Eu e a Srª do Pranto

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Nota .este blog é pessoal, e por isso ,de relativo interesse, senão para a sobrinhada. Lerá quem o quiser fazer ,depois de avisado)

Eu e …. a Srª do Pranto

São em alguns momentos contraditórias as lembranças que me ocorrem, com o festejos da ARª do Pranto, acontecimento religioso-pagão, desde sempre muito ligado à minha família paterna: os Fonsecas, naquele tempo em que a família era como que um clã. Não tive a felicidade de conhecer o patriarca, o Prof. Fonseca, meu avô, homem de uma personalidade muito vincada e própria, onde a dureza, a exigência e a ética, atingiam valores de excepção. Dele ouvi relatos que muito influíram na minha postura perante a vida. Muito ligado ao Convento, à Capela e à sua remodelação, professor da segunda Escola de Ílhavo, sua propriedade (como o eram as Escolas dos Moitinhos e Gafanha de Aquém) o Avô foi um dos maiores de Cimo de Vila. Este «maior» ,era um apelido advindo de uma célebre história, a construção da estrada Ílhavo –Gafanha da Maluca, que se pretendeu ser financiada pelos «40 maiores», expressamente convocados para o efeito. Ora, o maior dos maiores, era então, dizia-se, o Padre Manuel Nunes da Fonseca, meu tio avô. Vamos lá saber como o Padre arranjou tal fortuna, e como a transmitiu. Nunca me falaram de tal história. Por isso a Família esteve sempre envolvida nos festejos em honra da Senhora (a pietà á portuguesa).


O meu tio Avô, José, era um exímio tocado de concertina. E para lá disso, um «cantador ao desafio» de excelência, que parecia ter resposta para todos os introitos colocados na contenda. Vinham cantadores afamados das redondezas, bater-se com ele, em público, em local combinado. O Tio Zé, era o homem que guardava o Arco da Festa, e era na sua imensa eira que o mesmo era reparado, anualmente. Matador de porcos (para lá da sua lavra),quase que diríamos, oficial do ofício, de Cimo de Vila, a cegueira fê-lo passar as facas ao seu filho único, meu primo Manuel Fonseca. Com a recomendação de, mais tarde, elas passarem para o mais novo Fonseca. Que era eu!!!...ora vai-te …eu que não me atrevia a matar um frango, ia um dia manusear aqueles facalhões (?!)….O pior é que a família parecia acreditar, e sempre que havia matadela, lá tinha eu de ir ajudar o Manuel, a limpar(lavar os gorgomilos) ao pobre bicho,a ver se estava bem amarrado pelo pernil, segurar-lhe bem «pezunho» encolhido, e ver o espectáculo horrível do facalhão …uma…duas…três vezes…. ir buscar todo o sangue ao animal. Não aquilo não era espectáculo que me animasse a desejar ser, o herdeiro das facas ,se bem que demonstrasse nata aptidão para com elas proceder ao desmanchar do porco. Bem voltemos á Srª do Pranto… Até certa altura tudo lindo. O pior é que, chegada a idade dos namoricos, estivesse onde estivesse, houvesse o que houvesse – e quase sempre havia: – regatas, bailes etc. etc. – eu teria de comparecer, ainda que a mau gosto, em Ílhavo, e por ali ficar todo o tempo da festa. Para lá da parte religiosa, em que não era obrigado a participar – à excepção de uma ou duas vezes acolitar o P.Angelo, na missa –,os festejos tinham o seu cartaz de marca, que os distinguia na emulação bairristra com os de «lá de baixo», na degustação excessiva de vitualhas e iguarias. Senhores de grandes e fartas casa, andava-se de uma para a outra, em visita «das capelinhas» dos primos, parecendo que já não nos víamos há anos (quando o mais certo era ter lá estado na semana anterior).Só que agora em visita mais demorada, com ida á «mesa da cozinha de dentro», se o primo ,nesse ano, tivesse recebido a «vara de Juiz». Em casa dos meus Avós, era uma catrefa de caçoilas pretas ,onde o «chibo» era cozinhado com todo o saber e arte:


-Oh Virginia (a cozinheira) cuidado :olhe que o Sr Dr. é muito esquisito no carneiro. Oxalá que o Alpoim(o fornecedor do animal) ,nos tenha servido bem. Ferveu bem ,na hortelã? E esta era fresquinha, bem cheirosa ? As caçoilas depois de prontas, muito tempo antes da festa, eram ensacadas, e depois penduradas, na frescura do poço. Um enorme poço que mantenho ( embora sem as caçoilas….). O almoço de 15,feito na casa da Escola, em Cimo de Vila, no pátio enorme, debaixo de frondosa parreira,e era reservado à Família mais chegada. À noite vinham jantar os amigos ( Dr Amilcar, Teiguinha, dr Julio Calisto, Tio Dorindo etc. etc.) Em qualquer das comezainas lá estava a caçoila, depois de previamente fervida três vezes. E tinha de chegar á mesa em cachão. Senão era logo recambiada.

À tarde era a procissão. As Irmandades, ladeavam os anjinhos de vestimenta a condizer, onde pontificavam as asas brancas, que era imaginado levá-los a passear pelo céu. Vinham os andores, enfeitados, jardins prodigamente floridos, sendo o da Senhora, o último. Era seguido pelo «pálio» que albergava o Priorado, conduzido por figuras gradas da comunidade. A banda marcava o compasso, e era seguida por multidão que engrossava a fileira dos adeptos do Orago.

A propósito do andor…. tinha acabado o sétimo ano, e comigo, o Zé Balseiro, o Malaquias e o Álvaro, rapaziada estudante de Cimo de Vila. Convencidos do bom olhado do Orago, todos prometemos, se as coisas corressem bem, levar o andor na procissão. Quando fomos buscar (a miniatura,veja-se bem!!!!) à «Capela do Morgaqdo da Srª da Nazaré, constatámos que apesar de miniatura,o Orago ( que diziam ser uma réplica pequena) era todo feito de pedra de granito, tendo um peso de se lhe tirar o chapéu. Vamos desenrascar isto… se bem o pensámos, logo o fizemos A primeira coisa foi


tirar as costas, ao dito, substituindo-as por palha. Ainda por cima, a procissão, nesse ano, ia dar a volta ao Cruzeiro (o que nem sempre sucedia). E lá começámos …o nosso calvário. Levar a Senhora a percorrer as vias sacras do Cruzeiro, vir à Igreja Matriz, e voltar a Cimo de Vila. Foi um caso sério. Eu e o Malaquias, à frente, mais baixos, apanhávamos com o peso, acrescido da componente da deslocação, inclinada. E por vezes andávamos aos baldões. Foi preciso recorrer aos garfeiros (?) (devem ter um nome próprio, as varas com a muleta para pousio nos momentos de paragem, metidos nos varais) amiúde para nos acudir. Lembro-me que só não chorei por vergonha. Mas raios (!), um «Fonseca» ir-se abaixo das canetas, era miserável. Depois soube, que, afinal, todos estivemos com vontade de desistir. Mas pela mesma razão, por respeito aos nossos nomes, cerrámos dentes, retesámos músculos e levámos a Senhora, sã e salva, a bom porto…(ando a descontar pecados desde então…).À noite estávamos todos encangados, a tratamento de pachos quentes, para safar as pisaduras.


O arraial da festa tinha lugar à «sombra» do Arco imponente. As tendinhas dos bolos (suspiros – de que eu gostava particularmente –, bolos de gema ,cavacas, etc), as tasquinhas de «comes e bebes», a mesa da vermelhinha (onde eu perdia tempo para decifrar o enigma),a quermesse, o balcão do tiro às latas, eram locais por onde o povo ia gastando a noite. Lá para as 11 da noite, havia o ponto mais esperado: -o concerto das bandas. Entre os temas reproduzidos, os assistentes deslocavam-se, de coreto em coreto (lembra-me de ver a Musica Velha, sob regência do Prof.Guilhermino, e a Musica Nova, sob a batuta do maestro José Morgado, em franco despique que levava ao rubro a assistência ,sucedendo, não raro, o desforço físico),para melhor ouvir os acordes(e as desafinações…).Os maestros –ouvi dizer– tinham estratégias delineadas, em que uma peça de uma das bandas, de determinada dificuldade, levava logo o outro contendor, a atacar, com peça, ainda (!), de mais complexa execução. Durante a exibição de cada peça reinava um silêncio sepulcral; no final, as palmas . A intensidade e duração, das mesmas, levaria ao reconhecimento do vencedor do duelo. ---------------------------------------------------------------------------------------------O dia seguinte era o que mais me atraía ao largo da Capela. Era tempo para divertimento popular: foguetes, que ao explodirem soltavam bonecos de papel que voavam; lançamento de cavacas á multidão. Subida ao mastro encerado, para trazer o bacalhau. O puxar da corda, a corrida de sacos, a disputa do jogo da malha.Um popular jogo, onde as equipas espalhadas pelo Concelho ou fora dele (até!),se batiam, exibindo virtualidades de precisão incríveis, e onde o posicionar do corpo, ligeiramente agachado, pés, um atrás do outro, braço esquerdo estendido, servindo de equilíbrio ao braço lançador, era um espectáculo de rara beleza, em que apenas no golf encontro sincronização tão exigente. No jogo da corda a equipa que contasse como Carlos Fonseca era a ganhadora; o Carlos, meu primo, filho do Manuel ,era um verdadeiro Apollo. Forte como um touro, de uma força braçal incomensurável, tronco hercúleo num corpo de quase dois metros,, não me recorda de alguma vez ter visto outra tão colossal figura


E VIVA A PÁTRIA!!!!!! Exultava a dançar, a encolher e esticar o fole da concertina, comandando o trio de exímios concertinistas : O Velho Ti Manel (com os seus 82 anos) ,o seu filho Manuel Fonseca, e o meu pai ,de seu nome Manuel Fonseca. Lá em casa só eu é que desbotei….

Com o tempo, veio o desmembrar da família. Já praticamente só resto eu. Cada vez mais, me fui separando do meu sítio. Tenho lá a casa dos meus ancestrais, que tento manter una. Difícil. E na certeza que comigo ela desaparecerá. A não ser que uma Instituição promova algo de concreto e e sólido, e a requeira. Ao visitá-la, vem-me à ideia o percurso onde me fiz homem – com montes de virtudes e mais defeitos –, e onde bebi que o gesto de Cristo, de oferecer a outra face, é lindo mas inútil. A todo o acto de violência, venha de onde, ou de quem vier, reage-se de que maneira for, mas reage-se. Entre a espada e a parede…a espada. Este ano fui observando os esforços de dar, à festa, uma nova roupagem. Depois de uns anos de escalabroso e escandaloso, esquecimento, do «troglodita esteves», que no meio da pipa de massa que andou a desbaratar, nem uns míseros tostões encontrou para a recuperação do Arco. Esse peralvilho, não sabe que o arco da Srª do Pranto é mais genuíno, que o encomendado, delirante e fantasioso, brasão de Ílhavo. Já se foi.Bons olhos o vejam ,hoje cagaréu devotado. Ora uma Comissão genuína, ofereceu á parte pagã da festa, uma nova vestimenta. Surpreendeu-me a ideia e gostei do que vi, como primeiro ensaio. Pode vir a fazer-se muito mais, e melhor (!).Estou certo que tal será o desejo da Comissão, com repetidas experiências. Parabéns. E aqui vão imagens garridas de um «novo Cimo de Vila». Um lugar de gentes diferentes.


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