Revista E - agosto/23

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Revista E | agosto de 2023 nº 2 | ano 30

Edu Lobo

O legado musical do artista que celebra 80 anos de idade

Turismo urbano Que tal experimentar novos roteiros pela metrópole?

Mídia indígena Comunicadores de várias etnias criam e ocupam canais de notícias

Dos Brasis Pensamento negro é expressão fundante da arte brasileira

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CAPA: Fotomontagem da série Mirasawá (palavra que significa povo, em nheengatu), da muralista Moara Tupinambá (PA). Em seu trabalho, a artista homenageia benzedeiras, rezadeiras, ativistas e mestras indígenas por meio de colagens que evocam os imaginários e tradições dos povos originários.

A partir do dia 11/08, a obra de Moara ambienta o muro do Sesc Campo Limpo, e no dia 13/08, a unidade realiza uma oficina aberta ao público com a artista.

A ação faz parte da programação do projeto Agosto Indígena.

Crédito: Moara Tupinambá

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Parceria permanente

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Legendas Acessibilidade

Presente em todo o estado de São Paulo em mais de 40 unidades operacionais, o Sesc – Serviço Social do Comércio –, criado em 1946 em um contexto de mudanças na sociedade pós-guerra, reforça cotidianamente, em parceria com seus diversos públicos, o conceito de bem-estar social, contribuindo para a promoção da qualidade de vida dos trabalhadores do comércio, serviços e turismo, de seus familiares e de toda a comunidade.

Seja por meio de uma ação permanente nas áreas da cultura, lazer, turismo, esporte, saúde e alimentação, seja por projetos itinerantes e parcerias institucionais, o legado do Sesc se mantém como um instrumento norteador na cultura nacional, ampliando cada vez mais seu alcance e seguindo no propósito de motivar e possibilitar experiências múltiplas, gerando o encontro de ideias, a ampliação de repertório e o contato com o novo.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Há quase 80 anos presenciando as complexas mudanças na sociedade, a parceria do Sesc com seus tantos públicos continua sendo o foco da instituição e sua principal ação permanente.

Ser chão

Pertencer a um território vai além da geografia: é um processo que se constrói por meio dos usos e sentidos que conferimos a cada espaço. É na dimensão cultural e política das práticas, costumes, tradições, saberes e vivências locais que nascem, e se expressam, as identidades de cada povo, de cada terra. É chão que se cria no viver.

Em tempos de fronteiras desterritorializadas pela globalização, parece ser cada vez mais importante avistar o horizonte que nos rodeia e valorizar o solo em que pisamos. Esse fenômeno de retomada do olhar para os arredores é investigado em uma das reportagens desta edição da Revista E, que se debruça sobre o turismo urbano, movimento que propõe uma incursão atenta ao que nos avizinha, em busca de descobertas sobre a riqueza da diversidade da cidade.

Outra reportagem desta publicação celebra o movimento de comunicadores indígenas que têm usado o território do jornalismo e das redes sociais para divulgar, proteger e lutar pelas suas causas e direitos. Produzidas pelos povos indígenas, essas narrativas amplificam a potência das vozes originárias, oferecendo uma perspectiva genuína sobre seus direitos, suas tradições e práticas culturais, e assim ajudando a demolir preconceitos e estereótipos.

É também uma voz indígena que protagoniza a seção Inéditos, na qual a cordelista Auritha Tabajara, ao bradar “minha terra é soberana”, celebra a força ancestral das suas origens, mostrando que é feita do “leito da floresta” e que carrega “a raiz que nunca termina”.

Adentre os territórios das próximas páginas e boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adauto Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandra Galvão, Alessandra Gonçalves da Silva, Aline Aparecida Savieto, Aline Ribenboim, Ana Paula Feitosa, André Luiz Santos Silva, Andréa de Oliveira Rodrigues, Andrea Toledo Nascimento, Angela Tereza Belei, Anita de Souza Cleto, Antonio Tavares Aranha Neto, Bárbara Gabriela Duram Santos, Bruna Hitos Pereira, Bruna Zarnoviec Daniel, Camila Freitas Curaçá, Carlos Henrique Castanha Ciampone, Carolina Balza, Carolina Seixas da Silva Nicolau, Chiara Regina Peixe, Claudia Cássia de Campos, Cláudia Maria de Melo Silva, Claudia Regina de Souza, Clécio Rodrigo da Silva, Dalmir Ribeiro Lima, Daniel Tonus, Danny Abensur, Davi Alexander Fernandes Costa, Deise de Oliveira Rezende Xavier, Diego Polezel Zebele, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Eduardo Blaz Cicoti, Eduardo Garcia de Almeida, Eduardo Santana Freitas, Ellen Moraes Scherrer, Felipe Sabino da Silva, Filipe Cara Cremasco, Flavia Cabral Lima dos Santos, Frederico Alves Antonelli, Frederico Vieira Dias, Gabriel Maion Damasco, Gabriela Borges Sebastião, Gabriela Satie Nakasato, Geraldo Soares Ramos Junior, Henrique Santos da Silva, Ivan Lucas Araújo Rolfsen, Ivanildo Rodrigues Da Hora, Janaína Lima da Silva, José Goncalves da Silva Junior, José Mauricio Rodrigues Lima, Juan Victor Gonçalves, Juci Fernandes de Oliveira, Jucimara Serra, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Grotti Vidal Torres, Juliana Rose Santos Cavalcante, Júlio César Pereira Júnior, Kadijah dos Santos Campos, Laura Lopes de Freitas, Leonardo Thomaz Pereira da Silva, Luciana Lopes Giannocoro, Luciana Ruela Scarin Cardozo, Marcel Antonio Verrumo, Marcia Helena Luchiari Beltrami, Maria Lygia R. Marques de Oliveira, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Mariana Martelli da Costa, Marina Reis, Mario Augusto Silveira, Mario Luiz Alves de Matos, Moara Zahra Iak, Monique Mendonça dos Santos, Nara Rubia Giovannini, Natalia de Souza Freitas, Paulo Henrique Vilela Arid, Rafael de Brito Manco, Rafael Gonçalves de Souza, Rafael Nicolas da Silva, Rafael Pereira Guimarães Santos, Rafaela Ometto Berto, Raphael Cutis Dias, Regiane Gomes da Conceição, Renan Cantuário Pereira, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Romeu Marinho C. Ubeda, Ronan Kayano Genoino, Rosângela Barbalacco, Ruth dos Santos, Samara de O. Muller, Simone Farto de Barros, Stephany Tiveron Guerra, Suzan Arakaki, Tamara Demuner, Tatiana Amaral Sanches Ferreira, Thaís Ferreira Rodrigues, Thamires Magalhães Motta, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Valquiria Vasconcelos Alves Brito, Victoria Guglielmo de Souza, Vinicius Goncalves Silva, Vitoria Roman de Camargo, Yamara Tavares Fabri, Zeno Lucio dos Santos Prazeres Filho

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Lucélia Borges • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli • Coordenação

Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira •

Propaganda: José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Ariane Ramos de Azevedo e Elisa Carareto • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Elaine de Azevedo, socióloga da alimentação, reflete sobre conceitos históricos relacionados à área, apontando a urgência de olharmos para o que comemos Confira os destaques da programação deste mês, entre eles o projeto Realeza negra: dos bailes ao hip-hop

Crescimento da população urbana impulsiona o surgimento de roteiros turísticos que percorrem a diversidade cultural das metrópoles

Passeio visual por obras da exposição Dos Brasis - Arte e Pensamento Negro, que celebra uma das expressões fundantes da arte brasileira Canais de notícias, redes sociais, podcasts e outras plataformas de mídia são criadas e ocupadas por comunicadores indígenas

A engenhosidade generosa de Samuel Kerr, um dos mais renomados arranjadores e regentes de coro da música brasileira

dossiê entrevista turismo bio gráfica cidadania

p.11 p.16 p.24 p.34 p.40

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Ilha do Bororé / Foto Dalmir Ribeiro Lima (Turismo); Macumbas & CandomblésHeitor dos Prazeres e sua gente (1964), Heitor Dos Prazeres / Foto: Alexandre Augusto Oliveira Rodrigues (Gráfica)

SUMÁRIO

Na correnteza dos 80 anos, Edu Lobo navega por recordações que marcam seu legado na música brasileira

Formiga

Auritha Tabajara e Lucélia Borges Artigos de Erica Stoppel e Rodrigo Matheus refletem sobre a diversidade, a poética e a função crítica da arte do circo

Cinco espaços do centro de São Paulo espantam a fama de mal-assombrados e ganham novos usos para além das lendas urbanas

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

p.60

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82

Mayra Vergotti
Sam
/
Robles
CBF (Encontros); Lucélia Borges (Inéditos); Thiago de Souza / OTQA (Almanaque)

Luís Melo é o Ancião no espetáculo Mutações, que está em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, até dia 20/8. Concebido e dirigido por André Guerreiro Lopes, o trabalho se apresenta a partir de um constante jogo de transformação em que nada parece ser o que aparenta. A peça é inspirada na simbologia do chinês I Ching, o Livro das Mutações, que reúne conhecimentos milenares sobre matemática, poesia, alquimia, artes, medicina e meditação.

Evelson de Freitas 9 | e em cena

Dos bailes black, grande tendência nos anos 1970, à explosão mundial do movimento hip-hop – que celebra seu cinquentenário em agosto –, essas duas manifestações culturais fazem parte do projeto Realeza negra: dos bailes ao hip-hop, que acontece durante este mês, no Sesc Itaquera.

“Considerados como espaços de encontro e celebração da cultura negra, os bailes se inspiravam nos movimentos culturais afro-americanos, como o soul, o funk, o disco e o rap”, explica Amanda Cristina da Silva, técnica de programação do Sesc Itaquera e uma das curadoras do projeto. Leonardo Thomaz, que também faz parte da equipe de curadoria, conta que, com o tempo, “o hip-hop se estabeleceu como um movimento cultural independente, trazendo novas formas de sociabilidade e uma gama de artistas que desenvolveu uma identidade própria dentro do gênero”.

Dentro dessa cena artística, a zona leste da capital paulista, onde fica o Sesc Itaquera, é um dos territórios precursores da cultura dos bailes

Hey ho! Cinquentou!

Com programação focada na cultura black, Sesc Itaquera celebra meio século do movimento hip-hop com nomes como DJ KL Jay, Nelson Triunfo, Thaíde e Tássia Reis

black e hip-hop no Brasil, ajudando a promover a ascensão de grandes artistas para o movimento.

Para celebrar esses 50 anos de história, a unidade oferece uma programação gratuita composta por shows, oficinas e saraus, e outras atividades. Entre os destaques, a cultuada Feira de Disco de Vinil Diggin, referência para DJs, colecionadores e amantes da música, dias 5, 26 e 27/8; show da banda Black Rio, formada em 1976 pelo saxofonista Oberdan Magalhães, dia 27/8; um bate-papo sobre a história do hip-hop no Brasil, dia 5/8, com Tássia Reis, Thaíde e Nelson Triunfo, pioneiro da cena hip-hop paulista;

show com o DJ KL Jay, um dos fundadores dos Racionais MC's, no dia 12/8; e uma oficina de miniskate de dedos, dias 5 e 6/8.

Além da programação no Sesc Itaquera, o hip-hop é homenageado pela websérie Olhares Sobre São Paulo: Especial Hip-Hop, realizada pelo Sesc Avenida Paulista, com depoimentos de Marcelinho Back Spin, DJ Zeme, Fabiano Minu, Sharylaine e Nelson Triunfo. A estreia da série acontece na plataforma Sesc Digital, no final deste mês.

Confira a programação completa em sescsp.org.br/itaquera e assista à websérie em sesc.digital

Leonardo Thomaz, técnico de programação do Sesc Itaquera e um dos curadores do projeto

Para celebrar o cinquentenário do movimento Hip-Hop. Sesc Avenida Paulista lança, no fim deste mês, a websérie Olhares sobre São Paulo: Especial Hip-hop
“Com o tempo, o hip-hop se estabeleceu como um movimento cultural independente, trazendo novas formas de sociabilidade e uma gama de artistas que desenvolveu uma identidade própria dentro do gênero"
Reprodução 11 | e DOSSIÊ

Vozes diversas

A produção literária negra produzida no Brasil nas últimas décadas é celebrada pelo novo lançamento das Edições Sesc São Paulo. O livro A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil (1960-2020), disponível ao

ESPIRAIS NEGRAS

MASCULINIDADES EM PAUTA

O que é ser homem? Como eles têm sido educados numa sociedade patriarcal? O que significa se entender como homem num contexto social marcado pelo machismo? Essas e outras questões serão debatidas durante o Projeto Masculinidades: entre diálogos&disputas, no Sesc Consolação, a partir deste mês. A programação, que segue até novembro, reúne bate-papos, intervenções artísticas e cursos

que propõem abordagens plurais às discussões sobre as masculinidades, instigando reflexões sobre as transmasculinidades, as paternidades, as masculinidades negras e o papel das juventudes nesta pauta. Na abertura, dia 17/8, o bate-papo "Por outras masculinidades" contará com a presença de Daniel Veiga, Leo Moreira Sá e mediação de Rodolpho Corrêa. Confira a programação completa: sescsp.org.br/masculinidades

No dia 17/8, o rapper Jupi77er faz show do álbum RG, em que mostra seu processo de transição à não binaridade.

público a partir deste mês, reúne textos que mapeiam uma produção literária “fora de lugar”, insólita, autônoma, que tensiona os dilemas e impasses do protagonismo das potências negras. O autor, Mário Augusto Medeiros da Silva, reconstitui um

Ao completar 25 anos, o Palco Giratório, projeto do Departamento Nacional do Sesc que percorre o país com uma programação de espetáculos de teatro, dança e circo, reúne, na edição deste ano, obras que abordam temáticas negras. Cartas para Mercedessssss (RJ), Imalè Inú Ìyágbà (SP), Preta Mina - O fim do silêncio, o eco do incômodo (RS) e Cuidado com Neguin (RJ) são alguns dos 14 espetáculos em circulação pelo país desde abril, e que neste mês serão apresentados em sete unidades do Sesc na capital paulista (24 de maio, Avenida Paulista, Belenzinho, Bom Retiro, Campo Limpo, Interlagos e Santana). O objetivo desta edição é mostrar a pujança da discussão sobre a formação da identidade das pessoas pretas, a riqueza de suas origens e a influência cultural desse legado no país. Saiba mais: sescsp.org.br/palcogiratorio

mosaico de narrativas fugidias, articulando fatos, cenários e histórias que mesclam utopia e ativismo, luta e reflexão sociológica, projetos estéticos e ético-políticos. Conheça: sescsp.org.br/edicoes

Iza Guedes (Masculinidades em pauta); Fred Gustavos (Espirais negras) Imagem do espetáculo O Adeus de Maria (MT), do Teatro Faces, que integra a programação do Palco Giratório 2023.
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Relíquia musical

Neste mês, o Selo Sesc lança o álbum João Bosco (Ao vivo no Sesc 1978), com a gravação do show que o artista mineiro fez, há 45 anos, no Sesc Consolação. A partir de 16/8, o álbum estará disponível, gratuitamente e com exclusividade, na plataforma Sesc Digital. Para marcar o lançamento, no dia 23/8, o músico volta ao Teatro Anchieta e sobe ao mesmo palco onde cantou nos anos 1970. Na ocasião, João Bosco participará de um bate-papo com a jornalista Adriana Couto, em que vai contar, e cantar, histórias do show que deu origem a este disco. No mesmo dia, o álbum será disponibilizado também nas principais plataformas de áudio. João Bosco (Ao vivo no Sesc 1978) faz parte do projeto Relicário, que resgata gravações de apresentações realizadas nos palcos do Sesc São Paulo nas décadas de 1970, 1980 e 1990, para serem remasterizadas em discos inéditos. Desde o início do ano, Relicário já lançou João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998) e Zélia Duncan (Ao vivo no Sesc 1997) Saiba mais: sescsp.org.br/relicario

ESTRADAS LITERÁRIAS

A literatura viaja pelo estado de São Paulo em duas feiras temáticas que acontecem neste mês, com a presença do Sesc. Entre os dias 12 e 20/8, o Sesc Ribeirão Preto, em parceria com a Fundação do Livro e Leitura, participa da 22ª edição da Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (FIL), que reúne bate-papos, espetáculos, vivências e oficinas que valorizam o ato de ler, a materialidade do livro e a oralidade. O diretor do Sesc São

Paulo, Danilo Santos de Miranda, será homenageado como patrono desta edição. Já na capital paulista, a primeira edição da Feira Literária da Zona Norte (FLIZN) ocupa o Sesc Santana, entre 30/8 e 3/9, com exposição de editoras e publicações independentes, além de shows, bate-papos, oficinas, saraus e contações de histórias que celebram a produção cultural da região. Acompanhe as duas feiras literárias: sescsp.org.br/ sescnafil e sescsp.org.br/santana

Divulgação
O estudante de ciências sociais Thiago Torres, conhecido pelo canal Chavoso da USP, no YouTube, é uma das presenças confirmadas na Feira Literária da Zona Norte, realizada neste mês, no Sesc Santana.
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FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
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Ricardo Ferreira

entrevista

Comer transformador

Para a socióloga da alimentação

Elaine

POR MARCEL VERRUMO FOTOS ADRIANA VICHI

Nos encontros presenciais, nos meios de comunicação ou nas redes sociais, a alimentação é tema recorrente. Conversamos sobre preparações saudáveis, assistimos a programas de receitas, lemos sobre dietas inovadoras. E mais: o mesmo feed ou jornal que apresenta um prato gourmet, também denuncia pessoas em situação de insegurança alimentar, trabalhadores expostos a situações degradantes no cultivo ou preparo de alimentos, monoculturas, agrotóxicos e indústrias que destroem o meio ambiente. São múltiplos – e, por vezes, paradoxais –os olhares sobre a alimentação na contemporaneidade.

A nutricionista, socióloga e pesquisadora Elaine de Azevedo é uma pensadora que, a partir de uma formação que ultrapassa os limites do campo científico da nutrição, investiga o comer de forma transdisciplinar. Graduada em nutrição pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em agrossistemas e doutora em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Azevedo atua como professora adjunta na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). A especialista ainda apresenta o podcast Panela de Impressão, no qual analisa a cultura a partir do ato de comer, revelando comportamentos coletivos e individuais.

Nesta Entrevista, Elaine de Azevedo reflete sobre as diversas nuances da alimentação, contextualiza conceitos construídos historicamente e, com um olhar otimista, compartilha sua crença na possibilidade de mudar o mundo a partir das escolhas alimentares.

de Azevedo, "se mudarmos o que comemos, mudamos o mundo"
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entrevista

O que é uma alimentação saudável nos dias de hoje?

Sua questão é bem correta ao mencionar “nos dias de hoje”. O conceito de “alimentação saudável” é uma construção social, ou seja, ele se transforma ao longo da história, não é estático. Assim como a ideia de saúde, qualidade de vida, bem-estar e felicidade, o conceito de “comida saudável” depende da cultura, do país, da realidade de cada pessoa que o adota. Para um vegano, a alimentação saudável está vinculada à questão animal; para uma pessoa interessada nas discussões ambientais, aos [alimentos] orgânicos; para cada grupo, isso pode mudar. E nos dias de hoje, esse conceito se tornou um grande desafio. Posso dizer que a alimentação saudável precisa considerar o que é saudável para todos. Não é mais possível defender que um suco de uva seja saudável só porque ele tem uma quantidade de fitoquímicos, se ele implica em trabalho escravo para cultivo e colheita da fruta ou considerar a soja saudável, porque ela ameniza os sintomas da menopausa, se a sojicultura produz mudanças na paisagem das florestas, inclusive ligadas ao aquecimento global. Para ser saudável, além de ser fresco, local, integral e, de preferência, sem contaminantes biológicos e químicos, o alimento tem que ser saudável para quem produz, planta, cultiva, transporta e come, para o meio ambiente e para os animais.

É por isso que se passou a falar de alimentação adequada e saudável?

Diante das repercussões do sistema agroalimentar moderno sobre a saúde humana, sobre o meio ambiente, sobre as populações tradicionais que produzem comida, a própria análise do que é saudável foi mudando. No processo de pensar a segurança alimentar e nutricional, um movimento que começou na década de 1940 com Josué de Castro [(1908-1973), médico, nutrólogo, cientista social e autor de importantes obras como Geografia da fome

– O dilema brasileiro: pão ou aço (1946)] e passou pelo Betinho [Herbert José de Souza (1935-1997), sociólogo que criou, em 1993, o projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida], culminando com a discussão do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), percebeu-se que somente o termo “saudável” já não era suficiente

para expressar nossos anseios. O termo “adequada” é uma incorporação das dimensões sociais, ambientais e culturais ao conceito. Ou seja, uma alimentação adequada e saudável passa exatamente pela ideia de que é necessário ser saudável para todos e tudo, porque ela tem que ter o valor nutricional preservado, tem que ter a sua integralidade, não ter contaminantes químicos nem biológicos, mas também não pode ter repercussões socioambientais, ou seja, não pode afetar quem produz a comida: as comunidades tradicionais, os quilombolas, os indígenas, os agricultores, os assentados. E não pode impactar o meio ambiente.

Antes disso, como o conceito de comida saudável se construiu historicamente?

Ele foi concebido a partir do espírito de cada tempo. A gente tem, por exemplo, na tradição, uma sociedade que se pautava na cultura, na territorialidade, na geografia, nas religiões. O conceito de alimentação saudável reverberava dentro dessa realidade. Uma comida saudável era ajustada culturalmente ao que se plantava naquele território. Quando a gente saiu da tradição e começou a vivenciar a modernidade, o espírito do tempo moderno passou a ser influenciado pela ciência, pela urbanização e pela industrialização. Nesse contexto, o conceito de “alimentação saudável” foi pautado em preceitos científicos racionais, baseado em uma visão energético-quantitativa e na industrialização. Já que a modernidade tem como uma de suas premissas o rompimento com a tradição, a gente rompeu com os valores tradicionais de comida local, ajustada culturalmente, e assumiu um conceito de alimentação industrializada, padronizada e que servia aos interesses do processo de urbanização. Já hoje, fizemos as pazes com a tradição: começamos a valorizar alguns conceitos e qualidades que dizem respeito à época pré-moderna, como a cultura e o localismo. E isso se dá, também, porque a gente vivencia as graves repercussões do sistema agroalimentar convencional sobre a nossa saúde, sobre o meio ambiente e sobre a sociedade.

É comum ouvir que, no passado, as pessoas eram mais saudáveis mesmo comendo preparações hoje evitadas, como as gordurosas. A questão das gorduras é um bom exemplo de como a relação com o alimento pode mudar culturalmente e, inclusive, mudar seu status de saudável. Se a gente

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pensar, por exemplo, nas comunidades tradicionais indígenas que viviam nos polos, elas comiam uma grande quantidade de gordura animal, e eram esses alimentos que as mantinham vivas e saudáveis. Se você migrar para a região do Mediterrâneo, o óleo de oliva era a gordura mais consumida. Nos trópicos, a gente tinha as gorduras de palmas, a gordura do açaí, a gordura da caça. E por que se dá essa demonização da gordura? Em todos os lugares do mundo, houve, lentamente, uma migração do ambiente rural para o urbano. As pessoas que viviam nas áreas rurais eram basicamente agricultoras com atividades não sedentárias e fumavam um cigarrinho de palha, tomavam uma cachacinha e tinham um nível de estresse muito menor. À medida que a migração do campo para a cidade acontece, por conta da industrialização e da urbanização, os seres humanos vão gradativamente mudando a sua qualidade de vida. Para suportar o estresse, passam a fumar muito e a cachacinha habitual passa, em alguns casos, ao alcoolismo. As pessoas se tornaram mais sedentárias na cidade, mas mantiveram o modo de se alimentar baseado no consumo de manteiga, gordura de porco e ovos. Mudou todo o contexto de qualidade de vida e quem foi demonizada foi a gordura. Eu costumo brincar que é como se a gente falasse que tomou “um porre” de Martini, mas o que fez mal foi a azeitona! E é bom lembrar que, nesse momento de demonização, o sistema agroalimentar hegemônico já tinha a “solução” para substituir a gordura animal, pois “coincidentemente” começou a produzir grande quantidade de grãos para fazer os óleos vegetais e a margarina. Os especialistas do sistema médico-hospitalar endossaram essa tese e grande parte das doenças cardiovasculares decorrentes dessa mudança no estilo de vida são sanadas por medicamentos também produzidos por esse sistema. Então, a gordura é a ponta de um iceberg, envolve muitos interesses e uma mudança extensa na qualidade de vida. Porque para ser saudável, a gente precisa olhar para o nosso modo de viver.

O que são paradoxos alimentares?

Esse conceito remete ao sociólogo François Ascher (1946-2009) e ao antropólogo Claude Ficshler. Os paradoxos, na verdade, mostram como a gente convive com perspectivas que podem parecer dicotômicas. Por exemplo, a gente tem alimentos em uma

O ato de comer como um ato político é muito assimétrico e não é por falta de consciência, às vezes é por falta de condições dignas para poder agir politicamente
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A alimentação saudável tem que considerar o que é saudável para todo mundo: para quem produz, planta, cultiva, transporta e come, para o meio ambiente e para os animais

quantidade maior, mais pesquisa, mais discussões sobre a saudabilidade, mas tem muito mais dúvidas e controvérsias sobre o que é uma alimentação saudável. Porém, eu acredito que o maior paradoxo alimentar seja o gestado nos países do Hemisfério Sul, como o Brasil: é o paradoxo de termos uma grande vocação agrícola, produzirmos 312 milhões de toneladas de grãos e 10 milhões de toneladas de carne bovina por ano, e mesmo assim termos 15% da população com fome. É o paradoxo de ter 120 milhões de hectares de terras improdutivas, segundo o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], e ter pessoas que não têm acesso à terra.

Outro paradoxo seria o fenômeno da gourmetização promovido pelas redes sociais e programas de culinária, em um país onde 33 milhões de brasileiros passam fome? Esse é outro paradoxo. A fome no Brasil é causada por uma imensa desigualdade social e por uma população com pouco senso de alteridade e coletividade. É o resultado de uma sociedade que vota em representantes que não têm vontade política para resolver essa questão, uma vez que não priorizam políticas de bem-estar para que as pessoas possam ter acesso a uma vida digna e escolher o seu melhor alimento. Já a gourmetização do comer acontece em todos os lugares do mundo. Segundo o economista Valter Palmieri, esse processo é uma ferramenta do capitalismo, sempre muito atento aos nossos desejos, oferecendo alimentos que nos fazem pensar que somos diferenciados: a pessoa come uma pipoca gourmet, toma um café que foi colhido à luz do luar e, então, tem a ilusão de que é diferente de quem compra a pipoca do pipoqueiro e toma um cafezinho no bar da esquina. Essa é uma habilidade do capitalismo que, além de aumentar a concentração de renda, nos ilude. Mas, eu também gosto de pensar a gourmetização como uma fome de sentidos. A gente está privado de muitos sentidos vivendo frente às telas, e na solidão. Assim, esta gourmetização pode ser uma estratégia inconsciente para amenizar a nossa falta de sociabilidade, a nossa individualidade excessiva, a nossa tecnose e solidão diante das telas.

Que perguntas cada um de nós pode se fazer antes de escolher um alimento?

Nossa, muitas perguntas! Se a gente está comendo um alimento fresco, eu sugiro perguntar: onde ele foi produzido? Por quem ele foi produzido? Ele é

saudável para mim, mas é saudável para as pessoas que o produziram? Para a natureza? No caso do alimento industrializado, é importante pensar: quanto tempo esse alimento dura? Por que ele dura tanto tempo? Qual a composição desse alimento? Eu conheço esses nutrientes que estão aqui? Por que ele é tão barato? E, também, é importante a gente aprender a ler os rótulos e se perguntar por que, dentro de um chocolate que deveria ser à base de cacau, o ingrediente em maior quantidade é o açúcar. Por que em um produto à base de leite, o primeiro ingrediente é soro de leite ou o amido de milho? O que significam aquelas letras pequenas, os aditivos químicos sintéticos? Também é bom citar o Michael Pollan, jornalista dos Estados Unidos que sugere que as pessoas se perguntem: a minha avó comeria esse alimento? Ela sabe o que é? Se sim, pode comer.

Hoje, fala-se bastante sobre a dimensão política do comer. A alimentação sempre foi considerada um ato político? No Brasil, isso começou quando Josué de Castro atrelou a fome aos determinantes sociais da população brasileira [o geógrafo e nutrólogo pensou a fome não como uma problemática ligada a contingências ambientais – tese defendida por muitos de seus contemporâneos –, mas pela ausência de interesse político em combatê-la]. Ao fazer isso, ele politizou o ato de comer ou, no caso, o ato de não comer. Isso continuou com o Betinho, com o Consea, com o movimento de segurança alimentar e nutricional. Naquele momento, quem estava envolvido eram os especialistas: médicos, nutricionistas, políticos. Porém, a partir do século 21, houve um acirramento das repercussões do sistema agroalimentar hegemônico. E esse acirramento, junto das grandes crises alimentares por ele provocadas, como a crise aviária e a doença da vaca louca, trouxe outro olhar para a alimentação. Então, não só os especialistas, mas também os chefs de cozinha, os jornalistas, as pessoas de iniciativas como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os pequenos agricultores e os ativistas, começaram a discutir tais repercussões. E o acirramento das grandes narrativas opressoras – o patriarcalismo, o capitalismo, o neoliberalismo, o antropocentrismo, a urbanização –trouxe ainda mais força para o ato de comer como um ato político. Isso também se dá em outras instâncias do viver. Hoje, por exemplo, quando alguém escolhe não comprar um sapato novo e mandar arrumar um antigo, está questionando o consumismo e o capitalismo; quando escolhe se tratar com homeopatia, está questionando

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o sistema de saúde hegemônico. E, da mesma forma, acontece no comer. Quando se resolve comer e cozinhar em casa, quando escolhe alimentos frescos e in natura, em todas essas situações, pode estar implícito o questionamento do antropocentrismo e da indústria agroalimentar. Eu costumo dizer que viver é um ato político, não tem como a gente desconsiderar todas as nossas atitudes sem pensar politicamente, uma vez que essas grandes narrativas nos oprimem. E enquanto elas se fortalecem na opressão, a gente pode se fortalecer na politização. Mas é bom entender, também, que o ato de comer como ato político não é uma premissa de todas as pessoas, ele é assimétrico. Há pessoas que nem pensam nisso; há quem pensa e age, comprando orgânicos ou assumindo o veganismo, voltando a cozinhar em casa; e há quem deseje fazer isso e não tem condições nem o privilégio de poder comprar orgânico ou de ficar em casa e comer com seus filhos. Então, o ato de comer como um ato político é muito assimétrico e não é por falta de consciência, às vezes é por falta de condições dignas para poder agir politicamente.

É possível construir, por meio da alimentação, uma sociedade mais justa?

Como socióloga da alimentação, eu costumo dizer que, se a gente mudar a comida, a gente muda o mundo. Se todos tivessem acesso à comida saudável e adequada, fresca, culturalmente ajustada, local, integral, sem contaminantes, a gente mudaria o mundo do ponto

de vista ambiental, porque o sistema para produzir essa comida é um sistema que tem baixo impacto sobre as florestas, as águas, o solo, o uso de petróleo. Teríamos pessoas mais saudáveis e com acuidade mental, com capacidade cognitiva de escolher os seus governantes, de fazer a revolução que precisa ser feita em prol dos próprios direitos. E, também, as pessoas que produzem alimento seriam dignificadas, haveria mais emprego no campo, revitalização do rural, amenização de problemas urbanos, de insegurança, desemprego e a superpopulação. E tem mais uma instância que eu chamo de espiritual: comer alimentos dos reinos mineral, vegetal e animal, sem venenos e aditivos artificiais é um jeito de se reconectar com a natureza. Não há dúvida de que uma das grandes questões da humanidade foi essa desconexão. Então, nesse sentido, eu acho que o comer realmente pode mudar o mundo. E me parece que esse sistema agroalimentar é um plano destrutivo muito bem bolado. Se a gente mudasse tudo isso, a gente teria uma humanidade muito mais consciente.

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com a socióloga da alimentação Elaine de Azevedo, realizada no Sesc Avenida Paulista.

O maior paradoxo alimentar é o gestado nos países do Hemisfério Sul, como o Brasil: é o paradoxo de a gente ser um país com uma grande vocação agrícola e ter
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15% da população com fome

DA CIDADEpassos NOS

Com o aumento da população brasileira concentrada nas metrópoles, o turismo urbano cresce nos grandes centros, propondo um olhar humanizado para a diversidade dos territórios

POR LUNA D’ALAMA
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Pedro Abude
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O programa de Turismo Social do Sesc São Paulo oferece, ao longo do ano, passeios de um dia, excursões e atividades formativas que percorrem diversos espaços da cidade, democratizando o acesso às práticas turísticas e ampliando a cultura da viagem. Na imagem, registro do roteiro Caminhos da Resistência – Memórias da Política Paulistana

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Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França, na zona leste da capital paulista, é um dos espaços visitados durante o passeio Ancestralidade Negra na Borda Leste da Pauliceia, realizado pelo Angana – Núcleo de Pesquisa e Educação Patrimonial em Territórios Negros de São Paulo.
turismo

Aglomerados com mais de 100 mil habitantes, as grandes cidades brasileiras abrigam, hoje, 124,1 milhões de pessoas, ou 61% da população, segundo dados do Censo Demográfico 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dos 203,1 milhões de brasileiros consultados, a maior parte (57%) vive em apenas 319 municípios, e 41,8% estão no Sudeste. Ou seja, o Brasil tem, atualmente, diversas concentrações urbanas como a Grande São Paulo – 185, para ser mais exato. A capital paulista aparece em primeiro lugar no ranking, com 11,4 milhões de moradores – que quase dobram se contarmos os outros 38 municípios da região metropolitana.

E é nesse cenário que vem crescendo, também, o turismo urbano. Afinal, não é preciso tirar férias e necessariamente viajar para outro país, conhecer uma praia paradisíaca, hospedar-se num resort ou numa casa no campo: atividades turísticas podem ocorrer em regiões urbanas – inclusive na própria cidade em que vivemos – num fim de semana, feriado ou dia de folga.

“É possível fazer turismo urbano em qualquer cidade, mas isso não significa que se tenha o turismo como atividade econômica relevante em todo lugar. Existe hoje uma vontade social de contar as histórias dos territórios, de ter um olhar mais crítico e de trazer à tona narrativas que foram apagadas”, destaca Vanessa Correa, que atuou, entre 2015 e 2020, no Departamento do Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo, onde implantou e coordenou a Jornada do Patrimônio [Saiba mais em Uma jornada e tanto!]

De acordo com a pesquisadora, que é doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o turismo urbano permite olhar em volta com atenção enquanto caminhamos, o que é mais difícil quando estamos de carro ou apressados para um compromisso. “Na capital paulista, podemos conhecer, por exemplo, as raízes negras de bairros como a Liberdade e o Bixiga, mais conhecidos por suas tradições asiáticas e italianas, respectivamente. O maior cuidado que devemos ter, portanto, é identificar as diferentes histórias que se contam sobre um mesmo lugar, e não apenas aceitar narrativas que ‘vendem’ mais”, ressalta Vanessa, que acredita que apenas um turismo de base comunitária e local dê conta de oferecer essa imersão.

Para a especialista, este tipo de turismo possibilita entender que uma movimentada avenida pode ter sido, algum dia, um caminho indígena. “E aí, o mero deslocamento pela cidade se torna uma rica experiência de fruição, de observação atenta aos detalhes e significados que se perderam com o tempo. Construímos nossas memórias a todo momento, pois elas mobilizam o passado em função dos nossos valores e questões suscitados no presente”, analisa.

Mirando esse objetivo, Vanessa Correa observa um boom de passeios guiados, da última década para cá. Eles costumam ser feitos em grupos pequenos, sem tantos impactos como o turismo de eventos, por exemplo. “É importante diversificar os locais de interesse, pois eles podem ir muito além das cidades históricas, de monumentos ou edifícios. Precisamos desconcentrar o turismo, para evitar problemas trazidos quando essa atividade é feita em massa, como impactos ambientais, redução de significados culturais e encarecimento do comércio e da moradia para quem vive nesses lugares”, alerta a pesquisadora.

MÃO DUPLA

Um destino turístico, além de ser atraente para aquele que o escolhe, precisa ser bom para os moradores, avaliam especialistas como David Carolla, professor dos cursos de Turismo e Teatro no Senac São Paulo. “É preciso que os habitantes também possam gostar e usufruir dos espaços, não só os turistas. Uma cidade deve ser pensada, em primeiro lugar, para quem mora nela. Quando você tem uma casa confortável, bem arrumada, sem grandes problemas, sentirá prazer em circular por ela e receber quem vem de fora”, afirma.

Como exemplo de ações interessantes da gestão turística em cidades brasileiras, Carolla cita a capital fluminense, onde o morador paga menos em atrações como o Corcovado e o Pão de Açúcar ao mostrar seu comprovante de residência. “Há municípios que oferecem até gratuidade aos habitantes, como incentivo para que conheçam o lugar onde vivem. E os benefícios devem ser de mão dupla: quem viaja expande seu repertório cultural e conhecimento; já quem recebe, pode ter tanto impactos positivos quanto negativos, dependendo de como o turismo é administrado e das políticas públicas locais”, observa Carolla, que atua no segmento do turismo cultural, além de ser

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Julia Parpulov
turismo

integrante da companhia Azenha de Teatro, que promove passeios cênicos pela cidade, incluindo performances, encenações e músicas aos roteiros.

Na visão do professor, o cenário ideal do turismo – urbano ou não – deve conciliar guias, agências de viagem, atividades não predatórias, geração de emprego e renda, incentivos fiscais, soluções de infraestrutura e mobilidade, além de um movimento de preservação ambiental e patrimonial. “Turismo urbano não é só aproveitar lugares e arquiteturas, mas principalmente as pessoas. Ao se ter contato com a população local, é possível conhecer a cultura, respeitando-a e priorizando valores para uma convivência harmoniosa”, reforça Carolla, que prossegue: “O turista não pode chegar com visão de colonizador, provocar exclusão, gentrificação: precisa entender seu papel e o impacto de seus atos e de seu consumo”. Além disso, o especialista defende que o turismo esteja inserido num contexto de hospitalidade, nunca de hostilidade.

Algumas cidades no Brasil (como Curitiba) e no mundo (como Washington, Nova York, Barcelona, Amsterdam, Paris, Lisboa e Londres) são referências em turismo, segundo David Carolla, seja pela facilidade de locomoção, pelos serviços oferecidos ou por suas opções gastronômicas, culturais e de lazer. O professor cita, ainda, aplicativos gratuitos de mobilidade urbana que têm repercutido nas cidades. Alguns oferecem mapas de localização, com marcação dos principais atrativos e informações gerais, para acessar pelo celular também em modo offline.

“O mais interessante do turismo urbano, para mim, é brincar de se perder um pouco pela cidade, flanar sem rumo certo. Quando isso acontece, ficamos mais atentos ao nosso redor, percebemos detalhes, pequenas ruas, outros caminhos”, ressalta. O especialista indica, ainda, o programa Vai de Roteiro, lançado em outubro de 2022 pela Prefeitura de São Paulo, com 16 trajetos gratuitos pelos principais pontos da cidade (como Avenida Paulista, Vila Madalena e bairro do Ipiranga). O projeto contempla a diversidade cultural, gastronômica, ecológica e esportiva da capital paulista.

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Bruna Damasceno
turismo

turismo

No passeio Turismo Quilombo Saracura, realizado pelo programa de Turismo Social do Sesc, os visitantes percorrem a Avenida Paulista em direção ao bairro do Bixiga, na região central da cidade, caminho do antigo Quilombo Saracura. Na imagem, participação da Pastoral Afro da Igreja Achiropita e de Isabella Santos, da Sampa Negra.

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RESPEITO À DIVERSIDADE

Algumas propostas de turismo urbano vêm privilegiando narrativas historicamente invisibilizadas. É o caso do Angana – Núcleo de Educação Patrimonial em Territórios Negros de São Paulo, que há oito anos promove uma revisão de apagamentos sistêmicos sofridos por populações negras, indígenas, LGBTQIAPN+, nordestinas e refugiadas, a partir de óticas antirracistas, decoloniais, feministas, anti-homofóbicas e antixenofóbicas. Por meio do projeto Ancestralidade Negra na Borda Leste da Pauliceia, o Angana tem como foco os bairros da Penha, Vila Matilde e Vila Esperança.

“No turismo urbano, os territórios negros são muito mais do que cimento e tijolos: são valores, simbologias e ancestralidade. Um museu vivo a céu aberto, que ocupa ruas, adentra vielas, praças e ressignifica instituições culturais. Os roteiros com essa pegada constituem, portanto, importantes ferramentas para que todos possam conhecer essas histórias, apropriar-se delas e entender que a memória é socialmente construída”, defende a turismóloga e educadora Thais Avelar, uma das coordenadoras do Angana.

Ela também cita a Constituição Federal, que em seu artigo 180 prevê a promoção e o incentivo ao turismo “como fator de desenvolvimento social e econômico”.

“Por meio dele, buscamos compreender a formação da cidade, transformá-la em um espaço mais humanizado a partir da afetividade, da alteridade, do pertencimento, da cidadania, da ética e da responsabilidade social. Colocamos em relevo o que vai além da versão oficial, em paisagens e lugares que revelam o movimento da vida, mas que muitas vezes são negligenciados e não observados com a devida atenção”, acrescenta.

CONSTRUINDO PONTES

O turismo urbano também possibilita visitar e conhecer bairros estigmatizados como simples dormitórios, desprovidos de muitas ações e opções culturais, vínculos ou memórias. “Ignoramos, por vezes, que moradores desses espaços construíram suas vidas nesses locais, frequentam ambientes de sociabilidade e têm trajetórias de migração em comum. Só vamos entender suas histórias e singularidades por meio de uma observação e de

O roteiro São Paulo Inesperada: Ilha do Bororé faz parte do programa de Turismo Social do Sesc São Paulo e também integra o projeto Itinerários de Resistência.
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uma escuta atentas, que estejam abertas ao novo e construam pontes, promovendo a interação e a troca de conhecimentos e experiências comunitárias”, destaca o historiador e guia de turismo Mauricio Dias Duarte, que integra o Grupo Ururay, coletivo formado na zona leste paulistana, em 2014. Com recorte nos bairros da Mooca, Penha, São Miguel Paulista e Itaquera, o Ururay desenvolve ações de valorização do patrimônio material e imaterial da região, realizando roteiros, feiras, festivais, exposições e pesquisas.

Duarte acredita que a melhor forma de conhecer um lugar novo, do ponto de vista histórico, geográfico e cultural, é a partir do olhar de quem vive nele todos os dias. “Recomendo que os turistas reflitam bastante sobre as razões e os objetivos pelos quais querem visitar uma cidade ou região. Além disso, é importante estar atento às dinâmicas locais, para fortalecer restaurantes, artesãos, vendedores e agentes regionais”, destaca o historiador. Na outra ponta, ele considera que o turismo urbano, para ser um modelo responsável, não deve se apresentar como uma atividade-fim, mas complementar a outras já praticadas pelas comunidades.

VISITAR PARA SOMAR

No extremo sul da capital paulista, dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA) a cerca de 30 quilômetros do Centro, fica a Ilha do Bororé. O acesso mais fácil ao local é pelo Grajaú, de onde sai uma balsa que atravessa um trecho da Represa Billings. É lá que funciona a Casa Ecoativa, programa de gestão ambiental participativa criado em 1998 para valorizar artistas da região e ações voltadas à preservação do meio ambiente. Um dos roteiros da Ecoativa na Ilha do Bororé acontece dentro do projeto Itinerários de Resistência , do Sesc São Paulo, que desde 2021 é parceiro de iniciativas de grupos da região que promovem turismo de base comunitária. O projeto deve se desdobrar em uma série de videopasseios com moradores da região, a serem lançados em breve na plataforma Sesc Digital.

Nesse cinturão verde da cidade de São Paulo, com extensa área de Mata Atlântica, os visitantes têm contato com comunidades tradicionais, povos de terreiro de matrizes africanas, práticas de agricultura familiar e agroecologia. “No Grajaú, temos ainda um cenário muito potente de audiovisual, samba e artes urbanas, como o grafite e o hip-hop. São lugares

O MERO DESLOCAMENTO PELA CIDADE SE TORNA

UMA RICA EXPERIÊNCIA DE FRUIÇÃO, DE OBSERVAÇÃO ATENTA AOS DETALHES E SIGNIFICADOS QUE SE PERDERAM COM O TEMPO

Vanessa Correa, pesquisadora e coordenadora da Jornada do Patrimônio entre 2015 e 2020

culturalmente pulsantes, com pessoas criativas, trabalhadoras, que têm um legado e uma contribuição relevantes para a cidade”, conta Jai Lara, diretor de cultura e meio ambiente da Casa Ecoativa.

Aos visitantes, recomenda Lara, é preciso chegar para somar, estar aberto à diversidade e ser cuidadoso com um espaço que não é seu. “Quem viaja ou se desloca, deve sair da sua zona de conforto para conhecer lugares e modos de vida diferentes, e aprender com isso. No turismo a céu aberto, é possível trocar ideias, provar comidas típicas e fazer um intercâmbio muito bacana, em que todos se beneficiem e tenham experiências enriquecedoras.”

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turismo / para ver no sesc

UMA JORNADA E TANTO!

O programa de Turismo Social do Sesc São Paulo, que completa 75 anos em setembro, participa da Jornada do Patrimônio, realizada neste mês na capital paulista

As atividades de turismo social desenvolvidas pelo Sesc São Paulo tiveram início em setembro de 1948, com a inauguração da Colônia de Férias Ruy Fonseca (atual Sesc Bertioga), no litoral norte do estado. Desde seu nascimento, o programa busca democratizar o acesso às práticas turísticas, promover a educação pelo e para o turismo, ampliar a cultura de viagem e o protagonismo dos participantes. Visa também desenvolver

processos voltados ao contato com o outro e ao respeito pela diversidade e pelos territórios, além de colaborar para a consolidação de cadeias econômicas éticas e sustentáveis no setor. Esses princípios – norteados pelos parâmetros da sustentabilidade, acessibilidade, valorização social e envolvimento das comunidades – fundamentam todas as ações desenvolvidas, a exemplo de passeios, excursões, oficinas, bate-papos e atividades online.

Segundo Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, o Turismo Social é um “meio para despertar a consciência histórica, ecológica e comunitária não apenas dos viajantes, mas também dos anfitriões e das empresas que fazem parte desse processo de contatos, de trocas simbólicas e materiais que ocorrem nessa ampla vivência compromissada com a sustentabilidade social”. Ele acrescenta que o programa

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Durante a edição 2022 da Jornada do Patrimônio, o Sesc São Paulo realizou a Trilha Memória Queixada, pelas ruas do bairro Perus, na zona norte da capital paulista.

Nos dias 19 e 20/08, o Sesc São Paulo participa da Jornada do Patrimônio, instituída em 2015 pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, para preservação do patrimônio histórico, cultural e arquitetônico do município, além de valorizar as memórias, tradições e identidades de seus moradores. A nona edição do evento tem como tema Se a cidade, se a cidade fosse minha..., e prevê mais de 400 atividades, como visitas a museus, monumentos, praças, igrejas e outros endereços de importância material e imaterial.

Confira destaques da programação do Sesc, na área de turismo social, em agosto:

AVENIDA PAULISTA

Geoturismo no Centro de São Paulo

Passeio a pé e de metrô com a geocientista e educadora Raquel Romão, que explica as características geológicas das rochas usadas na construção de edifícios do Centro Histórico. Dia 5/8, sábado, das 9h30 às 13h30. GRÁTIS.

para ver no sesc / turismo

JORNADA DO PATRIMÔNIO

CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO

Partir e ficar: Hotéis e seus usos sociais no Centro de São Paulo

Caminhada com o pesquisador Renato Cymbalista para investigar as memórias arquitetônicas do Centro. A jornada parte de icônicos hotéis, como Hilton, Edifício Itália e Europa Palace, e chega às atuais moradias sociais, tendo como perspectiva os prédios, seus usos e transformações.

Dia 19/8, sábado, das 10h às 12h30. GRÁTIS.

ITAQUERA

A pé pela quebrada: Favela Galeria

Caminhada pelas ruas de São

Mateus, na zona leste da capital, para conhecer a galeria à céu aberto, com obras de artistas do grafite. O público ainda participa de uma oficina para pintar com spray.

Dia 19/8, sábado, das 9h às 14h. GRÁTIS.

SANTANA

propõe uma qualidade de deslocamentos experimentados pela fruição da cultura, da solidariedade e de paisagens não apenas físicas, mas também humanas. “Deslocamentos pelos quais a beleza convida à contemplação, ao conhecimento e ao reconhecimento. Ou seja, a beleza é constituinte da identidade e se constrói nas idas e vindas, de dentro para fora e de fora para dentro”, complementa.

PIRACICABA

Re-conhecendo

Piracicaba – A origem do município

O Rio Piracicaba norteia essa caminhada de seis quilômetros pela Rua do Porto. Conduzido por Sabrina Franzol, o percurso visita espaços como o Largo dos Pescadores, o Museu da Água e o Parque do Mirante. Dia 6/8, domingo, das 8h às 12h. GRÁTIS.

Da biblioteca à praça: Memórias da Av. do Sabão

Circuito a pé pela Estrada do Sabão, na zona norte da capital, com saída da Biblioteca Afonso Schmidt. O roteiro passa pela Casa do Meio da Rua, por obras do metrô e pelo Hospital da Brasilândia, chegando à Casa de Cultura da Brasilândia. Dia 19/8, sábado, das 9h às 13h. GRÁTIS.

Mais informações: sescsp.org.br/turismosocial

Julia Parpulov
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o canto escuta

De tão forte, o estampido do carrilhão de sinos da Catedral da Sé, no Centro de São Paulo (SP), é ouvido a dois quilômetros de distância. As badaladas, que têm início ao meio-dia, podem significar um contratempo para a prática musical individual, de orquestra ou coro. E esse foi o principal empecilho encontrado pelo professor, arranjador e regente Samuel Kerr (1935-2023) ao começar, no final dos anos 1970, os ensaios para o espetáculo natalino do coral de funcionários da reitoria da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – sediada, à época, nas imediações da basílica.

O desafio de conduzir o conjunto de vozes, que só podia se reunir no mesmo horário em que soavam os 61 gigantescos instrumentos de bronze, converteu-se em um dos atestados de originalidade que permearam a carreira do artista. “Eu sugeri: que notas vocês estão ouvindo do carrilhão? A soprano achou uma nota, o contralto achou outra, o baixo, outra… ficou tão bonito que eu pus [o resultado] como música do programa, e foi a mais aplaudida!”, recordou-se o maestro, durante bate-papo realizado pelo Centro de Música do Sesc, no Youtube. “Propus ao coro que, já que ouvimos o carrilhão, a gente ouvisse também a praça. Então, criei com eles um espetáculo coral com os sons da Praça da Sé”, completou o regente. O coral da Unesp, um dos mais importantes do país, ganhou novo fôlego a partir daquele Natal.

E o episódio se tornou um dos símbolos da filosofia artística de Samuel Kerr: o canto também é escuta.

O engenhoso percurso artístico de Samuel Kerr, um dos mais renomados arranjadores e regentes de coro da música brasileira
TAMBÉM É
Lisias Guimarães Alcântara
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Filho (Guima)
Acervo do Theatro Municipal de São Paulo

“A coragem de romper com uma linguagem tradicional, e experimentar novas maneiras de abordar o repertório, foi, sem dúvida, um dos atributos que impulsionaram a carreira de Samuel Kerr. Por ter sido professor de tantos regentes de coros durante sua trajetória no ensino superior, ou em cursos e painéis em que era convidado, Samuel influenciou o cenário coral do país inteiro. Sentimos muito fortemente sua maneira de pensar o canto coral em trabalhos de regentes espalhados pelo Brasil”, escreveu o pesquisador Paulo Frederico de Andrade Teixeira na dissertação Samuel Kerr: um recorte analítico para performance de seus arranjos (2013), para o Programa de Pós-Graduação em música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

O regente se consolidou, ainda, pela condução de diversos corais amadores e pelos arranjos de hinos para corais evangélicos, ao passo em que também inovou como um dos primeiros maestros a criar arranjos de músicas populares brasileiras para corais – a canção Até pensei (1968), do cantor e compositor Chico Buarque, foi uma delas.

VOZES SACRAS

Filho de Walwick e Ondina Kerr, Samuel aprendeu a engatinhar em meio ao coro da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, no bairro da Santa Cecília, região central da capital. A família era assídua participante do coral da instituição religiosa – a mãe chegou a ser regente substituta. Em casa, a música era assunto importante: os ensaios do coro da igreja eram precedidos por outros ensaios, pois era inadmissível não saber cantar as músicas sacras. À medida em que crescia, o menino aprendeu a tocar piano e órgão, e o interesse pelo hinário se aprofundou. Chegou a pensar em estudar arquitetura, mas a herança musical familiar falou mais alto. “Como fiquei muito empenhado em trabalhar com a música da Igreja Unida, quando

Você sempre terá uma música bonita para seu coro, desde que você esteja atento ao universo sonoro que te rodeia. Você sempre estará aprendendo com o seu coro se você o escutar
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Samuel Kerr, em depoimento ao Centro de Música do Sesc São Paulo

cresci, passei a ser organista. E conheci pessoas muito importantes, como Nilce do Val Galante, que era minha professora e regente do coro, [o pianista, compositor e diretor musical] Paulo Herculano Marques Gouveia (1935-2017) e [o maestro] David Machado (1938-1995)”, rememorou Kerr em depoimento ao site Hinologia Cristã

O trabalho musical da Igreja Presbiteriana Unida possibilitou que os jovens Samuel, Paulo e David aprimorassem a formação artística erudita e ingressassem, no começo dos anos 1960, no Seminário de Música da Proarte, antiga Escola Livre de Música, fundada pelo musicólogo Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005).

“Tivemos uma formação musical de muita qualidade, de muita exigência, o que fez com que Paulo, David e eu pretendêssemos transformar a música na Igreja Presbiteriana, lembrando o trabalho da Reforma [Protestante] do século 16. Nós queríamos muito que a igreja voltasse a cantar os salmos do [teólogo] João Calvino (1509-1564), de músicos como [o compositor renascentista] Louis Bourgeois (1501-1561).

Com isso, nós estávamos tentando tocar uma música nova. Antiga, mas nova”, refletiu Kerr.

APRENDER E ENSINAR

Samuel Kerr ainda era bacharel em composição e regência pela Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo quando abraçou a docência. Em 1977, assumiu a função de professor de regência coral na Unesp, prerrogativa que conquistou pelo notório saber. Antes, lecionou na Universidade de São Paulo (USP), no então curso de música, de 1974 a 1976. Foi também diretor da Escola Municipal de Música nos anos 1980, década em que passou a ter forte atuação como regente de coros amadores – um dos reflexos da sua paixão pelo ensino coletivo. Tal despertar, no entanto, não foi consciente. “Eu apenas fui entender que o

A coragem de romper com uma linguagem tradicional, e experimentar novas maneiras de abordar o repertório, foi, sem dúvida, um dos atributos que impulsionaram a carreira de Samuel Kerr
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fazer musical é de todo ser humano [quando] eu estava como profissional atuante”, relembrou o maestro durante bate-papo realizado pelo Centro de Música do Sesc, no Youtube.

A sensibilização musical de Kerr, que reverberou em quase seis décadas de carreira, seja em salas de aula ou direcionada a cantores não profissionais, é sintetizada em máximas que incentivavam qualquer pessoa a cantar. “Você canta porque canta sempre – você está cantando sempre! Você rege, porque rege sempre. Ou seja, você abre uma porta e está regendo. E você precisa lembrar da musicalidade do seu gesto. Quando teu gesto ganha um significado musical, daí você está regendo. Você sempre terá uma música bonita para seu coro, desde que você esteja atento ao universo sonoro que te rodeia. Você sempre estará aprendendo com o seu coro se você o escutar. O coro sabe coisas fundamentais para a tua vida de regente”, esmiuçou o artista.

SONS DA VIDA

Ainda na década de 1980, o canto coral saiu das igrejas e entrou também nas empresas e órgãos públicos, outra confirmação da relevância e popularização do movimento coral sistematizado por Kerr. Entre os grupos que o músico conduziu estão, por exemplo, o Coral Paulistano do Theatro Municipal de São Paulo, fundado em 1936 por Mário de Andrade (1893-1945), o Coral dos Estudantes de Medicina da Santa Casa de São Paulo, o Coral do Esporte Clube Pinheiros e o Coral da Associação dos Funcionários da Câmara dos Vereadores de São Paulo. Fez, ainda, a direção musical dos espetáculos A Aurora da minha vida (1981), do dramaturgo Naum Alves de Souza (1942-2016) e Hans Staden no País da Antropofagia (1971), de Francisco Pereira da Silva (1918-1985).

Quando assumiu a coordenação da Orquestra de Cordas do Sesc São Paulo, em 1984, o regente deu início a um pioneiro trabalho de coro para idosos – público que tinha o hábito de se encontrar, diariamente, na área de convivência do então Sesc Vila Nova (atual Sesc Consolação) para jogar cartas [Leia mais em A musicalidade de cada gesto]. O maestro decidiu implementar um grupo de canto coral à tarde para testar o interesse dos frequentadores. Nos primeiros dias após a abertura das inscrições, apenas duas pessoas apareceram – uma jovem de 16 anos e uma mulher octogenária. Entretanto, com o tempo, o projeto chegou a reunir cerca de 80 integrantes. Tanto em seu tímido início, quanto em seu encerramento, Samuel Kerr estava sorrindo, atento e alegre, a cada começo de ensaio.

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A MUSICALIDADE DE CADA GESTO

Legado de Samuel Kerr está fincado nas raízes do Centro de Música do Sesc São Paulo, que neste mês abre vagas para novos cursos regulares

O projeto de canto coral implantado no Sesc São Paulo, em 1984, pelo maestro Samuel Kerr, foi chamado, a princípio, de Laboratório Coral, e assim seguiu até a concepção do Centro Experimental de Música, em 1989 [um desdobramento da Orquestra de Cordas do Sesc]. Hoje, o Centro de Música do Sesc está presente nas unidades Consolação, Vila Mariana e Guarulhos.

Um dos diferenciais do projeto pioneiro era o forte compromisso com a inclusão e a acessibilidade: no elenco dos primeiros grupos, havia pessoas de diferentes origens, classes sociais, etnias e credos. Samuel Kerr trabalhou no Canto Coral do Sesc até 1987, mas as atividades

formativas realizadas até hoje são reflexo daquele começo.

Quem tiver interesse em conhecer o trabalho do Centro de Música do Sesc, e quem sabe aprender, ou aprimorar, conhecimentos relacionados ao universo musical, pode se inscrever em um dos diversos cursos regulares oferecidos ao longo do segundo semestre deste ano. Entre as ações, cursos teóricos e práticos para desenvolvimento em canto, instrumentos e musicalização para diferentes idades, em vagas distribuídas nas categorias iniciação, continuidade, prática de conjunto e livre.

As matrículas para iniciados, ou seja, para pessoas já matriculadas

em cursos anteriores do Centro de Música ou que já possuam conhecimento prévio na técnica pretendida, abrem de 1º a 4/8. Para alunos iniciantes, o prazo de inscrição é de 15 a 18/8. As aulas começam entre os dias 22 e 26 deste mês, nos três Centros de Música do Sesc em São Paulo.

CENTRO DE MÚSICA

Consolação, Guarulhos e Vila Mariana

Abertura das inscrições para os cursos regulares do segundo semestre de 2023: a partir de 1º/8. Consulte as condições e inscreva-se:

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DO SESC SÃO PAULO
Arquivo
Samuel Kerr 39 | e para ver no sesc / bio
"O fazer musical é de todo ser humano", defendia Samuel Kerr, que aparece nesta imagem regendo o Coral Jovem do Estado de SP, em 2014, na Sala São Paulo.
pessoal

ARTE FUNDANTE

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Geometria à Brasileira: verde n.2 (2022), Rosana Paulino.

A expressão artística e o pensamento de criadores negros são fundamentais para a compreensão de uma arte brasileira

Cortesia da artista e da Galeria Mendes Wood DM, São Paulo, Bruxelas, Nova York / Copyright da artista / Foto: Bruno Leão
gráfica
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Don’t Touch (2020), Mauricio Igor. Coleção do artista

C"omo foi possível a gente escrever uma arte brasileira sem a presença negra como protagonista em um país onde 56% das pessoas são negras?”, questiona Igor Simões, professor adjunto de história, teoria e crítica da arte na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Para Simões, não faz sentido estudar a história da arte produzida no país sem celebrar o trabalho de Mestre Valentim (Serro/MG, 1745-1813), Heitor dos Prazeres (Rio de Janeiro/RJ, 1898-1966), Ana das Carrancas (Petrolina/PE, 1923-2008), Rosana Paulino (São Paulo/SP) e tantos outros nomes. É a partir dessa premissa que a exposição Dos Brasis - Arte e Pensamento Negro, em cartaz a partir de 2/8 no Sesc Belenzinho, busca mostrar “que artistas negros sempre estiveram, estão e estarão presentes neste cenário, apontando para reflexões e traçando perspectivas do mundo onde vivemos”, segundo Simões, que é curador geral da mostra.

Composta por obras criadas por artistas negros entre o século 18 e os dias atuais, a exposição propõe superar a ideia de que a história se desenvolve numa sequência cronológica, que é feita de movimentos sucessivos. Segundo Igor Simões, esse “é um princípio eurocêntrico”. Seria possível afirmar, portanto, que a cultura não é feita de uma linha reta, por meio da qual um acontecimento vai, automaticamente, suscitando outro. “A nossa cultura é muito mais da ordem da constelação: muitas coisas acontecem simultaneamente, e quando a gente fala nas culturas de matriz africana, essa lógica ainda se acentua”, acrescenta Simões.

Para historiadores, antropólogos e outros estudiosos, é o campo das artes que reflete sobre o passado e o presente, mas sempre com um olho no que está por vir. No caso da exposição Dos Brasis, o curador geral destaca as maneiras pelas quais a arte “fala de como as nossas coletividades, em diferentes espaços da vida, foram formas de afirmação não só de existência, mas de todas as possibilidades de criação e invenção de um novo Brasil a partir das associações negras nas mais diferentes áreas”. E complementa: “acima de tudo, se existe uma pretensão nessa exposição, é acabar de vez com qualquer dúvida que recaia sobre a existência e a potência da produção negra brasileira. Não somos nota de rodapé, somos o tema que atravessa todos os capítulos do que se chama de arte brasileira”.

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gráfica
Coleção DJ Papagaio
Agué com folha de prata no peito e avivi (2022), Ayrson Heráclito. Elenice (2021), Ana Paula Sirino.
Coleção do artista
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Acervo Boi de Pindaré / Foto: Márcio Vasconcelos
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Manto Boi de Pindaré. Sem data, Boi de Pindaré. Dona Izabel Trabalhando (2019), Andreia Pereira Andrade. Coleção particular / Foto: Matheus Alves Sem título, da série Couro laminado (2022), Gê Viana.
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Cortesia da artista e da Galeria Superfície
Foto: Gui Gomes
A preparação das meninas (1972), Maria Auxiliadora. Coleção Maria Cecília
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e Michel Gorski / Foto: Rodrigo Reis
Cortesia Galeria Jaqueline Martins / Foto: José Pelegrini 51 | e gráfica
Sem título, da série Aos Nossxs Filhxs. Sem data, Lia D Castro. Coleção do artista / Foto: Romulo Fialdini Ao seu alcance (2012), Flávio Cerqueira.

LARGO ALCANCE

Centralidade do pensamento negro nas artes visuais brasileiras pauta exposição que deve circular por diferentes unidades do Sesc em todo o Brasil ao longo da próxima década

Em cartaz a partir do dia 2/8, no Sesc Belenzinho, a mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro celebra a arte produzida por criadores negros e sua contribuição estética na constituição de um pensamento sobre a arte brasileira – e sobre a própria ideia de um país. Para se chegar ao expressivo número de artistas negros que compõem a exposição – cerca de 240 no total – foram realizadas pesquisas em todas as regiões do Brasil, numa iniciativa do Departamento Nacional do Sesc com a participação de seus departamentos regionais em diferentes estados. A equipe curatorial, composta pelo curador geral Igor Simões e os curadores adjuntos Marcelo Campos e

Lorraine Mendes, investigou obras, documentos em ateliês, portfólios e coleções públicas e particulares.

Após um programa de residência artística online, foram selecionadas centenas de obras em diversas linguagens, como pintura, fotografia, escultura, instalações e videoinstalações, realizadas por artistas negros de distintas origens, entre o fim do século 18 e os dias atuais. Dividido em sete núcleos – Romper, Branco Tema, Negro Vida, Amefricanas, Organização Já, Legitima Defesa e Baobá –, o espaço expositivo aglutina pensamentos de importantes intelectuais negros, a exemplo de Beatriz Nascimento (1942-1995), Emanoel Araújo

para ver no sesc / gráfica

(1940-2022), Guerreiro Ramos (1915-1982), Lélia Gonzalez (1935-1994), e Luiz Gama (1830-1882).

Em cada núcleo, um acervo de obras de diferentes temporalidades, linguagens e estilos que dialogam com questões como tecnologias ancestrais e afrofuturismo.

Como explica Janaína Cunha, diretora de programas sociais do Departamento Nacional do Sesc, é importante pensar em um projeto como esse para a identificação e valorização de uma cultura que sistematicamente sofre tentativas de apagamento em todas as suas dimensões "Trazer uma exposição com tantos artistas, promovendo uma ocupação tão numerosa, serve como resposta [a esse cenário]." Por outro lado, segue Janaína, “esta exposição não é importante apenas para pessoas negras. O combate ao racismo, ou a pauta antirracista, diz respeito a todas as pessoas. Da mesma forma, entender o quanto o racismo estrutura nossa sociedade é uma questão que concerne a todo mundo que vive no Brasil. Conhecer mais profundamente a produção artística de autoria negra precisa estar mais acessível a toda população”, finaliza.

BELENZINHO

Dos Brasis - Arte e Pensamento Negro

Exposição coletiva com curadoria de Igor Simões, Lorraine Mendes e Marcelo Campos. De 2 de agosto de 2023 (abertura às 18h) a 28 de janeiro de 2024. Terça a sábado, das 10h às 21h. Domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS.

sescsp.org.br/belenzinho

Coleção da artista / Foto: Ana Lages
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R-Existir (2018), Priscila Rezende.

mídias

INDÍGENAS

Em todo o Brasil, comunicadores de

Quando a jovem Samela Sateré Mawé, da Terra Indígena Andirá-Marau, no Baixo Rio Amazonas (AM), começou a criar conteúdo para as redes sociais, foi pelo perfil do coletivo Artesanato Sateré Mawé no Instagram (@amism_sateremawe), que divulga o trabalho feito pela Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé. Enquanto postava informações sobre as peças criadas com sementes da floresta – arte circulada de geração em geração –, Samela teve, em 2018, a oportunidade de participar da oficina Jovens Cidadãos da Amazônia, realizada pela agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real, criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. Desde então, a jovem faz parte de um levante de comunicadores

indígenas que produzem, a partir de seus territórios, reportagens, fotografias, vídeos e podcasts compartilhados na internet.

“A gente é comunicador nato, comunicador popular, comunicador indígena que atende à pauta da comunicação de uma forma descomplicada e democrática. Antes, a gente não tinha jovens indígenas referências nas redes sociais para pautar a luta do seu povo e, agora, a gente tem”, celebra Samela, que é colunista do Projeto Colabora, coordenadora política de comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). E no seu perfil pessoal (@sam_sateremawe), onde veicula seu trabalho, Samela já tem mais de 100 mil seguidores.

Para o jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero Eduardo Nunomura, “o que temos visto é algo não só original, com conteúdos plenos de significados, mas também capaz de forçar uma inovação dentro do próprio jornalismo, mal-acostumado a narrativas já consagradas”. Um novo cenário impulsionado, principalmente, pelo alcance da internet. “Com a emergência do ambiente digital, ficou mais fácil e possível todos se tornarem emissores. Indígenas e quilombolas, por exemplo, estão descobrindo que eles próprios podem contar suas narrativas, sem a intermediação do profissional de imprensa”, complementa.

diferentes etnias criam e ocupam espaços com suas pautas, vozes e demandas por direitos
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Richard Wera Mirim
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cidadania

Engajado neste contexto, Richard Wera Mirim, da Terra Indígena Jaraguá, faz da Mídia Guarani Mbya (@midiaguaranimbya) um canal de comunicação dos povos que vivem aos pés do pico mais alto da cidade de São Paulo. “Agora temos a tecnologia em nosso favor. Podemos fazer uma denúncia o mais rápido possível com o nosso celular mesmo, não precisamos esperar a mídia tradicional chegar para fazer uma matéria. Podemos falar por nós mesmos”, explica Richard, que faz a cobertura fotográfica de marchas contra a especulação imobiliária na TI Jaraguá, contra o Marco Temporal,

entre outras lutas, além de registros do dia a dia e de rituais dos Guarani, desde a criação da página, em 2020.

“Assim a gente consegue dar mais visibilidade pro nosso povo, mostramos o que realmente nós passamos dentro das comunidades. Porque muitas pessoas ainda acham que só existem indígenas na Amazônia, não sabem que em São Paulo tem indígenas”, ressalta. Além do trabalho de coordenação da Mídia Guarani Mbya, o fotógrafo realiza oficinas nas quais ensina outros jovens a manusear o celular para fotografar e publicar

Registro do fotógrafo Richard Wera Mirim para a Mídia Guarani Mbya em maio deste ano: manifestação contra o projeto de lei do Marco Temporal (PL 490), na Rodovia dos Bandeirantes, nas proximidades da Terra Indígena Jaraguá.

suas pautas. “É uma forma que a gente achou de formar novos comunicadores indígenas, fotógrafos, cineastas, para que eles mesmo possam falar por eles em suas aldeias”, acrescenta.

A multiplicação de comunicadores indígenas nas redes sociais não só oferece outras perspectivas acerca do que acontece nos territórios dos povos originários – e que está fora da cobertura de grandes mídias –, como também derruba preconceitos e estereótipos.

“Ainda tem gente com uma ideia estereotipada do indígena de 1500. Isso foi construído no imaginário da população brasileira desde a invasão, de que o indígena ‘é assim’. Só que essa história sempre foi contada pelo não indígena. O processo colonizador não acabou e ele acontece, ainda, todos os dias, quando negam a nossa identidade, nossos direitos”, lamenta Samela.

“As pessoas não entendem que, para a gente, estar nas redes sociais é uma forma de honrar a nossa cultura, a nossa ancestralidade, de utilizar os nossos adereços, nossos cocares. Pelas redes sociais, a gente tem a oportunidade de alcançar essas pessoas”, observa a comunicadora, que também cria vídeos para as redes sociais da plataforma Sumaúma, idealizada pela jornalista Eliane Brum, para cobertura da Amazônia sob o olhar dos povos da floresta.

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PROTAGONISMO E FORMAÇÃO

Hoje, a força desse grupo de comunicadores, que já somam milhares de seguidores nas redes sociais, também faz com que outros veículos de comunicação reconheçam suas narrativas. “Na Amazônia Real, dizemos que não é uma questão de dar voz aos indígenas. Voz, eles sempre tiveram. O jornalismo é que não os ouvia”, destaca Eduardo Nunomura, que também é editor de reportagens especiais dessa agência de jornalismo independente e investigativo, criada em 2013

pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias (cuja família materna é do povo Sateré Mawé).

Pautada nas questões da floresta e de seus povos, a Amazônia Real defende que as populações tradicionais sejam protagonistas de suas narrativas. Para isso, além de ter comunicadores indígenas na redação, também realiza, desde 2018, oficinas com foco na comunicação como estratégia de educação para gerar reflexões sobre identidade étnica, pertencimento e responsabilidade no uso das redes sociais. “Eu fui, na verdade,

provocada pela cacique Mandeí Juma, quando visitei, em 2014, o território dela [a Terra Indígena Juma, em Canutama, sul do Amazonas], e ela me disse que tinha vontade de conhecer as redes sociais, porque gostaria de falar nesses espaços, mas não sabia como. Por isso, a gente começou a ofertar a Oficina Jovens Cidadãos da Amazônia”, recorda Kátia Brasil, que há mais de 30 anos faz cobertura jornalística da região.

A primeira turma, em 2018, foi voltada exclusivamente para mulheres e formou 10 comunicadoras, entre elas a própria cacique Mandeí Juma e outras lideranças, como Vanda Ortega dos Santos Witoto e Samela Sateré Mawé. A segunda oficina, em 2019, contou com 10 estudantes, entre eles Purê Juma Uru Eu Wau Wau, que ainda faz parte da equipe de colaboradores da Amazônia Real, e Bitate Uru Eu Wau Wau, que cursa a faculdade de jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Durante a pandemia, em 2020, não houve oficinas, então a agência criou o Blog Jovens Cidadãos da Amazônia, por meio de um financiamento do fundo Amazonas Rainforest Journalism, que tem o apoio do Pulitzer Center [organização norte-americana de fomento a projetos de mídia independentes]. Assim, os jovens comunicadores puderam ser remunerados para produzir conteúdo de seus territórios. “Eles escreveram num período muito difícil, tem relatos muito fortes de quando não podiam sair da aldeia, e depois vieram as mortes, os cuidados, as barreiras. Falaram sobre a saúde e a educação, que também estava precária”, conta

Mre Gavião
Samela Sateré Mawé faz parte da geração de influenciadores indígenas nas redes sociais.
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Brasil. Segundo a jornalista, o blog “se tornou um documento muito importante daquele período que marcou o mundo”. Reconhecida em 2022 com o Prêmio Vladimir Herzog Especial, a Amazônia Real realizará, em 2024, a terceira oficina, dessa vez voltada a jovens quilombolas e ribeirinhos.

DENTRO E FORA

Pioneira no combate à desinformação na Amazônia brasileira, a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro (@rede.wayuri) recebeu o Prêmio Estado de Direito 2022, do World Justice Project (WJP), na cidade de Haia, na Holanda, em maio do ano passado. Com apoio do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (ISA), e composta por 55 comunicadores de 16 etnias, a Rede Wayuri foi criada, em 2017, com o nome Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro. No começo, eram 17 comunicadores de oito etnias – Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano e Yanomami – que produziam boletins em áudio para levar informações sobre os territórios indígenas do Rio Negro para suas 750 comunidades.

Uma das integrantes da Rede desde sua criação, a cientista social Elizângela da Silva, do povo Baré, lembra que quando assumiu o departamento de mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em 2017, junto a outras três coordenadoras, teve a ideia de fortalecer a comunicação nas terras indígenas. “A gente resolveu criar a rede para levar informação aos territórios sem acesso à televisão, computador e internet”, conta.

Em 2018, a agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real realizou a primeira oficina Jovens Cidadãos da Amazônia, que formou comunicadoras da região, como a cacique Mandeí Juma, da Terra Indígena Juma, em

“Na nossa região, a gente sempre faz muitos mutirões – capinar, fazer canoa. Esse trabalho coletivo a gente chama, em nheengatu [Língua Geral amazônica], de wayuri. Então, a gente escolheu esse nome porque precisava fazer, juntos, com que a comunicação chegasse nessas comunidades”, explica Elizângela. Sem estúdio para gravar os boletins, nem experiência em radiojornalismo, a parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) possibilitou a formação de comunicadores.

A ferramenta seria o celular e o ambiente para gravação, a maloca. A jornalista Letícia Leite, que estava, então, à frente do programa Copiô, Parente!, realizado pelo ISA, ministrou a formação em São Gabriel da Cachoeira (AM), voltada para jovens indígenas do território. Mensalmente, os comunicadores indígenas, mobilizados pela Rede Wayuri, iam até a cidade para aprender sobre roteiro, edição e, então, produzirem o programa Papo da Maloca, que é mensalmente compartilhado por WhatsApp, pela transmissão de arquivos via bluetooth e também por plataformas de streaming de áudio.

“Esse foi o nosso propósito: que a comunicação de fora chegasse lá dentro, e a de dentro chegasse para fora”, explica Elizângela Baré, que até 2021 participou integralmente da Rede Wayuri, na qual segue como colaboradora, e desde 2022, é locutora do programa Rádio Sumaúma. Essa via de mão dupla, aliás, é o que a cientista social e comunicadora, que hoje cursa o mestrado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), acredita ser essencial para a mobilização da sociedade nas causas indígenas.

“A gente fala coisas que a gente sente, que a gente vive, que a gente acha que precisam ser ouvidas pelas pessoas, não só por nós. Então, a gente acredita que a comunicação não serve só para você dizer: ‘hoje vai chover’, ‘hoje vai sair sol’. É alguma coisa que tem que tocar o coração daquela pessoa e dizer: ‘Poxa, aquele tema que foi falado pela Rede Wayuri ou pela Sumaúma é, de fato, uma coisa que me atinge e atinge aquela população que eu nunca vi, que eu não conheço’. As pessoas precisam conhecer nossas causas”, finaliza.

Alberto Cesar Araújo
Canutama, sul do Amazonas.
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cidadania / para ver no sesc

NARRATIVAS ORIGINÁRIAS

Em celebração ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, projeto do Sesc São Paulo realiza apresentações, exibição de filmes, bate-papos e outras ações ao longo deste mês

De proporções continentais, o Brasil possuía, em 2010, segundo o Censo, 305 etnias indígenas, falantes de 274 línguas. Ou seja, em nosso país habita uma profusão de cosmologias e tecnologias dos povos originários, ainda pouco conhecidas. A fim de celebrar os saberes e valorizar os direitos dos povos originários, o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9 de agosto) foi instituído pela ONU. Em São Paulo, a data inspirou a Lei 17.311/2021, que determina no calendário oficial do estado o Agosto Indígena

O Sesc São Paulo desenvolve, ao longo de todo o ano, ações programáticas voltadas à valorização e ao reconhecimento dos direitos dos povos originários, e neste mês realiza nas unidades

da capital, interior e litoral uma programação especial para a ação Agosto Indígena. Esta edição, nomeada Brasil Terra Indígena, abrange apresentações, exibição de filmes, bate-papos, cursos, vivências e outras atividades com o propósito de visibilizar a presença indígena. Como explica Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, ao valorizar a diversidade desses povos no Brasil, o Agosto Indígena “busca reforçar um movimento no qual o protagonismo e a representatividade de comunidades e pessoas são aspectos inegociáveis para uma sociedade que se pretende plural e comprometida com o futuro”.

Confira alguns destaques da programação:

CONSOLAÇÃO

ABERTURA DO AGOSTO INDÍGENA

Sarau UruKum

Encontro multiétnico com intervenções artísticas que abordam questões relevantes aos povos indígenas na contemporaneidade. Dia 9/8. Quarta, das 18h às 18h45. GRÁTIS

Avaxi Nhenhoty

Cerimônia de encontro dos Guarani do Jaraguá com multiartistas indígenas, inspirada no plantio de milho do povo Guarani. Com o Coro Guarani Kyre'y Kuery, David Vera Popygua Ju, Xeramõi José de Quadros Vera Popygua, Glicéria Tupinambá, Uýra Sodoma e Zahy Tentehar. Direção de Cibele Forjaz. Dia 9/8. Quarta, das 19h30 às 21h30. GRÁTIS

SOROCABA

O céu dos povos Tukano: entre miradas e histórias Bate-papo sobre a cosmovisão indígena do céu noturno para os povos Tukano Orientais, da região do rio Tiquié, no Alto Rio Negro (AM), e a perspectiva astronômica acadêmica. Com Kisibi Durvalino Moura Fernandes, kumu do povo Desana, e o astrônomo Walmir Thomazi Cardoso. Dia 24/8. Quinta, das 19h às 21h30. GRÁTIS.

Programação completa: sescsp.org.br/agostoindigena

No dia 9/8, cineastas das aldeias Tekoá Arandu e Tekoá Yy Nhany participam de um bate-papo sobre produção audiovisual e povos indígenas, no Sesc Sesc Registro.
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Tiago Meirelles

circo A ARTE DO

Ocirco é “essa arte que combina linguagens, desafia regras, que joga com o impossível, com os limites, a proeza, a poética, a política”, descreve a professora argentina Julieta Infantino, organizadora do recém-lançado A arte do circo na América do Sul: trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea (Edições Sesc São Paulo, 2023), com tradução de Adriana Marcolini.

Fazer artístico que atravessa séculos carregando uma diversidade de estéticas e poéticas que espelham a beleza do extraordinário, mas que também desvelam críticas sociais, a arte circense entra, nos últimos anos, na arena dos espaços teóricos e práticos da cena cultural sul-americana.

Diante disso, A arte do circo reúne artigos acadêmicos e ensaios de autores-atores da Argentina, do

Brasil, Chile e Uruguai, que fazem do circo um ofício e uma fonte de pesquisa. Dividido em cinco partes, o livro congrega revisões críticas sobre a história desse gênero artístico e suas representações na atualidade, classificações e conceitos estético-temporais – como “circo tradicional”, “novo circo” e “circo contemporâneo” –, tensões entre criatividade e técnica, bem como depoimentos de artistas, gestores e referências da área.

Neste Em Pauta, excertos de dois artigos publicados na obra trazem à lona importantes reflexões. No primeiro, a pesquisadora argentina Erica Stoppel, cofundadora e performer do coletivo Piccolo Circo Teatro de Variedades, investiga o circo como espetáculo e produção de linguagem; e no segundo texto, o fundador e diretor do Circo Mínimo, Rodrigo Matheus, traça um arco temporal das transformações atravessadas pelo fazer circense no Brasil. Boa leitura!

Acesse o site das Edições Sesc São Paulo e saiba mais sobre o livro A arte do circo na América do Sul: trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea (2023), com organização de Julieta Infantino.

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Nortearia

Ofício, técnica e arte no circo

POR ERICA STOPPEL (ARGENTINA)

Se antigamente o circo era privilégio dos herdeiros de um saber familiar, hoje ele é povoado de integrantes dos mais diversos segmentos da arte, do esporte e de manifestações da cultura popular. Faço parte do que poderíamos chamar de geração da transição, aquela que aprendeu o caminho entre a vida no circo e a formação em escolas. Na minha época, aprender circo significava aprender as técnicas, saber o ofício. Claro que a esse saber se agregavam conhecimentos de outra natureza, como fazer um aparelho, instalá-lo na lona, subir na lona para uma lavagem coletiva e muitas outras coisas relativas aos materiais de trabalho, mas também à ética do período: o respeito aos mestres da tradição, a nobreza de pisar no picadeiro como artista e o culto às formas e às habilidades do corpo.

Ao falar de circo neste texto, meu recorte é o fazer artístico, o circo como espetáculo e a produção de linguagem. No decurso dos estudos que deram origem à minha pesquisa de mestrado, intitulada O artista, o trapézio e a criação: reflexões de uma artista circense da cena contemporânea [Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – IA/Unicamp, 2017], entrei em contato com o texto de Mário de Andrade (1893-1945) O artista e o artesão, no qual ele trata de artesanato, técnica e obra de arte para entender a formação de um artista.

De início, o autor distingue arte de artesanato: “A arte na realidade não se aprende. Existe, certo, dentro da arte, um elemento, o material, que é necessário pôr em ação, mover, para que a obra de arte se faça. O som em suas múltiplas maneiras de se manifestar, a cor, a pedra, o lápis, o papel, a tela, a espátula, são o material de arte que o ensinamento facilita muito a pôr em ação. Mas nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato. Pelo menos naquilo que

se aprende. Afirmemos, sem discutir por enquanto, que todo o artista tem de ser ao mesmo tempo artesão. Isso me parece incontestável e, na realidade, se perscrutamos a existência de qualquer grande pintor, escultor, desenhista ou músico, encontramos sempre, por detrás do artista, o artesão”.

Observo que, no circo, adquire-se o artesanato na construção de um conhecimento que se dá tanto na transmissão de mestre para discípulo como na prática do ofício. Entendo, ainda, que certas características da linguagem circense parecem sugerir que, para se expressar nessa linguagem, o domínio de certas habilidades é imprescindível (seria difícil imaginar um trapezista voar numa grande altura sem uma preparação anterior ou desenvolver alguma rotina ou coreografia sem ao menos ter uma vivência razoável no aparelho).

No circo, existem categorizações para as habilidades circenses, e um conjunto de habilidades configura uma modalidade. Um acrobata aéreo, por exemplo, tem domínio do seu corpo e consegue evoluir em figuras e sequências num aparelho que o deixa distante do solo ou em pouco contato com ele. Tanto nos programas de apresentação dos circos como no ensino das escolas, as modalidades se dividem entre a arte equestre, a doma, a manipulação de objetos (antigamente chamada de malabarismos), as acrobacias, os equilíbrios, as técnicas aéreas, o ilusionismo e a palhaçaria.

Essas modalidades, por sua vez, podem se combinar entre elas, como se observa nas acrobacias que acontecem no ar em aparelhos como a báscula, a maca russa, o quadrante, o trapézio de voos e muitos outros. Fazer malabarismos sobre o arame ou dar um salto mortal sobre o cavalo são, por exemplo, combinações usuais. Entretanto, assim como essas modalidades conhecidas são nomeadas e classificadas, poderiam ser criadas outras. Observa-se que é difícil distinguir as habilidades de acordo com as modalidades, pois, apesar de cada modalidade ter características e exigências particulares, esses limites não são rígidos. La maîtrise personnelle, ou a habilidade pessoal, será sempre de natureza muito distinta e, mesmo considerando as diferentes classi-

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ficações encontradas nas artes do circo, novas especialidades ou expertises sempre poderão aparecer.

A determinação das habilidades que se devem adquirir para se ter o ofício circense será distinta para cada sujeito. Por um lado, porque não existem padrões delimitados que definam se uma habilidade faz parte ou não de uma modalidade determinada; por outro, porque a diversidade da linguagem sugere permanentes invenções ou recriações. Um artista que tenha grandes habilidades na contorção poderá se desenvolver, por exemplo, no trapézio, favorecendo a utilização de movimentos de extrema flexibilidade, enquanto outro trapezista poderá se valer de movimentos que exijam mais força ou dinamismo.

Ser o homem faquir que se deita sobre vidros e come vidros pode ser a habilidade de um circense. Ser expelido por um canhão, como no número do homem-bala, também é uma especialidade. Montar diante dos olhos do espectador uma estrutura de estabilidade aparentemente frágil, com sarrafos engrenados do modo como castores constroem seus diques, e realizar uma figura de equilíbrio em seu topo, a seis metros de altura, é uma habilidade circense.

Costumo dizer que o artista de circo vive do seu truque. Um trapezista de voos que é segundo volante pode passar a vida inteira ganhando salário por seu duplo salto mortal estendido. Um malabarista pode ser lembrado por ser o homem que faz cinco bolas rebotarem no chão enquanto provocam determinada melodia. Ou, sem ir muito longe, uma aerialista [pessoa que pratica acrobacias aéreas] pode ter um excelente giro de nuca, e esse ser sempre o grande trunfo da sua apresentação. O truque, em todos esses casos, é uma especialidade do ofício.

Identifico-me com a definição de Alice Viveiros de Castro, que afirma que o “circo é a arte do insólito, do inesperado, do surpreendente. […] O circo é a arte do diverso. Tudo cabe debaixo de uma lona, tudo pode entrar na roda mágica do picadeiro”. Nesse sentido, o circo se caracteriza, por excelência, como a arte da diversidade, primando pelo exótico, pelo novidadeiro, pelo surpreendente e pela expectativa de fazer surgir uma nova habilidade ou mesmo pela reinvenção de uma antiga, o que me leva a pensar na possibilidade de que surjam novas modalidades ou que o termo “modalidades” possa ser questionado.

Em geral, os artistas circenses conhecem mais de uma modalidade, mas, de forma mais ampla, minha experiência me faz pensar que o ofício do circense parece se sustentar numa apropriação técnica muito apurada no trabalho com um determinado objeto ou material, ou com o próprio corpo, com o próprio corpo em relação a outro, com ou sem aparelhos, construções, objetos ou materiais. Nesse processo, o corpo ganha habilidades muito específicas, que lhe permitem realizar ações incomuns, inusitadas ou arriscadas. Esse corpo se constrói, torna-se extraordinário e, para isso, sofre adaptações, às vezes lesões, mas, ainda assim, treinado para um determinado fim, deixa de ser um simples corpo humano e se manifesta como sobre-humano.

Erica Stoppel é trapezista, cofundadora e performer do coletivo Piccolo Circo Teatro de Variedades e do Circo Zanni. Também é cofundadora da Cia. Nau de Ícaros, onde atuou de 1993 a 1997. Foi professora e orientadora, de 2003 a 2011, no Cefac – Centro de Formação, e é colaboradora de casting do Cirque du Soleil desde 2000.

Observo que, no circo, adquire-se o artesanato na construção de um conhecimento que se dá tanto na transmissão de mestre para discípulo como na prática do ofício
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O circo sempre sofreu grandes mudanças em sua história, mas, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, houve transformações políticas e sociais no Brasil que alteraram o modo de vida circense. Pela opção de alinhamento com as políticas econômicas do governo norte-americano, o governo brasileiro optou por construir rodovias, relegando as ferrovias a um lento esquecimento que favoreceu as montadoras de automóveis. Isso fortaleceu também as construtoras, que mantêm grande poder político e econômico até hoje, mais do que poderia ser aceito por governos democráticos. Essa opção obrigou diversos circos a adquirir caminhões, em vez de alugar vagões de trem, mas possibilitou uma liberdade maior aos artistas, que passaram a trocar de empregador com maior frequência.

A partir dos anos 1950, os brasileiros começaram a valorizar a especialização, em detrimento da formação generalista. Famílias que formavam seus filhos em ofícios familiares passaram a preferir a escola formal, uma educação “de verdade”, para dar a seus filhos melhores condições de vida. Assim, muitas famílias passaram a enviar os jovens para grandes cidades. Isso aumentou a densidade urbana e diminuiu a rural. Para o modo de vida circense itinerante, essa mudança foi decisiva.

Além de muitos circenses passarem a preferir uma especialização, uma única técnica na qual fossem muito bons, deixando outras de lado, o número de descendentes aprendendo na “escola única e permanente”, que era a lona, diminuiu substancialmente. A principal consequência desse processo para o circo foi a fundação de escolas, inicialmente para a preparação dos filhos de circenses que não mais estudavam na lona itinerante. Mas isso não ocorreu. Poucos foram os que buscaram as escolas de circo, surgidas no Brasil no final dos anos 1970 e início dos 1980. Na verdade, pessoas de vários meios, além dos próprios circenses, buscaram esses espaços, fato que só aumentou a disputa por rótulos.

De acordo com a historiadora Erminia Silva, “Arthur Azevedo não deixou de expressar as relações tensas que mantinha com as companhias circenses que ‘invadiam’ os ‘templos do teatro nacional’” [trecho do artigo Arthur Azevedo e a teatralidade circense (Revista Sala Preta, 2006)]. Também é possível ler várias matérias em jornais abordando a “crise” por que passava o “verdadeiro circo” desde os anos 1950. A partir dos anos 1970, circenses de lona tentaram se reapropriar do conceito de “circo tradicional”, demandando para si o crédito de únicos detentores da “verdadeira arte circense”, já que surgia, a partir das escolas de circo, um movimento de “novos” circenses, clamando para si a responsabilidade da renovação da linguagem. Nesse caso, os “tradicionais” implicavam que esses “novos”, mais tarde “contemporâneos”, não eram circenses, apenas amadores.

Esqueciam que muitos lograram fazer disso um modo de vida e passaram, sem problemas, a se denominar circenses. No nosso trabalho, optamos por estar de acordo com Alexandre Roit, palhaço e pesquisador circense paulistano que, em entrevista [para a minha dissertação de mestrado], afirmou: “O que é ser circense? Acho que é suficiente você se reconhecer circense e o seu entorno reconhecer isso em você. Nenhuma das duas isoladas atende ao ser circense. Se uma das coisas não acontecer, a coisa não funciona. Por mais que o que seja ser circense seja completamente dúbio”.

“Artes do circo”: arte “popular” ou simplesmente arte generosa? Possibilidades para o futuro do circo no Brasil
em pauta 64
POR RODRIGO MATHEUS (BRASIL)

Paralelamente, os novos e contemporâneos consideravam-se a nova expressão do circo em oposição ao que era velho. Passaram a defender o protagonismo da tão esperada renovação da linguagem –na época (1970-80), vários dos espetáculos que se apresentavam na capital paulista se repetiam e não agradavam uma parte dos alunos recém-iniciados nas escolas de circo. Aqueles alunos esqueciam-se de que o circo sempre tinha sido “novo”, sempre tinha sido “contemporâneo” a seu tempo, já que sempre respondeu e assimilou as inovações técnicas, estéticas e de gênero artístico, bem como a mistura de linguagens que, de certa forma, caracterizam muitos grupos contemporâneos. O circo sempre foi uma arte miscigenada, múltipla e generosa, que aceita quase tudo. Não nos esqueçamos: ele surgiu da mistura do teatro com a acrobacia, os saltimbancos e apresentações militares com animais.

Em 1997, uma matéria no jornal O Estado de S. Paulo falava sobre o Novo Circo, que chegava ao Brasil com a companhia de Pierrot Bidon, em projeto no Rio de Janeiro. O texto enfureceu circenses não só de São Paulo, mas do próprio Rio de Janeiro. O jornalista dizia: “O Novo Circo, movimento de renovação surgido na França na década de 1970, vai poder ser conhecido pelos brasileiros a partir deste ano”. Para nós, circenses brasileiros, era inaceitável que nem o jornalista nem o respeitável artista francês soubessem das inúmeras companhias brasileiras que já faziam sucesso no Brasil, chamando-se de “circo novo”.

Dois anos depois, em 1999, um grupo de circenses “novos”, envolvidos na recente fundação da Central do Circo, organizou, junto ao Sesc Belenzinho, em São Paulo (SP), o Circonferência – Festival de Circo

Novo. No evento, foram apresentadas todas as companhias atuantes de circo “novo” de que a curadoria tinha notícia até o momento. Foi um marco na história do circo paulista e brasileiro (vieram companhias de todo o país). Nos debates, discutiram-se rótulos, e foi sugerido que éramos “contemporâneos”, em oposição aos “clássicos”, e não “novos”, em oposição aos “velhos”. Ficou clara a inadequação do título do festival, nunca usado novamente.

Em 2017, foi fundado em São Paulo um movimento político chamado “Circo Diverso”, para que os circenses não itinerantes de lona tivessem representação política e pudessem participar e atuar nas políticas públicas, demandando principalmente que somente nós (eu faço parte do movimento) pudéssemos avaliar projetos com as nossas características, da mesma maneira que somente os “tradicionais”, ou “itinerantes de lona”, possam analisar projetos de circos itinerantes. Trata-se de um movimento contra a exclusão. Até hoje a disputa segue, com muitos capítulos que escancaram o debate: o circo é múltiplo, misturado, diverso, diferente e generoso. Generoso como modo de produção, como linguagem artística, como grupo social. O circo é diverso.

em pauta

O circo é múltiplo, misturado, diverso, diferente e generoso. Generoso como modo de produção, como linguagem artística, como grupo social
Rodrigo Matheus é diretor de espetáculos circenses e professor de circo e teatro licenciado pela Faculdade Paulista de Artes – FPA. É ainda fundador e diretor do Circo Mínimo (1988), do Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (Cefac, 2003 a 2011) e da Central do Circo (1999 a 2004). 65

encontros

RAINHA de copas

Única atleta do futebol

Seu nome de batismo é composto por três letras M (Miraildes Maciel Mota), mas todo mundo a conhece pelo apelido: Formiga. A alcunha surgiu aos 10 anos, bem antes que ela chegasse a 1,62 metro de altura, num momento em que a garota parecia uma formiguinha jogando futebol com meninos mais velhos. Dos campos de várzea em Salvador (BA), nos anos 1980, até os gramados profissionais, a atleta – com atuação nas posições de volante e meia – teve uma carreira estrelada: foi duas vezes vice-campeã olímpica e uma vez vice-campeã mundial. Completou 234 partidas pela seleção brasileira em 26 anos, até se aposentar em novembro de 2021. Nesse período, comemorou 152 vitórias e 37 gols marcados com a amarelinha.

Única jogadora do mundo a ter participado de sete Copas do Mundo e representado o Brasil em sete edições dos Jogos Olímpicos, Formiga também se tornou, em 2019, a atleta mais velha a entrar em campo numa Copa Feminina, disputada na França. Mas ela ainda não pensa em parar: vai se juntar à seleção na Copa do Mundo de Fut7, em setembro, no México. E faz planos para o futuro como comentarista ou treinadora.

Defensora do poder transformador do esporte e de que nunca se deve menosprezar um adversário, Formiga só pôde jogar profissionalmente porque um ano depois de ter nascido, em 1978, a legislação brasileira derrubou a proibição das mulheres no futebol, estabelecida em 1941

por Getúlio Vargas, sob alegação de “condições da sua natureza”. Em 1983, a modalidade foi finalmente regulamentada no país. Neste Encontros, a atleta – que se casou em janeiro com Erica Jesus e defende que “o amor vence qualquer coisa” –relembra sua trajetória, fala sobre preconceito, novas gerações de jogadoras e os desafios enfrentados pelas mulheres no esporte.

ENCARANDO O PRECONCEITO

Nasci no momento certo, pois, quando comecei a jogar nos anos 1980, não havia mais proibição ao futebol feminino no país. Mas a maior dificuldade que encontrei no início foram o preconceito, o machismo e a proibição dentro

Daniela Porcelli / CBF
a participar de sete Copas do Mundo, e prestes a vestir a camisa da seleção de fut7, Formiga reflete sobre preconceito, machismo, novas gerações e mulheres no comando
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de casa. A gente brigava contra o preconceito, que existia entre os vizinhos, e também tinha o machismo dos meus irmãos. Apanhei bastante deles quando me encontravam jogando no meio dos meninos. Comecei a jogar nas ruas aos 7 anos, no Lobato, subúrbio de Salvador. Por meio da resistência de mulheres pioneiras, tive a oportunidade de nascer numa época em que o esporte já nos era permitido. Minha mãe sempre me apoiou e esteve ao meu lado. Foram justamente essas pessoas que me fizeram acreditar que seria possível mudar a história do futebol feminino no Brasil. Que mulher sabe, sim, jogar futebol, mesmo escutando muitos homens dizerem que não.

REVELAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA

Para que eu pudesse ser vista pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a Dilma Mendes – que era jogadora e estava em transição para ser treinadora – simulou uma contusão. Eu tinha 15 ou 16 anos, e entrei nesse campeonato, no Rio Grande do Sul. Eu era a mais nova, e fiz a maior “lambança” na zaga do time adversário – metade era da seleção brasileira. Fui revelação nesse torneio e, anos depois, tive a oportunidade de ir para a seleção. Essa história só aconteceu porque existiu uma pessoa que me deu oportunidade, então tenho toda a gratidão à Dilma. É uma mulher que luta até hoje pelo direito das mulheres e do futebol feminino. Hoje, ela é técnica de fut7 e resgata muitas meninas

Formiga é a única jogadora do mundo a participar de sete Copas do Mundo, a última em 2019, na França.

encontros

em Camaçari (BA) e Salvador. Se tem duas mulheres no mundo em que me inspiro são minha mãe e Dilma Mendes, que me mostraram que tudo é possível na vida.

MOVIDA À DISCIPLINA

Minha vida começou a se transformar no futebol quando passei a ter treinamento certo, direcionamento e disciplina. Eu era um pouco indisciplinada, treinava só no meio dos meninos. Eu mal saía de um jogo e já ia para outro – ia à praia jogar com os pescadores, ou em outros bairros do subúrbio. O certo seria descansar, me resguardar para a partida seguinte, estar bem no outro dia e dar o meu melhor. Mas isso me condicionou ainda mais, porque, além de jogar nos campos de barro, eu ia para as dunas, para a areia fofa da praia. Eu era muito magrinha, porém, com esses atos indisciplinares, comecei a criar um pouco de massa muscular. Demorei a entender que o descanso faz

parte do treinamento. Depois de uns quatro anos, entendi que precisava me resguardar, fazer um treinamento voltado à recuperação entre um jogo e outro. A disciplina é essencial na vida do atleta. Quando parei de ficar pulando de jogo em jogo, comecei a render um pouco mais, porque estava menos cansada.

NOVAS GERAÇÕES

Para quem começa hoje, não pode entrar na zona de conforto, precisa ter dedicação 100%. Não adianta dar três chutes na trave e achar que já é a melhor de todas. Precisa respeitar a história das pessoas que construíram o esporte. A saúde mental é essencial para as meninas hoje, e esse lado pode ser fortalecido com ajuda dos pais e dos clubes. Algumas garotas acham que já estão no patamar ideal, as famílias só visam ao dinheiro, mas se esquecem de que muitas vezes elas ainda são crianças. Vejo hoje, em times, meninas de 14, 15 anos

com depressão, porque é pressão de todos os lados. Muitos se esquecem de que elas estão na adolescência. Já perdemos revelações que não tiveram um trabalho em casa ou no clube. Anseiam tanto jogar fora do país, as famílias acham que as meninas podem fornecer o sustento do lar, mas precisam antes criar um caminho para que vinguem no futebol.

MULHERES NO COMANDO

A diferença de trabalhar com uma mulher à frente de um time de futebol, principalmente ex-atleta, é o conhecimento sobre esse universo. Quando a treinadora Pia Sundhage chegou ao Brasil [em 2019], houve uma evolução não só em relação à seleção brasileira, mas ao futebol feminino em geral no país. Ela cobrou investimentos, um trabalho de base, a oportunidade de modificar totalmente a seleção feminina, buscando peças para repor. Foi uma movimentação que, a meu

Sam Robles / CBF
Formiga tem planos de continuar atuando no futebol, como treinadora ou comentarista.

encontros

O FUTEBOL ME COLOCOU ONDE ESTOU HOJE, TRANSFORMOU A MINHA VIDA, ENTÃO FAZ SENTIDO EU RETRIBUIR, DA MANEIRA CORRETA, TUDO O QUE ELE

ME DEU. QUERO FAZER ESSA MUDANÇA DE DENTRO PARA FORA, COM MUITA DEDICAÇÃO E AMOR

ver, está dando certo. Quando você trabalha com outra mulher, você tem o mesmo linguajar, a confiança de se abrir, independentemente da situação. É nossa obrigação estar ali bem, mas às vezes temos problemas particulares que podem afetar o nosso rendimento dentro de campo. Quando você conversa com uma mulher, seja médica, auxiliar ou treinadora, existe essa sensibilidade de entender a situação, abraçar, apoiar, orientar corretamente, para que a atleta possa render 100% dentro do campo. Claro que, ao mesmo tempo, há a cobrança por desempenho. Mas existe essa facilidade de trabalhar com outra mulher.

NOSSA VOZ

Com a visibilidade e a evolução do futebol feminino, hoje temos voz, não podemos mais nos calar. Não podemos ser proibidas de expor nossa opinião na frente de todos, não cabe mais isso. Já ficamos caladas por muito tempo, fomos proibidas inúmeras vezes de entrar em certos assuntos. Portanto, chega de ficarmos com a boca

fechada, precisamos nos posicionar, sim. Defender a nossa classe. Porque já passamos por muitas humilhações, muitas situações em que não é legal ficarmos caladas. Temos que expor tudo.

PLANOS FUTUROS

Ainda estou com um pensamento de ser treinadora no futuro, vejo a necessidade de ex-atletas estarem na gestão. Infelizmente, existe uma resistência de os clubes aceitarem isso. É preciso buscar melhorias para a modalidade e para as atletas. Então, vendo esse problema, e com as ideias que tenho, devo ir para esse lado da gestão. Não estou dizendo que vou mudar o futebol feminino, mas, se tiver a oportunidade de mudar um local em que estiver trabalhando, com certeza farei, com 100% de dedicação. Não me vejo fora do esporte. O futebol me colocou onde estou hoje, transformou a minha vida, então faz sentido eu retribuir, da maneira correta, tudo o que ele me deu. Quero fazer essa mudança de dentro para fora, com muita dedicação e amor.

COPA E OLIMPÍADAS

Estou ansiosa, mais do que quando eu jogava, para ver as meninas na Copa do Mundo e terem essa oportunidade de ganhar uma medalha. Fico tranquila porque sei que a minha entrega foi total, me dediquei muito a cada campeonato. E também sei que, com todo esse esforço, consegui plantar uma sementinha para que as meninas de hoje possam ter uma qualidade melhor de trabalho. O frio na barriga agora está em viver esse papel de torcedora, com muita ansiedade.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a jogadora de futebol Formiga, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 22 de junho de 2023. A mediação é de Juliana Cavalcante, educadora em atividades físico-esportivas no Sesc Jundiaí.

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POR AURITHA TABAJARA ILUSTRAÇÕES LUCÉLIA BORGES

SER NORDESTINA

Fiz um poema quentinho, Publiquei logo cedinho, Saudosa do Ceará. Um jeitinho diferente De falar pra toda gente O melhor que vem de lá.

O valor do meu Nordeste, Água clara azul celeste, Onde eu podia brincar. Na aldeia, a criançada Pode ficar na calçada, Uma forma de educar.

Meu Nordeste tem riqueza; Além de tanta beleza, A poesia improvisada. Meu Ceará tem cultura, Tem tradição, tem bravura, Tem dança pra garotada.

Tem toré pra festejar

Na aldeia com maracá Pra nos trazer alegria. Um povo muito animado Com tabajara do lado Tristeza lá não se cria.

Tem festa do que plantou, Rito que se conservou, Carne de sol com pirão. Rapadura com farinha, Baião de dois com galinha E as frutas da região.

Saudade dentro do peito É algo que não tem jeito, Mas não priva de aprender. Serei sempre nordestina, Onde eu for, a vida ensina, Só cresce mais o saber.

Nosso Deus da criação

Nos criou com inspiração, Sem guerra sem preconceito. O homem quer ser esperto, Acha que em tudo está certo, Destrói o que é mais perfeito.

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A FORÇA DA ESPIRITUALIDADE

Ô grande espírito sadio, Desperte sabedoria, Para que, com autoria, Possa versar e aprender, E uma luz acender No seio da humanidade, Com muita simplicidade, Sem ego no coração, Somente a inspiração, Com espiritualidade.

O Universo tem vida, Tem vida no Universo. Quando com ele converso, Sinto me fortalecida Com a mãe agradecida, Floresce a diversidade, Nos traga felicidade, Em todos os movimentos. Sejamos conhecimentos Com espiritualidade.

A arte que foi criada, Chamado planeta Terra, Com alto, baixos e serra, Entregue nas nossas mãos, Da criança aos anciãos, É pra continuidade; Desmatar e fazer cidade, Furando e queimando a terra, Por dinheiro vira guerra, Sem espiritualidade.

Quem ama a mãe natureza Não joga lixo no chão, Vive com a gratidão, Respeita tudo ao redor, E da criança ao maior, Sabe fazer caridade, Escuta a ancestralidade, E espalha onde estiver, Não define homem, mulher A espiritualidade.

Somos povos diferentes, Diferentes rituais, Que respeitam os ancestrais, Pra luta fortalecer

E frutos poder nascer Em meio à diversidade, Ser cultura e liberdade Da raiz até a semente E ser visto como gente Nossa espiritualidade.

Pai Tupã nos fortaleça No caminho e na missão, Nos dê sempre inspiração Nos momentos de cantar, Com ervas poder curar Com amor, simplicidade, Para que a humanidade, Saiba contar sua história, Herança seja a memória Da espiritualidade.

IRACEMA TABAJARA

Sou Auritha Tabajara, Nascida longe da praia, Fascinada pelas rimas E melodia da jandaia. No Ceará foi a festa, Meu leito foi a floresta Nas folhas de samambaia.

A minha essência ancestral Me encontra cordelizando, Faz me existir resistindo, Ao mundo eu vou contando; Que minha forma de amar Ninguém vai colonizar, Da arte sempre vou me armando.

Filha da mãe Natureza, Mulher guerreira eu sou, Com a força feminina Cinco séculos galgou. Cada vez mais sábia e forte, Meu medo é somente a morte Que o preconceito gerou.

Hoje essa mulher levanta Com letra e voz autoral Contra toda violência Por um amor ancestral De um corpo ensanguentado, Usado sem ser amado, Com espírito imortal.

E baseado na Bíblia, O homem veio ditar, Sua fé diz que é pecado O mesmo gênero amar, E com massacre e doença, Nossa língua, nossa crença, Vem tentando assassinar.

Essa força feminina Traz um sagrado poder, Nascemos com a natureza, Com ela vamos morrer, A nossa ancestralidade, E a nossa diversidade, Nos fazem sobreviver.

Minha avó é referência, Desde o tempo de menina, Até me tornar mulher, Das histórias que ela ensina, Me ensinou a falar Que a mulher tem seu lugar É raiz que não termina.

Eu não sou como Iracema A de José de Alencar, Sou do povo TABAJARA Onde canta o sabiá Minha aldeia tem imburana Minha terra é soberana Pelo toque do maracá.

Auritha Tabajara é escritora, poeta, contadora de histórias e a primeira cordelista indígena do Brasil. Sua primeira obra, Magistério indígena em verso e prosa (2007), foi adotada como leitura obrigatória pela Secretaria de Educação do Ceará. Também é autora de Toda luta e história do povo Tabajara (2008), Coração na aldeia, pés no mundo (2018), A grandeza Tabajara (2019) e A lenda de Jurerê (2020), entre outras obras.

Lucélia Borges é xilogravadora, contadora de histórias, terapeuta holística e pesquisadora da cultura popular brasileira. Mestre em estudos culturais pela USP, ilustrou vários folhetos de cordel e livros, como A Jornada Heroica de Maria (2019) e Contos Encantados do Brasil (2022), de Marco Haurélio, ambos premiados com o selo Cátedra Unesco (PUC-Rio).

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depoimento

COMPOSITOR DE TRAVESSIAS

Compositor, multiinstrumentista, arranjador e cantor, Edu Lobo teve sua entrada na cena musical em 1962, por um golpe de sorte. Aos 19 anos, o então estudante de direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), foi convidado para uma festa em Petrópolis (RJ) chamada Vinho e Sala, um tipo de encontro frequente que juntava pessoas apaixonadas pela música brasileira. Enquanto o violão passava de mão em mão, Vinicius de Moraes (1913-1980) perguntou para Edu: “Por acaso você tem um sambinha sem letra?”. O novato respondeu que sim e tocou uma música para o poetinha. Vinicius, então, disse: “Você se incomoda se eu fizer a letra agora?”. E assim nasceu Só me fez bem, primeira parceria

de Edu Lobo com Vinicius de Moraes, fato que mudou o destino do rapaz tímido e talentoso.

Um dos maiores nomes da música brasileira, o carioca, filho do também músico Fernando Lobo (1915-1996), tornou-se mundialmente conhecido por suas composições e arranjos refinados de MPB, bossa nova e jazz. Enquanto menino e adolescente, passava as férias na casa dos tios, em Pernambuco. O contato com o frevo, maracatu, pregões de vendedores de frutas, ciranda, o Carnaval de rua e o acesso às festas populares, tornaram-se referências importantes para o repertório cultural que inspirou as canções que Edu comporia mais tarde. A princípio, ele se interessou pelo acordeon, mas, cansado de carregar o instrumento pesado, resolveu adotar o violão como companheiro.

O ano de 2023 representa um marco na vida do artista, que celebra duas datas importantes: 80 anos de vida, no dia 29 deste mês, e 60 anos dedicados à música. Para comemorar sua obra, Edu Lobo subiu ao palco do teatro do Sesc Pinheiros, em junho, onde emocionou o público com clássicos do seu repertório. Neste Depoimento, Edu compartilha conosco encontros, travessias e aprendizados.

idade

Eu custo a acreditar que vou fazer 80 anos, sinceramente. Porque a minha cabeça é igual a de 40. Eu não estou diferente, sei lá, com dificuldade motora, então fica difícil acreditar. É uma idade grande, né? Comecei com 19, fazendo uma música com Vinicius de Moraes. Quando penso na

No mês em que completa 80 anos, Edu Lobo, um dos maiores nomes da música brasileira, relembra encontros e celebra legado imortal
POR LÍGIA SCALISE
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Evelson de Freitas

minha carreira, tenho certeza de que foi o melhor trabalho que escolhi para minha vida. Veja bem, quando tudo começou, eu estava estudando direito, não queria ser advogado, de jeito nenhum, mas pensava em seguir carreira diplomática. Que sorte que eu não fui, porque não tem nada que eu deteste mais na minha vida do que ouvir ou fazer discurso.

sorte

Eu acredito em sorte, mas você precisa estar pronto para ela. Foi assim que conheci um

diplomata de carreira, numa reunião de amigos e música. Estamos falando de Vinicius de Moraes. Ele pegou um lápis e papel e fez, praticamente, a letra inteira pro meu samba. Saí dessa reunião, peguei aquele papelzinho com a letra, dobrei e enfiei no meu sapato. Se alguma coisa acontecesse, a letra estaria protegida. Foi assim que a música e a parceria com Vinicius nasceu. Outra sorte foi gravar um disco com Tom Jobim (1927-1994) que estava zero programado [Edu & Tom – Tom & Edu (1981)].

tom

Na época [em que gravei o álbum com Tom Jobim], eu estava saindo de uma gravadora. Decidimos fazer um disco final, de despedida, com 12 artistas diferentes. Aloysio de Oliveira (1914-1995) era o produtor do disco, e eu falei: “Vamos começar com o Tom, porque ele gosta muito de Pra dizer adeus. Aí começamos a ensaiar, logo o Tom botou uns acordes novos, geniais, e fez uma introdução. Gravamos a música no estúdio e eu já me sentia perto do céu, de tão feliz. Assim que acabou a gravação, Tom perguntou:

No ano em que celebra 80 anos de vida, Edu Lobo subiu aos palcos do Sesc duas vezes para apresentar clássicos de seu repertório: no teatro do Sesc Belenzinho (foto acima), em março, e no Sesc Pinheiros, em junho.
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Repertório do show no Sesc Belenzinho, em março deste ano, incluiu composições próprias, à exceção de O Trenzinho do Caipira, em homenagem a Villa-Lobos, tocada

“Aloysio, e agora?”. Aloysio, então, respondeu: “Agora acabou, porque temos outros 11 músicos pra gravar com Edu”. Ao que Tom respondeu: “Mas, Aloysio, eu tomei banho, me perfumei, e já acabou o trabalho?”.

Aí, Aloysio ficou sem graça. Eu nem sabia se o Tom conhecia, mas sugeri de gravarmos Canção do amanhecer. Assim que acabou, Tom repetiu: “Aloysio, tudo isso que eu fiz foi para gravar duas músicas com o Edu Lobo e voltar para casa?”. Então, Aloysio pegou o telefone e mudou os planos. Sugeri um disco com metade das músicas minhas e a outra metade com músicas do Tom. Nasceu Edu & Tom – Tom & Edu (1981). É muita sorte.

parcerias

Começou com Vinicius, que está longe de ser um mau começo, né? [risos]. Olhar para a minha história, e para as parcerias que fiz, me dá esse sentimento de ter cumprido um plano pré-estabelecido. Nunca fiquei preocupado se a música ia tocar no rádio ou não. Eu faço a música que preciso fazer, e se ela for reconhecida, evidentemente, é

uma alegria enorme. Minha última música bastante reconhecida é Beatriz. Eu chamo isso de quase milagre, porque ela não é uma música de tocar no rádio. É muito longa, muito lenta, muito lírica. Acho que ela ficou famosa pelo boca a boca. E hoje, quando eu começo a tocar Beatriz no show, as pessoas já a reconhecem pela introdução. Ela é resultado de uma parceria com Chico Buarque [gravada no álbum O Grande Circo Místico (1983)] e foi eternizada na interpretação de Milton Nascimento.

teatro

Adoro trabalhar por encomenda. Em 1964, eu fui convidado por Gianfrancesco Guarnieri (19342006) para vir a São Paulo e fazer um musical. Lembro que entrei na casinha dele e ficamos os dois sentados e calados. Aí, falei: “Qual é o musical e o que você quer escrever?”. Ele falou que não tinha a menor ideia. Bom, eu pensei: vou pegar o violão e sair tocando tudo que eu tenho. Aí, toquei uma música que fiz com Vinicius de Moraes, chamada Zambi. Assim nasceu

o meu primeiro projeto, Arena conta Zumbi [musical escrito por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, que também fez a direção, e estreou no Teatro Arena, em maio de 1965]. O tempo era curtíssimo, pensei até em escrever um bilhete carinhoso dizendo que não seria capaz, mas fiz e valeu super a pena. Foi um aprendizado e um risco danado, porque eu tinha que fazer pelo menos uma canção por dia.

prazos

Aprendi que trabalhar sob pressão é fundamental. Quando você tem todo o tempo do mundo, você tem todo o tempo do mundo para fazer nada. Pensando nos encontros musicais com Vinicius, lembro daquela pergunta mortal dele: “Tem música nova?”. Já era como se estivéssemos trabalhando por encomenda. Isso me ensinou muito para, depois, trabalhar por encomenda de verdade. Fiz quatro projetos grandes e encomendados com o Chico Buarque: O Grande Circo Místico (1983), O Corsário do Rei (1985), Dança da Meia Lua (1988) e Cambaio [estreou em 2001, no

no bis. "Fui a primeira pessoa a gravá-la", justifica. Evelson de Freitas
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teatro do Sesc Vila Mariana]. E digo mais: a coisa valiosíssima de trabalhar por encomenda é que você assina um contrato e não pode furar. Aí, você tira de onde não tem para cumprir. Trabalhar por encomenda é uma grande maravilha na minha vida, provavelmente porque eu sou muito virginiano.

crítico

Não é que eu seja o cara mais organizado do mundo, mas gosto muito de organização. Eu preciso, sempre, estar num projeto muito ensaiado. Essa é a parte boa do meu signo. Já a parte ruim é a exigência. Uma vez, por exemplo, tive uma encomenda para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), um projeto bem importante. Tive que fazer um frevo que depois eu descobri que é um tipo que chamam de “frevo ventania”, por ser rapidíssimo. Eu fiquei, provavelmente, dois meses no piano, depois passei a trabalhar no programa de computador. Eu não sou pianista, brinco que sou "pianeiro", porque boto os dedos, mas não quer dizer que eu saiba

tocar. Enfim, o que aconteceu é que eu ouvi repetidas vezes, mas estava achando aquele frevo uma vergonha. Vinte dias depois, precisei ser bem prático: o negócio estava bom, eu é que sou crítico demais.

palco

A minha relação com os palcos mudou completamente ao longo dos anos. Antes, era um martírio, uma tortura, e eu sofria três dias antes do show. Hoje em dia é prazeroso, porque eu não estou preocupado se canto bem ou não. Eu canto o melhor que posso, e estou cantando as minhas músicas. Nesse show no Sesc Belenzinho, por exemplo, com exceção de um bis que a gente faz em homenagem ao [Heitor] VillaLobos (1887-1959), tudo é obra minha. E só aceitei essa exceção porque tenho uma relação forte com essa música, O Trenzinho do Caipira, já que fui a primeira pessoa a gravá-la. Tem gente que acha que ela é minha, e se estou com tempo, explico que não, se não, só agradeço. Mas, falando sobre palco, hoje eu tenho a satisfação de ouvir as minhas músicas com os meus

músicos [em sua mais recente turnê, Edu Lobo é acompanhado por Cristovão Bastos, no piano, arranjos e direção musical, Renato Massa, na bateria, Alberto Continentino, no baixo acústico, e Mauro Senise, nos sopros]. O som que eles fazem me comove, me produz alegria e bem-estar. Depois de 60 anos, enfim, é muito bom estar no palco.

legado

Acho que a vida da gente acaba no dia que paramos de respirar: pronto, acabou ali. Mas, quando você deixa um trabalho, seja pintura, arquitetura, música, teatro, literatura, é um pedaço da sua alma que se mantém imortal. Então, sempre que alguém cantar alguma música minha, eu vou estar vivo nessa hora. Daqui a 80 anos, quero ser lembrado como um bom compositor. Tem quem me chame de mestre, e é claro que é bom ouvir isso, mas eu não me sinto um mestre. Acho que faço o que eu posso, do jeito que quero, isso sim é um grande orgulho. Eu construí a minha história. Claro que com a participação das pessoas que eu ouço o tempo inteiro. Tenho um filho compositor, que mora em Lisboa, e canso de dizer: “Não esqueça a música clássica. Você faz música popular, mas ouça os caras porque eles são importantíssimos”. Esse é meu conselho para todos: ouçam Debussy (1862-1918), Ravel (1875-1937). Depois, com o tempo, ouçam Bartók (1881-1945). São pessoas que nutrem a alma, que fazem você fazer coisas melhores. É assim que eu me alimento.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento do cantor e compositor Edu Lobo.

EU NÃO ME SINTO UM MESTRE.
ACHO QUE FAÇO O QUE EU POSSO, DO JEITO QUE QUERO, ISSO SIM
É UM GRANDE ORGULHO. EU CONSTRUÍ A MINHA HISTÓRIA
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ALMANAQUE

Para além da lenda

Conhecidos por histórias de crimes e mistério, cinco espaços de São Paulo ressuscitam como centros culturais e comerciais, mas seguem provocando a curiosidade de visitantes

POR LUNA D’ALAMA

CASA DE DONA YAYÁ

Construído no fim do século 19, em uma antiga região de chácaras, esse casarão foi por quatro décadas a residência de Sebastiana de Mello Freire (1887-1961), mais conhecida como Dona Yayá. Ela vinha de uma família rica de Mogi das Cruzes (SP), mas perdeu os pais e irmãos de forma trágica. Ao apresentar sinais de distúrbios psiquiátricos, foi considerada incapaz de administrar

Casarões, edifícios e até um pequeno castelo localizados no Centro da capital paulista povoam o imaginário coletivo por histórias de crimes e tragédias que, por muito tempo, alimentaram narrativas de mistérios, lendas e também de supostos milagres. Ainda hoje, essas construções fazem parte de roteiros turísticos guiados pela região, geralmente com temáticas de medo e horror. Mas o que muita gente não sabe é que ao menos cinco deles tornaram-se centros culturais, de assistência social, ou aguardam uma reforma para reabrir as portas ao público. Embarque nessas lendas!

os próprios bens e interditada judicialmente. A casa virou uma espécie de sanatório particular e, após a morte de Dona Yayá, houve relatos de fenômenos sobrenaturais, incluindo aparições da antiga moradora. O imóvel foi tombado e reconhecido como patrimônio histórico pelo estado e pela capital paulista. Em 2004, tornou-se sede do Centro de Preservação Cultural (CPC) da Universidade de São Paulo (USP), oferecendo atividades culturais

gratuitas. O público pode conferir a exposição Yayá: cotidiano, feminismo, doença, riqueza, além de participar de cursos sobre luta antimanicomial e preservação do patrimônio e da memória, exibições de filmes e apresentações de música e teatro.

Rua Major Diogo, 353, Bela Vista. Visitas de segunda a sexta, das 10h às 18h (às quartas, até as 20h), e aos domingos, das 10h às 13h. Grátis.

Antes residência e sanatório particular, a Casa de Dona Yayá se tornou, em 2004, sede do Centro de Preservação Cultural da USP. Marcos Santos
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EDIFÍCIO MARTINELLI

Fruto da megalomania do empresário italiano Giuseppe Martinelli (1870-1946), o prédio que leva seu sobrenome foi inaugurado, em 1929, como o maior arranha-céu da América Latina. Construído com cimento rosa oriundo de países nórdicos e inspirado em diferentes estilos arquitetônicos, o “bolo de noiva” – como foi apelidado por Oswald de Andrade (1890-1954) – refletiu o boom econômico da capital e abrigou, em suas primeiras décadas, hotel, cinema, restaurantes, lojas, partidos políticos e redações de jornais. Sua decadência começou na década de 1950, quando virou cenário de crimes, tráfico de drogas, prostituição e clínicas clandestinas de aborto. Em 1975, a prefeitura da capital desapropriou e restaurou o imóvel, que tinha lixo e esqueletos humanos acumulados no fosso do elevador até pelo menos o sétimo andar. As lendas urbanas ligadas ao Martinelli são contadas por guias, seguranças e ascensoristas, que relatam movimento incomum dos elevadores, oscilação da energia elétrica, portas que batem e até uma “loira fantasma” que aparece nos corredores. O prédio, que está fechado para visitação desde 2017, hoje abriga órgãos municipais como as secretarias de Habitação, de Subprefeituras e de Urbanismo e Licenciamento. Em breve, o novo Observatório Martinelli deve ganhar um museu no 25º andar, além de cinema, loja, restaurantes, espaços para exposições e eventos. A previsão é que o terraço reabra até o início de 2024, e os demais pisos, até meados do ano que vem.

Avenida São João, 35, Centro.

João Batista Shimoto
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Inaugurado em 1929 como o maior arranha-céu da América Latina, o "bolo de noiva", como foi apelidado, abriga órgãos municipais, e deve reabrir ao público em 2024.

ALMANAQUE

Abandonada por décadas, essa casa em forma de castelo medieval no bairro da Santa Cecília foi tombada em 2004, restaurada e transformada em sede do Clube de Mães do Brasil.

CASTELINHO DA RUA APA

Arquitetos franceses vieram a São Paulo para reproduzir, no início do século 20, um castelo medieval no bairro da Santa Cecília. A obra serviu de residência à família Guimarães Reis, dona do antigo Cine Broadway, na Avenida São João. Em seus dias áureos, o castelinho foi espaço de eventos e convívio social.

Até que em maio de 1937, dois meses após a morte do patriarca, a mulher Maria Cândida e os filhos Álvaro e Armando foram encontrados mortos, lado a lado. Os crimes nunca foram esclarecidos – o caso virou o livro O Castelinho da Rua Apa (Equilíbrio, 2015), e o lugar ficou abandonado por décadas, ocupado por moradores em situação de rua. Foi nessa época que ganhou fama de “mal-assombrado”, com relatos de fenômenos paranormais e aparição de vultos. Tombado em 2004, o imóvel foi restaurado e tornou-se sede do Clube de Mães do Brasil, organização sem fins lucrativos que atende a população em vulnerabilidade social. De segunda a sexta, o local oferece banheiros para higiene pessoal, serviço para emissão de documentos, telefone, psicólogo e assistência odontológica. Aos fins de semana, há aulas para jovens da periferia sobre políticas públicas na educação.

Bruno Antonio Centeio
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Rua Apa, 236, Campos Elíseos.

CAPELA DOS AFLITOS

Não é todo mundo que passeia pela feirinha do bairro da Liberdade, aos finais de semana, que conhece a história negra da região. Na praça onde hoje ficam a saída do metrô e as barraquinhas de comida e artesanato, funcionava o Largo da Forca até o século 19. Havia também um pelourinho para castigo de escravizados, uma cadeia e um cemitério. A construção remanescente desse período é a Capela Nossa Senhora dos Aflitos. No cemitério, foi enterrado o cabo negro Francisco José das Chagas (-1821), do Primeiro Batalhão de Santos. Ele e outros soldados se insurgiram e atacaram uma embarcação portuguesa por terem ficado cinco anos sem salário. Chaguinhas, como era conhecido, e mais um colega, foram condenados à morte pelo atentado. A história documentada conta que a corda em que ele deveria ser enforcado se rompeu três vezes (e a população começou a gritar: “Liberdade!”, daí o nome do bairro), mas não houve clemência, e ele acabou sendo assassinado a pauladas. Chaguinhas virou um mártir, santo popular e milagreiro de cemitério. As lendas que o envolvem falam de aparições e velas acesas em sua memória, que não se apagam com chuva nem vento. Segundo a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca), o espaço deve ser restaurado, e as obras têm previsão de começar em dezembro deste ano. O local deve ficar fechado por mais de um ano, mas a capela vai abrir para visitação nos dias 19 e 20/8, durante a Jornada do Patrimônio.

Rua dos Aflitos, 70, Liberdade. Travessa da Rua dos Estudantes, altura do nº 52. Aberta de terça a sexta, das 9h às 13h, e às segundas (Dia das Almas), das 9h às 16h, com missas às 12h e às 15h.

EDIFÍCIO JOELMA

Na manhã de 1º de fevereiro de 1974, um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado provocou um incêndio de grandes proporções nesse prédio comercial, matando 187 pessoas e ferindo mais de 300. Não havia heliponto para resgate aéreo, e 13 pessoas tentaram escapar pelo elevador, mas não sobreviveram –seus corpos, inclusive, nunca foram reclamados por familiares. “As 13 almas do Joelma”, como ficaram

conhecidas, foram enterradas enfileiradas no Cemitério São Pedro, na Vila Alpina, zona leste. Há vários milagres atribuídos a elas, placas de agradecimentos e até uma capela no local. Desde que um funcionário ouviu vozes desesperadas gritando em coro, criou-se também o hábito de se deixarem garrafas e copos com água sobre os túmulos, como se esse ato simbólico de combate ao incêndio tranquilizasse as vítimas. O caso virou o filme Joelma – 23º andar (1979), de Clery Cunha, a

partir de cartas psicografadas por Chico Xavier (1910-2002). A estrutura do prédio foi preservada, e ele mudou de nome: virou Edifício Praça da Bandeira. Abriga hoje escritórios de empresas de contabilidade, informática e outros setores. A partir do caso Joelma, houve mudanças nos padrões de segurança e prevenção contra incêndios nos prédios da cidade.

Rua Santo Antônio, 140, Bela Vista.

Adriana Vichi
Palco de episódios de violência e de milagres no século 19, a Capela Nossa Senhora dos Aflitos deve ser restaurada a partir deste ano.
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Ontem e amanhã: metrópoles imagináveis

Cena 1:

Adentramos vagarosamente o galpão da Cooperativa de Reciclagem Coopergaia, a primeira parada. A passos desajeitados, tímidos e curiosos, podíamos encontrar entulhos de materiais por todo o espaço. Rapazes e senhoras faziam a separação dos resíduos nas esteiras, quase escondidos por entre os montes de papeis e latinhas que conformavam os grandes fardos empilhados. Muitas cores e cheiros criavam uma atmosfera local pouco aerada e um tanto escura. O dia estava branco e nublado lá fora, e o contraste de luz era só mais um entre o contraste dos semblantes. Bruno, o guia local, apresentou Dinair, que estava em frente à esteira, e que interrompeu sua tarefa para nos contar a história da cooperativa. Um enorme sorriso no rosto revelava a beleza de Naná, como é chamada. Com seu olhar brilhante, e no rosto marcas do sol, do cansaço e do tempo, Dinair, então presidente da Coopergaia, explicou a situação administrativa e financeira do galpão, falou sobre o uso da prensa para fazer os fardos, sobre a venda e o valor dos quilos dos materiais. Entre uma palavra e outra, o silêncio de Naná revelava tantas outras coisas, para além do que fora dito. O ano era 2014, e o passeio que havia partido do Sesc Interlagos tinha como destino o bairro do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo.

Cena 2:

Por uma vista aérea, observamos uma avenida grande, larga, com altos edifícios em suas calçadas. Aos pés dos enormes prédios, talvez encontrássemos pedestres: alguns apressados, outros lentos, desfrutando de um sorvete ou perambulando em duplas, desavisados do mundo ao redor. O som ambiente também era mais de um: uma melodia que surgia dos fones de ouvidos ou o ruído dos motores dos carros, acompanhados de um odor típico de fumaças nem sempre visíveis, mas certamente já experimentadas pelos habitantes da

metrópole. Eis que nas faixas onde esperaríamos ver os carros, a surpresa se anunciava: muitas árvores! Uma floresta tropical, de variadas tonalidades de verde, rosa e roxo, dos ipês em floração. O canto dos passarinhos de espécies e tamanhos distintos era uma constante. Essa era a verdadeira Avenida Paulista, chamada de Morro do Caaguaçu, em um sonho da artista espanhola Ángela León, materializado em um cartão-postal. O ano era 2018. O desenho foi entregue ao público na inauguração da nova unidade do Sesc, na famosa avenida, e pertencia à coleção de postais intitulada Paulista Fantástica.

O que essas duas cenas têm em comum além do cenário diverso da capital paulista? Ambas são atividades do Núcleo de Turismo Social do Sesc São Paulo. Uma representa o turismo comunitário, ação realizada pelas unidades do Sesc. A outra, fomenta a valorização de patrimônios históricos, naturais e imateriais da cidade. Ambas tiveram como objetivo tornar visíveis memórias e territórios, apontando para utopias, motivadas pela aspiração de educar pelo turismo, e assim, inspirar novas formas de ocupação e modos de vida sustentáveis na cidade.

Dinair, Bruno e Ángela estão presentes nas cenas. Mas, poderíamos citar mais personagens que compõem a história do Turismo Social do Sesc São Paulo. O público participante, colegas do Sesc, guias de turismo, artistas e especialistas, as empresas de transporte, os equipamentos de hospedagem, a cadeia de restaurantes, as comunidades anfitriãs: são essas as pessoas que constroem o desenvolvimento social do turismo.

Mayra Vergotti é mestre em antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduada em ciências sociais pela mesma instituição e assistente no Núcleo de Turismo Social do Sesc São Paulo.

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Sophia Andreazza (Adobe Stock)

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