento em que passeiam por parques e praças, conhecem museus, planetários e vão ao cinema ou ao teatro, elas experimentam um salto de desenvolvimento social, emocional, físico, intelectual e

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cultural, tendo seus repertórios para sempre ampliados. Mas, como isso acontece? Antes, é preciso pensar como as crianças estão sendo acolhidas por espaços públicos e de fruição cultural. Segundo a arquiteta e urbanista Dayana Araújo, infelizmente muitos desses lugares ainda são “adultocentrados”, ou seja, desconsideram a existência das crianças. “Não se tem dados explícitos sobre a ocupação de espaços públicos por crianças, isso acaba ficando mais a cargo dos municípios, que possuem desafios em produzir tais informações. Mas, os dados do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística (IBGE) são alarmantes ao se referirem a crianças e adolescentes de até 14 anos que não têm acesso a cinemas, museus e salas de teatro. E também não quero deixar de falar sobre o fator racial, pois crianças pretas e pardas são ainda mais privadas de experiências positivas em espaços públicos e espaços de fruição artística”, destaca Araújo. De acordo com o IBGE, quase 35% dessa população vive em municípios sem ao menos uma sala de cinema, museu ou teatro. No Brasil, há iniciativas que repensam a forma como as cidades estão dialogando com


crianças

pelo olhar da

CRIANÇA Frequentar espaços culturais e áreas verdes desde cedo estimula o desenvolvimento integral a partir da criação de novos repertórios

Ricardo Ferreira

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

as necessidades das infâncias, a exemplo da Urban95, ação internacional da Fundação van Leer que visa incluir a perspectiva de bebês, crianças pequenas e seus cuidadores no planejamento urbano, nas estratégias de mobilidade e nos programas e serviços destinados a eles. “A cidade que se coloca como amiga das crianças é aquela que as enxerga como sujeitos de direitos. Não as exclui de nenhuma política pública, e pensa nos espaços intencionados para usufruto delas. Um espaço amigável às crianças é um espaço para todos, não é mini, nem infantilizado, mas respeita suas singularidades e possui

intencionalidades para a promoção do desenvolvimento delas”, explica Dayana Araújo, que também atua como diretora executiva do Instituto Airumã, em projetos de cidades e territórios mais sustentáveis e menos desiguais.

PEQUENOS VIAJANTES

do espaço onde se mora, da história do próprio bairro e dos sabores que também irão compor a memória afetiva de meninos e meninas. No entanto, ainda há muitas opções de passeios e roteiros “adultocentrados”, ou seja, voltados exclusivamente para a forma como os cuidadores vão absorver essas experiências.

Conhecer uma nova praça, comer pastel na feira, jogar bola no parque. Todas essas atividades feitas pelas crianças acompanhadas de seus cuidadores também podem se transformar em roteiro turístico na própria cidade. São momentos de descoberta

“O direito ao turismo para o público infantil é uma espécie de desdobramento do direito ao turismo, porque as políticas públicas, de maneira geral, são sempre adultocêntricas. Atender às necessidades de um público infantil requer uma sensibilidade 55 | e


crianças

Ao pensar num passeio para crianças viajantes, a especialista destaca que o ponto de partida é a escuta. “Na maioria das vezes, o olhar que a criança produz sobre o espaço é um olhar inovador que o adulto ainda não tinha enxergado. A criança vê a partir de outra perspectiva, não só cultural, mas também de altura. Outra coisa: o turismo também tem que

estar mais atento às questões de segurança, de alimentação e de infraestrutura para famílias em toda a sua diversidade”, pontua. Outro desafio está no fato de que em muitos espaços culturais há certa dificuldade de se naturalizar a presença das crianças, sem considerar, portanto, o aspecto da cidadania, isto é, do direito à cidade que também é delas. “Precisamos ocupar esses espaços e dizer que se esse é um espaço público, os bebês e crianças de todas as idades devem ser incluídos. O turismo social já é pensado para acolher diferentes pessoas, formatos de família, corpos e faixas etárias”, destaca a historiadora, que, neste mês, conduz o curso

Pequenos Viajantes [leia mais em Um, dois, três e já!], no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc.

AO AR LIVRE Da mesma forma que a fruição artística estimula o contato das crianças com novos conhecimentos e vivências, frequentar locais ao ar livre, como parques e praças, também traz inúmeros ganhos. “Nos espaços comunitários, como um museu ou uma biblioteca, a gente encontra outros seres humanos, o que é muito legal, mas em parques, as crianças podem ter encontros surpreendentes – às vezes com um passarinho ou uma árvore que o adulto conhece

Caminhar e conhecer mais de perto fauna e flora da Mata Atlântica presente no Parque Lúdico - Bichos da Mata, do Sesc Itaquera, é uma oportunidade para crianças e cuidadores se integrarem à natureza.

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Ignacio Aronovich

que nem todo profissional tem. E o que a gente vê, hoje em dia, é um turismo em que os destinos são direcionados para o consumo”, observa a historiadora Angela Fileno da Silva, especialista em turismo cultural e criadora de roteiros turísticos voltados às infâncias.


crianças

Evelson de Freitas

A música e outras linguagens artísticas estimulam os sentidos e o desenvolvimento integral das crianças.

e apresenta. Aumentar esse repertório de diversidade de fauna e de flora também é muito rico”, observa a engenheira florestal Maria Isabel Amando de Barros, especialista em infâncias e natureza do Instituto Alana, iniciativa que trabalha com projetos voltados para o desenvolvimento integral da infância em diferentes espaços.

“É importante permitir que as crianças se desenvolvam em toda a sua potência, porque a gente pede, o tempo todo, que elas fiquem paradas, sentadas, ‘comportadas’. Eu acho que esses espaços favorecem o desenvolvimento motor: correr, pular, escalar, subir nas árvores, esse repertório é muito importante”, observa Barros.

Enquanto uma criança pisa a grama, flagra um tatu-bolinha em alguma folha, corre atrás de um grilo ou brinca com outras crianças, ela desenvolve sua sociabilidade, imaginação e também sua capacidade motora.

O maior investimento que se pode fazer para garantir que o período de férias seja de múltiplos ganhos ao repertório das crianças ainda é o tempo. Seja um passeio pelas ruas da cidade, estimular brincadeiras e a convivência com

outras crianças num parque, visitar uma exposição... No final, a vivência desses espaços, tanto de fruição artística, quanto de áreas verdes, estimula uma série de aprendizados que os pequenos levarão para a vida inteira. “As marcas das experiências são mais profundas e duradouras. Estar em locais que incentivem a curiosidade, possibilidades de criação, socialização, interpretação e ampliação de repertório é essencial para o desenvolvimento integral. E o movimento de ocupação desses espaços por crianças tende a impulsionar uma cultura de pertencimento e cuidado”, conclui a arquiteta Dayana Araújo. 57 | e


crianças / para ver no sesc

UM, DOIS, TRÊS E JÁ! No mês das férias escolares, 12ª edição do Oba! Férias! estimula a descoberta de novos lugares numa programação diversa com 30 atividades

De 6 a 28 de janeiro, o Oba! Férias! realiza ações direcionadas ao público infantil e seus responsáveis com o objetivo de promover e estimular a participação de crianças em atividades turísticas no período das férias escolares. O foco das atividades são as crianças com até 12 anos, acompanhadas pelos responsáveis, e as vagas são oferecidas por meio de pré-inscrição online no portal do Sesc São Paulo.

e Cidadania do Sesc São Paulo, na área de Turismo Social.

Na 12ª edição deste projeto que faz parte do programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, estão previstas 30 atividades gratuitas e pagas, desenvolvidas por 22 unidades do Sesc em todo o estado de São Paulo. Uma programação que visa estimular a descoberta de novos lugares por meio de circuitos a pé, bate-papos, oficinas e passeios com transporte, familiarizando as crianças com a própria cidade e região, além de proporcionar experiências sobre a cultura de viagem.

AVENIDA PAULISTA

“O Oba! Férias! tem como objetivo ampliar a participação das crianças e suas famílias em atividades turísticas. Para isso, contamos com uma programação que qualifica a experiência de conhecer novos lugares, ou mesmo de reconhecer a própria cidade de forma criativa, lúdica e educativa”, explica Fernanda Vargas, técnica da Gerência de Educação para Sustentabilidade

Passeio pelo parque lúdico construído na extensão de uma área de preservação da represa que abastece a cidade de Jundiaí (SP). O espaço conta com brinquedos, paredes de escalada, casa na árvore, fontes de água para se banhar e até um foguete. Dia 20/1. Sábado, das 9h às 16h. A partir de R$ 40 (com guia, mediadores e lanche).

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As atividades do Oba! Férias! que acontecem dentro das unidades do Sesc são gratuitas. Para circuitos e passeios, crianças até seis anos têm gratuidade e as de 7 a 12 são beneficiadas com meia-entrada. Confira alguns destaques da programação:

Folclore ilustrado Oficina de estamparia de carimbos e contação de histórias inspiradas em lendas brasileiras, como Boitatá, Mapinguari e Mãe D'Água. Com Daniel Brás e Patrícia Soares. De 14/1 a 4/2. Domingos, das 11h às 13h e das 15h às 17h. GRÁTIS.

VILA MARIANA

Mundo das Crianças (Jundiaí-SP)

OSASCO

Pegadas do Universo - Museu Aberto de Astronomia - MAAS (Campinas-SP) Museu que nasceu da paixão dos precursores do Parque Pico das Cabras pela astronomia, o local oferece atrações como o Espaço Carl Sagan, o Espaço Sol e o Espaço para Observação Noturna. Dia 6/1. Sábado, das 12h30 às 19h30. A partir de R$ 40 (com guia, mediadores e lanche).

SANTOS

Cientistas no Museu (São Paulo-SP) Visita ao Instituto Planeta Inseto e ao Museu de Zoologia da USP, espaços educativos sobre meio ambiente que despertam o interesse pela biologia de forma lúdica. Dias 13 e 18/1. Sábado e quinta, das 7h às 18h. A partir de R$ 40 (com guia, mediadores e lanche).

CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO

Pequenos viajantes: pensar roteiros turísticos para e com crianças Direcionado a guias, educadores e cuidadores, o curso aborda elementos essenciais para propor um passeio direcionado a crianças, nos quesitos atratividade, mediação, infraestrutura, acessibilidade e gestão de riscos. Com Ângela Fileno da Silva e Sabrina da Paixão. De 24/1 a 7/2. Quartas, das 15h às 17h. A partir de R$ 15. Inscreva-se e confira a programação completa em sescsp.org.br/obaferias


Programa gratuito oferece atividades socioculturais para crianças de 7 a 12 anos.

PRÉ-INSCRIÇÕES 2024 09 a 14/01 Dependentes de pessoas com Credencial Plena. 23 e 24/01

convivência

Crianças que atendam aos

brincadeiras

critérios socioeconômicos.

experimentações autonomia autoestima pensamento crítico ética respeito solidariedade

Nas centrais de atendimento das unidades que oferecem o programa. sescsp.org.br/curumim


SÃO PAULO

são muitas


A

memória é uma ilha de edição”, já escreveu o poeta Waly Salomão (1943-2003) num verso que leva a pensar que a maior metrópole da América do Sul é uma cinemateca para cada morador-editor.. Cantada e encantada por escritores, grafiteiros, atores, cineastas, músicos e toda sorte de artistas, São Paulo avança os ponteiros do relógio e, neste mês, aos 470 anos de idade, não esconde seus louros nem suas cicatrizes. Novidade para os recém-chegados e amiga de longa data para os que nela habitam, a capital é paulista, mas também é dos migrantes de Norte a Sul do país, dos imigrantes europeus, asiáticos, latinos e africanos, e dos refugiados que fizeram dela uma segunda casa.

Nortearia

Palco de importantes mudanças econômicas, sociais e culturais do país, São Paulo também é objeto de pesquisa da doutora em sociologia Lúcia Helena Gama. “No final da década de 1950 e início de 1960, o som emana das ruas do Centro Novo: inúmeras casas noturnas se abrem aos grupos musicais que não param de surgir. Das boates Stardust, Arpège, Michel, L’Amiral, Club de Paris e Cave, na Vila Buarque, até os pianos-bares mais ‘requintados’, com pianos e vozes de Claudette Soares, Angela Maria [1929-2018], Cauby Peixoto [1931-2016], Maysa [1936-1977], Leny Andrade [1943-2023], Wilma Bentivegna [1929-2015], Germano Mathias [1934-2023], Johnny Alf [1929-2010], Dick Farney [1921-1987] e

Acesse o site das Edições Sesc São Paulo e saiba mais sobre o livro Eram a Consolação: sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970 (2023), de Lúcia Helena Gama.

Pedrinho Mattar [1936-2007], que emitem os primeiros acordes da bossa nova na capital paulista”, descreve no livro Eram a Consolação: sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970 (Edições Sesc São Paulo, 2023). Posterior à pesquisadora Lúcia Helena Gama, que chegou a São Paulo na década de 1970 — época em que saía dos botecos da Vila Buarque com os amigos e gostava de subir a Consolação a pé, de madrugada —, o escritor pernambucano Marcelino Freire se mudou para a capital paulista há 33 anos. “A grande dificuldade de cara foi: conseguir fiador. Para alugar um quarto, sala, ventilador. Morei em uns oito apertados apartamentos. Dividi com outras pessoas o mesmo beliche. Rua Santo Amaro, Guaianazes, 9 de Julho. O resto sai na Rua Purpurina. O que não mata é vitamina de abacate. Em São Paulo descobri o prazer de tomar um mate. Comer berinjela. Prefiro coentro. Toda pizza acaba em orégano. E na solidão de uma janela olhando para uma outra janela para uma outra janela”, recorda. Neste Em Pauta, um trecho do livro Eram a Consolação, da socióloga Lúcia Helena Gama, revisita a São Paulo da segunda metade do século 20, enquanto um texto inédito do escritor Marcelino Freire pede licença poética para falar da metrópole no século 21. Boa leitura!

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Eram a Consolação POR LÚCIA HELENA GAMA

Quantas dor de cotovelo Eu bebi na minha vida Espadona e Parreirinha Ponto chique, Avenida Outros bares da Ipiranga Eram a consolação. (Bares da Vida, de Adoniran Barbosa e Portinho)

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Seguindo no espírito de Nos bares da vida: produção cultural e sociabilidade em São Paulo: 1940-1950, este trabalho vai traçar um panorama das alterações que o Centro da cidade sofreu durante as duas décadas seguintes, anos 1960 e 1970, com a criação de novas centralidades e novos espaços de cultura e de sociabilidade. O levantamento das informações sobre a cidade e a cultura no período foi feito através de longas entrevistas com estudantes e artistas, depoimentos escritos, entrevistas publicadas em órgãos de imprensa, publicações acadêmicas e textos literários. A “figura” de um narrador/pesquisador percorre a rua e os espaços internos da cidade onde pulsa a vida cultural e dialoga com seus informantes, como se estivesse presente na construção desta história. A cidade compacta, com uma centralidade bem delimitada nos anos 1940 e 1950, aos poucos vai transbordando. Algumas obras e interferências no traçado das ruas e avenidas fazem com que o Centro Novo se esparrame para Vila Buarque, praça Roosevelt, bairros Bela Vista e Bixiga, rua Augusta, avenidas Consolação e Paulista. No final da década de 1950 e início dos anos 1960, o som emana das ruas do Centro Novo: inúmeras casas noturnas se abrem aos grupos musicais que não param de surgir. Das boates Stardust, Arpège, Michel, L’Amiral, Club de Paris e Cave, na Vila Buar-

que, até os pianos-bares mais “requintados”, com pianos e vozes de Claudette Soares, Angela Maria, Cauby Peixoto, Maysa, Leny Andrade, Wilma Bentivegna, Germano Mathias, Johnny Alf, Dick Farney e Pedrinho Mattar, que emitem os primeiros acordes da bossa nova na capital paulista. São locais musicais, teatrais, de encontro entre jovens, estudantes e profissionais das artes e comunicações. A região central consegue, ainda, atravessar a década de 1960 com uma agitação bastante intensa. Os festivais causam grande trânsito de jovens, mobilizam torcidas que se reúnem na Galeria Metrópole, com seus inúmeros bares e boates. Músicos, críticos e jornalistas iniciam sua carreira por ali. A galeria, na praça Dom José Gaspar, recém-construída, ferve ao som do samba, da “fossa” e da bossa nova e aguarda ansiosa os resultados dos festivais, vendo a “banda” passar. Ali os músicos se reúnem, ouvindo antecipadamente os grandes premiados e fazendo suas apostas. Com recorde de público nos teatros alugados pelas emissoras de televisão, transmitidos ao vivo, os festivais de música agitavam os jovens e formavam facções aguerridas. Mas ainda havia espaço para o samba-canção, o chorinho, o bolero e o “infernal” gênero musical que veio para ficar: o tal do rock and roll. Aliás, o tal do rock and roll abre casas noturnas na rua Augusta, bota muitos jovens para dançar, lança modas e programas televisivos, como o de Antônio Aguillar, na TV Excelsior, depois Record, que tem um time começando: Demétrius, Ronnie Cord [1943-1986], George Freedman [1940-2023], Tony Campello, Celly Campello [1942-2003], Wanderléa e Roberto Carlos. Essa juventude frequenta aos domingos, perto do viaduto Maria Paula, um clube onde fazem bailes. Procuram o programa para se apresentar, não são cantores promissores, estão começando, mas o público vibra com tudo o que fazem, tudo o que querem é barulho, rock and roll. Nas “quebradas do mundaréu”, os músicos não tão abonados emitem os sons do bom samba paulista no Cortiço Negro, no Bixiga, nas gafieiras do Centro e nas que vão se avolumando na cidade, disputando e compartilhando espaço com o lazer tradicionalmente popular do futebol de várzea.


Figurinhas carimbadas na vida urbana, as mulheres, durante a década anterior, começaram a dar o ar da graça, acompanhadas de seus maridos, namorados e pais. Mas é agora que rompem importantes amarras; pondo as manguinhas de fora, estão em todos os lugares, em bares, na Cinemateca, no museu, no Clubinho dos Artistas, nas livrarias e faculdades, e ocupando espaços no mercado de trabalho. Personagens fundamentais nas profundas alterações comportamentais dessas décadas, elas trazem a graça e a ousadia da luta em várias situações. O mundo urbano, onde elas agora têm papel preponderante, ganha outras cores. A transferência da Universidade de São Paulo para o outro lado do rio Pinheiros, medida extremamente controversa, aliada à radicalização da conjuntura política, vai aos poucos silenciando os espaços externos e centrais de convivência. Não é apenas a Faculdade de Filosofia que se retira do cenário urbano central, mas a de economia, na rua Doutor Vila Nova, a de arquitetura (FAU), na rua Maranhão, a de odontologia, na rua Três Rios, a Politécnica, na praça Coronel Fernando Prestes. Aliadas às transformações urbanas, as atividades culturais passam por processos intensos de “modernização” da sua linguagem e estética, a evolução técnica das comunicações e a televisão agregam alguns elementos das culturas “nacional” e latino-americana que antes ficavam restritos às suas regiões. As linguagens visuais, antes limitadas às galerias e aos espaços expositivos, ganham novos ares, com a inserção da fotografia, desenhos, charges e propaganda na imprensa e nos painéis urbanos. Nas outras linguagens artísticas, o que está em curso é uma quebra radical da sacralidade dos espaços artísticos, indo do palco italiano à arena, aos happenings. Os bares e boates com pianos e palcos vão acolhendo os músicos, assim como os auditórios das universidades e faculdades. Apesar das inúmeras restrições, censura, atos de vandalismo de direita e das forças de segurança contra as manifestações culturais e as aglomerações estudantis e artísticas, elas não morrem. A cidade não morre, se esconde, se espalha, força seus limites, disfarça suas

reuniões. Estas são as histórias que vão aparecendo. Espraiando-se do cruzamento da avenida Ipiranga com a São João para a praça Roosevelt, rua Martins Fontes, rua Augusta, e descendo em direção ao bairro Bela Vista e à avenida Brigadeiro Luís Antônio. A ida do campus da USP para o outro lado do rio Pinheiros causa um aumento de atividades culturais e estudantis dentro da Cidade Universitária, que passa a agregar moradia de estudantes. Aos poucos, com o aumento da repressão e a invasão do campus, os jovens estudantes e artistas vão encontrando outros lugares. Assim se dá a dinâmica da “ocupação” de Pinheiros, Butantã (na saída da Cidade Universitária), Vila Madalena e Vila Beatriz. Ali vão residir os jovens estudantes, já em número muito maior, descobrindo outras formas de sociabilidade, mais cotidianas, de vizinhança, e criando novos espaços de encontro durante a década de 1970. (...) Ao lado da vida fechada, restrita, controlada, infantilizada, há um mundo de festas, todo mundo faz festas. Cantam, dançam, e quem dá o espírito são os baianos Gil e Caetano. Espírito Odara, cantar, dançar, bailar e esquecer. Assim nos conta Luiz Roncari: “Alternamos o trabalho com a diversão, esperamos os fins de semana para as festas e sempre tem várias acontecendo. Mas a cidade é muito triste, os únicos lugares que ficam abertos à noite, que podemos ir para encontrar os amigos, são o Riviera e o Ponto 4”. Essa mesma perspectiva, de construção de novas formas de sociabilidade, porém com cunho político e social, leva jovens estudantes e artistas para regiões periféricas das zonas Sul, Norte e Leste da cidade, nas comunidades eclesiais de base, no teatro conscientizador e formador de público, nos clubes de mães, nas lutas contra a carestia e pelas conquistas de serviços urbanos básicos.

Lúcia Helena Gama é doutora em sociologia pela USP, autora de uma pesquisa que posteriormente se tornou o livro Nos bares da vida: produção cultural e sociabilidade em São Paulo, 1940-1950 (Senac, 1998).

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Sobre viver em São Paulo POR MARCELINO FREIRE

33 anos. Em 2024 faço 33 anos como morador de São Paulo. A idade de Cristo Redentor. Aquele da Cidade Maravilhosa aqui perto. Cristo vive de braços abertos, mas quem abraça mesmo é São Paulo. A Terra das Oportunidades. Onde o sol brilha mais alto por cima dos prédios. E a gente nem vê. A metrópole-cinza-de-cigarro.

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Em São Paulo plantam-se guimbas. Nunca vi tanta fumaça espalhada pelo chão. A saudade já estava aqui quando cheguei. E os pombos também. Nunca vi tantos pombos em um único canto. Ratos no ar. E um infinito número de estátuas em cada esquina, lugar. O homem faz estátuas porque jamais conseguirá fazer árvores. Ave! Já foi por terra a impressão que eu tinha de que São Paulo não tem verde. Tem sim. Parques da cor do dinheiro. Já senti, juro, cheiro de minha infância pelos jardins. São Paulo está repleta de jardins. A exemplo do Jardim Aricanduva, na zona Leste, o meu primeiro endereço. Sou retirante desde 1991. A rua em que morei se chama Luiz Gonzaga. Eta cidade mais nordestina! Por que tamanha judiação? Quem me deu sotaque foi São Paulo. Quando abro a boca e falo, até hoje vêm e me indagam: de onde você é? Da periferia do Brasil, mano. Oxente! Tá ligado? Tem gente que vem e diz: você já é paulistano. Você já perdeu sua raiz. Mentira! Respiramos por meio das raízes que carregamos. Sustentamos com elas a nossa existência. São Paulo, se a gente deixar,

atropela. Sufoca. PauloiSão pelos ares. Olhar para os edifícios sem abaixar a cabeça. Esqueça. Silvio Santos não vem aí. Melhor abrir aos chutes o Baú da Felicidade. Anhangabaú da Felicidade. Wisnik. Tom Zé já me mostrou como tudo é. Muito antes de eu pôr o pé neste asfalto. A sua mais completa tradução: Augusto de Campos. E Rita Lee e Lygia e Maurício Pereira. E outros tantos. Eunice Arruda, Fabiana Cozza, as Pastoras do Rosário. Alzira E, Itamar, Minchoni, Arrigo Barnabé. Zé Celso, Amara Moira, Erika Hilton, Noite Ilustrada. Só a arte para a gente se sentir fazendo parte. Deste latifúndio. Deste fim de mundo sinalizado por placas imobiliárias. A grande dificuldade de cara foi: conseguir fiador. Para alugar um quarto, sala, ventilador. Morei em uns oito apertados apartamentos. Dividi com outras pessoas o mesmo beliche. Rua Santo Amaro, Guaianazes, 9 de Julho. O resto sai na Rua Purpurina. O que não mata é vitamina de abacate. Em São Paulo descobri o prazer de tomar um mate. Comer berinjela. Prefiro coentro. Toda pizza acaba em orégano. E na solidão de uma janela olhando para uma outra janela para uma outra janela. Arranjei em São Paulo um trabalho como revisor de textos. Em tempo: passo mais tempo revisando um texto do que escrevendo. Pergunte para a turma da Revista E. Estourei o prazo para a entrega deste testamento delírico que, agora, você lê. Releio, reviso, releio, reviso. Afunilo o ritmo. Rezo cada palavra em voz alta. Escuto como está a buzina do meu verbo. Nem em pensamento julgaria, um dia, acompanhar o nascimento dos SLAMs. Roberta Estrela D’Alva, o teatro. Gero Camilo, Hugo. O Grupo Clariô de Taboão da Serra. Quantas amizades sinceras! Ninguém olha para a cara de ninguém. Mas o coração vê. Existe amor em SP. Por favor, senhor revisor, o certo é saraus ou sarais? Sarais, para rimar com Sérgio Vaz. E para rimar com Binho, como faz? É só não deixar de fazer. O poeta não sabe o que fazer, mas faz. São Paulo não é. São Paulo são. Juro que estou são. São Paulo tem fama de deixar todo mundo doente. De fato, deixa. Minha frase pigarreia. Até hoje não


me acostumei com o frio. Mas gosto de edredom. Dormir é bom. Dizem que São Paulo nunca dorme. Dorme, sim, mas é sonâmbula. Violenta República. Tanta família largada na rua. Outros, mortos de pancadas de chuva. Morro de vontade de dar um banho, um dia, no Rio Pinheiros. Enxugar os sovacos do Tietê. Eu conheci o Tietê desde a época em que li, à margem do Rio Capibaribe, o poema de Mário de Andrade. Aquele poeta que morreu de tristeza profunda na Barra Funda. Tula Pilar vive. Hashtag Marco Pezão. Nós é ponte e atravessa qualquer rio. Com ou sem água. Aprendi que “seca braba” é chamada aqui de “crise hídrica”. Acorda, meu povo. E o povo se levanta. Passeatas históricas pela Paulista. Professores, metalúrgicos, comunidade artística, LGBTQIAPN+. Quantas letras do alfabeto forem necessárias. Lembro-me dos caras-pintadas (nada a ver com indígenas). Lutar por todos os direitos. Tanto show de graça. Daí parti para fazer baladas literárias. Enquanto outras festas são feitas com um milhão, a Balada Literária desde 2006 é feita com humilhação. Eu peço. Tenho a proteção de Xangô. Estreitei em São Paulo meus terreiros de devoção. Eu não ando só. É toda uma multidão. O povo, de cabeça baixa, rezando no celular. Amém, saravá. Uma procissão de filas. No meio do caminho tem um Minhocão. Minha santidade de devoção: Cauby Peixoto, Célia, Elis. Tata Fernandes, Lirinha, Otto, Cristine Takuá, Tiganá. Adrienne Myrtes, Mutarelli, Ferréz, Rubi. O cantor Rubi. A voz de Rubi. Muitas riquezas que São Paulo me deu. Tanta gente que se matou (e se mata) de trabalhar para a Paulicéia Desvairada prosperar. Em quê? Economia Criativa parece nome de festa patrocinada pela Vale Quanto Pesa. Ou pela Bolsa de Valores.

A FeliZs é o acontecimento mais afetuoso da literatura. Idem a Mostra de Artes da Cooperifa. A Ria e as outras livrarias de rua. Piva vive. Hashtag Glauco Mattoso. Conheci Miró da Muribeca no Espaço Plínio Marcos. Cruzei com Plínio em uma encruzilhada. Também vi uma vez, em passeio de rua, Caio Fernando Abreu indo à feira comprar Morangos Mofados. É verdade que a gente encontra tanto artista em São Paulo, Marcelino? Há muitos talentos cuspindo fogo nos semáforos. Não vê? Show de rock é muito caro. Conheci uma maravilhosa travesti chamada Lollapalooza. Amo. Em São Paulo tem muita esquina e abandono. Cachorro limpando a bosta que o dono fez. Criançada vendendo panos de prato, uma casinha no campo, xadrez. Vi um mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Todo copo é de cólera. A gente diz que ama São Paulo, mas só quer sexo. Amo João Silverio Trevisan. Adoro Adoniran. Conheci o amor da minha vida subindo a escada rolante do metrô. Eu de um lado, ele do outro. A gente descobre que subiu na vida quando encontra uma escada rolante pelo caminho. Acho que terminei o texto. Não vou revisar mais. Chega! Ufa! Que demora. Sempre essa correria. São Paulo quando ficar pronta vai ficar muito bonita.

Marcelino Freire é escritor, nasceu em Sertânia (PE) e é autor de Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 2000), obra que o projetou para o cenário literário nacional e que, segundo o próprio escritor, “só foi possível ser escrito porque eu vim para São Paulo”. Também publicou Contos Negreiros (2005), vencedor do Prêmio Jabuti de 2006.

Referências: música “Asa Branca”; Rita Lee por Caetano Veloso; Criolo; Feira Literária da Zona Sul; Evandro Affonso Ferreira; Raduan Nassar; a última frase desse texto eu ouvi da cineasta paulistana Marcela Lordy.

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Ainvenção ÚLTIMA Jornalista e pesquisador em comunicação digital, Vinicius Romanini investiga as potencialidades e os impactos da inteligência artificial na sociedade

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o iniciar a carreira como estagiário de jornalismo, com apenas 15 anos de idade, Vinicius Romanini escrevia para um periódico da cidade de Adamantina, a 70 quilômetros de Presidente Prudente (SP), no interior paulista. As letras que compunham as páginas dos jornais da época – até pelo menos a década de 1980 – eram fundidas em blocos de chumbo, numa técnica chamada linotipia. Passaram-se apenas quatro décadas para que o caldeirão de chumbo desse lugar aos recursos de inteligência artificial. “Estamos num momento único na história da humanidade, diante de uma mudança paradigmática na produção de conhecimento que vai impactar profundamente a nossa trajetória”, destaca o pesquisador e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), ambas da Universidade de São Paulo (USP).

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Nos últimos 20 anos, segundo Romanini, a Lei de Moore (sobre a velocidade das revoluções tecnológicas) se confirmou: a cada 18 meses, dobra-se a capacidade computacional e de memorização das máquinas e dos ambientes digitais. Isso significa um aumento gigantesco na quantidade de dados disponíveis, e um futuro cada vez mais incerto. Neste Encontros, o doutor em ciências da comunicação pela USP e integrante de grupos de estudos sobre semiótica, informação, design e comunicação fala sobre inteligência artificial, redes neurais, ChatGPT e o futuro das profissões.

REDES NEURAIS O cérebro humano tem bilhões de células, neurônios que vão trocando sinapses, sinais elétricos e químicos, por meio de uma série de estímulos que recebemos do

meio, das experiências que temos no mundo. Na década de 1950, nos Estados Unidos, um pequeno grupo de pesquisadores tentou reproduzir artificialmente a maneira como o nosso cérebro processa as informações. Foi aí que nasceram as redes neurais, que agiam no processo de produção da informação a partir de conexões semelhantes às do nosso cérebro. Mas, inicialmente, elas foram consideradas um fracasso, com resultados pífios, e esquecidas por pelo menos duas décadas. Nos últimos anos, tivemos um aumento dramático na quantidade de dados disponíveis e na quantidade de computação possível. E o que se viu é que aquelas redes neurais, que haviam sido um fracasso no passado, no momento em que adquirimos capacidade suficiente de computação e de banco de dados, conseguiram reproduzir o tipo de inteligência que o nosso cérebro tem – pelo menos, a inteligência linguística.

Adriana Vichi

POR LUNA D’ALAMA


encontros

LINGUAGENS E INFORMAÇÕES Em 2023, fomos impactados pelo lançamento do ChatGPT-4, versão mais atualizada do chatbot da OpenAI. É um sistema com um poder de computação muito grande e com diversos bancos de dados envolvidos. Para o senso comum, hoje inteligência artificial significa fazer perguntas ao ChatGPT, como se fosse uma diversão. Mas o ChatGPT não é a cereja do bolo: trata-se de um modelo de grandes linguagens, ou seja, ele tenta simular a maneira como nós, humanos, processamos informações por meio da linguagem.

É uma rede neural de aprendizado profundo, modelada com os padrões do nosso cérebro, que tem várias camadas de neurônios. Essa rede, porém, não permite uma supervisão humana, isto é, é uma caixa-preta, e nós não temos capacidade cognitiva para entender o que realmente acontece lá dentro.

DIFERENCIAL HUMANO Ele [o ChatGPT] é treinado pelos humanos e, quando traz respostas erradas, nós o corrigimos. Esse sistema se chama retropropagação, capaz de mudar todas as

configurações da rede neural e os resultados quando corrigido. É como se realizasse um ajuste nas sinapses, na comunicação entre dois ou mais neurônios para que, da próxima vez, quando você fizer determinada pergunta, seja oferecida a resposta desejada. É um aprendizado em tempo real. Por isso, todos nós teremos que nos especializar em ser bons perguntadores para extrair da IA o máximo possível e materializar o conjunto de possibilidades que ela oferece. Esse é o papel, cada vez maior, que artistas e criadores devem assumir a partir de agora. Por outro lado, penso

Para o professor e pesquisador da USP Vinícius Romanini, a humanidade está diante de uma mudança paradigmática da produção de conhecimento.

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encontros

que estamos entregando nossa autonomia para essas máquinas, o que pode ser muito perigoso.

PRÓXIMO PASSO? Estamos entrando numa espécie de aceleração exponencial, um crescimento desenfreado dos sistemas e algoritmos que ninguém tem condições de prever onde vai terminar. Como é que o mundo estará daqui a alguns meses ou anos? Estamos num momento único na história da humanidade, diante de uma mudança paradigmática na produção de conhecimento que vai impactar profundamente a nossa trajetória. Por exemplo, dos meus 15 aos 55

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anos, ou seja, em um intervalo de apenas 40 anos, nós saímos da linotipia de chumbo no jornalismo [processo de impressão utilizado em livros, jornais e revistas desde o século 19] para a inteligência artificial. O caldeirão de chumbo do linotipo pertencia a um sistema de produção semelhante à prensa de Gutenberg, do século 15, e similar a processos anteriores da Idade Média. No arco de apenas quatro décadas, atravessamos tudo isso. Vivemos uma aceleração que vai impactar profundamente a história da humanidade. Por outro lado, os humanos têm uma dificuldade muito grande em lidar com problemas complexos que nós mesmos criamos, como as mudanças climáticas. Então, de

certa forma, vamos entregar – até com certa alegria – a gestão dos nossos maiores problemas para as superinteligências artificiais, que em certo momento poderão até se autoprogramar, ou seja, serem capazes de aprimorar o próprio código, colhendo informações do mundo e se adaptando.

Imagem criada pela plataforma de inteligência artificial MidJourney a partir dos seguintes comandos (prompts): um ser humano dialogando com sua interface personalizada de inteligência artificial.


encontros

SERENDIPIDADE Cada vez mais, a produção massiva de conhecimento e de ciência será feita com uso direto de inteligência artificial. Eu gosto muito de uma palavra chamada serendipidade, que é o encontro fortuito, o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso. Quando você sai na rua, pode encontrar o amor da sua vida, achar algo maravilhoso numa feira ou num brechó, ou ser assaltado. A serendipidade tende a desaparecer com essas ferramentas de IA, que serão grandes regurgitadores da produção cultural armazenada em bancos de dados. Assim, corremos o risco de ter uma cultura em que o nível de acaso se torne cada vez menor e não haja uma criatividade genuína.

Norteria/Midjourney

SOMBRA DIGITAL Hoje nós conversamos com o ChatGPT, mas a próxima fase da inteligência artificial, daqui a alguns meses ou anos, envolverá o lançamento de versões personalizadas de IA para cada indivíduo. Vamos acompanhar os passos dessas inteligências – serão nossas sombras digitais e intelectuais. Acredito que, no futuro, as crianças terão uma IA que as acompanhará em todo o processo educativo, fazendo a mediação entre os conteúdos complexos e as capacidades cognitivas de cada aluno(a). Isso abrirá um novo capítulo na história da produção de conhecimento. As obras de grandes autores, como Sigmund Freud (1856-1939), Karl Marx (18181883), Max Weber (1864-1920) e Albert Einstein (1879-1955), poderão se transformar em redes neurais, e poderemos conversar com eles, fazer perguntas, e eles

responderem em português de acordo com o nosso repertório, mas preservando as ideias fundantes dos pensamentos deles. Imagine fazer uma pesquisa e poder dialogar com esses grandes nomes, testando nossa própria capacidade cognitiva?

HISTÓRIA ESPIRAL Eu diria que a História é uma espiral, mais do que cíclica. Ao mesmo tempo em que a gente dá volteios e retorna ao mesmo ponto, segue para um patamar diferente – não, necessariamente, melhor. Na cultura, não existe a ideia de evolução ou “melhorismo”, de que no futuro todos nós seremos mais conscientes. Na verdade, com a inteligência artificial, o mais provável é que fiquemos mais ignorantes. Acredito, inclusive, que o uso da IA pode piorar, exponencialmente, as condições que a gente tem hoje. O futuro, porém, está em aberto. Pode até ser que a gente aprenda alguma lição e saia disso melhor, mas já ouvi algo semelhante na pandemia e vejo que não aconteceu. Essa ideia de que o ser humano aprende com o sofrimento e amadurece é uma grande autoilusão. Por outro lado, precisamos ter responsabilidade e consciência de que as decisões que tomamos hoje em relação às superinteligências terão um impacto brutal nas próximas décadas. Ainda estamos dando os primeiros passos numa janela que se abriu e que, provavelmente, vai mudar todas as esferas da produção, da fruição, das artes e da cultura.

ATRASO NA REGULAMENTAÇÃO É urgente debatermos questões legislativas e jurídicas em relação à inteligência artificial. Na verdade,

já deveríamos estar com isso em mãos, nossa discussão está atrasada. Estamos num momento muito perigoso, fragilizados e expostos a deepfakes, que sobrepõem áudios e imagens para criar arquivos audiovisuais falsos. É como se a gente desembarcasse num mundo selvagem, em que vale a lei do mais forte – no caso, da IA. Idealmente, deveria haver um órgão internacional, formado por especialistas em algoritmos, para supervisionar o grau de autonomia das superinteligências e produzir travas de controle que pudessem, em determinadas situações, fazer alguma intervenção, como desligar ou reiniciar o sistema. Mas não adianta os Estados Unidos fazerem, nem a China ou a Rússia. Precisa ser uma questão orquestrada internacionalmente, do ponto de vista geopolítico. Eu, particularmente, defendo uma pausa no lançamento de novas ferramentas e aplicativos de IA, mas sei que é uma utopia; o mercado e a sociedade não aceitam frear a inovação. Então, precisamos amadurecer essa discussão nos ambientes escolares, familiares e governamentais, capazes de criar políticas públicas.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o pesquisador Vinicius Romanini, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 28 de novembro de 2023. A mediação do bate-papo é de Juliana Ramos, coordenadora do núcleo editorial do Sesc Digital. 69 | e


inéditos

POR MÁRCIA WAYNA KAMBEBA ILUSTRAÇÕES KAREN SUEHIRO

MARCO TEMPORAL O marco Temporal É um projeto legislativo A continuação do domínio colonial De invasão e dominação Do genocídio atualizado Que não tem data para terminar Esse projeto não foi dialogado Com quem sente, vive e conhece a história Foi pensando visando A ganância de poucos Em detrimento da dor de muitos Estamos antes de 1988 Das coroas de Portugal e Espanha Enfrentamos as primeiras invasões E no século XXI Querem nos destruir Para tomar o que restou.

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Antes era a cruz e a espada Hoje é a canetada Votação no Congresso e Senado Tudo em nome do Progresso Que nunca parou de destruir Com nossos territórios ancestrais Sentimos hoje a mesma dor e insegurança Lutamos com a mesma intensidade Dos nossos Ancestrais Para não ver nossos povos Serem expulsos de suas terras Por invasores que não nos deixam em paz Estamos em constante guerra. Marco Temporal jamais! Não nos representa É retrocesso. É voltar à cena de 1500 Com um agravante pior Destruir com nossas terras hoje É assassinar o clima Contribuir para o aquecimento global É dominar para destruir E a gente assiste a cena Mas não permitiremos novas mortes Marco Temporal não! Ele é a votação da morte Lutaremos como nossos avós e bisavós Até o fim.


inéditos

MARIA DE TODAS AS MARIAS Maria dos grandes rios Das barrancas e igapós Maria de muitos sonhos Amazônias Somos muitas não estamos a sós Maria Dos furos e igarapés De profundos olhares Das rezas, benzimentos Dos terreiros e encantarias Marias, nossas pajés Maria mãe da mata Maria do cocar Das lutas nas aldeias Força no caminhar Senhora das águas Rogai por nós! Maria mulher guerreira De força ancestral Resistência territorial Maria das multivozes Rainha, rogai por nós! De joelhos em silêncio Na dor e na alegria Te pedimos em oração Mais amor ao coração

Que chegue aos céus Nossas vozes De súplica e devoção Somos romeiros e romeiras Somos filhos, somos irmãos Te pedimos por tantas Marias Que tiveram a vida interrompida Na dor e crueldade Marias de várias etnias Que agora estão na ancestralidade Salve Maria! Mãe de toda a gente Do menino de rua Do mendigo Do migrante Do indigente Maria agricultura Maria anciã Pescadora Lavadeira Benzedeira Parteira Riozeira Professora Maria mãe solteira Maria de muitas Marias Dai-nos paz e proteção Aumentai a nossa fé E sede sempre intercessora.


inéditos

PARA SEMPRE AMAZÔNIAS Senhora Amazônia Teus rios voadores Tuas matas sagradas Teu solo fecundo Nós vamos guardar Canoas e remos Estrada molhada Por entre as árvores O sol nascerá São janelas que se abrem No meio da mata Para olhar com esperança A vida na terra Para ver o mapinguari A Matinta e o Matim Tim Curupira enganar o caçador E botar para correr Quem chega na Amazônia para tocar o terror Sinto o vento vargeiro Chegar bem devagar Seu sopro é mensageiro Traz segredos do rio e do mar Quero mais que 80% De mata em pé Quero mostrar ao curumim O que lhe é de direito proteger Para no fim descansar No mundo da ancestralidade Sany Amazônia Sany paranawaçu Iapã indá tana Saisu Iapã kumiça muki may-sangara tuiuka. Ikumi, ikumi, ikumi [Tradução: Vem Amazônia Vem grande rio Vamos cantar nosso amor Vamos falar com a alma terra Hoje, hoje, hoje]

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AMAZÔNIA MENINA Meu rosto eu pintei Na água me espiei Grafismo de identidade Resistência! Sou Amazônia De alma e águas Kunhãs Eu sou Tenho continuidade Na voz cunhantã (menina) Que da canoa falou: Quero peixe com farinha Sem veneno para comer Ver o rio correr seguro Ter água potável para beber Abraçar a samaumeira Os encantados reverenciar Conversar com o boto rosa Ver a donzela por ele se encantar Tomar bença ao pajé Na mata buscar remédio e cura Quero ver a terra limpa Sem lixo, lixões, sem secura Sou a Amazônia Presente em tantas gerações Nas populações que ensinam Que para cuidar, conservar É preciso conviver e respeitar. Se ver ambiente Para o clima não se alterar E o mundo não degradar. Sou o futuro, sou resistência.


PALHA VELHA E PALHA NOVA Palha velha Palha nova Uma morre Para outra viver Palha velha No chão vira adubo Para nova planta crescer Palha velha Palha nova Entrelaçadas São obras da natureza Palha velha Palha nova Tem valor, cultura Utilidade, cooperação Obra-prima da realeza Palha velha Palha nova Tem vida e certeza Que um dia seremos adubos Para outras gerações florescerem.

Márcia Wayna Kambeba, da etnia Omaguá/Kambeba, nasceu numa aldeia ticuna, em Belém do Solimões, atualmente no município de Tabatinga (AM). Poeta e geógrafa, é mestre pela Universidade Federal do Amazonas, com uma pesquisa que relaciona território e identidade étnica. Em sua produção poética, Márcia se aproxima da literatura de cordel para refletir sobre questões como a violência contra os povos indígenas e os conflitos trazidos pela vida na cidade.

Karen Suehiro é ilustradora, artista visual e se apresenta como mulher amarela. Trabalhou com design gráfico por mais de 10 anos, mas desde 2018, quando foi diagnosticada com epilepsia, decidiu focar em sua verdadeira paixão pela ilustração. Essa que também se tornou parte do seu processo de cura, uma vez que o interno é parte importante que transborda em suas artes. É transformar o invisível em visível.

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depoimento

atravessar

FRONTEIRAS Premiada encenadora e diretora de teatro, Christiane Jatahy borra os limites entre realidade e ficção POR MARIA JÚLIA LLEDÓ COLABOROU: CARIME FERNANDES ELMOR

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nquanto atores e atrizes parecem conversar no palco, despretensiosamente, a personagem Graça está sentada na plateia. Os espectadores só descobrem que ela também faz parte da cena quando alguém do elenco a convida a participar do experimento que vai começar. Imigrante brasileira, Graça acredita refugiar-se dos efeitos da extrema-direita num território acolhedor que logo se mostrará opressor. Borrando as linhas que poderiam delimitar teatro e cinema, realidade e fição, ator e personagem, a encenadora e diretora carioca Christiane Jatahy ainda coloca o espectador

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como peça fundamental de sua dramaturgia. A cada um da plateia é proposto o exercício de acompanhar diferentes pontos de vista dessa história que não deixará ninguém sair ileso. Apresentado pela primeira vez no Brasil no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, o espetáculo A hora do lobo – um debate com o filme Dogville de Lars von Trier, com a Cia. Vértice de Teatro, dá continuidade às pesquisas de Jatahy, que já foi premiada com um Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2022, pela sua trajetória artística. Artista associada do Odeón-Théatre de l’Europe e de outras

instituições culturais europeias, a diretora costuma trazer à arena questões políticas e sociais que atravessam a contemporaneidade no Brasil e no mundo. Primeira parte da Trilogia do Horror, A hora do lobo reúne um elenco suíço-franco-brasileiro num debate sobre o filme Dogville (2003). Será que é possível deter esse lobo dentro do homem, que é capaz das piores atrocidades ao ver outro ser indefeso? “A gente vive num mundo – e eu acho que a gente sempre viveu – de horrores que não param de acontecer. Uma quantidade de guerras, de violências, de extremismos, de


Apesar de residir na França, a diretora carioca Christiane Jatahy imprime em suas obras a realidade brasileira.

intolerância em todos os sentidos. Para mim essa é uma questão premente: a gente tem que olhar o outro. Por isso que essa peça [A hora do lobo] discute a questão da aceitação, por isso que eu fiz muitos trabalhos que discutem sobre o que é estar em situação de refúgio”, conta Jatahy, que se prepara para estrear, em março deste ano, no OdeónThéatre de l’Europe, em Paris, sua versão de Hamlet encabeçada por personagens femininas.

Leo Aversa

enamoramento A minha família tinha um hábito muito rico: a gente assistia a peças de teatro, muitas vezes às

mesmas peças. Em seguida, minha mãe e minhas tias escreviam os textos e, depois, a gente ensaiava, construía cenários, figurinos e tal. A gente fez isso com Pluft, o fantasminha [espetáculo infantil escrito por Maria Clara Machado (1921-2001)] e com outras peças. Fazíamos uma versão que a gente apresentava nas nossas festas de aniversário. Havia um processo de criação, de coletividade. Primeiro eram eles [os mais velhos] que faziam, e a gente [as crianças] via e participava. Eu acho que o primeiro enamoramento [pelo teatro] e a primeira descoberta veio disso, que foi muito importante para mim.

direção Comecei a fazer cursos livres de teatro e, no colégio no Rio de Janeiro, tinha um curso de teatro extracurricular. Eu pensava em ser atriz naquele momento. Logo depois entrei na faculdade, escolhi fazer jornalismo e também faculdade de teatro, além de dar aulas. Saí de casa muito cedo e as aulas eram o meu sustento. Aos 20 anos, comecei a dar aula para adolescentes de 12 e 13 anos no colégio Souza Leão. Como professora, sempre tinha isso de fazer uma peça no final do ano, então, eu comecei a dirigir. Foi aí que essas duas coisas [dirigir e atuar] começaram a caminhar 75 | e


depoimento

perspectiva Eu começo mesmo a pensar na relação dos dispositivos cinematográficos e na relação do jogo do ponto de vista do espectador quando eu ainda não estava usando a projeção nem a câmera em cena. A primeira peça que fiz, logo depois do Parque Lage, é um texto espanhol que se chama Carícias, em 2001, composto por várias cenas – uma puxava a outra. Os espectadores se sentavam em arquibancadas móveis e pantográficas, como se eles fossem a câmera. Essas arquibancadas iam mudando de

lugar, subindo e descendo, criando o zoom in e o zoom out, e as cenas iam acontecendo em diferentes lugares. Um pouco como se eu tivesse colocado o espectador sentado atrás da câmera. Só vou colocar a projeção, assumidamente, em 2011, com Júlia. O espaço, o uso do dispositivo cinematográfico, o lugar que o espectador ocupa e a história que a gente está contando, tudo isso é parte do que eu chamo de dramaturgia.

ficção? Penso muito sobre como trazer frações da vida para a cena.

Pela primeira vez no Brasil, o espetáculo A hora do lobo – um debate com o filme Dogville de Lars von Trier, com a Cia. Vértice de Teatro, esteve em cartaz no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, em setembro de 2023.

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Magali Dougados

juntas até o momento em que, num curso no Parque Lage, optei por estar do lado de fora, e não mais em cena. Aliás, a primeira turma de teatro no Parque Lage foi a de 1994 e a gente montou Sonhos de uma noite de verão [obra do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616)], depois, comecei meus processos de trilogia com histórias escritas originalmente para adultos e que se transformaram, no decorrer do tempo, em histórias infantis. A principal delas foi Alice no País das maravilhas, de Lewis Carroll (1832-1898).


A GENTE SABE QUE UMA PEDRA JOGADA AQUI PODE CHEGAR LÁ DO OUTRO LADO DO MUNDO COMO REVERBERAÇÃO. O TEATRO TEM ISSO.

Como é que a gente pensa a cena como realmente colada com o que está acontecendo agora. Como é que essa realidade de hoje se dá também nas relações da cena, portanto, não só na temática. Para isso, a questão da realidade e da ficção também tem a ver com a forma como os atores estão atuando. Não é só porque eu estou usando material da realidade, mas também como é que os atores estão lidando com a ficção como jogo de cena. Aí vejo dois momentos: um deles é quando eu crio ficção a partir da realidade. Seja por causa de uma história pessoal minha ou dos atores. O segundo momento vem depois, quando eu faço o caminho inverso: quando eu pego textos que são ficções preexistentes, inclusive clássicos, e enxerto neles realidade. É como se eu pegasse um estilingue: a pedra que o estilingue está puxando é a realidade e o alvo onde essa pedra vai é a ficção.

alteridade O teatro surge como esse lugar para refletir o que somos em todas as nossas subjetividades, com as nossas maravilhas e os nossos horrores. No fim das contas, pensar “Se isso sou eu, como é

que eu reconheço o outro, que na verdade é alguém semelhante, ainda que possa estar em situações extremamente diferentes? A gente vive num mundo – e eu acho que a gente sempre viveu – de horrores que não param de acontecer. Uma quantidade de guerras, de violências, de extremismos, de intolerância em todos os sentidos. Para mim essa é uma questão premente: a gente tem que olhar o outro. Por isso que essa peça [A hora do lobo] discute a questão da aceitação, por isso que eu fiz muitos trabalhos que discutem sobre o que é estar em situação de refúgio. O que são essas estruturas sociais que a gente não consegue transformar?

encontro A arte ajuda na elaboração disso tudo [que vivemos]. Agora, o teatro tem uma diferença: porque ele só existe naquele momento. Não é sobre transformar o outro, mas se você consegue sair [do teatro] com algumas perguntas. Porque se você é afetado, você pode afetar quem está perto de você, e assim por diante. Uma imagem que eu adoro é a da pedra jogada no lago, que vai provocando circunferências. A gente sabe que

uma pedra jogada aqui pode chegar lá do outro lado do mundo como reverberação. O teatro tem isso.

origem Meu trabalho é sempre atravessado pela realidade brasileira, até porque o Brasil está sempre em mim, e tudo o que acontece aqui me toca e me afeta de uma maneira muito profunda. E porque eu também sinto, como artista internacional e com o espaço que eu tenho, uma responsabilidade de falar sobre as coisas que estão acontecendo aqui. Eu acho que é muito importante ter um trabalho que fala muito sobre nós, e apesar de ter sido um trabalho construído fora do Brasil, ele sempre foi pensado a partir da realidade brasileira.

convergência Penso muito sobre a questão das fronteiras, não só as fronteiras geográficas, mas também a fronteira entre realidade e ficção, cinema e teatro, o agora e o passado, ator e personagem. Também é muito importante para mim a relação entre a cena e o público. O público é, realmente, parte constituinte da minha obra. Ele afeta a obra, transforma a obra, por isso, para mim, ele nunca é só um espectador. 77 | e


ALMANAQUE

Reaberta ao público em outubro de 2023, a Casa das Rosas passou por restauro e teve sua estrutura adaptada para maior acessibilidade.

Para atrair um público cada vez mais diverso, cinco centros culturais da capital paulista ampliam seus espaços e acervos de arte POR LUNA D’ALAMA

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D

esde o ano passado, instituições culturais da cidade de São Paulo têm aumentado seus espaços físicos e acervos de obras de arte, para receber um público cada vez mais amplo e diverso. As novas estruturas de museus e das recém-abertas unidades do Sesc São Paulo atendem a necessidades de inclusão, acessibilidade e integração entre as pessoas – e delas com o entorno. Essa ampliação de lugares, e de acesso, reflete-se em uma maior pluralidade de visitantes e programações em uma metrópole de 12 milhões de habitantes, referência internacional em cultura, mas que ainda demanda mais opções gratuitas de lazer. Alternativas capazes de atrair e reter as novas e próximas gerações. Bom passeio!

André Hoff

Arte em expansão


CASA-MUSEU Após permanecer fechada por dois anos para reforma, a Casa das Rosas reabriu ao público em outubro de 2023, recuperando suas características de 1935, com arquitetura em estilo clássico francês. Um dos últimos casarões remanescentes da Avenida Paulista, o local ganhou maior acessibilidade para pessoas com deficiência e novos papéis de parede, revelados

com a retirada de várias camadas de tinta e reproduzidos fielmente – um dos originais, inclusive, pôde ser restaurado. Na programação cultural, além das já tradicionais ações de literatura e poesia, o casarão ampliou suas linguagens artísticas, com destaque para as artes visuais, música e performance. De março a maio, o museu acolherá a exposição nomeio o nome, individual do mexicano

COMPLEXO DE ARTES Inaugurada em março de 2023, a Pina Contemporânea soma-se à Pinacoteca do Estado de São Paulo e à Pina Estação para formar um dos maiores conjuntos museológicos da América Latina. Com mais de 22 mil metros quadrados de área e capacidade para receber até 1 milhão de visitantes por ano, o terreno foi construído ao redor de uma grande praça, dá acesso ao centenário Parque da Luz e permite a livre circulação do público, no limite entre os bairros da Luz e do Bom Retiro. Concebida a partir de um projeto que valoriza a inclusão, a acessibilidade e a integração social, a terceira Pina tem como foco a experimentação da arte contemporânea, dividindo-se em espaços expositivos como a Galeria Praça (pavilhão principal) e a Grande Galeria (subsolo). Na programação deste ano, está prevista a primeira retrospectiva individual da chilena Cecilia Vicuña (de 16/5 a 15/9), além de uma mostra da indígena Sallisa Rosa (de 16/3 a 28/7), de Goiânia, e do fluminense Gabriel Massan (de 31/8 a fevereiro de 2025).

Manuel Sá

Pina Contemporânea Av. Tiradentes, 273, Luz, São Paulo (SP). Acesso à Pina Luz pela Praça da Luz, 2. Quarta a segunda, das 10h às 18h. Entrada gratuita aos sábados.

Obra Tríade Trindade, do artista brasileiro Tunga (1952-2016), ocupa o centro da praça da Pina Contemporânea: livre circulação dos visitantes que também passeiam pelo Parque da Luz.

Bosco Sodi com obras que se apoiam em temas como ancestralidade e etnobotânica e estabelece um diálogo com a poesia concretista de Haroldo de Campos (1929-2003), patrono da Casa das Rosas.

Casa das Rosas Av. Paulista, 37, Bela Vista, São Paulo (SP). Terça a domingo, das 10h às 17h30. GRÁTIS.


NOVAS UNIDADES Em outubro de 2023, o Sesc São Paulo abriu as portas do Sesc 14 Bis, na Bela Vista, e do Sesc Casa Verde, no bairro homônimo da zona Norte da capital, com exposições de arte em ambas. Na unidade da região central, a mostra inédita Constelação Celestina reúne fotografias de Wagner Celestino, reconhecido pelo registro histórico da memória do samba e de outras expressões culturais afro-brasileiras, em São Paulo. Fica em cartaz até 7 de abril. Já na Casa Verde, Festas, Sambas e outros Carnavais celebra as festividades brasileiras e enaltece o samba como elemento fundante da identidade do país, com

200 obras de 70 artistas. Pode ser visitada até 18 de fevereiro. Ao longo da próxima década, a instituição planeja a inauguração de ao menos dez unidades em todo o estado, além da reforma e ampliação de outras sete.

Sesc Casa Verde: Av. Casa Verde, 327, Jardim São Bento, São Paulo (SP). Terça a sexta, das 10h às 19h. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS. Sesc 14 Bis: Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, São Paulo (SP). Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 19h. GRÁTIS.

Em cartaz no Sesc 14 Bis, a exposição Constelação Celestina reúne obras do fotógrafo Wagner Celestino.

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Fernanda Baldo

ALMANAQUE


Metro Arquitetos

CONEXÃO SUBTERRÂNEA Depois de 56 anos funcionando no mais popular cartão-postal da Avenida Paulista, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) Assis Chateaubriand planeja sua ampliação, com um prédio anexo de 14 andares – e ligação subterrânea – a ser inaugurado até o fim de 2024. Batizado de Pietro Maria Bardi (1900-1999), em homenagem ao primeiro diretor artístico da instituição, o novo edifício vai reunir galerias, espaços de eventos, salas de aula, laboratório de restauro, espaço para armazenamento do acervo) restaurante e loja. Já a construção principal – que detém o acervo de arte europeia mais importante do Hemisfério Sul – receberá o nome da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), responsável por ter projetado o Masp e seu vão livre de 74 metros. O anexo terá quase 7 mil metros quadrados de área útil, o que representa um aumento de 66% do espaço expositivo. Ao todo, o complexo ostentará 17.680 metros quadrados, tornando-se uma das maiores infraestruturas museológicas da América Latina. Quem quiser

Com previsão de abertura para 2024, o prédio Pietro Maria Bardi, anexo ao Masp, terá 14 andares ocupados por cinco galerias expositivas, duas galerias multiuso, além de outros espaços.

visitar o museu neste mês poderá conferir as exposições Melissa Cody: Céus tramados (até 21/1), que reúne 26 obras têxteis dessa artista da etnia navajo, e Histórias indígenas (até 25/2).

Masp Av. Paulista, 1578, Bela Vista, São Paulo (SP). Quarta a domingo, das 10 às 18h. GRÁTIS. às terças, das 10h às 20h.

ANEXO MULTIUSO Em junho do ano passado, a unidade paulistana do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) inaugurou seu prédio anexo, com 300 metros quadrados distribuídos em um espaço multiuso de dois andares. O edifício reúne espaços expositivos, salas técnicas e camarim. O novo ambiente abriu as portas com duas obras dos artistas holandeses Ralph Nauta e Lonneke Gordijn, cuja mostra Studio Drift – Vida em coisas ficou em cartaz nos dois prédios do CCBB até agosto de 2023. Segundo a instituição, o local pode tanto funcionar como extensão de alguma exposição quanto ter uma programação independente, além de receber atividades educativas,

rodas de conversa, performances, espetáculos de dança e peças teatrais. Até 29 de janeiro, o anexo é ocupado pela mostra BIENALSUR – Signos na paisagem, com trabalhos de artistas sul-americanos, europeus e árabes que propõem reflexões sobre meio ambiente, gênero e democracia.

Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rua da Quitanda, 80, Centro, São Paulo (SP). Acesso ao prédio principal pela rua Álvares Penteado, 112. Quarta a segunda, das 9h às 20h. GRÁTIS. O CCBB também oferece van gratuita até o metrô República, a partir das 12h. 81 | e


P.S.

Até os 17 anos, meu universo se desenvolveu nas ruas e praças de uma cidade chamada Itápolis, um recanto pacato do interior de São Paulo. Desde bem pequena, meus pais e minha irmã contam que eu gostava de movimentar o corpo, dançar, explorar as possibilidades e me expressar. Na escola, durante as aulas de educação física, eu me destacava por sempre querer participar das atividades. Na adolescência, comecei a jogar basquete, e percebi o despertar do interesse pelo esporte. Eu não era um talento e não pretendia ser a melhor jogadora, mas queria estar no grupo, naquele coletivo de meninas que viam no esporte um local para estarmos juntas. Por exatos cinco anos (dos meus 11 aos 16) representei a escola estadual Valentim Gentil nos jogos escolares, primeiro como pivô, por dois anos, e depois como ala-armadora. Enquanto pivô, minha estatura não favorecia, mas reconheço que a força que eu trazia não era apenas física; era a força de ser parte do grupo, de buscar uma defesa incansável e uma marcação decisiva. Encontrei meu espaço como ala-armadora, gostava de entender as capacidades das colegas, ler as oponentes e criar jogadas coletivas. O mapa do jogo se desdobrava diante de mim, e eu, em cada passe, em cada arremesso, me jogava na competição, transformando a quadra em um espaço de sonhos compartilhados. Me recordo das Olimpíadas de Atlanta, em 1996, quando o time feminino de basquete foi prata com Janeth, Hortência, Paula e companhia subindo ao pódio, em um momento histórico. Me lembro de correr para o sofá junto de meus pais e ali assistirmos aos jogos. Meus

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O esporte na minha vida é um hino à convivência das diferenças, um símbolo de persistência, busca e luta, uma expressão viva da democracia. Hoje reflito sobre a importância de ter jogado basquete na juventude, as conversas afetivas com meus pais na sala de casa, como cada cesta e cada lance me conduziram ao que sou, ao que almejo ser e ao que desejo para a sociedade. No horizonte de 2024, as Olímpiadas chegarão a Paris, na França. Com um olhar mais crítico e sensível, percebo que esse evento é espelho da sociedade que habitamos. Minhas memórias desses momentos transcendem meras medalhas e recordes; são embaralhadas por esporte, cultura e a incessante busca por um mundo repleto de oportunidades para todas as pessoas. Que as Olimpíadas em Paris sejam um farol para a humanidade, transformando a Cidade Luz em um guia para dias mais iluminados. Que os sentimentos vividos na sala de casa com meus pais alcancem todas as pessoas, carregando sonhos e inundando a sociedade com esperança. À beira dos meus 40 anos, anseio acompanhar, ao lado da minha querida filha Nina, a sua primeira Olimpíada. Expresso meu desejo sincero de que a vida dela seja ativa, que o esporte possa ser um condutor e se revele não apenas como competição, mas como espaço de igualdade, justiça e diversidade, entrelaçando pessoas, modalidades e nações de maneira harmoniosa. Que o tempo seja grato conosco, nos guiando nos princípios do amor, da superação, da inclusão e da coletividade. Se joga, Nina!

Mariana Martelli da Costa é professora de educação física, especialista em Administração e Marketing Esportivo e em Práticas de Educação Inovadoras e Habilidades Socioemocionais. Integra a equipe da Gerência de Desenvolvimento Físico-esportivo do Sesc São Paulo.

Nortearia

Para Nina

pais iam me conduzindo ao entendimento sobre o que aquela vitória representava. A partir daquele momento, a cada quatro anos, me encontro ansiosa e feliz para acompanhar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos.


Fique por dentro do que é destaque na programação deste mês! JANEIRO 2024

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Nelson Kon (foto); Nortearia (colagem)

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