CATÁLOGO LIMITES DA LUCIDEZ . MAIO 2021

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Limites da Lucidez


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9 9 9 Assuntos sensíveis e urgentes: é preciso falar GERÊNCIA DE ESTUDOS E PROGRAMAS SOCIAIS

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16 16 16 Limites da lucidez: o incomensurável resgate da história de cada sujeito BIANCA COUTINHO DIAS

8 8 8 Alterações irreversíveis, informações desejáveis SESC SÃO PAULO

10 10 10 Limites da lucidez: desmistificando o diagnóstico NATÁLIA LEMES ARAÚJO

25 25 25 Alzheimer: desafiando as dádivas da longevidade DR. PAULO FERNANDES FORMIGHIERI


35 35 35 Atividade física e declínio cognitivo MARCOS ROBERTO MARTINS RODRIGUES

44 44 44 Cuidador de idosos: a nova realidade das famílias brasileiras TEREZINHA C. CORBANI

51 51 51 A loucura dos chamados normais DANIELA ARBEX

41 41 41 Cuidadores de idosos com Alzheimer: desafios reais NATÁLIA MINTO BENEDETTI

47 47 47 A curatela da pessoa idosa NATALIA CAROLINA VERDI


Alterações irreversíveis, informações desejáveis

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A vida realiza-se no movimento, transformando-se a cada instante. Inerente a ela é o envelhecimento, caracterizado pela permanência dos seres, vivos, ao longo do tempo. Independentemente da idade, todas as pessoas, todos os dias, envelhecem e, consequentemente, os sinais da idade se apresentarão, mais cedo ou mais tarde. Então, qual o motivo de ainda haver preconceitos e desinformações a esse respeito? Com o aumento da expectativa de vida nas últimas décadas, permanecer vivo e saudável tem sido o anseio de muitos, mas a ideia de envelhecer ainda parece assustar. As marcas na tez dos indivíduos indicando sua longeva trajetória podem ser amenizadas, mas há alterações mais profundas que as da pele, revelando fragilidades próprias da existência, cujas perdas e debilidades constituem a jornada humana. Nessa perspectiva, o projeto Limites da Lucidez apresentou como tema para suas atividades as demências, dentre elas a mais comum, a doença de Alzheimer. Por meio de palestras, debates, apresentações artísticas e oficinas o projeto, que se integrou aos ciclos temáticos desenvolvidos pelo Trabalho Social com Idosos (TSI), abordou questões sensíveis ao envelhecer, contribuindo para sua desmistificação. A partir da ciência e do conhecimento dos processos cognitivos e comportamentais, por meio de suas ações

realizadas na área há mais de 60 anos, o Sesc contribui para a difusão de informações acerca das transformações ocorridas no processo de envelhecimento. Transformações essas que interseccionam múltiplas dimensões, como a biológica, a cognitiva, a social, a esportiva e a cultural. Entender tais mudanças pode corroborar o reconhecimento de estágios da vida que necessitem de reconexões, tanto afetivas quanto sociais, minimizando assim possíveis incompreensões e, por outro lado, valorizando as singularidades e lembranças construídas ao longo de uma vida. SESC SÃO PAULO


Assuntos sensíveis e urgentes: é preciso falar

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O projeto Limites da Lucidez é uma ação do programa Trabalho Social com Idosos (TSI) do Sesc São Paulo, inserida no projeto Ciclos Temáticos, criado para debater temas sensíveis que conversam diretamente com o envelhecimento. Os conteúdos dos ciclos sempre tocam em assuntos densos e que por isso mesmo são pouco falados e não têm visibilidade. Trazer esses debates para a programação das unidades permite que eles deixem de ser tabus e possam ser entendidos como dilemas humanos contemporâneos, com suas especificidades e dificuldades. Falar dessa complexidade por meio de ações e perpetuar os debates com esse catálogo também abre caminho para soluções que amenizem a dor provocada. Os ciclos já discutiram a questão da moradia no envelhecimento no Morar – Espaços de Afeto, realizado no Sesc Santos em 2016. A morte e suas implicações foram debatidas no Finitudes, no Sesc Ipiranga, em 2017. E, finalmente, Limites da Lucidez, em 2020, no Sesc Ribeirão Preto, levantou inquietações sobre as demências. Os assuntos surgem das reflexões dos técnicos e técnicas do TSI em contato diário com os idosos, bem como das trocas entre unidades, especialistas e gerência técnica. Para a Gerência de Estudo e Programas Sociais (Gepros), responsável pelo TSI, propiciar o encontro do público com conteúdos tão sensíveis contribui com a construção de conhecimen-

tos, tanto dos frequentadores do Sesc, quanto do público especializado (gerontólogos, cuidadores, entre outros), gerando também uma ressonância na sociedade. Ampliar a visibilidade e o acesso a informações possibilita que novas soluções sejam criadas. Outra característica importante do ciclo é tratar dos assuntos não apenas por meio de palestras. Espetáculos, performances e filmes também entram na programação e asseguram que as reflexões cheguem a um maior número de pessoas, com perfis variados. Da mesma forma, oficinas e workshops acontecem para aprofundar tópicos. A proposta do ciclo Limites da Lucidez foi colocar um pouco de luz na questão das demências, entre elas o Alzheimer. Elas assustam, pois privam aos poucos o indivíduo da consciência de si mesmo. A memória é uma das principais características que nos torna humanos, porém quando ela se vai, ainda restam outras, como o sentir, e junto com ele todo um campo de sensibilidades. Assim são feitos os ciclos, pensando além das fatalidades dos temas em si e trabalhando na construção de conhecimentos que possam ajudar a reduzir os estigmas, diminuir o sofrimento e modificar o olhar. GERÊNCIA DE ESTUDOS E PROGRAMAS SOCIAIS


Limites da lucidez: desmistificando o diagnóstico NATÁLIA LEMES ARAÚJO

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ntre os meses de novembro de 2019 e março de 2020, o Sesc Ribeirão Preto realizou o projeto Limites da Lucidez, com o objetivo de trazer à luz a temática das demências, culminado no Alzheimer. O projeto faz parte dos ciclos temáticos desenvolvidos em conjunto com a Gerência de Estudos e Programas Sociais (Gepros) do Sesc São Paulo, que pretendem tocar em temas sensíveis ao envelhecer, assuntos considerados difíceis, tabus. O primeiro ciclo temático, Morar – Espaços de Afeto, ocorreu na Unidade de Santos, em 2016, e discutiu o assunto por meio de atividades com profissionais especializados e do diálogo com os idosos que moram em diferentes tipos de habitação. O segundo ciclo, Finitudes, aconteceu no final do ano de 2017 e visou desmistificar a morte e discutir a existência humana, abordando o tema da vida enquanto findável e as possiblidades que essa (in)certeza sugere.

A unidade de Ribeirão Preto (1956), a mais antiga do interior, desenvolve um intenso trabalho com o público idoso e conta com mais de cem idosos frequentando a programação cotidianamente. Muitos frequentam o Trabalho Social com Idosos há 30 anos, pois no passado a pessoa já era considerada idosa aos 40 anos. Esses idosos têm no Sesc o local de prática de suas atividades físicas, de encontro e compartilhamento social, além do contato com a cultura artística por meio de fruição e produção estética. Foi observando esse grupo e nas trocas com a Gepros que a programação da unidade decidiu a temática do ciclo Limites da Lucidez. Estima-se que no Brasil cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas são acometidas por diferentes tipos de demências. Entende-se por demência um grupo de sintomas caracterizado por um declínio progressivo das funções intelectuais, severo o


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bastante para interferir nas atividades sociais e do cotidiano. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência. Entretanto, receber um diagnóstico desses não é simples nem para a pessoa e nem para familiares. Muitas vezes o núcleo familiar não sabe como lidar com a situação e a desinformação torna tudo muito difícil. Assim, decidimos montar um conjunto de programações – palestras, filmes, debates, rodas de conversa, intervenções artísticas, espetáculos teatrais, vivências e oficinas sobre a temática das demências em toda sua complexidade, a fim de informar, esclarecer, tornar acessível e por que não dizer poética uma questão tão densa? Começamos com uma performance chamada Os Cegos em que homens e mulheres, em trajes sociais, cobertos de argila e de olhos vendados caminham lentamente interferindo poeticamente no fluxo cotidiano da cidade. A performance traz a dúvida: quem dentre eles carrega em si algum tipo de demência? Seguimos com uma palestra de Viviane Mosé, que discorreu por duas horas sobre os questionamentos: quais são os limites entre consciência e inconsciência? Como podemos identificar estados de demência? Senilidade representa problemas cognitivos? Existe fuga do Alzheimer? Todas as questões são disparadoras desse projeto. No mês de dezembro, trouxemos os filmes Longe Dela e Poesia que mostraram diferentes casos de pessoas com Alzheimer e suas relações com entes queridos. Janeiro foi o mês do curso Envelhecimento, Patologias e Gerontecnologia, que apresentou de forma técnica as dimensões do envelhecimento, do Alzheimer e as possibilidades de criação

em gerontecnologia. Em fevereiro exibimos o documentário Alzheimer na Periferia, estando presente o diretor, Albert Klinke, e o criador do argumento, o prof. dr. Jorge Felix. O setor esportivo explorou o âmbito das memórias por meio dos movimentos cotidianos. O público foi provocado a repensar cada gesto, desde o ato de levantar de uma cadeira, subir escadas, carregar compras, dançar ou praticar esportes. Nesse contexto, as vivências promoveram, de forma simples e dinâmica, atividades que desenvolvem a consciência corporal e aumentam o repertório motor e cognitivo. O teatro de formas animadas também esteve presente em fevereiro, apresentando a temática com dois espetáculos – Fios de Memória, da Cia. Espirral, e Pequenas Coisas, com a Cia. Morpheus. Março foi o mês da palestra com o dr. Paulo Fernandes Formighieri, que apresentou os tipos de demências, esclareceu dúvidas sobre os motivos do aparecimento da demência e discorreu sobre o Alzheimer de maneira científica e acessível. O dr. Ramón Lopes Neto orientou sobre as questões jurídicas e qual o momento em que a interdição é indicada. Apesar de à primeira vista parecer uma violência, pode ser, na verdade, uma proteção à pessoa idosa, quando por vezes ela não consegue cuidar de si mesma ou de seu patrimônio. Explanou sobre custódia e curatela, deveres e direitos da pessoa demente e seus familiares. Como objetivamos abordar o tema de maneira suave e envolvendo os mais diversos públicos, julgamos fundamentais as ações artísticas. O espetáculo Kintsugi – 100 Memórias, do Grupo


Foto: Aline de Castro

PERFORMANCE OS CEGOS DESVIO COLETIVO

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Lume, de Campinas, somou com sua pesquisa que propõe, a partir da exibição de cem memórias, uma dramaturgia autoficcional desconstruída, de maneira não narrativa, que transita perifericamente pela história dos intérpretes, suas histórias em grupo e, como projeção, pela história dos espectadores. Kintsugi, ou a beleza da imperfeição, é uma palavra japonesa que significa emenda com ouro. Essa arte consiste em reparar cerâmica quebrada com uma mistura de laca e pó de ouro, prata ou platina. Assim, os objetos guardam em si suas memórias. O grupo propõe a possibilidade de encontrar a superação a partir do encontro com a dor. Matheus Nachtergaele integrou o projeto com seu espetáculo Processo de Conscerto do Desejo. No palco ele apresenta uma personagem construída a partir das memórias deixadas por sua mãe, num conjunto de cartas escritas por ela. A palavra “conscerto”, escrita dessa forma, sem nada a mudar no título. Com um concerto, Nachtergaele busca consertar desejos. Ocorreram ainda intervenções artísticas na área de Convivência, leituras dramáticas e contações de histórias, além da vivência Café com Memória, facilitada pelas psicólogas Mariana Guendelekian Della Pietra e Isabel Alonso, que possibilitou um espaço de encontros com o objetivo de socialização de idosos com perda de memória ou demências, acompanhantes e comunidade em geral. A proposta proporcionou a horizontalização das relações em que o foco não era a doença e sim a possibilidade de troca entre todos. Dessa forma, o idoso saiu do lugar de paciente e retomou seu lugar de cidadão participativo, que vai a um café, conversar e interagir.

Toda a programação foi frequentada por um público plural, de estudiosos a cuidadores, de curiosos a pacientes, crianças, adultos e idosos, possibilitando a desconstrução de estigmas relacionados à temática, desmistificação do diagnóstico, informação, conhecimento e muita poesia.


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NOTA DA ILUSTRADORA Nesta ilustração, trago a ideia de um espaço comum de desabrochares. Como o texto trata de várias atividades que aconteceram durante o projeto Limites da Lucidez, trago esta imagem de centro na flor como uma área de convivência comum entre os indivíduos, representados nas casas. Há um ponto de encontro no centro, no miolo, um compartilhamento social, uma morada de espaços de afetos, a poética dentro da densidade, trazendo também a ideia de ciclo de vida.


ESPETÁCULO VELHAS CAIXAS JULIANA NOTARI

Foto: Romina Del Rosario

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Limites da lucidez: o incomensurável resgate da história de cada sujeito BIANCA COUTINHO DIAS

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omo pensar o lugar da lucidez sem aniquilar o grão de loucura constitutivo da própria condição humana? Como provocar a discussão acerca da dimensão do sujeito, contribuindo para um diálogo fundamental no campo da interdisciplinaridade? O projeto Limites da Lucidez ampliou o espaço e as frestas para se pensar o liame entre consciência e inconsciente, lucidez e loucura. Especialistas, pensadores e artistas colocaram algo novo em conversas e reflexões que englobam questões importantíssimas – desamparo, luto, velhice, sofrimento psíquico – e que se encontram ainda em aberto. Para os idosos, a proximidade da morte – e o encurtamento do horizonte de futuro – aumenta a dificuldade de realizar o trabalho de luto. O desinvestimento dos vínculos e a fragilidade ante as vicissitudes do processo de envelhecimento podem provocar estados depressivos severos.

Na velhice, a primeira perda que se coloca diz respeito ao próprio corpo, um golpe narcísico com o qual cada sujeito deve se haver. Ao se olhar no espelho, uma pessoa em processo de envelhecimento vê uma imagem que não corresponde a um ideal anterior em que a ilusão de onipotência ainda era possível. A essa representação soma-se a realidade do declínio físico: órgãos que não funcionam como antes, a força que diminui, as capacidades funcionais afetadas. Assim, o corpo autônomo passa a ser objeto de preocupação e de necessidades geradoras de dependência. O projeto Limites da Lucidez buscou trazer à luz justamente a possibilidade de a singularidade e a subjetividade serem levadas em conta na velhice, mesmo nos processos demenciais, em que a reminiscência pode ser tomada não como um sintoma a ser extirpado, mas como uma possibilidade elaborativa e uma afirmação de algo que é próprio


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do sujeito. Lembrando, falando e insis- forme exposto nas obras O Futuro de tindo, o sujeito poderá construir uma uma Ilusão e O Mal-estar na Cultura, a narrativa que será o sentido de sua exis- noção de desamparo – já anunciada nos tência e a constatação de sua presença, primeiros textos da produção freudiana que lhe permitirá não cair no “sem sen- – se instala, definitivamente, no campo tido” da depressão ou no “absoluto vazio” teórico da psicanálise como fundante da demência. da subjetividade. Em sua multiplicidade de vozes, Deparamo-nos, assim, com um o projeto ajudou a encontrar caminhos campo de contradições e paradoxos de para vias em que se possa elaborar a ins- difícil resolução, pois existem casos em tauração de uma nova posição subjetiva que uma elaboração parece não ser pospela possibilidade de alguma invenção, sível. E aqui nos defrontamos com algo através da arte e de outros processos que, por sua intensidade e modalidade inclusivos que evitem as saídas mais re- de inscrição, não pode ser retomado, gressivas que levam ao enfraquecimento algo que constitui um resto de imposou aniquilamento do sujeito, como o iso- sível elaboração, marcando limites. Algo lamento, a irritabilidade e a depressão. inominável, que não se representa simDo ponto de vista ético, Limites bolicamente e só pode ter atuação no da Lucidez é um projeto de vital im- corpo pela demência ou por qualquer portância, pois reinsere o idoso no laço outro processo de sofrimento psíquico. social, na contramão dos discursos que A partir desse entendimento, não o situam como um sujeito sem lugar, é difícil compreender que a angústia quase fora do mundo pela proximidade que a proximidade da morte provoca é com a morte, situação que o coloca na um fenômeno vivido de forma singular, categoria de objeto descartável, objeto por cada sujeito, e a reação ante essa desinvestido. Para a psicanálise, todo angústia dependerá da forma pela qual sujeito, idoso ou não, sempre pode fazer cada um manejará a frustração diante da novos vínculos e criar algo: a subjetivi- perspectiva de perda da própria vida. O dade pode subverter a trama do tempo, que cada pessoa fará com isso também provocando outros tempos. Esse é o dependerá, e muito, das condições somovimento da historicidade humana que ciais de sua existência. dá sentido de permanência. E é preciso – Adentro aqui no conto “O Outro” em um momento derradeiro, numa situa- de Jorge Luis Borges. Trata-se de um ção limite em que a memória parece se diálogo entre o jovem e o velho escriausentar – apostar no sujeito e sustentar tor Borges. É um conto sobre a memóessa radicalidade. ria, a construção de uma identidade e Na ocorrência da degradação de um lugar que nunca estão prontos, daquilo que denominamos lucidez, cau- com reflexões sobre a alteridade e a exsada ou não pela velhice, perde-se o periência do duplo. O conto relata uma sentimento da continuidade temporal e conversa entre dois Borges – o jovem de pertencimento. Instaura-se o vazio e o já idoso – numa manhã de 1969, às e uma vivência de profundo desamparo. margens do rio Charles, em Cambridge, Para Sigmund Freud, a questão do de- nos Estados Unidos. A data e a localizasamparo está na origem do sujeito. Con- ção, contudo, são relativas à perspectiva


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do velho Borges que, impelido por uma premência subjetiva resolve, três anos depois, deixar por escrito os resíduos de suas lembranças, em forma de ficção. Destaco esse processo para acentuar sua importância, mesmo em processos demenciais da rememoração. Borges escreve: “Não o escrevi de imediato porque o meu primeiro propósito foi de esquecê-lo, para não perder a razão”. Enquanto contempla as águas, o Borges idoso deixa-se levar por divagações sobre o tempo. Esse momento evoca nele a impressão de haver vivenciado aquele instante antes. São fenômenos relacionados com sentimentos de desrealização, em que a consistência da sensação de apreensão do mundo se esvanece e a linha cronológico-histórica do tempo se transmuta. Um efeito de despersonalização bastante frequente que surge quando as identificações do eu vacilam, deixando entrever fragmentos e resíduos de lembranças. A pluralidade de identidades narrativas de Borges serve de alegoria para pensarmos na multiplicidade de discursos que habita qualquer sujeito. Os dois Borges encontram-se numa zona que une e entrelaça vigília e sonho, onde vigora uma outra temporalidade. Em vários momentos, o escritor acentua a fragilidade da memória no que tange à reprodução fidedigna dos fatos para, em seguida, destacar o trabalho de transmutação inerente à toda recordação, pois o que interessa não é a fidedignidade histórica dos fatos, mas a verdade que emana das invenções. Para Borges, a temporalidade – assim como o inconsciente para Freud – se desdobra no campo de enunciação e as manifestações da verdade do sujeito possuem caráter fugidio, parcial e enigmático.

Para o psicanalista Jacques Lacan, a verdade tem forma de ficção, só transmissível de modo parcial, pelo caminho de um desvio, de um bordejar dentro de uma dialética que conjuga revelação e ocultamento. A ficção é, portanto, a forma por excelência pela qual a verdade do inconsciente se manifesta. No conto de Borges, testemunhamos o relato de uma experiência que exige um posicionamento ético do sujeito em relação a algo que habita o limite do esquecimento e da rememoração mas, nem por isso, deixa de dar provas de sua presença. Nesse âmbito encontramos ecos em obras apresentadas ao longo do projeto Limites da Lucidez como os filmes Amor, Longe Dela ou Poesia. Amor, filme de Michael Haneke, mostra o cotidiano da decomposição do corpo. Há corpos velhos, falhos, a fragmentação e o desmembramento da matéria em contínua corrosão. O desafio de manter a aposta na vida, a decisão de manter-se na vida, a criação frente ao vazio, o desejo que encontra a possibilidade de movimento: todos esses aspectos ambíguos e, muitas vezes, contraditórios, encontram na arte um espaço para nomear o inominável e para lidar com o impensável. O desejo surge ao se encarnar na palavra, ou seja: ao nomear seu desejo, o sujeito cria. No campo das práticas diversas prevalece a profusão de enunciados pedagógicos no que diz respeito à loucura ou à velhice que, visando uma melhor adaptação, aprisionam o sujeito em ideais e supõem um caminho generalizável, em que a singularidade do desejo não comparece. Para a psicanálise é a partir do saber inconsciente, marca da mais radical diferença, que se assenta a relação do sujeito com a própria história


FILME POESIA LEE CHANG-DONG

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em um esforço de subjetivação que será mado e o lugar dos rituais e do gesto sempre precário, temporário e aberto a é reinventado. um devir incerto. O componente segregatório não Em Longe Dela, filme de Sarah acontece somente nos processos dePolley, esse enodamento entre a sub- menciais, mas também nas diversas forjetividade e uma relação de amor se mas de viver que historicamente estiveapresenta tocando nas nuances de am- ram na contramão de uma construção plo espectro que um processo demen- social que divide a razão e a loucura, cial abrange: a família, os casamentos como se em todos nós essas dimenatravessados por um trabalho de luto sões não encontrassem habitação. O que se atualiza ao longo da doença, livro Holocausto Brasileiro, de Daniela as decisões difíceis de serem toma- Arbex, toca nessa questão e está dentro das, mas que exigem um trabalho psí- do projeto Limites da Lucidez para lemquico profundo. Juntos há muitos anos, brar que a dimensão da diferença e da um casal é atravessado pelo processo alteridade sempre sofreu tentativas de demencial da esposa que precisa ser encarceramento. internada. As visitas do marido ao hosA poeta e filósofa Viviane Mosé pital são tocantes: em cada encontro é destacou a importância de tomar a lucicomo se ela o visse pela primeira vez. dez e a loucura como faces de diferenHá momentos de dor aguda e também ças psíquicas que criam variações a para escolha do marido e o encaminha- tir da história de vida e da singularidade mento para um processo de acolher a de cada sujeito. No lugar do diagnóstico subjetividade: ele acolhe os desvios da duro e incontornável é preciso encontrar esposa, leva livros que possam lembrá- uma margem de desvio para lidar com -la de seu passado e aceita o incom- a lâmina da finitude que está dada para preensível grão de mistério sem anulá- todos. Tomar a vida nas mãos e lembrar -la como sujeito. que há vida antes da morte, como na Poesia, do sul-coreano Lee Chang- música de Caetano Veloso relembrada -dong, mostra os contornos cruéis que em sua fala: “finda por ferir com a mão / a vida adquire quando o Alzheimer se essa delicadeza / a coisa mais querida / presentifica e, no filme, quando uma se- a glória, da vida”. nhora recebe o diagnóstico, a saída enE na peça Processo de Conscerto contrada foi pela poesia: ela passa a ler do Desejo, Matheus Nachtergaele reintudo como um poema em que as coisas venta sua dor mais extrema. A partir do entram em colapso, mas são reinseridas suicídio da mãe, que aconteceu quando pela via poética. Diante do diagnóstico, era ainda um bebê, o ator traz a chama ao invés de se colar no significante “de- da vida e a força de uma existência para mência”, ela se inscreve numa oficina além de qualquer temporalidade prede poesia e encontra a preciosidade -estabelecida: ele revisita os escritos da de cada palavra, lapida a lembrança e mãe, prescruta seu sofrimento mental e o esquecimento à sua maneira e é atra- disso extrai uma invenção que ressignivessada pela pulsação poética, criando fica sua vida e a existência de sua mãe. um mundo próprio e afirmando a vida O incomensurável de uma história como um poema. Cada gesto é reto- que reinventa o mundo: é esse o único


limite do qual não deveríamos abrir mão, um início e um fim que está esboçado em Borges: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto”.

NOTA DA ILUSTRADORA

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Para todo o trabalho de ilustração deste catálogo estou usando duas ideias principais que são desenvolvidas individualmente em cada texto. Essas ideias são: a imagem de “flores de casas”, feitas de lápis grafite e um “aglomerado” de cores abstratas, feitas com giz pastel oleoso. As “flores de casas” vem da ideia de um desabrochar contínuo da sensação de lar. Um lar interno, constituído dia a dia, em um ciclo natural como é o ciclo da floração na natureza. Para essa imagem uso o lápis grafite, que também é um material de escrita, remetendo à ideia de escrever seu próprio florescer. Utilizo traços soltos e orgânicos para trazer ideia de fluidez e movimento. Os “aglomerados” de cores são pinturas abstratas que trazem a imagem da subjetividade de cada indivíduo e das interações e relações. É a parte da ilustração que diz o indizível, que abre espaço para os infinitos encontros. Que habita um local onde as palavras não alcançam. São representações das entrelinhas dos textos, da emotividade, uma possibilidade elaborativa das múltiplas vozes e silêncios possíveis, os limites e deslimites da lucidez.


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ESPETÁCULO PEQUENAS COISAS CIA MORPHEUS

Foto: Sérgio Cândido

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ESPETÁCULO KINTSUGI - 100 MEMÓRIAS GRUPO LUME

Foto: Aflorar Cultural

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Alzheimer: desafiando as dádivas da longevidade DR. PAULO FERNANDES FORMIGHIERI

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m meio à euforia e perspectivas de grandes oportunidades com o progressivo aumento da expectativa de vida, confirmada ano a ano no nosso país, bem com a discussões acerca de envelhecimento ativo, busca pela independência, quebra de estereótipos e aumento da participação social e econômica da população: um “calafrio percorre a espinha”… Como lidaremos, enquanto sociedade, enquanto família, enquanto indivíduos, com a crescente presença dos prejuízos cognitivos assombrando o processo de envelhecimento? Atores inconvenientes, porém persistentes nestes cenários! No mundo, em 2050, serão 135 milhões de pessoas convivendo com demências, sendo 68% deste total em países de baixa e média renda. Divulgar os conhecimentos, desfazer os mitos que rondam essa condição, ampliar as redes de suporte ao idoso e à família, são passos fundamentais para enfrentar

esse gigante que se põe diante de nós, ofuscando parcialmente o brilho do sol trazido pela longevidade. A longevidade como uma realidade coletiva é uma dádiva (ou uma conquista?!) da humanidade atual. Com­ parativamente, a expectativa de vida de um indivíduo nascido nos períodos Antigo e Medieval era impressionantemente similar a do homem de Neanderthal, que habitou a Terra cerca de 350 mil anos atrás. Na Alemanha do século XIX, a expectativa de vida atingiu a “surpreendente” marca dos 37,2 anos de idade. Na história mundial, esse quadro só tomou outros rumos na segunda metade do XIX, quando o cientista Louis Pasteur conseguiu provar a relação existente entre a contração de várias doenças e a higiene pessoal. Os avanços foram progressivos, tendo havido um aumento de mais de 20 anos na expectativa de vida da população mundial entre 1950


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e 2010. A expectativa de vida aumentou mais nestes 50 anos do que nos 200 mil anos anteriores! As projeções a partir de então são um crescimento consistente, especialmente marcado para os grupos dos “muito idosos” (80 anos ou mais), os quais devem triplicar no mundo até 2050 e passar dos 125 milhões, em 2015, para 434 milhões em 2050. Poderão ainda alcançar 875 milhões até 2100 se as estimativas se confirmarem! Teorias múltiplas e bastante diversas tentam explicar o fenômeno do envelhecimento biológico. Individualmente, porém, os fatores reconhecidos que influenciam a longevidade são de duas naturezas principais: genáticas e ambientais. Essas últimas têm sido as principais determinantes para o aumento da longevidade recente - maior acesso à alimentação, melhores condições sanitárias, recursos de saúde, vacinação, melhor condição geral de moradia, menor exposição a fatores de agressão e privação de recursos (guerras em grande escala). Neste contexto, o Brasil também envelhece a passos largos. Na década de 1960, a perspectiva de vida do cidadão brasileiro era de apenas 48 anos. Os números atuais apontam que a média de vida do brasileiro teve um acréscimo de 28,3 anos (76,3 anos segundo o IBGE, vide Quadro 1). A proporção de idosos frente ao total de população brasileira também vem crescendo. Em 2001 representava 9%, passou a 14,3% (29,3 milhões) em 2019 e deve alcançar 30% (64 milhões) em 2050 segundo previsões da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já em 2035, população brasileira 60+ será maior que a população 0 a 14 anos (IBGE), realidade que já

acontece nos dias atuais no Rio Grande do Sul. Além da maior longevidade, os indivíduos 60+ têm conseguido também uma virada no estilo de vida e ocupam um espaço cada vez maior nos mercados e na sociedade. Segundo pesquisa do SeniorLab, 85% dos idosos de Porto Alegre relatam ter vida ativa, controlando as próprias finanças e tomando decisões na hora da compra. São consumidores exigentes, que valorizam as relações humanas no processo de compras, têm demandas específicas de usabilidade, experiência in loco e colocam qualidade acima de preço. O uso de redes sociais por idosos tem tido um crescimento exponencial por seu potencial de encurtar distâncias e ampliar as relações - 55% possuem perfil ativo no Facebook. O estudo Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento (Sabe), promovido pela Universidade de São Paulo (USP), também trouxe inúmeras contribuições para conhecer esta nova realidade. Por exemplo, entre idosos acima de 60 anos, 17,8% residem sozinhos (homens 11,3% e mulheres 22,8%), números que aumentam com a idade chegando a 27,1% entre 80 anos e mais. Anos de vida ganhos com saúde? Apesar da melhoria em termos gerais, os ganhos populacionais não vêm sem cobrar algum preço. A cada ano, a expectativa de vida do brasileiro tem aumentado em média 3 meses, contudo a expectativa de vida saudável (Healthy Life Expectancy – Hale) não acompanha tal ritmo. Em 2015 era de 65,8 anos, representando mais de 10 anos de expectativa de vida com algum grau de disfuncionalidade. Assombram o envelhecimento as sequelas de doenças crônicas, eventos vasculares, neoplasias


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e síndromes geriátricas, trazendo fragilidade e incapacidade, especialmente aos mais longevos, com idade acima de 80 anos (figura 1). Dentre os principais vilões desta situação, têm lugar de destaque as incapacidades cognitivas: perdas de causas variadas das capacidades de processamento cerebral superiores - pensamento, raciocínio, planejamento, memória, reconhecimento, linguagem, orientação, abstração, percepção visual e espacial, habilidade práticas aprendidas, controle de comportamento. Quando essas capacidades declinam de maneira persistente, progressiva e levando a prejuízo na funcionalidade do indivíduo chamamos isto de Demência. Demência é diagnosticada quando há perda de capacidades cognitivas ou de controle comportamental persistentes que: 1.1 Interferem na habilidade de

trabalho ou em atividades usuais; 1.2 Representam declínio em relação a níveis prévios de funcionamento e desempenho; 1.3 Não são explicáveis por delirium (estado confusional agudo) ou doença psiquiátrica maior. Afetam no mínimo dois dos seguintes domínios: •  Orientação (tempo/espaço) •  Funções executivas •  Linguagem •  Memória •  Abstração •  Visuoespacial •  Praxias •  Personalidade e/ou comportamento ———— National Institute on Aging and Alzheimer’s Association workgroup / DC - ABN


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As demências são condições especialmente frequentes nos grupos etários mais idosos. Sua prevalência dobra a cada 6,3 anos a partir dos 65 anos. Considerando a manutenção da tendência de crescimento deste universo, a prevalência global poderá dobrar a cada 20 anos. Acrescenta certa dramaticidade o fato de que mais de 2/3 dos casos serão de moradores de países de baixa/média renda até 2050. Os números mundiais associados às demências são igualmente impactantes. Eram aproximadamente 46,8 milhões de pessoas vivendo com demência no mundo em 2015 (Alzheimer Disease International), com previsões para alcançar 132 milhões em 2050. No Brasil, atualmente, temos algo em torno de 2,4 milhões de pessoas (8,5% entre os 60+). Dentre as causas das síndromes demenciais, em torno de 10% dos casos são reversíveis. Portanto, o diagnóstico precoce é sempre importante e a avaliação de todos os casos suspeitos por perda de memória ou outras capacidades cognitivas deve ser estimulado. Acreditar que tais dificuldades são apenas “coisas da idade” acaba por trazer grandes prejuízos aos indivíduos e à família. Além das causas reversíveis, diversas outras condições levam à degeneração cerebral - acidentes vasculares encefálicos (‘derrames’), tumores, traumatismos entre outros. Contudo a Doença de Alzheimer é a condição mais frequentemente responsável por estes quadros, especialmente entre idosos. Diagnóstico diferencial •  Alzheimer 35%-60% •  Doenças cerebrovasculares 20% •  Demência mista 10% •  Depressão

•  Carência de vitamina B12 •  Infecções do sistema nervoso central (SNC) •  Intoxicações por drogas •  Doenças da tireóide e paratireóide •  Sequela de traumas no SNC •  Alcoolismo •  Hidrocefalia de pressão intermitente ou normal •  Sangramentos no SNC •  Demências frontotemporais •  Doença de Parkinson •  Doença de Lewy •  Outras doenças neurodegenerativas A Doença de Alzheimer (DA) tem uma representação majoritária nas causas de demências entre idosos com percentuais variáveis de acordo com o estudo (35%-60%). Estima-se que no Brasil haja em torno de 1,4 milhão de pessoas com DA. Os mecanismos envolvidos na DA são múltiplos e ainda não completamente esclarecidos. Aceita-se que as lesões e disfunções do cérebro associadas à morte de neurônios e células de apoio aconteçam ao longo de décadas, antes de que qualquer alteração seja perceptível mesmo em testes, resultantes do acúmulo de proteínas tóxicas (B42 amiloide) e alterações metabólicas na microestrutura das células (danos nos microtúbulos por excesso de fosforilação da Tau, alterações dos receptores de insulina entre outros). Com isso, a comunicação entre os neurônios fica prejudicada, o número de células viáveis e saudáveis se reduz progressivamente e o funcionamento cerebral vai sendo minado de maneira sucessiva, aparecendo então os sintomas e as alterações nos testes. As características mais marcantes das demências variam de acordo com o


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Idade D. Alzheimer

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diagnóstico. Por ser mais frequente, a DA acaba por ser tomada como referência. Neste caso, a dificuldade de memória, principalmente para fatos recentes, é o principal marcador. Tende a aparecer precocemente e progredir sempre à frente das demais condições nos casos mais típicos. Em geral, o próprio indivíduo demora para perceber e dimensionar a frequência da perda. Os familiares ou pessoas próximas são que, geralmente, dão o alerta. Muitas vezes a memória de fatos mais antigos fica preservada por longos períodos, assim como memórias afetivas, musicais, habilidades e até mesmo conhecimentos atemporais (significados, conhecimentos gerais etc.). Outros prejuízos vão se acumulando, especialmente perdas de orientação no tempo (dia da semana, mês, ano) e no espaço (locais menos frequentados inicialmente, e, posteriormente, até mesmo o ambiente da casa). A linguagem tende a se tornar progressivamente mais simplificada e com “rodeios” frequentes (fiz aquela comida que você gosta que tem carne no molho do macarrão — bolonhesa). E, assim,

Outras

outras habilidades, das mais complexas para as mais simples, vão também declinando com o tempo (cálculos de cabeça, aprender novas habilidades, fazer escolhas e interpretar problemas). Outro fenômeno frequente e progressivo - de maneira bastante individual – é o das alterações comportamentais. As mudanças podem ser sutis ou bastante intensas e variar da apatia e desinteresse (comuns) até a agressividade física/verbal e desinibição, passando por diversas possibilidades. Lidar com essas alterações é um dos maiores desafios para familiares e cuidadores. A DA evoluiu ao longo de muitos anos (mais de uma década), desde a fase chamada pré-clínica até as fases mais avançadas, em que ocorre total dependência. Cada indivíduo tem uma velocidade própria de evolução ou transição entre as fases e um padrão próprio de alterações. Fases evolutivas da Doença de Alzheimer DA pré-clínica Transtorno neurocognitivo leve


Demência de Alzheimer clínica (transtorno neurocognitivo maior) Fase inicial Fase intermediária Fase avançada

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A fase pré-clínica — em que as disfunções celulares vão se acumulando (Ab42 tóxico e disfunção microestrutural) sem que o paciente apresente queixas ou haja alterações em avaliações clínicas estruturais/funcionais, pode durar até mais de dez anos. Apenas testes invasivos, muito específicos e pouco disponíveis (estudo do líquido espinal/ líquor e exames de imagem com marcadores específicos) podem detectar a doença nessa fase. Na evolução temporal da DA, há o surgimento de declínios em relação ao padrão anterior de funcionamento. Os indivíduos apresentam queixas cognitivas (perdas eventuais de memória facilmente recuperadas com pistas; discreta redução do desempenho prévio) com alterações nos testes, mas sem repercussão nas atividades e na funcionalidade. Nesta fase, chamada de transtorno neurocognitivo leve, as perdas ainda são inespecíficas e o diagnóstico não é facilmente conclusivo. É necessário um diagnóstico diferencial com outras condições que não evoluem para DA clínica e portanto todo cuidado é necessário para não “rotular” um diagnóstico precipitadamente. A caracterização clínica da DA depende justamente da presença de queixas ou alterações no desempenho que gerem prejuízo objetivos no desempenho das atividades laborais ou do dia a dia. Na fase inicial da DA clínica (2 a 4 anos de duração em média) é comum que o indivíduo não retenha informações

recentes, perca-se em caminhos menos habituais (ou mesmo habituais), reduza seu interesse pelo entorno ou por atividades, perca a espontaneidade, reduza a sua capacidade de julgar situações levando a erros em decisões, suas respostas mentais fiquem mais lentas, tenha dificuldades em lidar com quantidades, dinheiro, senhas ou equipamentos e apresente mudança de humor e de personalidade. É necessário que se organize uma progressiva supervisão do indivíduo. Caso evolua para a fase intermediária da DA clínica (2 a 10 anos em média) há um piora progressiva do desempenho, gerando a necessidade de uma supervisão 24 horas/dia e auxílio direto para realização de atividades instrumentais (mexer com equipamentos, transporte), bem como para algumas básicas. A memória e a orientação apresentam prejuízos mais intensos, há aumenta da confusão com fatos e procedimentos do dia a dia, há redução do tempo de atenção, dificuldade de reconhecer pessoas próximas, alterações mais consistentes da linguagem, muitas vezes agitação (piora no final do dia e à noite), irritação, desconfiança, impulsividade. Podem haver dificuldades com higiene e habilidades sociais, delírios e alucinações. É uma fase que gera grande angústia nos familiares e cuidadores. Aqueles indivíduos que progridem para a fase avançada da DA (em média 1 a 3 anos, porém, individualmente, pode durar muito mais tempo) apresentam uma perda completa de autonomia, dificuldades para alimentação com repercussão nutricional, apatia pronunciada, prejuízo grave da comunicação, mobilidade e frequentemente incontinência. Com o passar dos anos, os pacientes tendem a permanecer acamados, sur-


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Cognição/funcional

Estágio Leve

Estágio Moderado

Estágio Grave

Memória

Perda de memória recente.

Perda grave de memória. Retém o que foi fortemente aprendido.

Perda grave de memória. Retém apenas alguns fragmentos.

Orientação

Dificuldade moderada com o tempo; certa desorientação para localização.

Dificuldade grave quanto ao tempo e desorientação quanto à locação.

Orientação apenas para a pessoa.

Resolução de Problemas

Alguma dificuldade para com os problemas; discernimento social preservado.

Grande dificuldade para a resolução de problemas. O discernimento social é prejudicado.

Incapaz de resolver problemas e não tem discernimento.

Atividades Comunitárias

Dificuldade, embora participe de algumas.

Incapaz de agir de forma independente fora de casa.

Idem. Parece muito doente para realizar tarefas fora de casa.

Lar e Passatempo

Tarefas mais difíceis, passatempos e interesses comprometidos.

Tarefas simples preservadas, mas não mantém interesse.

Ausência de atividade significativa em casa.

Cuidados Pessoais

Precisa ser lembrado.

Precisa de ajuda para se vestir e se arrumar.

Dependência para se vestir e se arrumar.


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gindo então lesões por pressão, aumento da rigidez dos braços e pernas, e até mesmo reflexos infantis (sugar, segurar). Nessa fase a necessidade de auxílio é constante para todas ou quase todas as atividades básicas. Apesar das perdas e dificuldades de interação é importante recordar que o doente é mais do que a doença. É possível preservar emoções e sentimentos. O carinho e os cuidados são as atitudes mais importantes para alentar essa fase tão difícil. Bilhões de dólares são investidos todos os anos na busca de opções de fármacos mais eficientes no tratamento, contudo, poucas ainda são as opções disponíveis. Não há ainda tratamento que impeça a evolução ou leve à reversão do processo neurodegenerativo e, muito provavelmente, o modelo futuro de tratamento deverá ser precoce (antes da fase clínica) e multimodal (atuando em mais de um mecanismo de lesão). Todavia, conquanto não dispomos de fármacos apropriados, dispomos de recursos de reabilitação cognitiva, estímulo neurocognitivo, preparo para a assistência e cuidados, grupos de apoio (como a ABRAz - Associação Brasileira de Alzheimer) e centros especializados. “O cuidado precisa acontecer em camadas, com o indivíduo no centro, a família/cuidadores no entorno, os serviços de saúde no apoio, a comunidade envolvida no suporte e os serviços públicos viabilizando as estruturas necessárias”. A tarefa de cuidar de um indivíduo com demência é um grande desafio, tarefa frequentemente complexa. Para prestar assistência de qualidade, é necessário criatividade, disposição, boa vontade! Focar na tríade:

Estimulação/ Incentivo/ Apoio! •  estimule que a pessoa faça o que ainda é capaz de fazer; •  utilize atividade recreativas as quais gostava; •  não exija o que não é mais capaz de fazer; •  sempre que possível, apoie e não substitua a função; •  permita o tempo necessário para a realização das tarefas. Problemas de Memória •  ajude o indivíduo a ter maior organização com listas, lembretes e agendas; •  estimule que objetos importantes fiquem em lugares visíveis; •  documentos e chaves devem permanecer em lugares predeterminados. Problemas de Linguagem •  quando conversar com a pessoa garanta que você obtém a sua atenção; •  evite brincadeiras diante das suas dificuldades e evite termos infantis; •  fale claramente, use sentenças e comandos simples e diretos; •  esteja disposto a repetir a frase; •  use questões simples e, se possível, alternativas binárias: ‘isto ou aquilo?’, muitas escolhas podem gerar confusão; •  escreva mensagens com letras grandes e sentido claro; •  quando se perder na continuidade de um assunto, não tente contradizê-la: dê uma pista e siga adiante.


Execução de tarefas - Como fazer quando a pessoa não sabe o que fazer? •  estimule que continue se vestindo tanto quanto possível; •  simplifique armários, roupas e procedimentos; organize as roupas por tipo; •  auxilie-a para pegar suas roupas na gaveta e no guarda-roupas; •  imitar alguém, geralmente, favorece a atividade.

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O que fazer quando ela não reconhecer pessoas ou objetos? •  evite cobranças, tente inspirar confiança e controle da situação; •  pense na possibilidade de fazer jogos com fotos de pessoas próximas e objetos de uso frequente; •  oriente-a a observar o seu ambiente para obter pistas. O que fazer quando ela parece confusa? •  organize o seu ambiente oferecendo dicas sobre como planejar as tarefas; •  cuidado com mudanças físicas no ambiente (troca de móveis de lugar, tapetes etc.) que podem dificultar os referenciais; •  mudanças frequentes de rotina também podem criar dificuldades; •  na solução de problemas discuta sobre o objetivo que pretende alcançar e o que é preciso para chegar lá; •  ofereça alternativas simples.

O que fazer quando ela parece mais desligado? •  tente evitar excesso de estímulos ao mesmo tempo (ambientes ruidosos tendem a ser inóspitos); •  remova possíveis distrações; •  cheque se a pessoa é capaz de lhe ouvir e enxergar adequadamente; •  busque assuntos agradáveis e leves; •  busque estímulos simples mas chamativos (objetos que despertem emoções ou curiosidade, estímulos sonoros ou táteis); •  Incentive-a! •  evite interrompê-la enquanto tenta se comunicar ou executar tarefas; •  simplifique suas atividades de forma que tenha uma e não várias; •  supervisione suas atividades fornecendo incentivo para que seja possível ajustar a sua performance. Muito esforço ainda será necessário para manter o sol brilhando sobre a longevidade e assim garantir uma vida ativa e independente. No momento, nossos recursos continuam sendo a difusão do conhecimento, a conscientização dos cuidados e o fortalecimento das redes de suporte. “Bom sol para todos nós! Só não esqueçam do filtro solar!”


NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração trago a ideia do desabrochar e das flores que vão subindo até o sol como representação da longevidade, do fortalecimento de redes de suporte e difusão de conhecimento. A casa aparece no topo do desenho, em cima do sol, para representar um cuidado e uma iluminação em relação ao assunto. O texto é bastante amplo e conta com muitos dados, pois isso resolvi fazer uma ilustração que trouxesse leveza e simbolizasse tanto as fases dos desafios como o todo.

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Atividade física e declínio cognitivo MARCOS ROBERTO MARTINS RODRIGUES

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declínio cognitivo e suas implicações nas atividades de vida diária são um fardo para a sociedade moderna. Por ser mais comumente identificado na população idosa, mesmo sem a presença de doenças (tais como diabetes, hipertensão etc.), o declínio cognitivo pode passar desapercebido, sendo ignorado muitas vezes no início dos sintomas. O perigo relacionado a esse problema é que quando não acompanhado, ou tratado, ele se torna ambiente propício para o desenvolvimento de outras condições. À medida que a população mundial envelhece, espera-se que o número de pessoas que vivem com declínio cognitivo (incluindo demência) triplique – de 50 milhões para 152 milhões até 2050. O indivíduo que sofre com essa doença necessita de cuidados e suporte na realização de suas atividades cotidianas, desde as mais simples, como organizar as gavetas da cômoda, até atividades

mais complexas, como a gestão financeira ou a higiene pessoal. Isso se deve não somente à função cognitiva de forma isolada, mas também ao complexo comprometimento de funções somatossensoriais – processamento de informações sobre o estado geral do corpo e sobre o meio, que são agravadas com o declínio cognitivo. Comumente associado ao sedentarismo, o declínio cognitivo também causa diminuição significativa no desempenho físico, como por exemplo perda de força muscular, dificuldades com a marcha e piora do equilíbrio, levando a uma interação deficitária com o ambiente em que o indivíduo navega na sua rotina: escritório, transporte público, restaurantes, parques etc. O professor Daniel Wolpert, da Universidade de Toronto, no Canadá, em uma palestra pra lá de interessante na plataforma TED Talk em julho de 2011, explica que o ser humano se move para servir nosso cérebro (alimentá-lo, es-


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timulá-lo, satisfazê-lo), e isso não só é fantástico, como ele mesmo diz, mas em algumas espécies marinhas, assim que o corpo é fixado de modo permanente junto a uma rocha ou fragmento de uma embarcação, doravante não sendo mais relevante mover-se, esse organismo digere o próprio cérebro, já que não “precisa” mais dele. O movimento é uma forma de vivenciar o mundo e a maneira como nos movemos, bem como a forma como percebemos o ambiente ao nosso redor, é relevante para essa experiência. Por muitos anos essa forma como nos vemos no ambiente e como percebemos nosso corpo foi sendo definida de formas diferentes, sendo chamada atualmente de esquema corporal. Tecnicamente falando, esquema corporal é uma representação do corpo que leva em consideração aspectos espaciais (físicos, ambientais etc.) e temporais (velocidade, ritmo, etc.). Essa representação não é sólida e imutável mas, pelo contrário, ela é continuamente atualizada, e integra uma infinidade de sensações e movimentos (sensório-motores), servindo como um guia (um espécie de mapa) para que os movimentos sejam realizados com a maior precisão possível enquanto se adapta às restrições do meio ambiente, como por exemplo quando mexemos no celular enquanto andamos de ônibus e somos capazes de digitar mensagens de texto mesmo enquanto o veículo balança e muda de direção repetidas vezes, sem contar as freadas. O envelhecimento também desempenha um papel na determinação do esquema corporal, especialmente quando consideramos a atualização contínua mencionada acima. Essa defasagem na atualização do esquema

corporal atrapalha não só a formação e integração de novas experiências no nosso “mapa”, mas também o refinamento do mapa já existente. Um exemplo claro é de quando o idoso entra num ambiente desconhecido, com mudança de iluminação e/ou alteração do padrão do piso com o qual ele está acostumado na sua casa. Pesquisas mostram que esses fatores, por mais ordinários que pareçam, são suficientes para precipitarem a queda de um indivíduo que possui algum tipo de declínio no processamento do esquema corporal, ou seja, do mapa. Malone, em 2018, comenta que além defatores externos bem conhecidos que podem gerar acidentes – como degraus mal sinalizados, piso escorregadio etc –, a contribuição dos fatores considerados intrínsecos, ou seja, que partem do próprio indivíduo, não pode ser ignorada, sendo essencial e fonte de um trabalho árduo da medicina física e reabilitação no sentido de prevenção e cuidado do idoso. As evidências sugerem que existe uma relação entre envelhecimento e estruturas espaciais. Isso foi realizado por meio de uma série de tarefas cognitivas e com foco em diferentes domínios cognitivos (como memória, navegação espacial etc). Esse mapeamento prejudicado do ambiente externo geralmente está relacionado à deterioração do hipocampo, uma parte do cérebro que processa, dentre outras coisas, memória e processamento de tarefas relacionadas à navegação espacial. Em geral, a maior dificuldade está na transição entre a alternância de tarefas que exijam o mapeamento do ambiente externo (rua, loja, escada etc) e interno (postura, temperatura, velocidade, reações de proteção etc).


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Por seu papel imprescindível na sideramos o envelhecimento maciço da criação do esquema corporal no desen- população mundial. volvimento infantojuvenil, mas também Estima-se que entre 1950 e 2025 pela sua contribuição efetiva na manu- o número de idosos no Brasil deverá ter tenção da saúde física e mental, precisa- aumentado 15 vezes, enquanto as oumos falar sobre o método mais eficaz e tras faixas etárias aumentarão 5 vezes. mais barato de refinar e enriquecer nosso Assim, o Brasil será o sexto país quanto esquema corporal: a atividade física. ao contingente de idosos em 2025, deA Organização Mundial de Saúde vendo ter cerca de 32 milhões de pes(OMS) define a atividade física como soas com mais de 60 anos. De acordo sendo qualquer movimento corporal com dados do IBGE, no Brasil, em 2006, produzido pelos músculos esqueléti- o número de pessoas com mais de 60 cos que requeiram gasto de energia – anos superou 19 milhões, o que corincluindo atividades físicas praticadas responde a mais de 10% da população. durante o trabalho, jogos, execução de Esse aumento da idade média da poputarefas domésticas, viagens e em ativi- lação traz como consequência maior indades de lazer. Contudo, inclusive como cidência de doenças como a demência, uma forma de desmistificar a atividade responsável por grande impacto na vida física e torná-la mais acessível e inte- dos pacientes e de seus familiares (Pegrada ao nosso cotidiano, é relevante troianu, A. et al., 2010). lembrar que o termo “atividade física” A Organização Mundial de Saúde não deve ser confundido com “exercí- (OMS, 1992), na sua 10ª edição de cio”. Executado de forma planejada, es- classificação internacional das doentruturada, e repetitiva, o exercício é con- ças, (ICD-10), define a demência como siderado uma subcategoria da atividade “evidência de declínio, em simultâneo, física e tem como objetivo melhorar ou da memória e do pensamento (capamanter um ou mais componentes do cidade de raciocínio), suficientemente condicionamento físico. marcada para interferir nas atividades Um exemplo de como a atividade da vida diária, tendo, pelo menos, seis física é relevante para a sociedade mo- meses de evolução e podendo ainda derna, em seu plano de ação global para coexistir alteração nas seguintes funa atividade física 2018-2030, a OMS fo- ções: linguagem, cálculo, julgamento, menta apoio para todos os países no pensamento abstrato, praxias (execução sentido de implementarem abordagens de movimentos coordenados), gnosias integrando todos os parceiros em cada (conhecimento) ou personalidade”. Muicomunidade ou território, visando o au- tas doenças têm a demência como uma mento da atividade física em pessoas de de suas manifestações, e existem doentodas as idades e capacidades. Apesar ças que são exclusivamente a demênde a atividade física ser importante em cia. Um exemplo clássico, a doença de todas as idades, quando falamos de de- Alzheimer é a causa mais frequente de clínio cognitivo e o papel da atividade demência e estudos mostram que idofísica na prevenção do aparecimento e sos com declínio cognitivo apresentam avanço dessa condição, isso se torna maior risco de desenvolver doença de particularmente relevante quando con- Alzheimer. Em resumo, nem todo declí-


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nio cognitivo é sinônimo de demência mas toda demência carrega consigo um declínio cognitivo. Apesar do estigma carregado pela pessoa portadora de demência e sua família, independentemente da origem da doença, é muito importante salientar que mesmo antes do diagnóstico observa-se que o indivíduo já demonstra sinais de um declínio das funções cognitivas. Essas alterações encontradas em funções como memória ou raciocínio, quando começam a se tornar mais evidentes começam a ser chamadas de Comprometimento Cognitivo Leve (CCL). O CCL é considerado como um processo de transição entre um indivíduo saudável e o diagnóstico de uma síndrome demencial e tem como característica principal a preservação da funcionalidade do paciente: ou seja, mesmo havendo prejuízo em alguma função cognitiva, esse indivíduo continua sua rotina de forma autônoma, sendo capaz de executar tarefas da sua rotina de maneira normal com apenas alguns detalhes que são observados por pessoas mais próximas ou quando eventos acontecem de forma inesperada, tais como perder-se num centro de compras ou esquecer os nomes de pessoas próximas etc. É importante esclarecer, portanto, que o CCL e a demência são duas entidades mutuamente excludentes: se uma está presente, a outra deve estar ausente. Dentre as doenças de caráter crônico, a demência é uma das mais importantes causas de morbimortalidade e é o problema de saúde mental que mais cresce em importância e número, com estimativas apontando, com o envelhecimento acelerado da população, um aumento na incidência anual, sendo 0,6%, na faixa dos 65-69 anos e 8,4%

naqueles com mais de 85 anos. Sua prevalência aumenta exponencialmente com a idade, passando de 5% entre aqueles com mais de 60 anos para 20% naqueles com idade superior a 80 anos. Em um artigo intitulado “Atividade Física e Qualidade de Vida”, publicado em 2010, Silva e colaboradores afirmam que independentemente de sexo, idade e profissão, ficou evidenciado que a atividade física acarreta melhoras na qualidade de vida em todos os aspectos. Entre os agentes relacionados com os processos mentais, tem sido evidenciada a prática de atividades físicas para reduzir o risco do desenvolvimento de demência. A prática de atividade física promove aumento do transporte de oxigênio para o cérebro, atuando dessa forma na síntese e degradação de neurotransmissores e inibindo a agregação plaquetária. Petroianu e colaboradores, em 2010, também afirmam que a prática regular de atividades mentais e físicas retarda o declínio cognitivo, reduzindo o risco de demência, podendo ser considerada então uma ferramenta importante na busca da ampliação da funcionalidade cognitiva e para um estilo de vida saudável. Os temas relacionados ao envelhecimento vêm sendo cada vez mais estudados em decorrência do aumento da população idosa no mundo. Nos países desenvolvidos, esse aumento ocorreu lentamente, permitindo um planejamento de políticas públicas para que essas mudanças demográficas não interferissem negativamente na qualidade de vida da população. No Brasil, assim como em outros países em desenvolvimento, esse fenômeno é recente e vem ocorrendo de forma rápida, apresentando para a sociedade o desafio de se


adaptar a essa nova realidade. Enquanto isso não acontece, sugiro que trabalhemos todos no refinamento do nosso “mapa” para que possamos ampliar a nossa zona de conforto física e mental, estendendo nosso mapa para fronteiras não exploradas e não existe forma melhor de fazer isso do que conhecendo melhor a nós mesmos através da atividade física.

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NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração, trago a ideia do cérebro em movimento. Baseado na informação do texto de que o ser humano se move para servir ao cérebro, coloco essa imagem no centro do desenho, com barcos de papel navegando por dentro, poética de oceanos possíveis a serem desbravados e o movimento como forma de vivenciar o mundo. A árvore representa o ciclo da existência, nesse âmbito, é possível visualizar o desenho do cérebro também como semente ou raiz. O aglomerado colorido representa camadas de pensamentos, memórias e caminhos possíveis no espaço.

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Cuidadores de idosos com Alzheimer: desafios reais NATÁLIA MINTO BENEDETTI

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roporcionar cuidado ao outro dor não se sinta capacitado para a taé uma ocupação que envolve refa, o que o leva a desenvolver habilidedicação e compromisso, mas dades por conta própria e sem suporte, também arrasta consigo senti- por tentativas e erros, contribuindo e mentos de gratificação e empatia que muito para sua sobrecarga. o ato envolve, principalmente quando Vale ressaltar que a maior parte quem cuida é um membro da família, um dos cuidadores familiares não foram esamigo ou vizinho próximo, essas pes- colhidos entre os seus para ocupar este soas são denominadas como cuidado- papel, mas se tornaram diante da necesres informais, ou seja, aqueles que pres- sidade. A sobrecarga está presente em tam cuidado não remunerado. mais de 80% deles, os motivos somamCuidar de alguém dependente -se ainda à não divisão do cuidado enpor si só já é um desafio, quando se tre os outros membros da família. trata de uma pessoa idosa com AlzheiEstas circunstâncias são apontamer o grau de complexidade se torna das como grandes transtornos relacioainda maior, isso porque demandas es- nados ao cuidado de quem cuida, em pecíficas são necessárias nesse con- que a insuficiência de redes de suporte texto, e devido a essas especificidades é um dos maiores obstáculos que perque o cuidado se torna tão árduo. É meiam o papel do cuidador, uma vez preciso conhecer, entender e aprender que o foco principal do tratamento em a lidar com determinadas situações de geral é no paciente, mas não em ambos. forma constante, pois os sintomas mu- Portanto, é imprescindível um olhar mais dam dependendo da fase da doença. amplo no qual o cuidador participe efeNesse sentido, não é raro que o cuida- tivamente de todo processo.


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Alguns sintomas são mais comumente relatados pelos cuidadores como de difícil manejo, é o caso dos sintomas neuropsiquiátricos, que desencadeiam alterações comportamentais, queixa reafirmada também pela literatura. Essa e outras manifestações podem ser amenizadas com o uso de estratégias simples e bem direcionadas, como, por exemplo, entender que ao entardecer alguns idosos com a doença podem apresentar agitação e/ou irritabilidade, no entanto, determinados artifícios ajudam a suavizar esse efeito. Outra questão recorrente se refere às Atividades Básicas de Vida Diária (ABVD) muito citada pelos cuidadores, como quando o idoso se nega a tomar o banho ou ainda não se lembra que já se alimentou, gerando incansáveis momentos de entraves. Inúmeras outras demandas permeiam esse cenário, questões estas que podem ser administradas em espaços multiprofissionais que acolhem e orientam, mas que também oferecem voz e escuta, além de proporcionar a troca de experiência entre os próprios cuidadores que, por sinal, têm muito a ensinar e a aprender uns com os outros. Não se trata somente de informar, mas de favorecer a construção de uma rede de suporte linear, que com certeza irá ecoar na qualidade de vida do idoso e do cuidador.


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NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração, trago a ideia da relação de cuidado. Duas pessoas próximas, com corpos­ ‑casas, trazendo as suas subjetividades e suas construções de espaços internos, seus lares. Desta relação de dedicação e compromisso floresce um novo espaço, construído por meio da empatia e do envolvimento. Um novo lar para que o cuidado possa acontecer e florir. O aglomerado de cores interliga os corações e reflete a conexão da natureza do afeto.


Cuidador de idosos: A nova realidade das famílias brasileiras TEREZINHA C. CORBANI

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om o envelhecimento da população brasileira (segundo o IBGE, o total de indivíduos com mais de 60 anos deve mais que dobrar até 2050, saltando de 9,5% para 21,8% da população e ultrapassando 40 milhões), a necessidade de um profissional, capacitado ou não, para cuidar dessa população já é uma realidade que grande parte das famílias brasileiras está vivendo. De um lado temos um novo modelo ou uma nova composição familiar nascida da modernidade, do acesso e democratização às várias formas de informação, oferecendo às pessoas estímulos para que se tornem mais ativas, conscientes dos benefícios de uma alimentação equilibrada, da prática de exercícios físicos, resultando em gerações com mais saúde e disposição, vivendo mais tempo. Dessa forma, essa geração estará sujeita às enfermidades comuns da idade

e a qualquer momento a companhia de uma pessoa mais jovem, que possa ajudar a organizar seu dia, será necessária. Eis que surge a figura do cuidador de idosos, que quase sempre é aquela pessoa que já cuidou de um familiar, ou que se viu num mercado de trabalho sem muitas opções, uma vez que na maioria das vezes não concluiu seus estudos, não possui capacitação profissional e se vê dentro do mercado de trabalho de alta demanda em que ainda predomina a informalidade. Como escolher essa pessoa? Onde buscar? São questionamentos indispensáveis de ambos os lados pois carregam uma variedade de sentimentos que vão do medo à gratidão, da convivência saudável à solidão devastadora, sem contar com novas despesas num orçamento muitas vezes limitado. E esse novo profissional precisa se instrumentalizar, procurar novas


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perspectivas, sair da informalidade para que possa competir em igualdade com outros profissionais que também enxergam nesse público idoso um futuro com grandes chances de sucesso profissional e financeiro. Cabe a esse novo indivíduo inserido no âmbito familiar num momento geralmente bastante delicado, a incumbência de cuidar, amparar, acolher esse idoso, zelando para que sejam preservadas sua integridade física, mental e social, respeitando sua individualidade e história de vida. Inspirada na minha experiência pessoal e numa homenagem à minha mãe cujo apelido era Lola, nasceu Divina Lola Residencial para Senhoras, uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), cujo compromisso é ser um diferencial no mercado. Foram inúmeros desafios e muita aprendizagem. Enveredar por um ramo de atividade completamente diferente. Sair do glamour dos espetáculos teatrais, dos aplausos, do brilho da purpurina para um universo absurdamente diferente exigiu de mim muito estudo, pesquisa, perseverança e, sobretudo, autocontrole frente às inúmeras dificuldades. Ocupar um lugar num universo que oferece várias opções de moradia foi talvez um dos grandes desafios. Não basta acolher, é preciso oferecer às moradoras respeito à sua identidade, dignidade e unicidade e, aos familiares, a possibilidade de acompanhar seu familiar através de visitas diárias, reuniões sociais e várias atividades culturais que oferecemos. Talvez esse seja nosso maior diferencial, resgatar histórias do passado, cantigas, brincadeiras, promovendo o resgate da individualidade cultural de

cada senhora. Para a equipe multidisciplinar do Divina Lola o mais importante é não esquecer que o ser humano envelhece mas não perde sua história e sua importância em nossas vidas. Valorizar essa idosa, reconhecer sua importância e proporcionar momentos em que a finitude tão presente perca sua importância, destacando a promoção da vida em sua totalidade para que nunca perca seu valor, apesar de tantos anos vividos.


NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração, trago a ideia de ocupação de um lugar no mundo e no universo por meio do desenho da mulher com cabeça de casa. Uma moradia em si mesma, um lar emotivo e natural, com um caminho colorido até o coração, um trajeto contínuo para casa. Assim represento o Divina Lola, residencial para senhoras, promovendo esse resgate da individualidade e a valorização da vida.

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A curatela da pessoa idosa NATALIA CAROLINA VERDI

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curatela da pessoa idosa é um tema de grande relevância. Rotineiramente torna-se foco de discussão e desperta a atenção dos que se dedicam aos estudos e aos trabalhos relacionados ao envelhecimento. O tema sofreu importantes modificações nos últimos anos, em especial a partir de 2015, ano em que entrou em vigor no Brasil o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também conhecido como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI – Lei Federal 13.146, de 06/07/2015). Dentre as inovações trazidas pela LBI, há questões terminológicas, já que a nova lei busca pela utilização da expressão curatela e não mais interdição, bem como persegue a inutilização da palavra incapaz à toa pessoa para a qual se faça necessária a curatela, por conta conotação pejorativa que evidenciam. Todavia, não é incomum que muitos ainda utilizem a expressão interdição

e que seja feita, aos que passam pela curatela, a consideração de serem pessoas sem qualquer tipo de capacidade, ainda que pela legislação vigente estas pessoas possam, desde que tenham condições, trabalhar, se casar, votar, entre outros. A terminologia interdição ainda se faz presente no Código Civil (Lei Federal 10.406, de 10/01/2002) e no Código de Processo Civil (Lei Federal 13.105, de 16/03/2015), ambos em vigência e anteriores à LBI. Comumente a curatela é atrelada a idosos, porém, podem sujeitar-se a ela os maiores de 18 anos que se encontrem em alguma destas condições: os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; os excepcionais


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sem completo desenvolvimento mental; e os pródigos. A curatela decorre de uma ação judicial, julgada pelo juiz da Vara da Família da localidade onde o sujeito da curatela reside. Ao ser proposta, o cônjuge ou o companheiro, os parentes, os tutores, o representante das Instituições de Longa Permanência (ILPI) na qual o idoso estiver abrigado ou o Ministério Público (MP) acionam o Poder Judiciário a fim de que seja reconhecido por sentença o comprometimento cognitivo daquele a quem se pretende curatelar e, por consequência, de que sejam estabelecidos os poderes daquele que será nomeado como curador, ou daqueles que serão nomeados como curadores, possibilidade existente a partir da vigência da LBI. É importante se compreender que dentre os que podem propor a curatela não há uma hierarquia, bem como saber que entre os parentes são considerados os que possuem algum parentesco por afinidade. O MP atuará na ação independentemente de ser ele a promovê-la, haja vista que são suas funções, dentre outras, ser um fiscal da lei e proteger o idoso, pessoa que é considerada como parte vulnerável de qualquer ação judicial e a quem é assegurada tramitação prioritária de processos, em especial se tiver 80 anos ou mais. Aquele que propõe uma ação de curatela precisa apresentar, além dos documentos pessoais que comprovem a sua relação com o sujeito da curatela, provas acerca do comprometimento cognitivo dessa pessoa, como por exemplo relatórios médicos, exames de imagens, testes neuropsicológicos, entre outros.

Ao ser distribuída a ação e havendo urgência justificada, haverá a possibilidade de nomeação de curador(es) provisório(s). Nomeada(s) para este(s) encargo, ainda que em caráter provisório, esta(s) pessoa(s) passará(ão) a ter poder(es) para gerir o patrimônio e os negócios do curatelando, poderes que lhe(s) são assegurados por lei. Na sequência, os próximos trâmites processuais serão seguidos, sendo eles, em síntese: citação daquele a quem se pretende curatelar, com abertura do prazo de 15 dias para que se manifeste, se assim o desejar e desde que tenha condições de fazê-lo, designação de sua entrevista pelo juiz, realização de perícia por equipe multidisciplinar, a qual responderá aos quesitos formulados pelo MP e elaborará um laudo, no intuito de se auferir e de se comprovar o grau de comprometimento cognitivo do sujeito da curatela, seguida do envio do laudo ao juiz da causa. A realização da perícia por uma equipe multidisciplinar é de grande relevância, uma vez que o curatelando é um sujeito biopsicossocial que, ao passar por uma análise técnica apta a considerar suas peculiaridades e especificidades atreladas às situações que o levam a ser sujeito de uma curatela, terá a possibilidade de uma maior proteção e de amparo mais amplo à sua autonomia, nos limites em que ela se evidencie. Com o recebimento do laudo pericial, o juiz proferirá uma sentença, na qual aquele(s) que foi(foram) nomeado(s) como curador(es) provisório(s) será(ão) confirmado(s) como curador(es) definitivo(s), determinando a(s) esta(s) pessoa(s) a gestão do patrimônio e dos negócios daquele que passa a ser curatelado, em caráter definitivo.


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A sentença de curatela será registrada no registro de pessoas naturais, disponibilizada no site do tribunal onde tramitou a ação e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, onde ficará disponível por 6 meses, além de ser divulgada na imprensa local uma vez, e no órgão oficial, por três vezes, com intervalo de dez dias, implicando na necessidade de o curatelado passar a ser assistido de forma definitiva por seu(s) curador(es), nos termos da decisão. Existe a possibilidade de ser determinada a prestação de contas pelo(s) curador(es), de acordo com cada situação, uma vez que é(são) ele(s) o(s) responsável(is) por administrar bens e valores que não são de sua(s) propriedade(s). A curatela pode ser revertida, como por exemplo quando o curatelado sai de um coma no qual se encontrava. Podem pleitear a reversão o próprio curatelado, o MP ou um terceiro, com regras e especificidades próprias, a cada situação. O tempo para o trâmite de uma ação de curatela depende de muitos fatores como, por exemplo, do fluxo de trabalho judicial da localidade, o que torna difícil a possibilidade de se estimar uma regra geral a todos os processos. O momento da propositura igualmente é complexo por envolver questões diversas como, por exemplo, a aceitação dos que são próximos a respeito de sua necessidade, a busca por informações, o levantamento de documentos, entre outros. A curatela passou a ser uma exceção desde que a LBI entrou em vigor, já que a referida legislação trouxe como regra a Ação de Tomada de Decisão Apoiada, indo de encontro à política do

envelhecimento ativo. A razão é simples: as pessoas estão envelhecendo melhor e, por não possuírem comprometimentos cognitivos advindos do passar dos anos que as impeçam de escolher o que é melhor para si, poderem optar e escolher quem será(ão) seu(s) apoiador(es) em situações nas quais tenham dificuldades para efetivar a própria autonomia por conta de outras limitações. Todavia, essa possibilidade ainda é distante da realidade brasileira, seja pelo desconhecimento da lei, pela ausência de condições para um envelhecimento ativo ou por outras barreiras a inviabilizar a previsão legal, uma vez que na prática, a curatela ainda é o que mais se observa. Por estas razões, a sua compreensão precisa ser cada vez mais aprofundada, a fim de que não só as terminologias e as conceituações erroneamente utilizadas sejam banidas, mas em especial para que os direitos previstos sejam cada vez mais conhecidos e concretizados, de maneira a se tratar com respeito a si e ao próprio futuro, já que, envelhecendo, estamos todos. `


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NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração trago, como elemento central, a flor de casa cerceada por uma cerca, representando a interdição do idoso com amparo e cuidado. A flor aparece em sua versão mais selvagem e o aglomerado colorido representa a passagem do tempo no céu, noite e dia, sol e chuva, simbolizando momentos e ciclos da vida.


A loucura dos chamados normais DANIELA ARBEX

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uando ainda era uma criança, Sônia Maria da Costa recebeu uma sentença de morte: passaria a vida confinada à exclusão. Com apenas 11 anos, a menina criada sem amor por uma “dona aleijada” – para quem ela era obrigada a cozinhar mesmo sem altura para alcançar o fogão – não era considerada bem-vinda pela vida. Órfã, pobre, rebelde e negra, ela tinha os requisitos necessários para que os donos da razão cassassem o seu direito de existir. Foi a polícia quem a despachou de Belo Horizonte para Barbacena, no início da década de 1960. Tinha chegado ao Colônia, o hospício que, décadas mais tarde, ficaria conhecido como palco do “holocausto brasileiro”, um lugar onde 60 mil pessoas morreram de fome, de frio, de doenças, de solidão. Sônia, no entanto, sobreviveu. Ao contrariar o destino que lhe foi imposto, ela tornou-se resistência. Sem comida,

sem roupa, sem afeto e privada de sua humanidade, a mulher considerada invisível pela sociedade rejeitou ser rejeitada. Queria existir. Queria que sua história fosse um dia conhecida. Não se deixou subjugar nem quando engravidou no hospital, onde o inferno ganhou nome de moradia. Quando soube que dentro dela crescia uma vida, a paciente se agigantou. Um dia, surgiu no pátio do Colônia com a barriga toda suja de fezes. Diante do horror causado pelo seu gesto, ela foi questionada pelos funcionários. “Por que você está fazendo isso?”, perguntou um deles. E a mulher considerada louca porque os outros queriam que fosse assim deu a resposta mais lúcida que aquela gente já ouviu: “Porque esse é meu repelente humano. Porque suja assim deste jeito ninguém vai fazer nada com o meu bebê”. E foi desta forma, com a ajuda do seu “repelente humano”, que Sônia con-


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seguiu trazer o filho ao mundo, o pedaço de si que ela mais amou. Só não conseguiu impedir que, logo ao nascer, o bebê fosse doado sem o seu consentimento. Sônia também sobreviveu a isso. Apesar de a perda do filho ter sido um golpe duro demais, ela continuou a lutar por si e pelos outros internos. Não queria morrer da mesma forma que viveu, no completo anonimato. Desejava ter alguma prova de que tivesse existido, já que seu nome não constava em nenhum documento nacional de identificação. Somente quando uma parcela da sociedade rejeitou o estigma imposto aos indesejáveis sociais é que Sônia viu abrir-se para ela as portas dos porões da insensatez. Finalmente os homens letrados compreendiam que o tratamento em liberdade deveria ser direito de todas as pessoas que se tornaram vítimas de um modelo de atendimento que só fez segregar os diferentes. Quando a antiga moradora de Belo

Horizonte reencontrou o mundo, mais de quatro décadas depois de ter sido retirada dele, tudo tinha mudado: a moeda, os costumes, o país. Só o que não mudou foi o preconceito, que cisma em continuar arraigado naqueles que se sentem mais humanos do que os outros. Mas Sônia não se intimidou. Cinquenta anos após ser parida, ela ganhou identidade e conquistou o direito de ser enxergada. Morreu em 2018, quinze anos após livrar-se das algemas do Colônia. Sua voz, no entanto, jamais será esquecida. Sônia tornou-se a memória de um tempo em que a loucura dos chamados normais dizimou gerações, atravessando o tempo e a história de milhares de brasileiros.


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NOTA DA ILUSTRADORA Nessa ilustração, trago a ideia do desejo da liberdade, de alçar voo nos próprios caminhos intrínsecos e externos, na necessidade de se enxergar a potência dos mundos internos, da voz e natureza de cada indivíduo. Represento a existência da personagem Sônia em um pássaro desenhado com lápis grafite e traços que intuem movimento, densidade e leveza. No aglomerado de cores, represento toda a sua história, subjetividade e memória do tempo.


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NATÁLIA LEMES ARAÚJO Bacharel em artes cênicas, pós-graduada em psicomotricidade e mestra em teatro pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3. É animadora cultural do Sesc Ribeirão Preto e responsável pelo Trabalho Social com Idosos (TSI).

BIANCA COUTINHO DIAS Psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestra em estudos contemporâneos das artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF), 2017. Especialista em história da arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado (FAAP), em 2011. Graduada em psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES), em 2002. Fundou e coordenou o Núcleo de Investigação em Arte e Psicanálise do Instituto Figueiredo Ferraz (IFF), em Ribeirão Preto, entre 2012–2015.


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DR. PAULO FERNANDES FORMIGHIERI (CRM/SP 104.738). Médico geriatra, titulado pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), mestre e doutor pela FMRP/USP, médico assistente da Divisão de Geriatria do HCRP/USP, responsável por ambulatórios de pesquisa e assistência em fragilidade e alta dependência, integrante da Comissão Hospital Amigo do Idoso do HCRP/USP, ex-coordenador e atual membro da diretoria da ABRAz em Ribeirão Preto, diretor técnico da empresa GeriaVida, embaixador do Aging2.0 Ribeirão Preto, Brasil.

MARCOS ROBERTO MARTINS RODRIGUES Fisioterapeuta no Brasil e no Canadá, especialista em Neurologia pela UniFMU, mestre em ciências da reabilitação pela Universidade McGill, professor de educação clinica em fisioterapia e supervisor de estágio na Escola de Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade McGill. Coordena uma clínica interprofissional na cidade de Montreal e faz parte da equipe neuro de cuidados agudos/ intensivos no Hospital Pierre-Boucher na Provincia de Québec.


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NATÁLIA MINTO BENEDETTI Mestra em ciências da saúde gerontológica, especializada em neurociências e comportamento pela PUC/RS, fez aperfeiçoamento de terapia ocupacional em gerontologia pelo HC/RP, é terapeuta ocupacional do Centro de Reabilitação do Hospital Estadual de Ribeirão e coordenadora de atividades do Residencial Vitativa.

TEREZINHA C. CORBANI Pedagoga por formação, agente cultural por profissão. Funcionária do Sesc Ribeirão por 32 anos, com atuação na área cultural de Ribeirão Preto, cidade onde reside e atualmente exerce sua nova profissão de empresária do setor privado na área da saúde.


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NATALIA CAROLINA VERDI Advogada, mestra em gerontologia pela PUC/SP, especialista em direito da medicina pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, especialista em direito médico, odontológico e hospitalar pela Escola Paulista de Direito, responsável pelo blog Direitos do Longeviver, junto ao site Portal do Envelhecimento. É professora, palestrante, autora de livros nas áreas do direito e da gerontologia.

DANIELA ARBEX Autora do best-seller Holocausto brasileiro, eleito melhor livro-reportagem do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2013, e segundo melhor livro-reportagem no prêmio Jabuti (2014).


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SOBRE A ILUSTRADORA Rafaella Rímoli é poeta e artista visual de Ribeirão Preto, autora dos livros de poesia O Haver Flor (Editora Coruja, 2013) e Contínuo Instante (Editora Patuá, 2019). Formada em Letras, trabalha com pintura, ilustração e mediação cultural, promovendo encontros para acessar o saber sensível. Já trabalhou com mediação de leitura para crianças, oficinas de poesia e pintura, dança, canto e educação em exposições de arte contemporânea. Espontaneidade, entrega para o momento e intimidade com o instante estão presentes em seu trabalho.

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SESC - SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES Técnico-social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sergio José Battistelli

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GERENTES Estudos e Programas Sociais Cristina Madi Ação Cultural Rosana Paulo da Cunha Estudos e Desenvolvimento Marta Raquel Colabone Artes Gráficas Hélcio Magalhães Sesc Ribeirão Preto Mauro Cesar Jensen

Sesc Ribeirão Preto Rua Tibiriçá, 50 CEP 14010-090 Ribeirão Preto – SP sescsp.org.br/ribeiraopreto

EQUIPE SESC Ana Paula Fraay, Aline Sagioratto de Castro, Ariovaldo Alves, Cleber Rocha da Silva, Cristiane Ferrari, Douglas Marcelo Bianchi Ramachotte, Érica Dias, Fabio Borsato, Karina Musumeci, Kelly Adriano de Oliveira, Lourdes Teixeira Benedan, Lucas Carbonera Molina, Luciana Carla Zunfrilli, Maria de Fátima Cordeiro Pedrazzi, Matheus Alves de Amorim, Natália Lemes Araújo, Renato Diego Alves de Jesus, Rosangela Barbalacco, Sérgio Henrique de Souza, Thaís Heinisch de Carvalho e Silva, Thais Ribeiro Camarda e Vitor Hugo dos Santos Vieira. DESIGN GRÁFICO Polar, Ltda. ILUSTRAÇÕES Rafaella Rímoli REVISÃO TEXTUAL Samantha Arana


L734 Limites da lucidez / Sesc – Serviço Social do Comércio. Administração Regional no Estado de São Paulo. – São Paulo: Sesc São Paulo, 2021. 88 p. il.: color. Sesc Ribeirão Preto, de novembro de 2019 a março de 2020 ISBN 978-65-89239-02-4 1. Serviço social. 2. Idosos. 3. Envelhecimento. 4. Alzheimer 5. Demência. I. Título. II. Serviço Social do Comércio. III. Sesc São Paulo. IV. Sesc Ribeirão Preto. CDD 616.83 Ficha catalográfica elaborada por Ariovaldo Alves CRB-8/9625

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Este catálogo foi composto na fonte Basis Grotesque Pro. Capa serigrafada em papel kraft, e miolo impresso em papel Pólen Bold 90g/m².


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