EntreFrestas | Curso Circuito de Arte em Rede

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Circuito de Arte em Rede – Reconhecimento de uma coletividade


Corpo coletivo Entender-se enquanto comunidade requer reconhecimento. Algo que seja compartilhado na condição de comum,em micro ou macrorrelações. É por meio das inter-relações que construímos identidades, quando as subjetividades são esgarçadas aos limites de outrem. É na batalha da macropolítica que aquela noção de coletivo, de grupo, de generalidade–tão cara e ao mesmo tempo usurpada pelo cis-tema – se constitui como única possibilidade de contínuo. Ao deslocarmos essas dinâmicas de sociabilidade para o campo das artes, logo compreendemosque o circuito artístico é também (ou principalmente) legitimador de opressões, silenciamentos, apagamentos, quando este se abstém (quase sempre) da concepção de comunidade. A localização de cenas, circuitos e sistemas como possíveis desvios da norma constituiu o núcleo de interesse do curso Arte em rede – reconhecimento de uma coletividade, proposto a partir de

pesquisas realizadas pelo Lastro – intercâmbios livres em arte, de abril a junho de 2018, no Sesc Sorocaba. Pensar a figura do artista como agente articulador de seu meio profissional e do curador como propositor de sistemas foram os pontos principais do curso, que fez uso da cena de artes visuais de Sorocaba como estudo de caso e ponto de partida para possibilidades de redesenhos. A proposta de estudo desenvolvida durante os encontros se baseou em leituras de textos produzidos por artistas e escritorxs brasileirxs que ativam o pensamento anticolonial em seus trabalhos e escritos. Assim, reunindo colaborações que contemplam um pequeno recorte do conteúdo que foi apresentado para debate e reflexão, esta publicação virtual, que será abrigada no site da Frestas Trienal de Artes do Sesc e impressa em formato de zine, se propõe como uma iniciativa de documentação e finalização do


trabalho desenvolvido com o grupo, visando a livre circulação de conteúdo a um baixo custo. São ensaios e trabalhos que contri-

buem com processos críticos, colocando-nos ao avesso das normas hegemônicas vigentes, estimulando a quebra de fronteiras e propondo uma restituição de mundo. Beatriz Lemos


Silvana Sarti


(breviรกrio 3) Musa Michelle Mattiuzzi


Esse texto é um trecho de meu diário. São escritos sobre a minha experiência na infância intercalados com memórias de vida nas cidades em que estive

presente nos últimos 2 anos. São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro, Curitiba,

Buenos Aires... é nos últimos dez meses de migração que resolvi dedicar-me

a escrita e, para ir além de escavar memórias, fiz desse processo de escrever um modo de vida, para não me sentir silenciada diante de tantas marcas de

violências impostas pelas assimetrias históricas. Vivo com 64 quilos, são duas malas de rodas, minha casa nas costas. E nesse período de migração no sul global, escrever sobre o meu processo de vida na infância intercalados com quando vivia na cidade de São Paulo foi para buscar o processo de autoco-

nhecimento. Decidi traçar um raciocínio biográfico e escrever uma memória

fragmentada no tempo, escrever sobre o meu corpo em constante experiência de hiperssexualização e racismo. A escrita foi um modo de trazer à tona a

experiência silenciada a experiência em gangue a experiência racializada.

Isto aqui é um relato, não há preocupação com a linguagem, é um fluxo de

memória palavras soltas despida de moralidade, é um resgate de um período de infância intercalado com as experiências da adolescência, para ir para o além do início da vida adulta. Que assim seja!

Atenas, 2 de maio de 2017. Tive uma infância normativa. Fui criada pelos meus pais, que sempre tiveram uma relação de muito respeito apesar de suas diferenças. Eles estão casados até hoje e se dão super bem, sinto que há uma grande relação de amor entre eles. Fui criada nesse contexto, sendo muito amada como uma menina cis. Lembro que eles dividiam as tarefas de cuidar de nós. Em casa somos dois irmãos, sou a mais nova, cresci sem muitos impactos sociais no que diz respeito à relação afetiva dos meus pais. Nasci e cresci em São Paulo, na zona sul, no bairro Vila Clara. Minhas lembranças são de felicidade, estão guardadas e longe do modo como vivo atualmente...sinto não caber, e eles não caberem no que vivo agora, tinha como referência na infância um grupo de primos, filhos


de tios diferentes, ao total éramos nove. A diferença etária entre nós era muito pouca, entre nove meses a dois anos – (Eu, R, R, F,

D, Ml, D, D e F). Não lembro de um período escolar ruim, relembro que haviam bullyings por conta de cabelo, mas quem fazia muitas vezes eram os meus primos, todos negros. Apesar dos bullyings entre nós, tínhamos um acordo em grupo: nada poderia acontecer com nenhum de nós. Acho que isso aprendemos em casa, cuidar uns aos outros, eram as nossas vidas. Estar sempre em grupo sendo negro, representava algo gangue, e hoje lembro das situações e tenho o entendimento do racismo e por que amendrontávamos os comerciantes que tinham estabelecimentos comerciais na rua da escola: porque estávamos em grupo e éramos todos pretos. Mas depois eles conheciam nossos pais por conta das reuniões da escola e assim o racismo era sublimado e a vida seguia. Eu tento pensar num período escolar marcante e percebo que os vinte e cinco anos de vida educacional foram cercados de racismo e fico pasma. São tantas as violências que eu preferi esquecer apagar. Para uma pessoa negra, viver diante de tantas as violências é um ato revolucionário. Agora tudo o que escrevi deixarei pra trás, vou lembrar dos últimos sete anos que vivi na cidade de Salvador, no estado da Bahia, e deixar pra trás tudo o que o racismo produziu pois não serve para nada e a minha família fica guardada no peito trancada a sete chaves.

Sempre fui vaidosa e de grande curiosidade com meu próprio corpo, e afirmo com felicidade o início da minha vida sexual de caráter promíscuo por conta da minha curiosidade. E não vejo isso como um problema. Ao contrário, percebo hoje, adulta, que a objetificação do nosso corpo negro é inevitável, tem uma epistemologia social branca de exotificação que está além dos nossos cuidados, porque por mais que nossos pais interfiram no nosso processo de tornar-se adulto, porque eu confesso que os meus pais me acompanharam até a vida adulta e agora nesse momento entendo o que eles queriam com tanto cuidado, proteger-me das violências




raciais e sexuais. Um soco duplo que recebemos todos os dias. Sabemos que tem a economia do desejo e nossos corpos dentro do que se chama cultura (barbárie) é tratado como objeto herança da escravidão, e isso vai além dos limites dos nossos cuidados mais íntimos entre si. Tive experiências incríveis por conta da objetificação e experiências tortuosas por conta da exotificação, porque não é fácil iniciar-se sexualmente inserido numa sociedade que narra histórias sobre nosso corpo como lugar para receber violências. E essa afirmação é contraditória, porque minha iniciação sexual foi com um homem branco pro qual dei consentimento – conheci o boy na internet. Hahahahahaha! Homens héteros. E depois com a experiência universitária, parti para o uso do meu corpo de modo visceral. Não sou traumatizada com as minhas relações sexuais e uso do corpo para o sexo, mas prefiro deixá-las apenas nestes últimos parágrafos, uma vez que faço um uso ostensivo do meu corpo para a performance e a pornografia é presente. Sim, como uma grande maioria de mulheres, vivo com o sexo e o dinheiro bem aliados. Não quero correr o risco de narrar minhas experiências que estão em descoberta, mas fica a dica: o corpo todo é o canal. Bom, depois de contextualizar minha experiência vou narrar o entendimento de ter um processo artistico consistente com a minha obsessão pós-acidente que permitiu uma nova proximidade com a cidade de São Paulo para revisitar o meu ponto de partida. Foi doloroso voltar pra São Paulo, cidade que posso dizer que não suporto viver. É uma cidade muito difícil por conta da passabilidade branca, ou seja, é uma cidade racista. E pós-catástrofe um convite marginal para estar juntas assim num canal de cuidado de si que me permitiu hoje viver em Atenas. Tem um mês da minha chegada aqui e já passei um turbilhão de experiências, imersa percebo que é possível caminhar mas ainda há tropeço nos tocos da meritocracia. No berço que apelidamos barbárie, porque não andamos só, temos que nos reconhecer nos espaços e unir forças – estou com minha amiga Jota Mombaça, nos reconhecemos nessa movida.


Ela estava apresentando e eu fui lá ver, desde então conseguimos entender que podemos caminhar juntas, olho no olho. O reconhe-

cimento acontecerá na medida dos anos que conseguimos viver de nossa linguagem, e nos espaços que são majoritariamente brancos aguardamos o pagamento da dívida. Agora vivo um processo e aguardarei o que está por vir…


Carina Cazi


Caio Jade


não falarei sobre antes e depois ou sobre corpos trocados, não usarei categorias da cis-branco-normatividade, disforia, incon-

gruência, transtorno, desacordo, erro, falta, falha; as categorias da cisgeneridade não servem para que eu me pense neste mundo, pois elas me excluem dele. vivemos em uma país que tem o genocídio, o apagamento, o silenciamento e o autoritarismo como PROJETOS DE CIVILIDADE. isto aqui é uma guerra. são cenários do fim do mundo que a civilização ocidental-branca-racionalista criou como ordem e progresso. existe, existe uma fome, uma voracidade por morte, por homogeneidade, por branquitude. limpo, alvo, um mundo ordenado, masculino, coordenado pela santa razão de sujeitos transparentes que teorizam e normatizam as vidas dos seus objetos subalternizados e hipermarcados. existem CIS-temas, as lógicas que se impõem como verdades únicas, que não se aceitam como perspectivas de uns poucos que têm fome de dominação, de destruição. o estupro, a colonização. todos os dias, em grandes e pequenas escalas, são re-encenados os modelos da civilização – GUERRA SANTA GUERRA CIS GUERRA BRANCA. eles se repetem, se repetem, por mais que sejam frágeis, muito frágeis.

é preciso muita repressão e controle, é preciso muito hábito e costume, é preciso invadir, ferir e marcar os desejos mais íntimos para que péssimas ideias se tornem regras supostamente fixas, supostamente estáveis, supostamente verdadeiras. aquilo em que se confia sem questionar – a tal NATUREZA. violência como ESSÊNCIA masculina, inquestionável. a branquitude racional e inteligente que se projeta como portadora ILUMINADA da VERDADE ÚNICA, UNIVERSAL e NECESSÁRIA. que se alastra pelos territórios, pelos corpos, pelas vontades. me apercebo em meu corpo branco atravessado por tais desejos, por tais horrores. me olho, respiro e sigo mastigando. isto aqui é uma guerra e estamos vivendo as ruínas de um mundo que não precisa ser esse, mas que tem sido muito difícil de transformar. a custo de muitas mortes, estou podendo falar aqui, agora.


pelos, seios, músculos, útero, barba, menstruação interrompida, virilidade, cu, cólicas, micropênis, canal vaginal, testosterona, ová-

rios. minha transmasculinidade ininteligível aos olhos dos outros. ao nascer, foram entregues nas mãos dos que me envolviam sentidos que deviam ser impostos sobre meu corpo. vim ao mundo já pré-fabricado pela cultura branca, europeia, cisgênera, heteronormativa, e por aí vai. fui me despindo como quem busca a nudez, fui abandonando sentidos como soldado desertor. trânsfuga. cheguei a vazios, beirei mortes, aceitei algumas. longos adeus e sacudidelas de nervos na saída. fiz-me outro, perdi o mundo. irreconhecível. minha transmasculinidade construída com muita dificuldade. me sinto privado de quem sou, impedido de ter memória, ter história, ter passado. os fios de vida se cruzam e tecem colchas de retalhos difíceis de mapear. vou colocando palavras em lugares, ações em encontros; coleciono objetos, seringas, sangue, cantos. recolho impossíveis rastros, invento muita coisa. fabulo minhas origens, meus caminhos. peço muito pela vidência do para onde ir. teias de sentido, fiandeiras, minhas avós. camadas de história e memórias inacessíveis. o além dos contornos óbvios do corpo.


me concentro na possibilidade de alguma alquimia, alguma transformação nas energias que circulam em mim e à minha volta. o

que fazer com o desejo de parecer ser ELES? – cisgêneros homens; o que fazer com os jeitos e histórias – DELES – impregnadas em mim e expressas por mim, inconscientemente, desde pequeno? vasculho a mim mesmo e me canso e apenas sou; sinto, troco, partilho e aprendo. me perco com facilidade. sinais me trazem de volta quem sou. as cartas me ajudam a ver o presente e me ajudam a entender que vidência é matéria do aqui/agora e do que veio antes, essa é a fortuna; o futuro é mistério necessário, presenteada esperança. talvez esse meu corpo que parece ser o que não é, pois o que é não tem nome ou registro fiel, seja portal de possibilidades que ignoro no mais das vezes, pois não fui ensinado a reconhecê-las. fui desestimulado e impedido. interditado. talvez os outros mundos possíveis sejam agora, tenham sido, estejam sendo às escondidas. trabalhos invisíveis, resistências inominadas. manipulo substâncias e vivencio estados. sonho. é preciso aprender a sonhar, o irmão diz. crio, recrio. encontro, abandono, ressignifico. a mudança e a instabilidade me fazem. confuso, múltiplo. potência de ser muitos e muito mais que só cascas ou normas. é preciso escorregar para criar. é preciso encarar as feridas para tratá-las.


Flavia Aguilera


AndrĂŠ Pinto


carta ao corpo ausente CecĂ­lia Floresta


Beatriz, hoje, parece, abriu-se mais um rio por aqui – afluentes que matam a sede dos filhos ou os seios abertos & chorosos de odoyá, não sei. mas digo: era dia de entrega da antiga casa, fui até lá e não me doeu olhar todas aquelas paredes brancas & cômodos vazios. pelo contrário, senti que alguma coisa em mim se preenchia com aquilo que não mais se ocupava. sentei na escada que dava pros quartos de cima e fumei um cigarro. engraçado, tanto tempo habitando ali e nunca tinha me emprestado dessa forma aquele espaço. daí descobri por que os gatos sempre ali à espreita: melhor ângulo estudado, de onde se podia ver a casa toda sem dúvidas, obstáculos. mas, sim, sobre preenchimentos. reli ontem um texto da Clarke – sabe? lesbianidade como ato de quem resiste – e, fazendo o mesmo movimento escada-cigarro-angulosidade felina, dei nisso: os seres híbridos, nós, sereias, os monstros cujo batismo cartorial um dia impuseram como mácula, aqueles que não se encaixam, que vão dormir mais tarde ou jamais, os sem teto, sem grana ou

economia, sem verdades ou hora marcada, doloridos de açoites, arranhados pelos espelhos da memória litorânea, pardos, retintos lustrosos de sangue & suor, sem serventia que não a servidão, sem deus uno ou retidão. parece, não parece? que nesses corpos habita o vazio, a dúvida ou algo a menos? corpos sem estofo, como que costurados ou remendadas as partes pra formar algo que não existe – ou, pelo menos, imagina-se que não. corpos híbridos, tríbades, tríplices territórios de ninguém ou zonas autônomas temporárias de pele, ossos, tecidos, sangue, membros, órgãos, pelos. mas vazio, não. há, sim, gritos desesperados em luta. a herança da dor que se car-


rega & transmuta em força. há abismos também, de profundidades variadas. porteiras-portais de trancas cerradas. verdes gramados, terra nua, imensidões marítimas do sem-fim.

há o que se quer que exista. mas vazio, não. aqui, não. “a lesbiana descolonizou seu corpo” descolonizamos, descolonizemos por todos os corpos que em si completam & ao seu corpo que em mim faltava. amor, Cecília


Alessandra Rodrigues


Manifesto O Cu do Sul PĂŞdra Costa


As investigações do Cu são teóricas e práticas, sempre. Teoria está na pele e a prática vem da vida. A teoria só existe se existe a

vivência. Ela só se transforma se passar pelo corpo. O Cu do Sul é movimento. Os condicionamentos e sistemas rígidos do corpo não fluem nesses estudos. Não lutamos contra nada. Nossas lutas sempre foram derrotadas. Já aprendemos isso na História do mundo. Somos Mandingueires e Curandeires. Nossa Dança e nossa Ginga é a nossa Luta, a nossa forma de Amar, de Brincar, de estar em conexão com a nossa Comunidade. Somos sempre coletives, nunca individuais. A Malícia é a base de toda a nossa vida contra o projeto colonizador. Não se aprende e não se ensina a Malícia. Nunca nossos conhecimentos seriam reconhecidos se não fossem apropriados por corpos e conhecimentos brancos e/ou europeizados. Nossas vozes não são audíveis. Com isso, temos toda a autonomia e autoridade para fundar esses estudos. Por mais que tentemos, nunca será autorizado como campo do conhecimento pela branquitude. Não precisamos de aprovação. Seguimos criticando as “fantasias coloniais” sobre nossos corpos e, especificamente, bundas. Nossa crítica feroz parte de nossos Cus. Nosso Cu é o nosso poder. Por isso tantas interdições, fantasias religiosas e coloniais sobre nossas bundas. A antropofagia não nos une mais. Já os comemos, como condição imposta violentamente pela educação civilizatória colonial. Agora os vomitamos e os cagamos. Ao Sul do mundo, ao Cu do corpo.


Ella Vieira


Representatividade negra na arte brasileira Juliana dos Santos


A discussão acerca da necessidade de revisão das narrativas hegemônicas nas artes brasileiras tem sido marcada principalmente

pela necessidade de questionar a invisibilidade à qual as experiências negras vinham sendo submetidas pelas instituições educacionais, artísticas e culturais. Se algumas décadas atrás o racismo institucional nas artes era um debate de pouca projeção nas mídias e instituições, nos últimos cinco anos tenho observado uma crescente significativa no debate sobre representatividade e visibilidade negra junto à necessidade de valorização do legado das heranças africanas nas artes do país. E nessa última década assistimos à criação de fomentos direcionados à valorização da produção artística, cultural e intelectual com foco na produção artística das populações negras. O reconhecimento dos Pontos de Cultura, editais voltados para a produção cultural de manifestações de matrizes africanas, comunidades tradicionais, comunidades periféricas, comunidades quilombolas (que foram praticamente extintas no atuais governo municipal, estadual e federal) e tantos outros segmentos que conformam

a diversidade de experiências negras de nossa sociedade, foi um dos fatores que colaboraram para essa realidade.1 Essas ações aumentaram a possibilidade de autonomia da produção artística e cultural, criando fissuras na cena artística nacional por meio da intensa produção artística periférica. E nos últimos cinco anos artistas, intelectuais, curadores e pesquisadores negros têm conseguido um maior alcance nacional e internacional, tensionando o racismo institucional estruturante das relações sociais do país dentro dos sistemas artístico e cultural. Os museus, as instituições culturais, universidades e galerias têm sido interpelados quanto à ausência da representatividade negra em seus acervos e progra1 Do ponto de vista político e econômico, vivemos agora um momento de retrocesso a um brusco corte orçamentário na área da cultura, afetando, assim, todo o campo da arte e trazendo a consequente redução ao incentivo das produções culturais negras e indígenas.


mações, principalmente pelas mobilizações críticas de intelectuais negros nas mídias sociais, coletivos de performance com ações e

intervenções críticas. Instituições que até então nunca precisaram se posicionar diante da baixa representatividade de artistas negros em seus acervos – e tampouco se reaver quanto às suas programações racistas – estão agora na corrida pelos “selos de legitimidade” que os absolvam de sua responsabilidade e que as aproximem de alguma categoria de apoio teórico, seja ela multicultural, intercultural, pós-colonial, anticolonial, decolonial, entre tantos outros conceitos complexos ainda tão pouco desenvolvidos nas formações em artes do país. Não pretendo com esse exemplo banalizar o uso desses conceitos, mas compreendo que todos precisam ser atualizados e considerados em sua devida complexidade e contexto e estar alinhados, de fato, a uma ação prática de mudança efetiva das estruturas de poder das instituições. Como se dá a representatividade negra no quadro de funcionários que ocupam cargos como curadoria, direção, pesquisa e etc.? Essa pergunta tem muito a dizer sobre a real

condição de que os debates acerca da representatividade vêm se apresentando descolados da prática na maior parte desses espaços. Para nós, negrxs, não é novidade a nossa qualidade e quantidade de produção artística. Manuel Querino2 por exemplo, há um século atrás já estava teorizando sobre a produção artística de artistas negros na Bahia. A novidade que reivindicamos é o aumento efetivo do número de artistas, gestores, curadores e profissionais negros nas instituições culturais, bem como a presença desses profissionais em projetos com temas para além das questões étnico -raciais. A demanda de artistas e profissionais negros é ainda, majoritariamente, voltada para projetos vinculados à discussão racial, o que não acontece com os artistas brancos. A presença branca 2 Manuel Raimundo Querino (28 de julho de 1851, Santo Amaro, Bahia – 14 de fevereiro de 1923, Salvador), intelectual negro, líder abolicionista e pioneiro dos estudos da cultura africana na Bahia.


nos museus e exposições nunca é pensada a partir do seu papel na colonização, das heranças advindas do processo escravização,

da sua questão racial e de seu privilégio. Quem vai falar sobre o projeto político de sociedade forjado no pós-abolição, na qual, pela invenção de um “povo brasileiro”, se cunhou na mestiçagem um ideal eugênico de sociedade? A articulação de artistas e intelectuais negros vem de longa data, basta retomar os inúmeros fac-símiles das Imprensas Negras3 do século XIX, assim como a existência de inúmeras agremiações, irmandades negras e escolas independentes, mais conhecidas como “escolas de homens de cor”,4 que já faziam um trabalho fundamental de articulação e difusão da produção artística e intelectual negra e denúncias de práticas e perspectivas racistas escolares. Há pelo menos um século a população negra já via na arte e na educação estratégias de valorização da produção artística e do legado cultural e intelectual dos africanos como ferramenta de resistência e existência. Antes de os conceitos terem sido cunhados, a prática já estava na vida. Agora é a hora da branquitude romper com o desco-

lamento entre arte e vida e se colocar à disposição do desvelamento de si mesma diante do peso da história. A revisão das narrativas hegemônicas pressupõe, então, a problematização e desnaturalização da supremacia da visibilidade e da ocupação branca nesses espaços e instituições. Aí talvez comecemos a viver práticas descolonizadoras.

3 A Imprensa Negra é a presença de inúmero periódicos, revistas e jornais, ligados ou não a movimentos políticos e com variadas linhas de pensamento dedicado a população negra. Ela existe desde 1833 e tem o jornal O Homem de Cor como um dos pioneiros. No século XIX, com as questões abolicionistas, a impressa negra da época gera um grande movimento de massas. Fonte: <www.geledes.org.br/tinta-preta -e-pele-escura-a-necessidade-de-uma-imprensa-negra>. Acesso em 20 maio 2018. 4 DOMINGUES, Petrônio. “O recinto sagrado: educação e antirracismo no Brasil”. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 138, set./dez. 2009.


MazĂŠ Perbellini


Mediação Pra quê? Mediação pra quem? Larissa Martins e Natália Costa


produtores e público? Qual o lugar que o educador/mediador ocupam ou poderia se articula objetos de arte, artistas, curadores, instituições, assumir,Como além do fulgaz microespaço da exposição? produtores e público? Qual o lugar queque o oeducador/mediador ocupar alé Qual o lugar educador/mediador ocupam oupoderia poderiam assumir, além do microespaço exposição? da dependência defulgaz espaços e dainstituições? Qual o lugar que o educador/mediador poderia ocupar além Como fazer para que as trocas e conhecimentos que nasc da dependência de espaços e instituições? Como fazer para que as trocas e conhecimentos que nascem a ormação, exposição, diálogo, não morram pela falta de co cada formação, exposição, diálogo, não morram pela falta de comdo papel do educador/mediador? do papelpreensão do educador/mediador? Fato é, que estudos, formações, experiências divers Fato é,entre que entre estudos, formações, experiências diversificadas no curriculum, conhecer sistemas institucionais, permear cenas e no curriculum, conhecer sistemas institucionais, permear c linguagens artísticas, compreender vertentes educacionais e realinguagens artísticas, compreender vertentes educacionais idades sociais múltiplas, ter a desenvoltura de conversar com amplos públicos com demandas diversas, parece que o compromisso realidades sociais múltiplas, ter a desenvoltura de convers entre os agentes de arte e educação só se encontram onde existe o distanciamento e a demandas ausência da compreensão do lugar e do pa- que o co amplos públicos com diversas, parece pel do educador/mediador. entre os agentes de arte e educação só se encontram ond distanciamento e a ausência da compreensão do lugar e d educador/mediador. INSTITUIÇÃO ARTISTA

OBJETO

EDUCADOR

CURADOR

PÚBLICO

PRODUTOR

Sendo a educação um processo de desconstrução do ser consigo mesmo e também na troca com o outro, o lugar do mediador compreende a proposição do espaço e de ferram auxiliam cada indivíduo ou grupo a estabelecer seus própr


educação um processo de desconstrução do mesmo e também na troca com o outro, o lug compreende a proposição do espaço e de f ada indivíduo ou grupo a estabelecer seus p s, de uma forma proponente ou receptora. Sendo a educação um processo de desconstrução do ser a partir de si consigo mesmo e também na troca com o outro, o lugar do

educuador/ mediador compreende a proposição do espaço e de ferramentas que auxiliam cada indivíduo ou grupo a estabelecer seus próprios processos educativos, de uma forma proponente ou receptora.

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EDUCADOR

INDIVÍDUO MEIO


AndrĂŠ Pinto


Domar o touro à unha: Uma Breve História da Mão de Obra da Manicure e Pedicure Ana Matheus Abbade


para Raquel, Conceição, Kizzi, Letícia, Vera, Joice, Elaine, Elisete, Gisele, Mariana, Milena, Márcia, Neci, Sara, Vivian e Danielle Primeira Nota Para dar início a esta obra de ficção histórica, é preciso considerar a densidade do relacionamento entre a ocupação de manicure e pedicure com o desenvolvimento da minha trajetória em arte; o fato de que, ao abarcar no meu próprio corpo transições físicas e expressões não binárias de feminilidade e masculinidade, teço voluntária e involuntariamente uma rede de contra-condutas em que saberes, políticas, afetos e estéticas são constantemente elaboradas e associadas à práticas expostas. São projetos que tomam a complexidade da experiência vivida como força, matéria e agência de produção, reprodução e imaginação de outros possíveis. (2852 a.C. – 2205 a.C.) Imagine que você está segurando com a mão esquerda um punhado de terra. O orvalho, que limita a profundidade da paisagem, se funde à umidade do suor das mãos que gruda terra na pele. Você limpa as mãos no tecido de algodão da calça, mas suas unhas curtas e lascadas guardam por debaixo da lâmina restos de terra, alimento e sebo. A terra colore levemente as unhas de rubro marrom. Na China proto histórica, era reservado aos líderes mitológicos, também conhecidos como rei-deuses, o cultivo e ornamentos de unhas longas, como forma de virtude soberana e divina. Antigos babilônios e egípcios coloriam suas unhas com substâncias naturais, como pó de henna, pó ou pasta avermelhada feita das folhas secas extraídas dos arbustos de henna. A cor indicava a posição social favorecida. Segunda Nota Ao longo dos anos recentes, me interesso por procedimentos protéticos de bodybuilding com ação específica na aceleração metabólica das unhas; combinações de fundamentos ervanários à cosmética na formulação da forma farmacêutica do verniz esmalte


anabolizante. A interação bioquímica é descrita pela indução de queratinização celular ao envolver a lâmina ungueal de vitaminas

antioxidantes, anti-inflamatórias e cicatrizantes (B6, A, C e E), que, absorvida, se distribui no leito ungueal atingindo a matriz, o eponíquio e hiponíquio, levando ao crescimento e endurecimento da unha. (1027 a.C. – 221 a.C.) Durante a dinastia chinesa Zhou a aristocracia exibia longas unhas adornadas com ponteiras prateadas ou douradas. As joias enfatizavam a distância da aristocracia do trabalho manual e a elevação do trabalho mental e do lazer. Logo, pessoas comuns que fossem vistas portando similares eram condenadas à morte. Os romanos pintavam unhas e lábios antes de irem para a batalha. Terceira Nota Este ensaio foi rascunhado durante o primeiro semestre de 2018, período em que me dediquei à formação e aperfeiçoamento das habilidades profissionais de manicure e pedicure. E assim, em

meio a cirandinhas, alicates, lixas e esmaltes, rascunho este ensaio a partir de uma inquietação que ao meu ponto de vista parecia, por vezes, mobilizar os contornos da sala de aula. Quais transformações ocorreram ao longo do tempo para que a atividade de manicure e pedicure atingisse a atualidade das exigências do mercado da beleza? (0 – 1900 d.C.) Uma manicure cuidava das longas unhas de dedos anelares e mínimos de Cixi, a imperatriz da China moderna. Suas unhas eram protegidas com joias de cloisonné ou ouro cravejadas de rubis e pérolas. Como todas as aristocráticas manchus, Cixi não se vestia ou se penteava sozinha. Europa. As unhas apresentavam-se curtas, moldadas a lima ligeiramente arredondadas. Perfumadas por óleos de rosas, polidas com couro e clareadas com suco de limão e vinagre. Os tratamentos de higiene física para as


unhas eram de acordo com a mão de obra e posição social. 1830. Dr. Sitts desenvolve o primeiro instrumento de manicure: a Cureta.

Este instrumento remove o eponíquio gentilmente sem ferí-lo. 1892. Começam a ser apresentados novos métodos de tratamento e cuidado do eponíquio – cutículas – e unhas. Surgem os primeiros Salões de Manicure. No século XV, os Incas decoravam as unhas com complexas imagens de águias utilizando tinturas vegetais. Quarta Nota A urgência por autonomia era um denominador comum que motivava a reunião cotidiana de quinze mulheres futuras manicures e pedicures, de identidades, classes, racialidades, idades e localidades ímpares. O que tínhamos em comum? Quase todas já haviam tido contato com a atividade a partir de suas mães, tias ou avós. Quase todas já haviam desenvolvido habilidades de cuidar das próprias unhas. Reconhecidas como manicures pelo costume, todas intencionavam a profissionalização como modo de inserção e sobrevivência no mercado de trabalho. Seria preciso, portanto, um giro descolonial para tensionar os rastros que insinuam o panorama hegemônico da indústria e comércio da beleza. Sem pretender respostas à inquietação anteriormente lançada, a complexidade se expande ao passo que percebemos a manutenção colonial da prestação de serviço. A inflamação do tecido social provocada pela precarização compulsória da mão de obra feminina, o trabalho informal como único modo de geração de renda e sustentação individual ou familiar, a vulnerabilização da segurança do trabalho e o abuso psicológico e moral.

(1910 – 1970) 1910. Fundada a Flowerey Manicure Products, primeira empresa de artigos para manicures em Nova York. A empresa fabricava as primeiras lima metálicas para o tratamento de manicure. 1930. Com o avanço da indústria automobilística empreendida por Ford, mulheres começaram a pintar as unhas com tinta automotiva. 1932. Revlon lançou o primeiro esmalte cremoso com


pigmentos industriais disponíveis em farmácias. 1970. Paulo e Edison Scrobrack inauguram a Impala, empresa brasileira de esmaltes que se especializou no embelezamento de unhas. A aplicação de unhas plásticas tornou-se febre.


Esta publicação é uma proposta resultante do curso Arte em Rede reconhecimento de uma coletividade, realizado no Sesc Sorocaba,

dentro do projeto do Entre Frestas, no período de abril a junho 2018. organização Beatriz Lemos

projeto gráfico Filipe Acácio e Raoni

Textos

Ana Matheus Abbade é artista visual, manicure e pedicure.

Caio Jade é Transmasculino e trabalha com performance, escrita e vídeo;

pesquisa masculinidades não-hegemônicas e performances Trans brasileiras. Cecília Floresta é escritora sapatão & estuda lesbianidades por conta e resistência.

Juliana dos Santos é artista, arte/educadora e pesquisadora sobre arte e cultura afro-brasileira.

Michelle Mattiuzzi Negra performer, escritora e pesquisadora , graduada em artes do corpo pela PUC-SP.

Pêdra Costa é performer e antropóloga visual. Seu trabalho perpassa pela estética do pós-pornô e por uma investigação anti-colonial. Colabora com artistas queer internacionalmente.

Circuito de Arte em Rede – Reconhecimento de uma coletividade

Alessandra Rodrigues é fotógrafa e tem investigado cotidiano e contexto. André Pinto é fotógrafo.

Carina Cazi é educadora e tem interesse em experienciações do espaço/corpo.

Ella Vieira é artista visual e sua pesquisa permeia os campos de gênero,

sexualidades, corporalidades e questões socioeconômico na America Latina. Flavia Aguilera utiliza de diversas técnicas visuais para trabalhar assuntos que partem da descoberta da memória popular da cidade

Larissa Martins é educadora, mãe e experiencia as culturas brasileiras em seu corpo em expansão

Mazé Perbellini é artista visual, tem como linguagem o desenho e a pintura. Natália Costa é Mediadora/Educadora/Resistente e o que mais for preciso para poder manter o organismo da Arte Educação vivo.

Silvana Sarti é artista visual e performer. Atualmente cria obras visuais através de áudios.


Esta publicação é um zine para livre circulação. Sua impressão é incentivada pelos autorxs, editora e instituição.

Entre Frestas pretende criar um ambiente permanente de formação em arte

contemporânea, com a finalidade de empoderar e fortalecer a cena artística local, bem como contribuir com um processo perene de reflexão e educação tendo a arte como mote. Tal projeto se insere como uma continuidade entre as edições de Frestas - Trienal de Artes, e apresentará oficinas, cursos e

exposições, além da efetivação de parcerias dos mais variados tipos, com o objetivo de fortalecer as ações da trienal em Sorocaba e região.



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