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Olhar para a Sociedade, depois para as Mídias –

e Voltar à Escola

Era a típica manhã gelada de um novembro britânico quando o professor David Buckingham me recebeu em sua sala no Instituto de Educação da Universidade de Londres. O ano era 2010 e eu viajaria ao Reino Unido para apresentar um paper num congresso da Media Education Association. Achei que não custava arriscar um e-mail pedindo uma entrevista com um especialista que já era uma referência na Europa, mas ainda pouco conhecido no Brasil. De mais de uma dezena de livros de sua autoria, o único com edição em português era Crescer na Era das Mídias Digitais (Ed. Loyola, 2007). Eis que a mensagem retorna com um caloroso “sim”, e assim se deu nossa conversa quase duas horas.

Faz 13 anos, mas parece que foi noutra era geológica. A entrevista publicada na revista Nova Escola defendia a superação de uma visão denuncista da educação para a mídia. Buckingham, um dos responsáveis por inserir a perspectiva dos estudos culturais na educação midiática, alertava para o equívoco de tratar crianças e jovens como consumidores passivos e inertes, à espera de alguém que os libertassem com a luz do conhecimento. "Com a prática, fui percebendo que essa imagem do professor que carrega uma tocha para iluminar os estudantes, desfazendo a escuridão e a ignorância, tinha muito de fantasia", dizia o então diretor do Centro para o Estudo das Crianças, Juventude e Mídia na Universidade de Londres.

As mídias sociais engatinhavam e o modelo de negócio por engajamento de usuários estava em gestação. Buckingham falava, então, um pouco de internet, algo de mídia impressa, muito de televisão. A maioria das mensagens resistiu bem ao teste do tempo: a importância de investigar como os estudantes conhecem a mídia e como se relacionam com ela; a ideia de criticidade como sinônimo de ser reflexivo; a polissemia das mensagens e capacidade de interpretação das audiências; a cautela para não ser determinista em relação aos efeitos de causa e efeito das mídias. Em uma das últimas respostas da conversa, um presságio da grande crise que estava por vir. Sobre o papel do professor, pontificou: "É perguntar sempre:

de quem veio essa informação? Quais são os interesses de quem a divulgou? De que forma ela representa o mundo? É confiável? Como podemos comparar essa informação com outras fontes? Você pode me chamar de fora de moda, mas ainda acredito que existam fatos [risos]."

Chegamos a 2023 sem grandes motivos para rir. Originalmente publicado em 2019, Manifesto pela Educação Midiática é um livro escrito sob os escombros do terremoto da desinformação e de seus abalos mais sinistros: ascensão de governantes da extrema-direita, negacionismos de variadas ordens, antiintelectualismo, recrudescimento do ódio e da violência como formas basais da comunicação. Vivemos uma crise civilizacional e Buckingham, hoje professor Emérito de Mídia e Comunicação na Loughborough University e Professor Visitante no King's College London, nos faz ver o que está em jogo.

Antes de lançar um olhar de lupa sobre os meios, é preciso se afastar um pouco para reconhecer as estruturas. Buckingham põe dedos em duas feridas que precisam ser expostas. A primeira é o atravessamento econômico. Oligopolizado, o capitalismo digital representado pelo acrônimo GAFAM – Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft – está a serviço das grandes fortunas. Seu produto de venda somos eu e você, na forma de dados capturados por mecanismos quase nunca transparentes e algoritmos que nos ensinam de que e de quem gostar, de que e de quem odiar. A segunda é o front político. Nenhuma ilusão quanto à incompetência das plataformas em evitar discursos de ódio, conteúdo violento e desinformação. Por todo o mundo, surgem propostas de regulação. A briga está só começando.

Na apresentação da obra ao público brasileiro, o autor diz que esse é seu livro mais "internacional". Chegamos à inevitabilidade da vida mediada por telas, conforme escreve Januária Cristina Alves na nota à edição brasileira. A vida digital é hoje parte da própria vida e a educação midiática, mais do que um complemento, é um direito cidadão.

De partida, alguns esclarecimentos: não se trata de solução improvisada, à margem da escolarização regular, ou de transferência de responsabilidades do Estado ao indivíduo. Tampouco se restringe ao "saber usar" os aparelhos. O objetivo – e aí voltamos às mensagens de 2010 que seguem válidas – é "um entendimento crítico profundo de como a mídia funciona, como comunica, como representa o mundo, como é produzida e usada". Queremos usuários que sejam mais autônomos, competentes e críticos.

A Questão É: Como?

A solução precisa se materializar na forma de políticas públicas. A educação midiática, defende Buckingham, necessita de programas "abrangentes, sistemáticos e duradouros". Não é pouca sua ambição. Ecoando Marx, Buckingham defende que o objetivo de seu manifesto não é apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo. Pode-se utilizar essa frase como chave de leitura da obra.

Primeiro, a interpretação. Não se pode aceitar acriticamente a visão edulcorada de que gadgets, apps e soluções em nuvem nos conduzirão ao paraíso da democracia e da liberdade. Buckingham vê aí um "determinismo tecnológico" e "descompasso entre retórica e realidade", lembrando que os efeitos mais prevalentes das tecnologias têm ido na rota da gestão de comportamento e da vigilância. Sem subscrever a visão de pânico moral, focada apenas nos riscos das mídias, o autor nos lembra de que os potenciais efeitos variam de mídia para mídia, de pessoa para pessoa, de circunstância para circunstância. Nada é simples ou fácil de prever.

Justamente por isso a educação midiática não deve se restringir à alfabetização midiática. A definição de Buckingham, mais desafiadora – e empoderadora, defende o autor – passa por uma abordagem crítica que esquadrinha quatro aspectos fundamentais de toda mídia: linguagem midiática ("para criar significados, comunicar e persuadir"), representação do mundo ("de determinadas maneiras e não de outras"), produção ("por indivíduos e organizações (...), com motivações e interesses específicos em jogo") e públicos (que interpretam e tiram prazer das mídias). "Em conjunto", sustenta o autor, "esses conceitos abarcam questões fundamentais sobre o poder da mídia, mas o fazem de maneiras que reconhecem sua natureza dinâmica e complexa."

Hora da transformação, de definir o que e como ensinar, de falar, respectivamente, de currículo e pedagogia. No esforço analítico de categorização, Buckingham elege três dimensões da pedagogia alinhadas à noção de alfabetização: leitura (relacionada aos aspectos de linguagem midiática e representação), escrita (ligada à produção) e análise contextual (que diz respeito a instituições e públicos). Concretamente, o trabalho em sala de aula mescla análises de conteúdo midiático em variados suportes, a criação de peças diversas (textos e vídeos curtos,

podcasts etc.) e a investigação sobre públicos e efeitos da mídia (tanto melhor se incluírem abordagens ativas como pesquisa de campo, entrevistas e enquetes).

E que não se esqueça dos educadores. Bons currículos e excelente material didático são desejáveis, mas o controle deve ficar a cargo dos professores e das professoras. "Todos os estudos sugerem que uma reforma educacional só é significativa e duradoura se os professores estiverem de posse dela."

Completo e consistente, a um só tempo utópico e realista, Manifesto pela educação midiática mira Karl Marx, mas também dialoga com outro senhor de longas barbas grisalhas, nosso conterrâneo, referência incontornável para quem quer interpretar e transformar o Brasil: "Se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode."

*Rodrigo Ratier é professor de jornalismo da ECA-USP, colunista de educação do UOL e fundador do projeto contra notícias falsas Vaza, Falsiane
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