As faces de Dorian Gray

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AS FACES DE DORIAN GRAY Uma análise sobre uma das principais personagens de Oscar Wilde

Audrei Maria dos Santos Almeida* Diva de Sousa Cavalcante* Edilson Pereira dos Santos* Renata de Oliveira Lisboa* Sérgio de Souza Pires* RESUMO Este artigo analisa o protagonista do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, destacando algumas características da personagem que refletem o dilema Narcísico, a supervalorização da imagem, a ausência de sentimentos, a sensação de vazio, a obsessão por poder e a crise de representação que o homem sente ao buscar a beleza e a jovialidade. Para tanto, como metodologia, foram selecionados alguns dos conceitos da psicologia Junguiana, pois no caso deste romance, a psicologia exerce um papel fundamental, não apenas no sentido de aprofundar o estudo literário como também no de redimensioná-lo e fundamentá-lo, estabelecendo novos alcances e finalidades. Esta pesquisa, promove, ainda, uma reflexão sobre Dorian Gray ser um herói ou anti-herói perante a sua história e a sociedade.

Palavras-chave: Oscar Wilde. Dorian Gray. Narcisismo. Mito. Herói.

............................................................................................................................... * Pós-Graduandos do curso Estudos Linguísticos e Literários do Centro Universitário Santo André. 1


1. INTRODUÇÃO

O Retrato de Dorian Gray é o único romance de Oscar Wilde, um dos grandes escritores irlandeses do século XIX. Wilde nasceu em Dublin, 16 de outubro de 1854 e faleceu em Paris, 30 de novembro de 1900. Nesta obra, Oscar Wilde discute a importância e o valor da arte na vida do homem, além de assuntos como a beleza e a juventude eterna, tudo isso, incendiado pela vaidade. Neste sentido podemos classificá-la como um romance de cunho estético. O livro tornou-se um símbolo da juventude intelectual da época e de suas críticas à cultura vitoriana, além de ter despertado grande polêmica em relação ao seu conteúdo homoerótico. A seguir serão relacionadas à obra questões de arte, beleza, influência externa, transformação, mitos e valores sociais.

2. O DISCURSO DA ARTE

Dorian Gray é uma personagem cuja identidade é moldada pelo seu amigo Lord Henry, que vê em Dorian a inocência e a beleza da juventude. Bem mais velho que Dorian, Henry dispara seus argumentos, muitas vezes em forma de aforismos e com um discurso amoral, contra os valores e a hipocrisia da alta sociedade. Ele influencia Dorian pela busca incessante do prazer, porém, não percebe sua forte influência. Como percebe-se neste trecho do livro: “(...) um homem inteligente ou corrompido não pode ser bonito, pois vai chegar a hora de mostrar seu rosto (...).”

De opinião forte, ele mesmo não segue à risca o que fala, mas Dorian, sim, aproveita a cada momento. Dorian logo no começo do livro é um jovem inocente e puro, como uma criança, em busca da vida. Como é descrito no 2


primeiro capítulo, quando Basil, o autor do retrato, relata que “captou a pureza da alma”. “(...) Eu sou um artista. Eu acredito que todos os artistas põem o seu sentimento em sua arte e, em toda a beleza deste quadro eu pus a pureza que havia em mim (...).”

O ar de inocência de um jovem aristocrata e herdeiro de uma fabulosa herança é o que chama a atenção de Henry, que encontra Dorian com uma mente aberta e com um forte anseio de viver. Infelizmente ou felizmente, do ponto de vista moral, ele é facilmente influenciado pela busca do prazer. Em certo momento, Dorian em conversa com Lady Agatha, a tia de Henry, que descreve como "um homem jovem e maravilhoso" ao que ela responde:

"(...) ele é muito sincero e teve uma bela natureza (...)."

Estas características sobre Henry fascinam Dorian da mesma forma que já tinham fascinado Basil, logo no começo da história. Este poder da influência sobre uma pessoa é prenunciado por Basil, quando este diz a Harry para não mimar Dorian. “(...) Não tente influenciá-lo. Sua influência seria ruim (...).”

3. O ESPELHO E A VAIDADE

O espelho pode ser considerado como um dos temas da obra de Oscar Wilde, pois é exemplificado para retratar a história titular. A imagem de Dorian reflete a sua consciência e sua própria verdade, e serve como um espelho da sua alma. Isso pode ser percebido no prefácio do livro: “(...) Na realidade, a arte reflete o espectador e não a vida (...)”.

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Trata-se da ideia do reflexo que é também uma grande influência mítica na novela: a história de Narciso. Dorian, como Narciso, apaixona-se por sua própria imagem e é finalmente destruído por ele. O hedonismo pregado pelo autor, reflete em Lord Henry, que abertamente aborda a vida como uma forma de arte, buscando esculpir a personalidade de Dorian e tratando até mesmo seus

discursos

mais

casuais

como

performances

dramáticas.

Mais

notavelmente, ele persegue novas sensações e impressões de beleza com a amoralidade de um artista: como Wilde escreve também no prefácio:

"(...) Nenhum artista tem simpatias éticas (...)."

A beleza física de Dorian é o maior atributo. A vaidade é uma consequência, pois todas as ações de Dorian são realizadas através do desejo de sua eterna juventude, desde o começo do livro até o final, com a tentativa desesperada de destruir o retrato: todas as suas atitudes motivadas pela vaidade. Ao longo do romance, a vaidade assombra Dorian como algo maldito e suas ações são movidas por ela, e todas as novas sensações e prazeres são vistas como uma virtude, a mando de Lord Henry, o „corruptor‟. Logo no prefácio, Wilde nos convida a refletir sobre a inevitabilidade da vaidade em nossa própria relação com a arte, quando afirma que é o espectador, e não vida, que a arte realmente espelha. Se nós nos vemos na arte, e encontramos a beleza da arte, nós, assim como Dorian, somos na verdade admirados pela nossa própria beleza. “(...) Podemos perdoar a um homem por haver feito uma coisa útil, contando que não admire. A única desculpa de haver feito uma coisa inútil é admirá-la intensamente (...).”

Uma das grandes questões filosóficas levantadas por este romance é a de localizar a responsabilidade pelos erros de uma pessoa. Se a pessoa se engaja em uma leitura moralista, O Retrato de Dorian Gray pode ser visto como uma lição de assumir a responsabilidade por suas ações. Dorian tem por conta dos discursos de Lord Henry a fonte de sua corrupção. No entanto, ao 4


contemplar as lutas de outros, Dorian se culpa por viver intensamente, se sente como um pecador e põe a culpa em si por sua queda. “(...) Não se case nunca, Dorian. Os homens se casam por cansaço; as mulheres por curiosidade; ambos ficam decepcionados (...).”

Na sequência, Dorian responde que não acha provável que se case: “(...) Estou profundamente enamorado. Este é um dos seus aforismos. Ponho-o em prática, como tudo o que você diz (...).”

4. A IDENTIDADE DE DORIAN

Devido ao discurso de Henry, a identidade de Dorian é moldada e assume uma nova perspectiva quando começa a aproveitar a vida pelo puro prazer. Ele demonstra para o mundo, a pureza, a juventude e a beleza, porém a sua real identidade era demonstrada no retrato que envelhecia, enquanto ele permanecia jovem. Para Hall (1992), o sujeito do Iluminismo é entendido como totalmente unificado desde seu nascimento, dotado das capacidades de razão, consciência e ação, passando pela ideia mais recente do "sujeito sociológico" que, se forma nas relações com outras pessoas que mediam seus valores, sentidos e símbolos expressos em uma cultura. O autor, projeta estas acepções devido as identidades culturais, à medida que internaliza-se tais significados e valores, alinham-se sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que se ocupa no mundo social e cultural no qual vive o sujeito. Ou seja, o mundo exterior é que estaria em processo de mudança, fragmentando o indivíduo e obrigando-o a assumir várias identidades, como ocorreu com Dorian. Para Hall, o sujeito pós-moderno, não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente, por estar sujeito a formações e transformações contínuas em

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relação às formas que os sistemas culturais o condicionam. Em outras palavras, Hall diz que: “(...) O sujeito pós-moderno é definido historicamente, e não mais biologicamente (como preferem os que defendem identidades raciais originais, mas sem bases científicas), porquanto o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, afetadas tanto pelos processos de socialização quanto de globalização dos meios de comunicação e informação (...).”

Com isso, a sociedade em que vive o sujeito não é um todo unificado e monolítico, uma totalidade, que flui e evolui a partir de si mesma, pois está também constantemente em transformação, sendo descentrada e deslocada por forças externas. Dorian Gray, se vê em uma crise de identidade, às vezes se assume como um jovem inocente, outras como uma pessoa corrupta e imoral que busca a todo tempo ser um homem bom. Aproveitar a vida ao máximo não eram bons atributos de uma pessoa com consciência social. Este detalhe é bem explícito no livro.

5. ASPECTOS MITOLÓGICOS NA OBRA

Dorian Gray tomou consciência de sua beleza e de sua efêmera juventude através da obra pintada por Basil, para quem o retrato representava um novo conceito em arte e seu melhor trabalho. Segundo ele, o quadro definia toda beleza da arte grega, que é a harmonia e perfeição. Pode-se relacionar a obra de Oscar Wilde com o mito de Narciso, figura que se encantou com sua beleza, refletida na água, e a quem tal encanto ocasionou sua própria morte. Outro fato que aproxima Dorian de Narciso é que ambos eram inocentes antes de tomarem consciência de suas belezas. Além disto, Narciso era um caçador que se perde do grupo em uma floresta e encontra Eco, uma linda jovem, que ao vê-lo se apaixona e declara seu amor. O jovem caçador, no entanto, a rejeita, provocando a destruição dela. Eco 6


passa a viver solitária na escuridão de uma caverna. O mesmo acontece na obra, O Retrato de Dorian Gray, pois as pessoas que realmente amam o rapaz acabam morrendo ou sendo infelizes por sua causa. Há uma ligação também no espaço físico, ambos iniciam sua trajetória em lugares onde há muita luz e vida, que é o caso da floresta e do jardim. Wilde utilizou os contrastes entre a luz e a escuridão: onde havia luz, havia mais felicidade e vida, mas onde havia a escuridão reinava a tristeza e a morte. O contraste entre luz e escuridão, também está presente em trechos bíblicos que dizem que Deus separou a luz da escuridão. As pessoas que conhecem Dorian vivem na luz, mas quando passam a ter relações mais próximas com ele são levadas a viver na escuridão. Foi o que aconteceu com a jovem que o tinha por “príncipe feliz”, que cometeu suicídio após ser deixada pelo rapaz. “Gray” em inglês significa cinza, isto pode remeter uma reflexão a outro mito também, que é Tanatos que simboliza a morte, que também pode representar tristeza e escuridão. O próprio nome “Gray” nos remete à morte, pois os mitos de Tanatos e Parcas simbolizam o fim de tudo, que também podem ser representados pela escuridão. Também pode-se comparar a história de Dorian á de Adão e Eva, no sentido de que os primogênitos de Deus, que viveram no jardim do Éden, que era um lugar bonito, representavam a inocência, a pureza, a mudança, a desobediência, o pecado, o amor e a morte; herdaram os atributos ruins porque desobedeceram ao soberano, quando acabam comendo o fruto proibido, que era da ciência do bem e do mal. Adão e Eva praticaram o ato faltoso, segundo a bíblia, porque foram seduzidos ou enganados pela serpente. Henry também de alguma forma seduz Dorian, despertando nele uma vontade de ser belo para sempre. Assim, a serpente pode ser comparada com Henry, pois ele representa a tentação, a mudança e a morte. Já Basil pode ser comparado a Deus, pois como autor da obra, passa a representar o papel de Criador. Além disto, pode-se vê-lo como Cristo, pois pelo amor que tinha a Dorian, tentou salvar ou modificar a alma deste e acabou morrendo por isto. Na obra, observa-se uma fusão de mitos gregos e cristãos que se encontram dentro de um mesmo tema, reunindo os mesmos significados, as 7


mesmas lembranças e se fundem em uma mesma linha de pensamento e raciocínio, pois para que se compreenda a história da humanidade, deve-se procurar entender e conhecer os mitos que regem o mundo e revela a sociedade.

6. DORIAN GRAY: HERÓI OU ANTI-HERÓI

Definir Dorian como herói ou anti-herói não é tarefa simples, uma vez que todo julgamento tende a caminhar por conceitos de bem ou mal e porque a visão de herói está atrelada a personagens mitológicos, ou aos superheróis que, com suas atitudes heróicas, são capazes de grandes conquistas, que os tornam admiráveis. No caso de Dorian, pode-se dizer que ele está bem longe de ser admirado por suas atitudes, de forma que pode-se concluir que ele é um antiherói. No entanto, se forem consideradas as teorias de Joseph Campbell , no livro O herói de mil faces, acerca do que se pode chamar de herói, é possível observar que Dorian possui traços de um verdadeiro herói. Para Campbell, herói não é apenas aquele dotado de virtudes sagradas, que luta em prol da humanidade, mas sim alguém que sai de sua vida cotidiana para viver aventuras que o levarão ao autoconhecimento, ou como ele próprio diz: “(...) a uma jornada pelas regiões da psique, onde residem as dificuldades, a fim de que elas sejam esclarecidas e eliminadas (...).” Ao se envolver com Henry, Dorian passou a descobrir, no mundo e em si, coisas que jamais poderia imaginar. Um exemplo disto é a descoberta de sua beleza e do impacto que ela causava nas pessoas, descoberta esta que o fez desejar ser jovem e belo para sempre, além de utilizar sua beleza para induzir e enganar as pessoas. Se considerar o conceito de Campbell no que diz respeito à trajetória do herói, - que sai do cotidiano e inicia–se em aventuras, encontrando forças para obtenção da vitória, após retornando com poder de trazer benefícios para seus semelhantes- pode-se pensar que a trajetória de Dorian o torna um anti-herói, 8


pois tudo o que ele fez foi em prol de seu próprio bem, nenhuma de suas atitudes são dignas de se tornarem exemplar, mas será mesmo que ninguém desejaria levar uma vida como a dele? Ora é claro que muitas pessoas, ainda que não admitam, no fundo desejariam ser jovens e belas por toda a vida. Isto faz da figura de Dorian um herói, afinal ele foi uma personagem que realizou seus desejos, independente de serem bons ou maus. Ele conseguiu permanecer jovem a vida toda, conquistou muitas pessoas com sua beleza e teve muitas delas em suas mãos, exerceu sobre elas um poder dominador, e isto pode se tornar algo digno de plena admiração por parte de pessoas como Henry, que se maravilhava com a aventura encantadora do jovem rapaz. Além disto, Dorian era contemplado por muitas pessoas e talvez estas, se tivessem oportunidade, fariam a mesma escolha que ele fez. Campbell define a trajetória do herói em três momentos: Separação - momento em que o herói decide sair de sua vida cotidiana, e embarcar na aventura; Iniciação – momento em que iniciam suas aventuras; Retorno – volta do herói transformado. Analisando a trajetória de Dorian, verifica-se que a separação ocorre no momento em que ele conhece Henry, passando a preferir sua amizade à de Basil, pois este último representava sua própria consciência, razão pela qual, quanto mais maldades cometia, mais o evitava. Já a iniciação ocorre quando Dorian, influenciado pelas ideias de Henry, deseja que seu retrato envelheça em seu lugar, para que possa seguir jovem e belo por toda vida. Disto segue ainda a consciência que ele toma de sua beleza, e seu desejo de ser admirado e amado por outras pessoas. O retorno de Dorian se dá no momento em que ele, após cometer muitas maldades, contempla, espantado, a imagem medonha de seu retrato, de expressão envelhecida e rude, retrato da maldade que se escondia por detrás de sua bela feição. Ou seja, é neste momento de arrependimento, que ocorre o retorno do herói, que volta em si, desejando ser uma pessoa melhor, acreditando que ainda haveria uma chance de se redimir. E foi este sentimento que o levou a sua própria morte. Temos isto exposto no seguinte trecho:

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“(...) Seria certo que ninguém jamais poderia transformar-se? Então sentiu um ardente desejo de reaver a imaculada pureza de sua adolescência rósea e branca, como uma vez lorde Henry a definira (...).” A transformação é muito bem representa nesta parte, pois Dorian, ao se ferir com seu punhal e ao cair morto, deixa de ser jovem e belo, e assume a feição do retrato, transformando-se num velho de expressão maléfica. Sendo assim, a conquista de Dorian passa a ser sua própria morte. Após tanto tempo de glória, ao se deparar com sua verdadeira imagem, ele tenta mudar, mas era tarde, já havia deixado escapar todas as oportunidades que tinha de ser bom, estava feito, não havia como voltar. Alguns heróis, quando estão perto de conquistar sua vitória, recebem algum tipo de sinal que faz com que eles não desistam, com que sintam o presságio da vitória. No caso de Dorian Gray, não é o presságio da vitória que aparece, mas sim o da derrota. Este momento ocorre quando ele se vê diante da morte, ameaçado pelo irmão de uma garota com quem havia se relacionado no passado e que havia se suicidado por sua causa. Dorian sentiu medo e chegou a se arrepender das coisas que fizera. Assim mesmo, ao ver-se livre daquela situação, continuou seu caminho de maldades.

7. ASPECTOS PSICOLÓGICOS EM DORIAN

A iniciação da trajetória do herói para Dorian se dá no momento em que conhece Henry, conforme foi demonstrado anteriormente. Até então, Dorian ainda se encontrava no estágio infantil da consciência. A partir deste encontro é possível dizer que houve a liberação da libido, pois, ao ser apresentado ao mundo sob uma outra perspectiva, Dorian deixou a forma de transferência pessoal e infantil que até então se resumia em permitir que sua beleza fosse apenas reproduzida por um pintor e passou a fazer uso desse atributo para desvendar um mundo que, para ele, até então era desconhecido, além disso, passou a realizar conquistas, também usando seu maior recurso, a beleza.

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Henry apresenta a Dorian uma vida que era por ele desejada, mas, que não sabia que poderia ter. Foi como se acordasse para um novo mundo, no qual passou a ver em sua beleza a possibilidade para realização de muitos desejos até então obscuros, ao despertar para esta nova vida, seguiu sua inclinação até as profundezas do inconsciente e lá vivificou o que até então, jazia adormecido. De forma inconsciente, passou a ser influenciado diretamente pela sua sombra. Segundo Jung, a sombra é o lado obscuro que se encontra em todo o ser humano, o qual não é aceito pela sociedade, isso porque representa o que é considerado mal e negativo dentro dos padrões estabelecidos culturalmente e que circulam no inconsciente coletivo. Jung, em sua obra Estudos sobre a Psicologia Analítica, apresenta a vida em dois períodos, o primeiro sendo o período da manhã, este é representado pela juventude, já o segundo refere-se ao entardecer, representado pelo homem adulto, já partindo para a velhice. Diz ainda que, a vida do homem é constituída de dois objetivos: o natural e o cultural. O natural consiste na procriação dos filhos e todos os serviços referentes à proteção da prole, para tanto se faz necessário posição social e dinheiro, neste caso, a natureza e a educação ajudam. De forma diversa o objetivo cultural, não ocorre de forma natural e instintiva, ao contrário, este requer um esforço muito maior, isso porque existe um falso orgulho que nos faz acreditar que o velho tem que ser como o moço, ou, pelo menos fingir que o é, mesmo que, no íntimo não esteja convencido disso. Essa dificuldade torna a passagem da fase natural para a fase cultural tão difícil e amarga, o que faz com que muitas pessoas se agarrem às ilusões da juventude para tentar salvar um resquício dessa fase. Foi exatamente isso que ocorreu com Dorian, ao realizar seu pedido para que não envelhecesse, agarrou-se às ilusões da juventude, e nela permaneceu até a sua morte. Jung define fascínio como “um fenômeno compulsivo, desprovido de motivação consciente, isto é, não é um processo volitivo, mas um fenômeno que surge do inconsciente e se impõe à consciência, compulsivamente”. 11


É possível dizer que Dorian não atingiu nenhum dos objetivos, nem o natural nem o cultural, vivendo um fascínio pela beleza e juventude. Suas experiências foram baseadas na luxúria, no prazer, no orgulho e no egoísmo. Muitas vezes, teve insights em que sentiu a necessidades de transpor o limiar entre a fase da manhã e a fase da noite, porém, o fascínio o impediu. Basil, que conduz a história, era uma pessoa equilibrada, que se deixou fascinar pela beleza, mas que buscava manter uma vida equilibrada, exercendo na vida de Dorian o papel da consciência, que está sempre pronta a nos alertar. Porém, em um momento crucial, onde ocorre o encontro entre ambos e que Basil tenta persuadir Dorian sobre o que estava fazendo da sua vida, Dorian o leva até o quadro e mostra o que havia ocorrido na verdade, diante deste ato, culpa-o pela sua desgraça e, sendo tomado pelo ódio, mata aquele que ainda poderia ajudá-lo a se reconstituir, a fim de transpor o limiar da manhã para a noite. Ao realizar este ato, tomando como base ainda a obra já citada de Jung, é possível dizer que o que Dorian realmente desejava era libertar a sua individualidade da psique coletiva e resgatar a sua verdadeira identidade que estava dominada pela persona. Para Jung, persona é a representação do que somos diante e para a sociedade, é o desejo de agradar e impressionar, mesmo que para isso os desejos pessoais sejam suprimidos a ponto de se perder a verdadeira individualidade, a persona não passa de uma máscara da psique coletiva. Todo sujeito têm uma persona e uma individualidade, pois, na sociedade representa-se diversos papéis de acordo com a situação; o problema se estabelece quando se esquece da individualidade e passa-se a viver apenas a persona. Nesta situação tende-se a ignorar os chamados para a realidade. No caso da nossa personagem a importância atribuída à persona foi o motivo maior de sua degradação enquanto ser humano, de forma que deixou de exercer o papel que lhe cabia como possível herói dentro dos padrões normais e passou a exercer a função de anti-herói.

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CONCLUSÃO

A aventura de Dorian consistiu em perder-se em suas próprias atrocidades. Destruiu toda a possibilidade de se tornar uma pessoa melhor, na medida em que as oportunidades surgiram. Diante de certa possibilidade de reconhecer seus erros, ou até de arrepender-se deles, resistiu fortemente, e as escolhas que fez o tornaram cada vez pior. O egoísmo, o egocentrismo, a frieza, a maldade de Dorian são representados em sua complexidade psicológica, social e ética. Talvez, estas sejam as virtudes de Dorian, é possível pensar na falta de consciência como uma virtude que poucos homens são capazes de alcançar por estarem presos à consciência e aos valores da sociedade. Isto é marcado na obra no momento em que Dorian é apresentado a Henry, que é, em grande medida, senão o responsável, o grande incentivador de suas transformações. Ao conhecer o amigo do pintor, como já foi dito, Dorian faz a sua escolha, e entre Basil e Henry, duas personalidades distintas, escolhe Henry. Dorian mudou sua forma de ver o mundo, passou a encará-lo com malícia e frieza, aos poucos foi se desprendendo dos valores, passando a praticar maldades que não pesavam em sua consciência. É possível dizer que o caminho percorrido por ele foi o de eliminar sua própria consciência, tentou isto ao matar Basil, no entanto, mais tarde viu que o problema estava nele mesmo, na forma chocante como enfim se reconheceu. Se Basil representa a consciência, o pudor, Henry ao contrário, representa a tentação, pois apresenta a Dorian os prazeres da vida, dizendo que estes não poderiam deixar de ser vividos por valores tolos impostos pela sociedade. Esta situação nos remete ao mito de Adão e Eva, como foi dito anteriormente. Sendo assim, conforme pode verificar, do ponto de vista da questão moral, Dorian pode ser considerado um anti-herói, pois suas práticas não são dignas de admiração. 13


No entanto, sua trajetória também pode torná-lo um herói, afinal ele foi alguém que abandonou sua forma de viver e ver o mundo e passou por transformações, foi em busca de aventuras que o levaram a conhecer mais de si e do mundo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAMPBELL,

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O

herói

de

mil

faces.

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Ed.

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WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Nova Cultural, 1996.

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