À Espera de Um Milagre | Dia 2 | Sôma

Page 1

DIA 2 | DAY 2



S么ma



# Calor # Espanto # Erro # Nuvem # Absurdo # Pedra # Mistério # Abraço # Assombro # Melacolia # Grotesco # Hesitação # Sede # Superstição # Inquietação # Máscara # Tansformação # Sombra # Sono # Reflexo # Quem # Andar Espantado de existir # Chuva # Paliativo # Chão # Reencontro # Bolor # Sopro # Ausência # Luz # Pigmento # Dádiva # Relíquia # Superfície # Estômago # Destino # Caos # Prazer # Casa # Pele # Segredo # Harmonia # Fronteira # Fragmento # Poção # Paixão # Acaso # Processo # Carne # Revelação # Gordura # Promessa # Lá fora # Tempo # Cabeça # Matéria # A hora mudou # Sonho # Existência # Indulgência # Tutano # Eco # Movimento # Júbilo # Esfera # Avesso # Cortina # Húmos # Sôma # Elixir # Dentro # Desvio # Esboço # Bocas # Bicos # Recompensa # Eterno # Estado # Pendente # Aguardando # Em certas ocasiões, se as palavras e a insignificâncis desaparecessem da vida, só ficava de pé o espanto*# # Todos os remédios do mundo | Sandra Roda

* Húmos de Raúl Brandão. pág 23. Edições Húmos, Lda.



. . . . . . . . . . . . . . . . . . Texto de Nan Ferdinan


Às vezes dói-me um silêncio no céu da boca E as palavras, magoadas, Secretas, emigram Para um lugar sem consciência, Enredam-se em escombros de alfabetos e Restos de línguas mortas, Adormecem, nuas de sentido, e frias, Diluindo-se no sofisma de si mesmas. E solta-se da voz Um vazio, um grito sem nada Morre-me nos dentes, Máscaras de carne, esconderijos do medo, Imergem no rio sagrado, Labiríntico, da minha sombra. Aí me têm, entre os destroços da Gramática, como um erro humano, Residual e informe, à Espera de um milagre.


Talvez começar com uns versos de Khalil Gibran, estes versos: “Gritei aos homens: - Queria ser crucificado! E os homens responderam-me: - Porque havia de cair o teu sangue Sobre as nossas cabeças?” Podes tirar a máscara, que eu não meço a tristeza pelos olhos – os olhos do corpo vêem para fora, tu estás triste por dentro. Os olhos mostram-te um desfile de mascarados. Mostram-te como parecem felizes os outros debaixo dos seus disfarces. E tu achas que não tens isso. É o que os olhos sabem dar, a impressão de que não temos o que os outros têm. Não se deve confiar nuns olhos assim.

Existias numa porção encantada do tempo. Um lugar de águas lentas como os teus olhos circulares. Procurava-te nas sombras, nos cheiros, nas estórias, mas perdia-te sempre. Perdia-me sempre. Guardo solenemente os vestígios imateriais da tua sumptuosa ausência: de nada haver abaixo da lua senão eu perdido de ti, tu perdida de mim. E, às vezes, ainda acordo dentro do sonho em que me imaginavas a amar-te.


Danças. E, contudo, não danças. Se dançasses, não haveria uma ruína dentro de ti. Cumpres os passos certos de uma rumba apenas porque os sabes. A rumba vem e tu mexes-te, a rumba vai e tu ficas-te. Se dançasses, se realmente dançasses, a rumba vinha e tu voavas, a rumba ia e continuavas a voar. As máscaras passam por ti e tu sorris. Achas que sorris. Mas não é verdade. O teu sorriso tem uma sombra, uma melancolia, e não há sorrisos desses. Os sorrisos ou são felizes ou não são sorrisos. Usas uma técnica de sorrir, os músculos de sorrir, e não te apercebes de que nenhum sorriso pode nascer de uma mágoa.

Recordo-te misturada com a tinta fresca do último navio, traída pelas ondas instáveis do Atlântico. Longa como a luz branca do farol invisível. Breve, mas intensa, como a maré redonda. Íamos contra o vento e contra a vontade, a querer conservar entre os dois o ardor que, na viagem, nos fugia. Demorámos pouco tempo um no outro. O pouco tempo que tínhamos um no outro. Mas ficaste-me nesta memória irrefragável.



Eu digo que estás triste, mas sei que nenhuma tristeza pode habitar em ti. As tristezas não habitam, coabitam. Trazemo-las para as nossas casas, como hóspedes, mas só ficam se nós quisermos. Sentimos a angústia, a raiva, o medo, a amargura, mas não somos isso. Se fôssemos isso, o que seríamos quando não estamos angustiados, enraivecidos, amedrontados, amargurados? Ninguém diz: olha, vai ali o ódio, vai ali o medo, vai ali a aflição. Ninguém diz: vai ali a alegria, vai ali o prazer, vai ali a felicidade. És tu quem vai ali. Só tu. E levas contigo os hóspedes que quiseres.

Eras como se habitasses dois corpos: um que voasse, outro que ficasse. E fosses a mais feliz das minhas mulheres tristes.

Podes escolher a crucifixão, como o louco dos versos de Gibran, e dizer com ele: “Tive sede E pedi que me dessem a beber O meu sangue.” Dizer com ele: “Estava mudo, e pedi que me abrissem feridas para ter bocas.” Ninguém é obrigado a sentir-se feliz. Que saibas, porém, quem manda em casa. E mandas tu. Sabendo isto, nenhuma tristeza te fará mal. Quando quiseres, abres uma porta e ela vai-se embora. E tu ficas em paz.



Especial agradecimento pela colaboração a: Gabi Von Dub Joana Esteves Mariana Lemos Nan Ferdinan EDIÇÃO: Roda Casa Atelier, Dezembro 2015 Desenhos | Design: Sandra Roda




Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.