SALAZAR #1

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Buy Me!


Buy Me!



doze

Pimbologia

vinte

Os Sensible Soccers sabem onde o Postiga corta o cabelo

trinta e dois

David Lynch Uma viagem simples

quarenta

Aya Koretzky Para alĂŠm das montanhas

dezoito

Bon Iver ĂŠ a vida

vinte e seis

Poemas de Shawn Carter por Jay-Z

trinta e seis

Que Emma Stone tenha um bom agente

quarenta e oito

Luiz Pacheco e a puta que os pariu


cinquenta e dois

Tucholsky, Conan Doyle e a guerra

sessenta

Ensaio geral

sessenta e seis

Terapia de choque em Viena de Áustria

setenta e dois

Colecção A Portugueses

rtistas

cinquenta e seis

O Poeta de Schrodinger

sessenta e quatro

A educação do suinicultor

sessenta e oito

Sardinha enlatada

oitenta

O imaginário de Rita Melo


oitenta e seis

Sempre quis que as minhas cores cantassem

cento e um

Literatura de rua

cento e dezoito

A Suécia é um lugar estranho

noventa e dois

Força, Equilíbrio e Energia

cento e doze

Prypiat Futuro Radioso

cento e vinte e dois

SALAZAR em processo




ruptura

a verdadeira acontece com um cd de Ă gata num expositor de um cafĂŠ de beira de estrada


treze O propósito deste artigo é a), b) e c), sendo a) notoriamente decisivo e b) e c) simples consequências alfabéticas. Um dos eixos do pensamento crítico da contemporaneidade (o que Derrida não chamou de transinterpretação extemporânea) passa pela revalorização hermenêutica de discursos marginais, veículos de elementos subversivos na ortodoxia dominante, doravante designada como “ditadura da dominância”. É nosso objectivo identificar os princípios e práticas desta desestabilização do real ou, em alternativa, comer sopa. Ao contrário do que sucedia no passado, a vanguarda já não se apresenta como vanguarda, prefere nomes como Esmeralda ou Joana Vasconcelos. O gigantismo espalhafatoso de uma Joana Vasconcelos é reflexo da incapacidade das linguagens artísticas em perturbar o real a não ser numa questão de escala, no inchaço do dizer. O vazio da

Texto: Bruno Vieira Amaral Ilustração: Vanessa Teodoro

Bruno Vieira Amaral sobre Ágata, Rute Marlene ou Ricardo Landum. E com a benção de Derrida, de Steiner e da TV7Dias.


proposta é disfarçado pelo sobredimensionamento dos objectos. Enquanto Vasconcelos enfeita o país e seduz as elites indigentes, subnutridas de cultura artística, a verdadeira ruptura acontece com um cd de Ágata num expositor de um café de beira de estrada. No seu silêncio agudo de não-acontecimento, colorido por uma mosca indolente na imagem do rosto da cantora, este facto aparentemente anódino transforma-se no devir do real – outro, mas sempre o mesmo -, na metamorfose simbiótica entre a realidade e o projecto de interferência do caos nessa mes-


O surgimento nos territórios de intervenção de figuras similares mas distintamente individuais, como saídas de uma linha de montagem capaz de fabricar indivíduos (Romana, Ruth Marlene, Maria Lisboa, Mónica Sintra), é elucidativo da alargada frente de ataque do movimento, uma sistematização hegemónico-marginal cuja filosofia é partilhada por radicais de franjas aparentemente nos antípodas (cf. Tiago Guillul, B Fachada, Samuel Úria, etc.). A estratégia passa por tomar de assalto a dominância através de uma reprodução sistemática de epígonos quasi-idênticos que induzem no público a sensação de que “algo de novo está a acontecer” (na música, na poesia, nas artes plásticas, na contabilidade fiscal, etc.). O conceito da novidade gregária instalou-se: todos os anos aparece uma geração de novíssimos poetas portugueses, algum músico reinventa a tradição da música popu-

lar portuguesa, um jovem suburbano comete a ousadia de cantar em português; juntamse-lhe mais três ou quatro para dar a ideia de movimento, de corrente, e está feito um artigo com o título “O que se passa nos nossos subúrbios?” (hip-hop); “Estes poetas não têm medo do quotidiano” (poesia); “Os novos romancistas não têm medo de contar histórias” (romance); “O novo fado já não dá de beber à dor” (fado) etc, etc, etc. O texto poético – o discurso - reveste-se de irrelevância; só interessa na medida em que dá acesso aos transportes públicos mediáticos (Ípsilon, Actual, Ler) que levam os grupos em excursões auto-indulgentes pelos arrabaldes da criação – não é um star system, é um sistema desastral. A marginalidade, quando deliberada, já tem em vista a reabilitação crítica futura, a vítor-espadinhização. O sistema é omnívoro. O sistema é aborrecido. Viva a TV7Dias! Dito isto, Ágata. Iniciou a experiência terrestre (a vivência sensorial ou, simplesmente, a vida) como Fernanda de Sousa (com Stephan Ugeux, Sic, Bruxelas) e aos 14 anos lançou o álbum seminal Heróis Trabalhadores, onde já se detecta. Fez parte das Doce e de uma associação em prol. Antes de assumir o nome artístico Ágata, foi vista várias vezes num café, sempre a horas diferentes e com um cabide na mão esquerda. Perfume de Mulher é o primeiro ponto alto da carreira de Ágata.

quinze

ma realidade. Por outras palavras, Vidisco. Quando Steiner analisa a Antígona, limpa o pó de um monumento indiscutível – é a empregada doméstica da civilização ocidental. Quando o pensador escava as letras das canções de Ágata e o papel central de Ricardo Landum na reconfiguração da ideia de autoria e interpretação, alarga os limites da civilização, refaz a arquitectura do pensamento contemporâneo e os territórios do serpara-a-arte. Em suma, torna-se.


Poema-síntese da obra futura, nele já se encontram indícios de temas recorrentes: traição, ciúmes e um jaquetão. Certo dia, ao limpar o quarto, a mulher traída encontra um retrato da outra (The Other, oil on canvas, Tate Modern, 1877). De repente, as cartas, os telefonemas, os poemas, o perfume de mulher, as madeixas negras, as marcas no jaquetão, fazem sentido: há um retrato. Desgostosa, Ágata exige que o homem saia da sua vida e leve o perfume da outra mulher. Na história do cançonetismo pós-feminista o “sai da minha vida” é um momento definidor. Com Maldito Amor, porém, ficamos a saber que a mulher aceitou o seu homem de volta, aparentemente por razões sobrenaturais (“às vezes parece que fazes bruxedo”). Nesta canção, Ágata expõe a sua matemática sentimental (“pra mim um mais um são dois e não são três”) e, inevitavelmente, lamenta-se. Correndo o risco de ficar refém de desgostos amorosos e desavenças conjugais, Ágata universalizou-se com Abandonada, balada humanitária sobre o sofrimento infantil. O vídeo apresenta imagens chocantes de cadáveres de crianças e do cabelo de Ágata. Ao contrário do que lhe era habitual, aqui o penteado é sóbrio e solene, também ele contristado com a miséria que grassa no mundo. Prosseguindo uma estratégia de choque, o vídeo de Francisquinho, música dedicada ao filho, quebra um tabu civilizacional: pela primeira vez uma artista de primeiro plano aparece a dar de mamar num videoclip. As reacções foram violentas em algumas paróquias do interior e em duas lojas de móveis da Almirante Reis. No entanto, e quando tudo fazia prever um longo reinado, Ágata eclipsou-se. O processo camaleónico de auto-reinvenção não se concretizou. A cantora ficou póstuma. Nenhuma das suas sucessoras conseguiu atingir os seus níveis de sofrimento e a sua angst conjugal, não obstante os sinceros esforços de uma Mónica Sintra ou a proposta hiper-realista de uma Ruth Marlene (referimo-nos a esse momento paradigmático da pintura figurativa pós-moderna em que a referida cantora posou nua com a irmã para uma revista masculina). Tal como as crianças do seu hino sofrido, também nós fomos abandonados. Ágata, ou a Greta Garbo de Chaves, como é conhecida nos corredores da Culturgest, mostrou-nos o caminho. Saibamos honrar o seu legado.


Texto: SALAZAR lustração: Ana Ferreira


Ricardo Miguel Costa ouviu o novo albúm de Bon Iver. E tem grande estima pelo artista e alguma pena do homem.

Terminas com a namorada, ficas sem banda, estás doente, sentes-te frustrado, odeias gratuitamente e decides retirar-te durante algum tempo do ruído mundano e de todo o teu círculo de amizades e de trabalho. Instalas-te numa cabana perdida numa qualquer zona montanhosa dos Estados Unidos, suporemos que no Wisconsin, tu, a tua guitarra e um pequeno equipamento de gravação doméstica. Objectivos: 1) limpar toda a merda que acumulaste na cabeça, no teu coração, nas tuas entranhas; 2) curar uma mononucleose hepática; e 3) gravar um álbum, sem premeditações, por acidente, por desígnio do destino. Um álbum para ti, chama-lhe terapia para curar ou cicatrizar feridas e seguir em frente, chama-lhe escape criativo ou chamalhe desafogo emocional com ambições artísticas. Chama-lhe o que quiseres, mas sempre com a ideia que na gestação e gravação caseira, quase rudimentar, deste trabalho não há mais intenções de transcendência do que a de ver com os teus próprios olhos essas canções de exorcismo cravadas num pedaço de vinil e cobertas por uma bonita capa que imaginaste centenas de vezes. Desça o pano e que aguarde o espectáculo, que se foda o mundo. A tua vingança. A tua maneira de cobrar as facturas pendentes. E para que não sobre alguma dúvida, no título do álbum não venhas com subterfúgios ou hipertexto, solta-o sem pudor: “For Emma, forever ago” (Jagjaguwar-4AD, 2008). Esta é a inconsciência do anonimato.

Nada te faz prever que, pouco tempo depois, estas canções se converteriam na banda sonora de cabeceira de milhares de aficionados da música, que ocupariam lugares elevados nas listas dos melhores do ano das mais variadas publicações mundiais, que colaborarás directamente com o produtor de hip-hop mais famoso do planeta, que oferecerias uma das mais espantosas actuações em televisão de que há memória e que a tua vida nunca mais seria a mesma. E o teu nome, Justin Vernon, e o do teu projecto, Bon Iver, estariam estreita e inexoravelmente ligados, ad eternum, à crónica musical do século XXI.

Se a realidade supera a ficção, a história de Bon Iver é um dos melhores exemplos para crer a pés juntos em lugares comuns. Não há guionista capaz de esgalhar uma ascensão artística desta magnitude com a autenticidade que acompanhou o nosso protagonista até ao estrelato indie. De ser o pseudónimo de uma aventura impetuosa, fruto de uma época em que quebrar um espelho ou cruzar com um gato preto poderiam ser motivos de festa e algazarra, a erguer-se a ícone de uma geração distam apenas alguns meses: os que separam a gravação de “For Emma, forever ago” da sua publicação. E isto é apenas o início.


Vernon deixou claro, numa entrevista ao The Guardian, que teve tempo para digerir o êxito e a notoriedade e que em certa medida aprendeu a desvalorizar os efeitos mais danosos do seu raio de acção, mas que por sua vez é contraproducente dormir sobre os louros e pensar que está tudo feito. Não é o queixume caprichoso de um “novo famoso” mas sim o desabafo de quem não contava e se viu superado pelas circunstâncias. Para tudo isto contribuiu, também, a exposiçãoo

“Bon Iver, Bon Iver”, o segundo álbum de Justin Vernon à frente do seu projecto mas reconhecido e reconhecível, surpreendeu tudo e todos com uma das apostas mais interessantes, atrevidas e fascinantes que recordamos recentemente do panorama musical independente. Prova de maturidade e demonstração de talento ao mesmo tempo, não há maneira ficar indiferente a esta peça de colecção folk-pop.

dezanove

aberta e explícita da sua vida nas letras de umas canções que falavam de gente e situações reconhecíveis. “Nunca o pensei dessa maneira, mas com “For Emma, forever ago” as pessoas perguntavam ‘alguma vez pensaste no que opinaria a tua gente uma vez que o disco se fez grande?’. Reitero que o disco falava mais de mim do que de qualquer outra coisa. Emma é tanto uma pessoa quanto um espaço ou um tempo. A verdade é que se és amigo de alguém, deverias ser capaz de ser honesto com ela e essa honestidade deveria ser o melhor íman para a verdade”, manifestava há algum tempo ao portal Pitchfork. Consciente ou não, o cantautor aproveitou ao máximo as possibilidades da autobiografia para perfilar a sua estreia e, em certo modo, esse exibicionismo cobrou factura, mais pessoal que artística. Ao ponto de querer deixar para trás o quanto antes o perfil que traçou inicialmente e procurar novos horizontes.

Texto: Ricardo Miguel Costa

Entre o lançamento do álbum de estreia e a aparição, em 2011, de “Bon Iver, Bon Iver” – esperadíssima, ansiada e antecipada continuação do primeiro – passaram quatro anos, tempo mais do que suficiente para publicar um EP, “Blood bank” – do qual ninguém se lembra mas que já antecipava vontades de mudança no seu discurso –, participar no supergrupo Gayngs, retomar o velho projecto Volcano Choir, flirtar com The National ou tornar-se um directo colaborador de Kanye West. A toda esta actividade somou vários tours, tempo invertido aqui e ali na composição de novas canções e muitas dores de cabeça consequência das sobredoses de fama e celebridade que acarreta dar o salto para a primeira linha de fogo do mercado independente, por mais indie e alternativo que seja.

d.r.



vinte e um



vinte e trĂŞs



Fotografia: Raquel Gomes

vinte e cinco


mas de Poe Shawn Corey Carter por

Jay-Z

Vasco Mendonça gosta de hip-hop e de Jay-Z. Mas justifica-se com mestria. Nunca ninguém me perguntou porque é que gosto tanto de hip-hop. Ainda bem. Há quem ache que é uma pancada, houve quem achasse que era uma fase, e há meia dúzia de pessoas com quem partilho a afinidade. Mas se tiver que explicar porquê, sou capaz de me defender com os versos do Jay-Z da mesma maneira que um gótico justificará a cor de eleição com alusões a Baudelaire ou Rimbaud. Tanto eu como o gótico arriscamos fazer figuras tristes (mais o gótico) em nome de um universo que tem tanto de simbólico, figurado e caricatural como de sério e culturalmente relevante. Vamos a isso, então. A poesia é todo um compêndio de cabecinhas ruminantes e imaginativas acerca de problemas, da ausência deles, dos problemas dos outros, de coisas vazias, de coisas entupidas de significado, do que se passa ou do facto de não se passar nada. Às vezes é tudo isto ao mesmo tempo, como o comprovará uma pesquisa no Google por teses de doutoramento dedicadas à presença do nãometafísico na dimensão material da obra de João Cabral de Melo Neto. Se estiverem prestes a desistir deste texto, pensem antes numa daquelas séries televisivas que descrevemos como sendo “multi-camadas”. Exigem um segundo, um terceiro, e um quarto visionamento. E as recompensas lá vão chegando, reforçando o nosso dom para o auto-elogio contido. Com Jay-Z, e o hip hop em geral,

acontece um pouco a mesma coisa. Se aquilo - a música de pretos - nos bater à primeira, e se prestarem atenção às palavras, vamos descobrir um novo idioma, que pode ou não ser exclusivo do rapper. Pode também ser um idioma absolutamente idiota. Ou pode ser um idioma indecifrável que pura e simplesmente soa bem. Quem nunca citou Herberto Helder por causa das suas qualidades telúricas, que atire a primeira pedra. Qualidades telúricas são algo que o leitor encontra sempre que um escritor faz alusões a coisas próximas dos nossos pés, mas não as escreve por forma a podermos interpretá-las honestamente por aquilo que são: um vestígio ecoante de nada. Ah, e filisteu é o tipo que diz estas merdas. Mas bom, estas coisas também acontecem no hip hop. Umas são mais divertidas do que outras. A poesia de Jay-Z, quando lá chegarmos e falarmos a mesma língua que ele, é surpreendentemente reconfortante e próxima do comum mortal. Se tivermos sido toxicodependentes, vamos desejar ter comprado droga a um tipo tão porreiro. Se formos desbocados na forma como verbalizamos sentimentos em relação às pessoas e ao mundo em geral, vamos encontrar alguém com um nível idêntico de bazófia. Se formos milionários, vamos descobrir que bebemos o mesmo champanhe ou que somos vizinhos no Lago Como. Finalmente, se gostarmos de banda desenhada, vamos descobrir um novo super-herói preto. Em todas estas narrativas há uma grandiloquência algo embaraçante e desligada do modelo de Estado-Providência no Sul da Europa (RIP), mas existe também uma micro-narrativa que é a nossa, por muito distantes que estejamos da vivência do poeta. E estamos. Aliás, como qualquer poeta proprietário de um Maybach que se preze, Jay-Z praticamente não fala de ninguém a não ser de si. Mas há momentos absolutamente gloriosos na narrativa egocêntrica de Shawn Carter que importa destacar e incorporar modestamente na nossa própria história. Seguem-se três deles.


vinte e sete

Jay-Z é um homem que tem 99 problemas. As mulheres não são um deles

I got the rap patrol on the gat patrol Foes that wanna make sure my casket’s closed Rap critics that say he’s “Money Cash Hoes” I’m from the hood stupid what type of facts are those If you grew up with holes in your zapitos You’d celebrate the minute you was having doe I’m like fuck critics you can kiss my whole asshole If you don’t like my lyrics you can press fast forward.

É mais ou menos o oposto de Rui Pires Cabral, que tem 99 problemas e todos eles parecem estar relacionados com amores. Nestes 10 versos, Jay-Z lamenta os problemas amorosos de Rui Pires Cabral e desde logo esclarece que não padece do mesmo mal, resgatando o ouvinte do habitual mergulho num poço sem fundo. Os 8 versos seguintes são metáfora do ghetto atrás de metáfora do ghetto, mais fáceis de compreender se soubermos que gat é uma pistola, foes são os inimigos, money cash hoes é o rótulo a que colam qualquer preto bem sucedido no rap norte-americano, hood é o sítio onde o preto viveu, e whole asshole é a totalidade do ânus de quem discordar do Jay-Z. Quem não gostar, diz-nos, pode passar à frente.

Texto: Vasco Mendonça Ilustração: Sara Pazos

If your having girl problems I feel bad for you son I got 99 problems but a bitch ain’t one


Showed love to you niggas You ripped out my heart and you stepped on it I picked up the pieces Before you swept on it God damn this shit leaves a mess don’t it Shit feelin’ like death don’t it Charge it to the game Whatever’s left on it I spent about a minute Maybe less on it Fly pelican fly Turn the jets on it But first I shall digress on it Wasn’t I a good king?

A poesia é métrica É, de facto, mas essa métrica é também oralidade. Agora peçam a José Tolentino Mendonça, muito honestamente, um dos meus poetas preferidos a seguir a Jay-Z, Notorious B.I.G. e Ghostface Killah, para recitar um poema que acabou de escrever. É possível que o senhor trema como se estivesse a dar a primeira missa na Igreja de Santa Isabel. A grande diferença entre Tolentino e Jay é que este último não deverá vir a editar um “Poemas de Jay Z por Luís Miguel Cintra”. É o homem que escreve e é ele que vai cuspir aquilo a seguir. Digo cuspir porque os rappers descrevem o acto de recitarem os seus poemas como “spit verses”, uma imagem forte cuja origem desconheço, mas suspeito não se encontrar na época vitoriana. O que acontece nesta faixa de colaboração entre Kanye West e Hova (alcunha de Jay-Z, somos amigos) atinge proporções épicas a partir do minuto e quarenta e seis segundos. Os versos falam dos traidores a quem Hova pagou os charros, as garrafas de Cristal e as custas judiciais durante anos (toda a gente tem um familiar assim). Mas a forma como Kanye completa os pensamentos de Jay-Z e a coisa evolui a partir daí para a tríade loyalty-royalty-royalties é toda uma masterclass de poesia.

[Kanye West] Maybe too much of a good thing, huh? [Jay-Z] Didn’t I spoil you? Me or the money, what you loyal to? [Kanye West] Huh, I gave you my loyalty [Jay-Z] Made you Royalty and royalties [Kanye West] Took care of these niggas lawyer fees [Jay-Z] And this is how niggas rewardin’ me [Kanye West & Jay-Z] Damn

I got this Spanish chica, she don’t like me to roam So she call me cabron plus marricon Said she likes to cook rice so she likes me home I’m like, “Un momento” - mami, slow up your tempo I got this black chick, she don’t know how to act Always talkin out her neck, makin her fingers snap She like, “Listen Jigga Man, I don’t care if you rap You better - R-E-S-P-E-C-T me” I got this French chick that love to french kiss She thinks she’s Bo Derek, wear her hair in a twist My, cherie amor, t£ est belle Merci, you fine as fuck but you givin me hell I got this indian squaw the day that I met her Asked her what tribe she with, red dot or feather She said all you need to know is I’m not a ho And to get with me you better be Chief Lots-a-Dough Now that’s Spanish chick, French chick, indian and black That’s fried chicken, curry chicken,

damn I’m gettin fat Arroz con pollo, french fries and crepe An appetitite for destruction but I scrape the plate I love Girls, girls, girls


vinte e nove Jay-Z editou o tema “Girls Girls Girls” numa fase da vida em que ainda não adormecia ao lado de Beyoncé, o que ajuda a compreender a paleta cultural e amorosa aqui exposta. Não será o seu melhor poema, mas é um dos mais divertidos. E alarga-nos as vistas. Num país como o nosso, onde o marialvismo tem Rodrigo Moita de Deus e Victor Espadinha como representantes credíveis, o sexismo mundividente demonstrado por Jay-Z assume um tom inspiracional que, se estivermos dispostos a ouvir com atenção, fará de nós o João Garcia da discoteca mais próxima, em Lisboa, Miami ou Lloret Del Mar. Basta abrirmos o coração e aceitarmos as palavras de um poeta maior.




d.r.


Texto: Daniel Marques

trinta e trĂŞs


Daniel Marques viajou pelos EUA do com David Lynch. Agora, antes que seja tarde, Se David Lynch tivesse visto desaparecer-lhe um tufo conta como foi. de cabelo de cada vez que, em conferências de im-

Interview Project

prensa, os jornalistas lhe perguntaram: «pode explicar, Sr. Lynch?», não teria certamente chegado aos sessenta e cinco anos de idade com a farta e glamorosa juba branca que nós lhe conhecemos. Mesmo alguns dos seus admiradores e actores predilectos, aturdidos pelos ziguezagues narrativos de Twin Peaks e Estrada Perdida, não resistiram amiúde à pergunta: «pode explicar, Sr. Lynch?». Naturalmente, Lynch não podia, não queria ou não sabia; três razões impecáveis em qualquer circunstância. Mas até um caçador errante gosta de estender as pernas ao crepúsculo, de um pouco de sossego, e em 1999, Lynch decide completar o seu filme mais arrumado de sempre, afastando-se, por algum tempo, do confronto com aqueles que duvidavam do seu talento para contar uma história com pés, coração e cabeça. Uma História Simples, a aventura de um velhote patusco que faz centenas de milhas num tractor dos antigos, para visitar o seu irmão desavindo e gravemente doente, não recorre a caixas mágicas, telefonemas impossíveis ou personagens que aparecem e desaparecem num abrir e fechar de olhos. A história (simples, como o título português sublinha) não deixa pontas soltas nem esconde buracos, estando bem ancorada num episódio real, provavelmente para evitar que Lynch cedesse a uma tentadora pirueta de argumento, e Patricia Arquette, voluptuosa e vinda não se sabe de onde, acabasse por entrar no tractor em chamas, com o enigmático intuito de trincar o velhote na orelha (na vida real, Patricia Arquette não entra em tractores com vontade de trincar velhotes na orelha). Muitos assumiram que David Lynch realizara um filme assim tão directo, para seduzir aqueles que nunca sucumbiram aos encantos dos seus filmes mais oníricos, mas, numa entrevista, Lynch terá confessado que Mary Sweeney, a sua companheira da altura e co-autora do argumento, insistira, durante e meses, que ele adaptasse para cinema a viagem solitária de Alvin Straight, dando espaço à suspeita, um tudo-nada venenosa, de que Uma História Simples não foi apenas uma tentativa de fazer as pazes com o público mais conservador e uma oportunidade de experimentar outro registo, mas também um instrumento para con-

quistar a tranquilidade doméstica, uma cedência ao centésimo beicinho letal da mulher amada. Em qualquer caso, não sobra nenhuma dúvida que Mary Sweeney tinha razão e merece vénias e flores: o instinto cinematográfico de David Lynch tanto pode ser alimentado pela imaginação como pelo mundo. E parece que tudo funciona melhor se houver uma estrada por onde a câmara possa avançar (para além de Uma História Simples e Estrada Perdida, há ainda Coração Selvagem e Mulholand Drive, um maravilhoso póquer de filmes com abundante asfalto e poeira). Talvez seja verdade, ou uma mentira feliz, que à boleia de um bom road movie conseguimos chegar a qualquer lado; nem todos os caminhos vão dar a Roma. Por exemplo, uma viagem que principie em Needles, na Califórnia, atravesse os Estados Unidos e termine em Topanga Canyon, de volta à Califórnia, está destinada a quantas surpresas? Pelo menos cento e vinte e uma, de acordo com os criadores do Interview Project, uma ideia apadrinhada por David Lynch e transformada em documentário pelo seu filho Austin. A primeira série do projecto arrancou em 2009 e seguiu uma receita modesta: lançar na estrada uma equipa com poucos elementos, e parar aqui e ali para entrevistar pessoas (cento e vinte e uma, nas contas finais). Nada de gente famosa, nem questões difíceis sobre os equilíbrios geoestratégicos no Médio Oriente. As pessoas entrevistadas são homens e mulheres vulgares (embora haja ali pelo meio um considerável número


trinta e cinco

de freaks), convidados a falar menos de cinco minutos sobre as suas famílias, as vitórias e enganos das suas vidas, os seus desejos e remorsos. Cada um dos episódios, divulgados na internet com intervalos de dois dias, cumpre um rigoroso e austero esquema que nunca se altera: primeiro, há uma introdução de David Lynch, que fornece algumas notas breves sobre o entrevistado, e só depois se dá início à conversa. A introdução funciona a três tempos e começa com um grande plano de alguns segundos do nosso cicerone, antecedendo um outro plano mais geral, que nos revela pormenores até então escondidos: um móvel de numerosas gavetas, uma caneca, tralha avulsa, e também os braços caídos de um David Lynch apático, sentado junto a uma mesa de trabalho do seu atelier, sem olhar para nós. No final, a câmara regressa à casa de partida e capta um novo plano fechado, em que Lynch profere, com um tom quase neutro, muito longe do entusiasmo de certos pais pelas acrobacias da prole, a frase: «enjoy the interview» [desfrute a entrevista], como se isso fosse a coisa mais importante (foi o meu filho que fez) e insignificante (não liguem) de todo o universo. Esta é a sequência que, pela repetição, vai colando os episódios. As introduções de David Lynch para o Interview Project, algo bizarras devido ao lado esquemático da composição, têm grandes semelhanças com os preâmbulos macabros de Alfred Hitchcock para as curtas-metragens da série Hitchcock Apresenta. Elas não servem propriamente para resumir ou contextualizar conteúdos, mas tentam sobretudo induzir no espectador uma certa tensão, funcionando como um alerta de que tudo pode acontecer, mesmo que nada de facto aconteça. No episódio 26, John David Montgomery, historiador amador, barbeiro e lançador de facas, promete conceder uma entrevista apenas se a equipa de rodagem estiver disposta a limpar o bar onde ele trabalha, o que mostra que a opção de recrutar os entrevistados pelo caminho, sem contacto prévio, tem os seus custos, ainda que noutras situações, a simpatia de alguns acabe por atingir níveis de doçura suficientemente elevados para justificar esse tipo de casting tão improvisado. A 6 de Agosto de 2009, o acaso fez com que os elementos do Interview Project avistassem, numa pequena cidade do Arcansas, um homem a guiar uma bicicleta azul. Quando lhe propuseram a entrevista, Anthony, um preto extraordinário e valente, que teve de enfrentar, entre outras provações, a morte de um dos seus filhos, convidou-os a segui-lo até casa, onde, de acordo com o texto que acompanha as imagens, lhes terá oferecido uma generosa quantidade de Sunny Delight para enganar a sede. Torna-se difícil não imaginar a beleza do quadro em que, num alpendre, uma equipa de filmagens inteira vai bebendo sumo de laranja por copos de diferentes tamanhos, perante o genuíno sorriso desdentado daquele homem feito. O que impressiona no mosaico de entrevistas do Interview Project, é descobrir que, apesar da diversidade (há os que nunca saíram da mesma cidade e os que mudaram vinte vezes de lugar, os que enfrentaram uma mão cheia de divórcios e os que estão casados há décadas e décadas com a mesma pessoa, os que foram à luta e os que se esconderam), a vida de todos, no fundo, se assemelha, e que no fim, quando no banquete chegamos ao osso (são poucas as entrevistas a jovens), o peso das coisas importantes está sempre do mesmo lado. Tudo afinal se resume a um punhado de histórias simples. A equipa do Interview Project terminou a viagem americana no dia 27 de Maio de 2010 e anda agora, tal como os países pobres da zona euro, a ouvir os alemães.



d.r.

Texto: Pedro Mexia

trinta e sete


I was a good-looking kid. I never felt, like, dorky. I was just like, ‘Yup, these are my braces. I’ve had them forever.

Espero que Emma Stone tenha um bom agente. Só a vi em papéis secundários e menos que secundários em Super Baldas (2007), Amigos Coloridos (2011) e Amor, Estúpido e Louco (2011), e na protagonista de Ela é Fácil / Easy A (2010). Os títulos não enganam: são comédias mainstream, filmes de multiplex, pipoquices. Mas que assombro é Emma Stone em cada um deles, em cada entoação, careta, movimento, interjeição, solilóquio ou hesitação. Trata-se provavelmente da melhor actriz cómica da última década, com uma noção de tempo e uma maturidade técnica impressionantes numa miúda. Espreitem Easy A, uma história que homenageia Hawthorne e os filmes de John Hughes, e onde Emma faz de virgem que aceita ser conhecida como galdéria por motivos muito seus. Quando o vi, tinha uma vaga ideia de quem ela era, e quando acabei de o ver quis saber tudo sobre ela. Emma Stone nasceu em 1988, ainda não fez 24 anos e a sua filmografia é bastante comercialona. Mas talvez tenha um bom agente, agora que

repararam nela, em parte por causa de Easy A. No mês passado, a Vanity Fair concedeu-lhe honras de capa, mas o perfil era incompetente e o ensaio fotográfico atroz. Quiseram apresenta-la como uma Lolita, e ela é tudo menos uma Lolita. A Lolita era uma bimba. E Emma parece-me uma das raras actrizes em que a inteligência é visível, tão visível como a sua estranha boca pequena, os seus estranhos olhos enormes, a sua estranha brancura e o falso cabelo ruivo. É mais atraente do que bonita, nada convencional, elegante de corpo mas deselegante de timidez natural ou estudada, escanzelada, muito rouca, muito espantada com tudo, com o espanto insensato dos corajosos. Quando ela diz frases rápidas, divertidas, engenhosas, quase cínicas mas apenas provocantes, acreditamos nela, acreditamos que ela não está a papaguear um discurso mas podia perfeitamente falar assim em casa. Nas entrevistas percebemos que é espertíssima, decidida, focada, profissional. Deus a guarde. A última actriz de Hollywood com genuíno talento


trinta e nove

d.r.

d.r.

cómico, Anna Faris, chegou aos trinta e cinco anos a fazer uma sucessão ininterrupta de filmes pavorosos. De modo que a única actriz cómica de Hollywood que vale o bilhete é a já veterana Jennifer Aniston, que nos últimos anos tem revelado um à-vontade nas regras estritas da comédia que dá gosto de ver. É verdade que o cinema americano de agora quase não produz comédias decentes, e que os únicos papéis verdadeiramente cómicos estão relegados para actores secundários ou figurantes, que fazem a sua cena cómica e desaparecem da narrativa; mas não tem que ser assim. Na geração de Emma Stone, as únicas actrizes realmente boas são talvez Evan Rachel Wood (1987) e Kristen Stewart (1990), mas ambas tendem para a intensidade dramática, e não para a comédia. Faz falta uma comediante incisiva, fresca, impecável. Espero que Emma Stone não se perca, que tenha sorte e um bom agente. Em Hollywood, uma promessa nunca é uma certeza. O mundo está cheio de Alicias Silverstones. d.r.



AYA KORETZKY

Para lá das montanhas

Carl Hermann Busse foi um poeta alemão cujo reconhecimento no seu próprio país nunca atingiu o nível que, por exemplo, o Japão lhe dispensou (em Portugal, identificamos este injusto desinteresse em figuras de proa como António Damásio, Luís Boa Morte ou Linda de Suza). Membro fundador do Cartel de Escritores Líricos Alemães e altamente patrocinado pelo magnata Ludwig Stollwerck, o maior contributo de Busse para a História da literatura mundial foi o facto de no rés-do-chão da sua casa em Berlim ter vivido durante alguns anos Franz Kafka. Seria, portanto, inevitável que o nome do poeta germânico nunca chegasse a Portugal, não fosse Portugal o país que em 1992 acolheu Aya Koretzky e a sua família. Os pais de Aya Koretzky viviam no Japão, onde o pai japonês e a mãe belga se haviam conhecido algures no início da década de 80 numa conferência relacionada com o urbanismo sustentável e a arquitectua paisagística. Um ano depois nascia Aya, numa conjugação feliz de sangue japonês, belga, holandês e russo, sendo a única filha do casal e, a partir de então, principal motivo de dedicação. Desiludidos com o crescimento desorganizado de Tóquio e firmes na intenção de encontrar um local onde pudessem contactar directamente com a natureza, ainda hesitaram entre os gélidos territórios do Canadá e o verde de Portugal, acabando por escolher as margens do Mondego e sol lusitano para cenário da vida a três. Aya Koretzky, personagem central da nossa crónica, deixou para trás uma personalidade em construção no outro lado do mundo. Entou directamente na escola da aldeia, onde, como a própria revela, “todos eram primos de todos” e só mais tarde, em Coimbra,

quarenta e um

Aya Koretzky vence prémios em Portugal e no mundo. A culpa começou por ser dos pais e da poesia de um alemão.


deixou de ser a asiática para ser a exótica. Ainda mais tarde, já em Lisboa, concluiu um processo de integração que lhe ensinou que a boa educação japonesa de não refutar ou questionar a opinião alheia era sinónimo ocidental para falta de carácter. Estudou pintura em Belas-Artes e alimentou conhecimento e paixão pelo cinema. Em 2010 estreia-se na realização, acompanhada por Rodrigo Barros, com Nocturnos, uma história de homens que vivem num lugar que não é uma casa. Martins, o barbeiro de Luanda, Simões e as suas farpas, o Manel dos filmes e o silêncio de Francisco partilhavam e povoavam o albergue onde dormiam. Têm afinidades com o mundo exterior, mas comunicam através de palavras que

não são ditas. Nocturnos foi a primeira aproximação de Aya ao cinema em nome próprio mas o projecto que a consagra e afirma como uma das mais talentosas realizadoras portuguesas da nova geração chega a solo, com Yama No Anata / Para Além das Montanhas. É também aqui que regressa Carl Hermann Busse. O poema do alemão que dá título ao documentário remete para a infância de Aya, quando o pai lhe narrava os versos que diziam que para lá das montanhas o homem encontraria a felicidade, e chegado ao lado de lá das montanhas, a felicidade continuaria afinal para lá das montanhas, e assim sucessiva e inesgotavelmente. Para lá das montanhas é a metáfora perfeita para aquela que foi a


quarenta e três decisão e percurso da família japonesa que se instalou nas margens do Mondego. Pelas palavras de Aya, a sinopse é clara: “Submerjo nas paisagens do Mondego para onde vim morar com os meus pais em criança, deixando para trás Tóquio, onde nasci. Ao ler cartas que troquei com os amigos e a família que ficaram no Japão, reflicto sobre a vinda para Portugal e relembro o passado na tentativa de reter a memória efémera, numa viagem com os espíritos que permanecem comigo.” Yama no Anata / Para lá das Montanhas é assumidamente autobiográfico e introspectivo. Nele, e dezanove anos depois, a voz dos pais em jeito de justificação para a mudança radical, o finalmente de Aya no pedido de explicações,

a correspondência trocada com quem ficou longe e o contacto que se perdeu, o verde do Portugal rural e a poluição abandonada em Tóquio. Yama No Anata, financiado pela RTP e pelo Instituto Camões, venceu o prémio de Melhor Longa-Metragem na mais recente edição do Doc Lisboa. Yama no Anata venceu os prémios de Melhor Filme, Revelação e Crítica na mais recente edição do Festival de Cinema Luso Brasileiro. Aya Koretzky venceu a atenção dos críticos. Os pais de Aya Koretzky venceram as charadas da vida.


“Para lá das montanhas, por trás do céu distante Vive a felicidade,” dizem as pessoas. Alas! Fui com alguém à sua procura, E voltei banhado em lágrimas. “Para lá das montanhas e ainda mais, Vive a felicidade,” continuam a dizer as pessoas.


quarenta e cinco





Texto: Ricardo Miguel Costa

e a puta que os pariu quarenta e nove


Se Luiz Pacheco não tivesse partido em 2008 e não fosse esta uma prosa póstuma, o nome do autor numa revista com tamanha designação não seria fácil de explicar ao próprio. Luiz Pacheco foi uma voz activa e pouco comedida na crítica ao regime salazarista e à sua afamada censura e, nem que lhe disséssemos que isto não passa de uma brincadeira de crianças, era vê-lo a morder a língua e a rogar setenta e duas pragas que nunca a outra e nossa língua ousara ensinar. Aliás, argumentar com a inocência da brincadeira de crianças contribuiria, muito provavelmente, para aumentar a ira e o sarcasmo do autor. E justifico com a História: em 1995, numa entrevista à LER (cumprimentos à LER), quando lhe pedido para lançar uma mensagem às novas gerações, rosnou um “puta que os pariu” que serviu de lição ao jornalista e de título à recente biografia de João Pedro George sobre o escritor (Tinta da China, 2011). Luiz Pacheco não era uma personagem fácil por uma série de motivos que lhe serve tanto de desculpa como a mim me serve uma cadeira de rodas para deslocar. Não preciso, mas nunca se sabe. E explico com a biografia do autor, em particular, e o meu inesgotável conhecimento do corpo humano, em geral: crescer no seio de uma família da classe média, em contacto permanente com as artes,

Se

com a música esgalhada pelo pai nos tempos livres da função pública, com uma biblioteca escancarada e ao seu alcance – e note o leitor que usei as palavras seio, esgalhada e escancarada pelo simples facto que precisarei delas mais à frente neste texto. Quanto ao corpo humano: Luiz Pacheco era feio. Não há muito mais a dizer sobre o assunto. No fundo, a biografia justificaria, à luz de Rousseau, os comportamentos de filho único e de (bom) rebelde; a feiura justificaria a carne que ofereceu a mulheres mais novas, muitas vezes e só elas fascináveis pela, das duas uma, erudição ou experiência. É um facto: Luiz Pacheco era um depravado e a sua, como dizer, preferência sexual por mulheres mais jovens levou-o à cadeia mais do que duas vezes. Contando as coisas como quem conta laranjas, foram oito filhos de três mães adolescentes. No entanto, se o leitor for uma pessoa séria e com um bom coração, vai achar que, muito mais do que as noites ao relento e as esmolas, o que realmente interessa em Luiz Pacheco é a sua obra. E é dela que falarei agora, por sinal, e com algum sentido de propriedade e afecto porque há duas criações na vida do autor (já sabem dos 8 filhos?) que merecema minha palavra. Comunidade, o conto lançado em 1964, é, para muitos, a obra-prima do escritor e nisso estamos de acordo, afinal. Se não, reparem: “Somos gente pura: os mais


novos não sabem o que é a promiscuidade, a minha rapariga se vir a palavra escrita deve achá-la muito comprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (pelo método João de Deus, em tipos normandos e cinzentos às risquinhas, até faz mal à vista!). A promiscuidade: eu gosto.”, antes de luizpachequizar, “Porque me cheira a calor humano, me sobe em gosto de carne à boca, me penetra e tranquiliza, me lembra - e por que não ?! - coisas muito importantes (para mim, libertino se o permitem) como mamas, barrigas, pele, virilhas, axilas, umbigos como conchas, orelhas e seu tenro trincar, suor, óleos do corpo, trepidações de bicharada.”. E aqui temos um homem por inteiro no inteiro de um parágrafo e digam-me qual o autor que só precisou de um parágrafo para dizer, sem resumir, tudo aquilo que foi e viveu e escreveu. E depois há a Contraponto. Alguns factos acerca da Contraponto: Luiz Pacheco cria a Contraponto Edições e Distribuição em Setembro de 1950, em Lisboa, motivado pela ideia de combate ao regime vigente e pela luta contra as instituições. O objectivo era claro e ao seu estilo: denunciar a situação política, social e literária. O trabalho de escrita, revisão, tratamento gráfico e distribuição era da sua total responsabilidade, apesar da colaboração de amigos que, sobretudo, garantiam a publicação das obras; O primeiro livro da Contraponto: “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”, de Mário Cesariny. Anos de actividade da Contraponto: 7 (sete), mas suficientes para incomodar o regime e, sobretudo, apresentar Luiz Pacheco a muitos dos grandes nomes da literatura portuguesa do século XX. A verdade é que o autor representou em Portugal aquilo que lá fora muitos representaram, e continuam, e que matematicamente potencia capital de simpatia, primeiro, e interesse, depois. Falo do percurso, da personagem e do conceito: o “escritor maldito”. É pouco e injusto. E o tempo não corrigirá. E a biografia de João Pedro George não corrigirá. E este texto e esta revista e todos os textos e todas revistas não corrigirão. Luiz Pacheco não precisa, mas nunca se sabe. Hoje, que já lá vai a sua morte e a sua Contraponto e o seu Comunidade e a sua miséria e a sua polémica e os suas lentes garrafais que escondiam cataratas e remelas, hoje, dizia eu, puta que o pariu. No tom e com a intenção que o leitor lhe quiser dar.

“Luiz Pacheco não era uma personagem fácil por uma série de motivos que lhe serve tanto de desculpa como a mim me serve uma cadeira de rodas para deslocar. Não preciso, mas nunca se sabe.”

cinquenta e um

“Contando as coisas como quem conta laranjas, foram oito filhos de três mães adolescentes.”


Daniel Reifferscheid leu o alemão Kurt Tucholsky e o britânico Conan Doyle. Acabou na guerra mas parece que ainda vive.

ma particularidade de ler vários livros de uma vez – ou ao menos rapidamente um após o outro – é que as obras começam a dialogar, a desentenderem-se, a criarem juntas retratos maiores e mais complexos. No passado Verão, li “The Adventures Of Brigadier Gerard”, uma série de contos escrita por Sir Arthur Conan Doyle pouco depois de se ter (temporariamente) despedido de Sherlock Holmes, a sua criação mais famosa. São normalmente catalogados como contos cómicos; de facto, o brigadeiro francês, soldado de cavalaria nas legiões de Napoleão, é um egocêntrico cujo alto sentido de autoestima o impede muitas vezes de ver a realidade. É nisto que a obra de Conan Doyle ganha o seu valor cómico: Gerard relata as suas aventuras num tom galante e pomposo, mas através de pequenos detalhes revela involuntariamente ao leitor a verdadeira natureza das coisas. Mas se o autor descreve o seu protagonista como pouco inteligente e excessivamente cheio de si mesmo, também o apresenta como forte, corajoso, justo e generoso. O tom das suas histórias remete para a categoria de aventuras no molde Boy’s Own muito mais do que para a escrita declaradamente cómica de um P.G. Wodehouse. E não perderam o seu charme aventureiro, estas façanhas do corajoso brigadeiro que conquista a glória pela Europa afora. Quando os adversários são honrosos, Gerard acaba sempre por conquistar de uma forma ou outra a sua estima; o verdadeiro papel de inimigo é limitado a fanáticos, mercenários e bandidos de todas as estripes. Logo a seguir, e quase inteiramente por acaso (ia de viagem e o formato pequeno do livro foi o factor decisivo para o escolher), li uma antologia de textos do autor alemão Kurt Tucholsky. Não me costumo dar bem com escritores alemães: por cada autor que consigo retirar do imenso e venerável espólio da literatura germânica e que condiga minimamente com a minha sensibilidade, há cinco ou seis cuja leitura me é, se não insuportável, ao menos fortemente enfadonha. Pode ter a haver com a língua em si (das três que domino, é claramente a que exercito menos e logo a que mais me custa), ou pode (não o posso negar) dever-se a alguns complexos derivados de, durante a maior parte da minha existência, ter vivido em Portugal, mas sempre com a consciência plena de que os meus iguais me encaravam (e isto sem malícia, convém dizer) como parte de alguma exótica cultura estrangeira que, pela minha parte, pouco conheço e com a qual quase nada me identifico.


cinquenta e três

o papel de um homem comum que vai ver “como é lá isso dos partidos”. Numa manifestação do partido nazi, ouve os cânticos de “morte aos judeus” e responde com “excluíndo a companhia presente, claro!” Uma entre muitas farpas que Tucholsky não se coibiu de lançar ao partido nacional-socialista, acabando obviamente por figurar na lista de livros proibidos quando esse chegou ao governo. Também Tucholsky tinha os seus problemas com a sua identidade nacional. Testemunha da chacina perpretada durante a Primeira Guerra Mundial, tópico frequente da sua poesia, ele era um defensor da fraternidade dos povos numa altura em que por todo o lado escalavam os nacionalismo. Com um humor cheio de veneno e

Texto: Daniel Reifferscheid

ematando a autopsicanálise, talvez seja por isso que me tenha apaixonado tanto pela escrita de Tucholsky, o autor judeu da primeira metade do século XX que amou Berlim, opôs-se aos nazis, fugiu para a França e acabou por se suicidar na Suécia; enquanto escritor, ele é o contrário de tudo que é estereótipo acerca da literatura alemã. Os alemães são sérios – Tucholsky é profundamente cómico e folião. Os almães são austeros – Tucholsky é um hedonista e um sensualista, insaciável no que toca a bebida e mulheres. Os alemães são graves, ponderados, por vezes cruéis – Tucholsky é todo ele senti-

mento e ternura. Os alemães exigem muita cerimónia – Tucholsky é apaixonadamente vulgar e frequentemente obsceno. Foi sempre aí que encontrei mais em comum com a identidade do país que me viu nascer; em produtos culturais completamente inexportáveis como o cabaretista Jurgen Von Manger, no enaltecimento de Zé Povinhos divertidos, calorosos e quase sempre inebriados, no cheiro de boa comida, no riso de uma boa piada. Tucholsky amava o Zé Povinho alemão: por isso mesmo muitos dos seus melhores textos estão escritos numa aproximação literária da fonética do sotaque de Berlim (notem: sotaques na Alemanha é outra liga, é como se o falar de cada região fosse tão distinto da língua oficial como aquilo a que os continentais erradamente chamam açoriano – na verdade é micaelense – o é do português do centro). É este o caso, por exemplo, de um ensaio absolutamente genial em que o autor assume


uma enorme indignação humanista, Tucholsky detalhava os horrores do passado recente e travava uma luta comovente pela paz e pelo entendimento entre os povos. Tucholsky amava a sua terra (há um texto capaz de partir o coração em que este faz o elogio da arquitectura e natureza alemã ao mesmo tempo que mostra o seu desespero por tudo isto ter sido raptado pelo sentimento nazi), mas nunca se prestava a condescender a patriotismos patetas ou odiosos nacionalismos. Destestava o kitsch militar que levava as populações a aplaudir enquanto homens eram enviados para a chacina. E não se conformava com chavões vazios, daqueles que, nestes tempos, fazem as delícias das campanhas publicitárias dos nossos bancos e dos vídeos virais nos nossos murais de Facebook. Uma sensação estranhíssima, ler textos que detalham de forma tão viva atrocidades bélicas depois das alegres aventuras militares de Conan Doyle. Tempos diferentes, outras formas de guerra, sim, sim – mas por muito que se dê a volta o horror da guerra é intemporal, e há textos de Trindade Coelho (entre outros) que mostram que as invasões napoleónicas também não foram nenhuma brincadeira. Quem leu a autobiografia de Arthur Conan Doyle sabe que este visitou frequentemente os campos de batalha nos quais se envolvia o Império Britânico; e conflito após conflito, seguem as declarações sobre a dignidade e o bom espírito dos adversários nessas memórias. Mas quando chega à Primeira Guerra Mundial (na qual morreu um filho seu), o oponente germânico já não recebe os mesmos tratos carinhosos, e de repente encontramos o mesmo ódio nacionalista que Tucholsky tanto abominava. As horríveis descrições de chacina que populam os textos de Tucholsky sobre a Primeira Guerra Mundial teriam menos valor se não soubessemos que ele esteve lá? A trivialidade da guerra que encontramos em Conan Doyle seria menos problemática se ele tivesse vivido na pele as incursões de Napoleão?

É só ficção” é a posição racional “não devíamos ler romances para nos informar acerca da história, nem aplicar critérios jornalísticos a fantasias declaradas.” Na ressaca de um século em que a capacidade da arte em mudar a sociedade foi tão claramente sobrestimada, parece fazer sentido limitar o seu papel ao esteticismo puro, ou quanto muito a algum tipo de melhoramento pessoal, mas nunca

em moldes que ultrapassem o indivíduo. Mas não sei se é tão simples quanto isso. Mesmo se não nos ocuparmos do valor político da arte, subconscientemente tudo que consumimos vai moldar a nossa visão do mundo. Filtrar o que lêmos por padrões políticos não deixa de ter um sabor desagradável aos piores excessos da era PREC, traz imediatamente à mente a ideia de um conselho pedagógico que avalia a pureza

ideológica de livros, filmes, discos e action figures; mas mesmo assim não sei se é assim tão realista divorciamos por completo as experiências, podermos sorrir com orgulho quando um livro coincide com as nossas convicções e ignorar por completo a sua mensagem quando não a respitamos. Seremos assim tão maduros?


Texto: SALAZAR lustração: Ana Ferreira


Lourenรงo Bray colocou um poeta numa caixa e esperou para ver o que acontecia. No final, aconteceu.


o poeta de ..

Texto: Lourenço Bray Ilustração: Ana Ferreira

Gostava de escrever sobre a poesia de Pablo Neruda mas a lâmpada do meu candeeiro de mesa-de-cabeceira está fundida e não tenho conseguido ler este livro como deve ser, com o estado de espírito certo. Em geral, só tenho sensibilidade e abertura de espírito para o mundo da poesia quando estou quase a dormir e agora esse momento vive-se na escuridão total. A poesia não é um género que me prenda de imediato, sou incapaz de a ler no restaurante ou no metro. Exige um aquecimento prévio, por exemplo, pensar num amor perdido, na vida, na morte, nessas coisas em que normalmente uma pessoa saudável como eu não pensa. Nisto, já fundi as minhas últimas três lâmpadas em poucas semanas. Antes ainda duravam uns meses, mas o problema da tomada eléctrica agravou-se. Sei que não é do candeeiro porque já usei dois candeeiros diferentes e elas continuam a explodir com um estoiro violento a meio de um poema, às vezes com um efeito que tem tanto de dramático como de assustador. Penso que é uma tomada impetuosa, viril, uma tomada feita para berbequins de 1200w. Se percebe que está a ajudar à leitura de poesia irrita-se e fica embaraçada, como um homem que é borrifado de perfume de mulher. Nunca se me fundiu nenhuma lâmpada a ler Hemingway, é um facto, o problema só começou quando achei que a poesia me podia ajudar a ser uma pessoa mais sensível em geral. De cada vez que a tomada me rebenta com uma lâmpada, o quadro vai abaixo e fico mergulhado no escuro. Tenho medo do escuro e fico muito assustado quando isso acontece. Detesto ter de ir do quarto ao quadro. Não tenho propriamente medo do escuro em si, mas tenho medo de aranhas, detesto aranhas e, no escuro, podemos ir ao encontro a uma teia. Elas às vezes fazem teias em pouco tempo, assim que as luzes se apagam. Tenho de sair da cama e enfrentar a escuridão, tacteando pelo corredor e abanando a poesia à minha frente para destruir uma ocasional teia improvisada. Avanço rapidamente, como um ninja, sei que tenho pouco tempo para ligar o quadro. Não é pelo frigorífico que me pode descongelar as pizas, o problema é o wi-fi de acesso à Internet. Os meus vizinhos de baixo usam a minha Internet numa espécie de acordo informal que não me lembro de ter feito. Talvez esteja relacionado com o facto de não ter configurado uma palavra-chave logo nos primeiros dias de activação do acesso. Bastam uns minutos de wi-fi desligado ou de activação de palavra-chave para começar a ouvir o cabo da vassoura a bater-me no soalho.

cinquenta e sete

r e g n i d o r Sch


Por isso, pensei em deixar de lado a poesia e escrever sobre qualquer coisa do género crítico sobre arte. A arte é uma coisa positiva em geral, mas tudo depende da definição de arte porque se for demasiado ampla começa a incluir coisas que já não são assim tão positivas e que dão à arte uma má reputação. E isto aplica-se a todas as artes, da primeira à sétima e por aí em diante. Infelizmente, a minha memória é péssima e sobram-me sempre apenas umas impressões vagas sobre as coisas, às vezes nem é sobre as coisas, mas apenas sobre os artistas que as fizeram. Por exemplo, sei que gosto muito do Kafka. Podia fazer uma crítica assim: “gosto muito do Kafka” e depois dava cinco estrelas. Tudo isto é parco e impreciso para uma crítica séria e suspeito que não me contratassem para isso. Também não sei se os críticos em geral estão conscientes do paradoxo contido no problema do gato de Schrödinger desenvolvido para a física quântica. Em vez do gato de Schrodinger, podemos falar de um poeta de Schrodinger. Temos um poeta fechado numa caixa forte de aço, a escrever um poema (convém ser um poeta que não sofra de claustrofobia, o que, como se sabe, é muito raro). Com um escritor também é possível fazer a experiência, mas demora mais tempo a escrever as suas coisas, mesmo um conto, ainda é coisa para durar uns dias. O poeta pode fazer poemas no guardanapo enquanto espera pela salada de rúcula com tomate cherry no restaurante vegetariano.Sabemos que esse poeta fechado na caixa tem 50% de probabilidades de escrever um poema brilhante e 50% de probabilidades de escrever um poema péssimo. Antes de abrirmos a caixa e lermos o poema, e o nosso poeta poder respirar e sair um pouco, não sabemos o que ele escreveu. Em teoria, o poeta escreveu um poema brilhante

e mau ao mesmo tempo, em partes iguais, o que é absurdo, uma vez que o poema ou é péssimo, ou é brilhante. É a observação do crítico que faz um dos estados tornar-se realidade e existir. Felizmente, muitos críticos resolveram este paradoxo com uma observação das coisas que também é simultânea: a poesia ou o romance ou o disco nunca são maus, mas também não são brilhantes, são assim esforçados, têm momentos bons e isso é que importa, apesar de alguns momentos menos bons que são referidos de forma discreta para conferir credibilidade à crítica. Contudo, gostava que acreditassem que consigo emitir juízos e sou muito assertivo, só que tem de ser no momento em que a crítica me vem. Sempre que me vem uma crítica eu emito-a verbalmente, mesmo fora do contexto da conversa se se der o caso de estar a ocorrer uma. Nem preciso de destinatário, faço muitas críticas, sozinho, no carro ou à noite antes de dormir ou no banho. Para um próximo texto, conto poder falar de pelo menos cinco ou seis temas para o leitor sentir que não está a perder tempo. Por exemplo: literatura russa do século XIX. É um tema interessante. Às vezes os russos queimavam um manuscrito de centenas de páginas e choravam até à morte. Outros simplesmente amuavam e diziam que já não queriam escrever mais, que não era coisa que valesse a pena porque não salvava a humanidade. Eles preocupavam-se com a humanidade, o sentido das coisas, eram tão ingénuos e cheios de força. Eu acho isto tudo fascinante. Houve um que escreveu sobre um jovem que no fim do romance morre num duelo e ele próprio morreu num duelo (mas só depois de escrever o livro). Os escritores russos do século XIX eram fixes e a minha tomada nunca me fundiu uma lâmpada enquanto lia um. Gostava de poder explicar isto tudo com vagar e ciência. Com todas estas considerações e o problema da lâmpada não vou poder falar detalhadamente da poesia de Pablo Neruda, mas para isto ser um pouco interactivo e ter uma componente de social media e assim, pediavos que imaginassem textos interessantes e até um pouco polémicos sobre poesia, nomeadamente, a de Pablo Neruda. Se conseguirem visualizar os referidos textos, acreditem que os meus seriam exactamente assim, até melhores.


Texto: SALAZAR lustração: Ana Ferreira


ENS AIO

Lourenço Cordeiro alerta para a perda de influência do Romance. A culpa é das Pessoas Conhecidas.

GER AL

«Sempre li muito, mas nesta fase da minha vida interessam-me sobretudo os ensaios», lembro-me de ler num daqueles micro-inquéritos que os jornais vão fazendo às Pessoas Conhecidas. As Pessoas Conhecidas sempre confessaram o seu gosto pela leitura - por enquanto ainda persiste a sensação de que ler é bom, mas nunca se sabe - e nunca esconderam um certo calculismo na resposta à pergunta «O que tem neste momento sobre a mesa de cabeceira?» As leituras mais recentes são cuidadosamente escrutinadas e o título que consideram ser mais respeitável é escolhido como resposta. Nada a criticar aqui: fosse eu uma Pessoa Conhecida e estaria sempre a ler obras de fundo, enormes e densas e inacessíveis, e sobretudo a reler (reler dá mais pontos porque insinua que já demos a volta ao catálogo e já nada existe de novo que mereça a nossa atenção.) O que me inquieta é esta recente apetência para o «ensaio». A que deve este súbito amor das Pessoas Conhecidas pela não-ficção? Temo que a resposta não seja muito poética. As Pessoas Conhecidas querem ser, como qualquer um, Pessoas Respeitáveis, e para se ser respeitável é obrigatório ler-se coisas respeitáveis. E a ficção, no mundo dos questionários de última página, perdeu pedigree. A culpa, paradoxalmente, será das Pessoas Conhecidas que, não sendo escritoras, escrevem romances que não contribuem para o enobrecimen-


expectável que aconteça essa torrente de observações, que o leitor imprudente preguiçosamente poderá adoptar como suas. Deste modo, o ensaio só aparentemente torna o mundo um lugar mais fácil de perceber. Podemos ficar com mais opiniões mas com muito menos certezas.

sessenta e um

Mas nota-se. Nota-se que o romance está a perder influência no modo como nos comportamos. Estamos a perder a cordialidade no trato porque estamos a perder a capacidade de observar com atenção as pessoas que nos rodeiam. O romance é essencial porque nos explica sem darmos por isso; ensina-nos sem nos domesticar. Cria referências sólidas contra as quais podemos avaliar a nossa pessoa e as outras pessoas. Ajuda-nos, sobretudo, a perceber que não estamos sozinhos e que isto não é um jogo de um contra todos. Aquilo que somos hoje devemos ao romance e à sua história. Sem o romance, seríamos uns brutos (como o fomos até ao romance). Um exemplo? O amor. Aposto que as Pessoas Conhecidas gostam muito do amor.

Texto: Lourenço Cordeiro Ilustração: Sara Pazos

to do género, para utilizar um eufemismo. Depois, isto tudo torna-se num enorme ciclo viciado onde já não é possível identificar quem é o criminoso e quem é a vítima. As editoras percebem que os romances das Pessoas Conhecidas vendem, as Pessoas Conhecidas nunca dizem que não a uma oportunidade de lançar obra no mundo, o público está sempre disposto a adicionar qualidades às Pessoas Conhecidas (para depois a queda ser maior), e quem se lixa é o romance, a quem nunca ninguém perguntou nada e que é tratado como a garota de programa para toda a ocasião. Resultado: chega o dia do inquérito e a Pessoa Conhecida tem pudor em dizer que está a ler um romance e salta logo para o ensaio (ou a poesia, no caso de a Pessoa Conhecida ser mulher - os homens, sabe-se, não lêem poesia). Como ainda não foi inventada a figura do ensaio-light, o terreno é seguro. Mas claro que isto é o reflexo de uma grande falácia: a falácia de que o ensaio nos explica melhor o mundo do que o romance. Talvez seja verdade que o ensaio é um género mais livre do que a literatura, no sentido em que no ensaio podem dizer-se coisas, enquanto que na literatura só é aceitável que as coisas sejam mostradas. Como disse famosamente Gerturde Stein a Hemingway, «observações não são literatura», e a tentação de qualquer romancista principiante é a de metralhar o leitor com as suas. E quando a ficção se enche de juízos, deixa de ser ficção. Já no ensaio é




O Eremita de Ourique viaja às origens do palato, num manifesto de ataque civilizado ao vegetarianismo. Muito antes de ter alojado na memória os gritos de cenas de filmes de terror, já ouvia os grunhidos de um porco preto a instantes de ser degolado. Quando li que os incas faziam sacrifícios humanos, só me lembrei do porco virado de barriga para cima sobre uma mesa baixa e agarrado pelas patas curtas por quatro homens. Com o passar dos anos, fui compondo aquela memória. Emprestei à faca na sua derradeira pausa um reflexo cintilante, ao sangue que jorrou às golfadas do pescoço juntei o som de um riacho e creio que suprimi o olhar do bicho, pois esqueci os seus olhos e não sei se neles havia branco e uma pupila, se eram impávidos como os de um tubarão ou transmitiam alguma sensação, nem se no fim ficaram revirados. Foi numa manhã de Dezembro, no quintal do casarão dos avós; a respiração condensava-se no ar e o frio suprimia todos os cheiros, menos o dos pêlos do porco chamuscados a tocha de gás. Entretanto, amadureci omnívoro, vim para Ourique e a vila reinventou-se como capital do porco preto alentejano. Sigo agora pela rua perguntando se não defini ainda uma moral da dieta por cobardia intelectual, isto é, se não terei bloqueado uma conclusão que a meio do raciocínio antecipei poder vir a ser algo incómoda -- porque não me daria jeito nenhum abraçar o vegetarianismo, tendo em conta que posso vir a depender do comércio do porco preto alentejano num futuro longínquo. E se assim pode ser, como garantir que o meu pensamento não é apenas guiado por um comodismo disfarçado? Com quanta coragem, quanta razão e em que proporções se chega à causa última das coisas? Como sabemos que é saudável uma dieta vegetariana devidamente acrescida de alguns suplementos que não se encontram nos produtos de origem vegetal, não há necessidade de matar a fome matando um animal. Esta é uma conclusão inevitável e todos os argumentos contrários podem amenizá-la, mas não creio que a erradiquem. Tentemos três. O primeiro: que ser omnívoro é uma condição natural a que temos direito, algo que não se rebate como Plutarco tentou, fazendo ver que não temos a constituição física dos predadores carnívoros, mas lembrando que a nossa humanidade se constrói reprimindo toda uma série de pulsões naturais. O segundo: que os coelhos, roedores, répteis e outros animais que vivem nos campos cultivados são mortos durante as colheitas, pelo que uma dieta vegetariana não é imaculada, o que se contraria fazendo a distinção entre a morte premeditada da vitela e o dano colateral que é um coelho decapitado por uma ceifeira-debulhadora. O terceiro: que são muitas as famílias a depender do mercado da carne, o que, no entanto, se resolveria com vontade política. Ter lido há uns anos que o bebé de um casal de vegans tinha morrido de subnutrição faz-me admitir que, precisamente por ser tão chocante, talvez tenha encontrado em tal notícia uma justificação para os meus hábitos alimentares. Mas porque não deixei de ter presente que não é pelas franjas de fanáticos que devemos julgar um movi-


sessenta e cinco Texto: O Eremita de Ourique Ilustração: Anelie Schineider

ão fame sensaç in a h in m a de que m complexo u mento, creio o d tu re b flectia so e omde triunfo re ciedade, é-s so a ss o n a N . ante” -inferioridade o não pratic lic tó a “c é enos se passivo. A m nívoro como te n e m ta lu abso etarianos, de um modo mília de veg fa a m u n a vo, que que se cresç m gesto acti u é o ã iç d n co de conassumir essa o e uma atitu xã fle re a m u tade um implicou de uma von o ã ss re xp e r por um sequente. A o que saliva d xa le p m o c s vegpouco mais is admiro no a m e u q o , ntes ois çam incoere presunto é, p re a p e m e u inda q xemplo etarianos, a e que são e d s, so is m ro certos comp peixe. s brancas e comer carne se me a suinicultura o tã n e r a ç lógio de Como abra a bomba-re m o c o d a ilh mergir sinto armad que, para e te n te la o m de nis splendor, po e um vegetaria l e v tí a p m u inco e umas em todo o se stemunho d te o d r a it ss e s arapenas nec orco? Um do p e d s a ç n ue o ata adicionais m etarianos é q g e v s o d s o lássic arne seria gumentos c m quilo de c u z u d ro p e ente alimento qu tar directam n e lim a a o st ue a as sabe-se q mais bem ga M s. a d ia c n care ossível alipopulações que não é p iz d m é b bolotas, m prática ta nciadas com re a c s e õ ç la eru mentar pop do, que se p ta n o m o d o nte, olh E, curiosame cereais e rest s. o rc o p r e v no hou uma das co ria derão se nã se s o rc o p ncia de vegetaria não existê universal do o sã n a xp e dos da sequências o sofrimento m o c ria a b ém aca m, mas tamb e anismo, que m o h lo e p ocado xemplares animais prov ns poucos e u a s o v ti c fe onsolo reduziria os e ntro algum c o c n E . o ic g biliza oló ais responsa de jardim zo m e u q o r se por crifineste cenário nimal nasce para ser sa a o do com o criador. Se os compensa n e m lo e p ja ueia à cado, que se o preto vag rc o p O . liz cia fe is meses de uma existên nos últimos se o d ta n o m do quase solta pelo e aumentan s ta lo o b o d tade. vida, comen ontânea von sp e e re liv , de acontece 1 Kg por dia força, como à o d a rd o g Não é en ie gras. que dão o fo s to a p s o m co riquiado e um pe g á c m u s, e sam. e cã . Não me pe Morreram-m ta is v a d e g pre lon bro, to, mas sem hã de Dezem n a m à s a n e rte, Regresso ap ação mais fo c o v e a m e to v ão ou do e pelo olfac s pêlos da m o o sc u m a h nada se quando c u cheiro em e m o e u q mente braço e noto rco. É segura o p le e u q a o. d ra que destin distingue do a p r e b sa a . Rest um desígnio


Para todos aqueles que não tenham reparado, acabámos de viver os melhores quinze anos do futebol português ao nível de selecções. Infelizmente, esse maravilhoso projecto começado com “Geração de ouro” queirosiana parece ter entrado na sua fase de declínio, sentindo cada vez crescentes dificuldades em se qualificar para as grandes provas internacionais. Na história que já começou a ser escrita deste período áureo, muitos avançam com as datas consideradas essenciais para o início desta sucessão de conquistas futebolísticas. A entrada de Carlos Queirós para os quadros da Federação, as vitórias consecutivas nos Mundiais de Sub-20, a Lei Bosman que permitiu que os melhores jogadores portugueses jogassem nas melhores equipas europeias. Mas arriscamo-nos a avançar com a data de 11 de Outubro de 1995 como a mais marcante para o que é, talvez, o maior e inigualável feito mental do futebol em Portugal. Como em todas as coisas, talvez seja melhor começar pelo princípio. O primeiro grande feito do futebol português data de 1961 quando, liderado pelo jovem José Maria Pedroto, Portugal organizou e venceu o Torneio Internacional de Juniores da Uefa, uma espécie de antecessor dos Campeonatos da Europa de Sub-18. No entanto, só um dos jogadores des-

TERAPIA DE CHOQUE em Viena de Áustria

Luís Filipe Cristóvão relembra o dia 11 de Outubro de 1995 e aquela Geração de Ouro que, ao que tudo indica, já não existe.

sa equipa (Simões) teria papel de relevo na campanha que levou a equipa portuguesa ao Mundial de 1966, onde obtivemos um, até hoje, irrepetível terceiro lugar. Apesar de um período áureo também ao nível de clubes (o Benfica ganhou duas Taças dos Campeões Europeus e o Sporting uma Taça das Taças), a mentalidade do futebol português parece não ter assumido a condição que os resultados lhe permitiam. E tendo-se seguido uma série de finais europeias perdidas, tal como foi perdida a continuidade na participação nas provas de selecções, Portugal entrou num período negro da história do seu futebol. Durante as décadas de 70 e 80, Portugal acumulou craques, vários deles com carreiras internacionais, mas a selecção não mais conseguiu que uma outra presença fugaz nos grandes palcos. Humberto Coelho, João Alves, Jordão, António Oliveira, Vítor Damas, Fernando Gomes e Chalana foram-se sucedendo na equipa das Quinas sem deixarem marca maior do que a atingida em 1984,


Passando por cima da já citada “geração de ouro” que conquistou o mundo na categoria de Sub-20 mas falhou a qualificação para o Euro 92 e para o Mundial de 1994, chegamos então de novo a Viena de Áustria, onde uma equipa local lutava para não cair nos confins do futebol europeu e recebia Portugal, que tentava, sob a liderança de António Oliveira, “conquistar o Campeonato da Europa”. É um facto que este treinador, um mágico de palavras bombásticas, havia entrado a matar na liderança da selecção. Pela primeira vez, a mentalidade era ganhar, levar tudo à frente, em vez de tentar

em Lisboa. Pôs a mão no ombro do baixinho Dominguez e disse-lhe “Vai lá para dentro ensinar a esses nazis como é que se joga à bola”. A terapia de choque que mudaria a psicologia do futebol português resumia-se toda nessa frase polémica que teria repercussão nos meios de informação por toda a Europa. Portugal agora entrava em campo para ensinar aos outros como se fazia.

chegar a Europeus e Mundiais defendendo e batendo em tudo o que passasse da linha do meio-campo. No dia 11 de Outubro de 1995, o jogo empatado depois de um golo de Paulinho Santos, e ainda com vinte minutos para jogar, António Oliveira não quis defender o resultado que lhe permitia levar a decisão para a última jornada da qualificação,

Texto: Luis Filipe Cristovão

Quinze anos passados, quatro Europeus e três Mundiais depois, podemos dizer, sim, nós ensinámos a alguns como se joga à bola. Mas como manter é mais difícil do que criar, sobretudo entre nós, portugueses, uma outra terapia de choque será necessária para passarmos ao passo seguinte. Por exemplo, por uma vez que seja, ganhar.

sessenta e sete

no Europeu realizado em França, logo obscurecida pelo “caso Saltillo” de 1986 e o que se seguiu: uma selecção praticamente sem jogadores de equipas grandes, ferida de morte no mesmo ano em que o Porto conquistava, em Viena, um título europeu de clubes.


Pensei em algum dia, em alguma altura que não a de hoje, que a lata de cada um fosse medida segundo tipos de lata convencionais, como por exemplo a lata de salsicha tipo Frankfurt, a lata de atum ou mui nobre lata de sardinha. Pensei posteriormente que talvez o modelo em si, sugerisse muito pouco daquilo que é o conceito de lata aplicado às pessoas e não às latas propriamente ditas. Talvez a quantidade seja determinante: uma palete de latas de feijão manteiga, valerá certamente mais que uma lata do mesmo feijão em presença singular. Ao fim e ao cabo, nada disto leva a lado algum, em definitivo será o recheio que determina aquilo de que uma boa lata é feita. A sardinha em lata tem outra proeminência que não tem a ervilha ou o milho doce. O recheio faz uma boa lata e agora que penso, sempre pensei que dessemos um bom recheio. Temos tradição e temos o saber, falta orgulho em ter lata e também falta só o orgulho. A lata foi reduzida à desprestigiante condição de embalagem e quando olhamos a medo para ver o que há, não se vê nada dentro. Chegamos a esta hora dos acontecimentos e deparamo-nos com uma dolorosa falta de escabeche na guelra de tanta sardinha. Não temos mais do que a própria lata, embebida em qualquer coisa que não é nada, existindo naquele reduto metálico que lhe guarda a agora inexistência. Não cheguei a perceber se nos esgotámos em conteúdo ou se simplesmente somos recipientes sem nada dentro. Se existe o momento certo para qualquer coisa, que não nos falte a lata e o conduto nesse momento crucial. Parecemos homens e mulheres envergonhados na sua condição de peixeiras e pescadores, de feirantes e de sacristãos. Se existe um momento certo acharia melhor que nos preparássemos para regatear, para vender o nosso peixe, parar berrar aos três diabos e para tirar da despensa essa lata, nunca esquecida por tanto tempo que se lhe expire a validade. Já não se vê a lata de antes e quanto muito vê-se a “cara de pau”, essa versão brasileira e bem mais açucarada do verdadeiro sentido do desembaraço à portuguesa. Perderam-se os manuais, perderam-se os mestres, perderam-se os estudantes. Não sei quem os fez assim com tanto medo. Vão crescendo a fome e a sede, vai crescendo a ignorância, somos coisas sem lata perdidas numa espécie de desígnio avulso. Faz falta essa fortaleza estanhada, faz falta a lata ao homem que não vive só de pão e que aprecia também o modesto e digno enlatado. Vai faltando a coragem e vai faltando a falta de vergonha; vai faltando genica a quem come da lata e come calado.


Texto: Ana Brás Ilustração: Francisca Faísca

sessenta e nove

Ana Brás abre a lata e diz-nos o que fazer em tempos difíceis. Damos-lhe o crédito que merece.




Texto: Mariana Baldaia Ilustração: Mariana Baldaia

Manuela Bacelar


Mariana Baldaia ilustra, todas as semanas, uma figura da cultura nacional. Eis alguns dos exemplos. Eu descobri o que queria fazer da minha vida, graças à crise. Por muito que me incomode toda esta falta de emprego, de dinheiro, de estabilidade emocional e profissional, foi a crise que me fez ir para a Ilustração. Em 2009, acabo a licenciatura em Design Gráfico na ESAD-Matosinhos, cheia de expectativas para a nova fase da minha vida, a fase adulta, responsável. Como aconteceu a muita gente, fui confrontada com a falta de emprego em Portugal, dedicando-me então a fazer o portfólio, a participar em concursos e, seriamente, a considerar o mestrado dentro da minha área, mais precisamente Design Editorial. Numa noite, estava com uns amigos arquitectos no nosso atelier e eles estavam a fazer maquetas, mais precisamente a cortar curvas de nível em cortiça e a atirar para a minha mesa, enquanto eu pensava na morte da bezerra. Não sei se foi do cansaço de estar sem fazer nada, mas comecei a ver figuras nas formas que me iam aparecendo na mesa e comecei incessantemente a desenhar na cortiça, o que via. Nessa noite decidi ir para Ilustração, muito repentinamente e sem nunca ter tido grande amor pelo desenho, o tédio levoume a um território completamente desconhecido e ignorado, mas completamente viciante! Sou ainda muito tenrinha nestas andanças mas tenho a certeza que quem desenha, não é por ser giro fazê-lo, mas mais por ser


Armanda Paรงos


uma espécie de vício, desabafo, consolo. Está em todos os estados de espírito possíveis. Tanto que ao fim de 2 meses de mestrado, deixei de ter vida social por opção, neste momento estar fechada no meu espaço a desenhar é o melhor programa que me podem propor. No entanto não podia deixar de concorrer ao Mestrado em Design Editorial, nem que fosse por lealdade à área pela qual tinha estado 4 anos a estudar. Tentei as Belas Artes, mas felizmente não fui aceite e fui mesmo para Guimarães para o mestrado em Ilustração, que vai a meio agora e não podia estar a gostar mais. O meu objectivo agora é aproximar a Ilustração do design, insistir nos cartazes e flyers ilustrados, dar manualidade à publicidade, insistir no lápis, na expressão que o desenho pode trazer às ruas. Um dos trabalhos que destaco do meu processo de mestranda é a “Colecção de Artistas Portugueses” que dura há mais de 6 meses e serve como base de estudo, de motivação para eu própria encontrar a minha linguagem no mundo da Ilustração. O trabalho consiste na representação de um artista por semana.

Almada Negreiros

Artistas Portugueses porque senti uma necessidade de explorar o território artístico nacional e represento muitos artistas que desconhecia e pelos quais fui ganhando um carinho especial. Para cada um houve uma pesquisa não muito extensiva para não ficar demasiado presa e colada aos próprios, como aconteceu por exemplo com o Mário Botas, que foi um artista que estudei mais a fundo por haver pouca informação sobre ele e fiquei completamente absorvida no seu mundo. Pretendo que o público perceba de imediato qual o artista ilustrado quer seja pela “caricatura”, quer pela técnica, temática, cor, etc., quero uma ligação directa ao artista, quero relembrar o que de bom se fez e se faz cá, sem nunca deixar de ter a minha presença implícita no quadro. Ao longo do processo fui sentindo que os estava a homenagear de alguma forma e também a adquirir eu própria as suas influências quer temáticas quer técnicas!

setenta e cinco

Mário Botas


Amadeo Souza Cardoso Ao mesmo tempo que ia desenvolvendo este projecto, estava também a ilustrar 3 contos escritos pela minha mãe sobre Alcabideque, que foram obviamente o espelho da influência do trabalho paralelo dos artistas. Ambos os projectos estão inacabados. O dos artistas é um trabalho sem fim à vista sendo que há sempre alguém que eu posso desenhar e à medida que o espectro vai reduzindo, mais interessante fica a busca. Os contos da minha mãe são 6 no total e espero tê-los prontos até fins de 2012 para começar a bater às portas das editoras. Para finalizar o mestrado vou mesmo mergulhar no mundo do cartaz ilustrado, sendo que a minha preferência cai sobre o Teatro. Pretendo ilustrar durante 1 ano cartazes para várias peças, sendo que a companhia para a qual o vou fazer ainda está “sob investigação”. Ainda não podendo subsistir quer do design, quer da ilustração, o terror da crise esmoreceu um pouco e abriu-me portas para outras opções de vida, nem que seja para não andar moribunda num momento tão hostil.


JĂşlio Pomar setenta e sete


Ant贸nio Quadros


setenta e nove

Helena Almeida


O imaginário de

RITA MELO Rita Melo prova que a pintura vem do passado. E ataca o futuro.

Encontrámos a artista em Aveiro, no atelier da irmã, também das artes, entre a simpatia de nos receber para conversa e os sonos do filho pequeno. O objectivo era claro e humilde: conhecer os motivos. Acabámos por conhecer o imaginário. Rita Melo (1982) é uma artista plástica portuguesa, com formação na Escola Universitária das Artes de Coimbra (ARCA) e na Universidade de Belas Artes de Lisboa. Expõe desde 1999 e o seu trabalho é já reconhecido como dos mais promissores da pintura nacional. A pintura de Rita Melo assume-se pela ironia patente na concepção pictoral e conceptual. Maioritariamente em grandes proporções, o seu trabalho nasce em fotografias: “são a origem da minha pintura. A minha obra criativa começa logo na escolha do motivo, na selecção da fotografia que tiro.” “As figuras inacabadas, onde o ocaso é convidado a participar, contrastam com o fundo que as recorta com espaços vazios e uma linguagem estilizada. Os corpos em várias perspectivas são ampliados. Observada de muito perto


oitenta e um


a pintura realista adquire um padrão abstracto. Este ponto é explorado na minha obra pictórica.” O corpo é habitual no seu trabalho, cabendo em si todo o humor e toda a ironia das cores. A crítica social, a lembrar a Pop Arte, também é algo que visível em muitos dos quadros de Rita Melo. São telas simples e directas, com

um enquadramento frontal e perspectiva, onde as personagens e os objectos surgem com cores vivas e dissonantes de publicidade, oferecendo-nos uma nova abordagem da realidade. “O humor e a ironia são dois conceitos que me importam explorar muito no meu trabalho. As telas grandes começaram ainda na fase


oitenta e três académica, onde podia explorar os materiais. Encarava isso quase como uma performance, embora não possa dizer que seja isso. É um acto de criar espontaneamente, livremente e de extravasar principalmente em grandes formatos. O impacto cria-nos uma sensação de ser algo maior e de grande dimensão, mas por uma questão de dificuldade no trans-

porte, comecei a trabalhar em formatos mais pequenos.” Rita mostra-nos uma nova realidade na pintura contemporânea portuguesa, com uma clara oposição entre o passado recente e um futuro global mas impreciso.



oitenta e cinco


Helena Bento conta as mulheres e as noites do pintor belga. “Sempre quis que as minhas cores cantassem.”

Deambulam pelas ruas e jardins, em procissão ou cortejo fúnebre, sentam-se em lugares reservados, como para assistir a uma peça ou, simplesmente, deixam-se ficar deitadas, à espera – de quê, não se sabe, mas o olhar vazio, quase vítreo, mostra que o que procuram está menos ali, entre aqueles homens que se reúnem em grupo para trocar impressões e ideias, do que numa outra dimensão: numa dimensão misteriosa, sem coordenadas de tempo e espaço. Numa dimensão surreal, e tudo o que isso se priva de implicar, porque o surrealismo é mesmo assim – subversivo e, à primeira vista, incoerente. Foi essa dimensão que Paul Devaux (1897-1994), pintor belga, explorou nos seus quadros a partir de 1936, altura em que se afastou do estilo expressionista e se deixou influenciar pelo Surrealismo de René Magritte (1898-1967) e pela Pintura Metafísica, particularmente a de Giorgio de Chirico (1888-1978), figura emblemática e líder desta tendência de pintura do séc. XX, famoso pelas suas pinturas de praças vazias e misteriosas, embevidas em solidão. Ao jeito de Chirico, Delvaux procurou introduzir elementos de referências à arte clássica e desenvolver a técnica da perspectiva (usada, como se sabe, a partir do Renascimento,) na representação de espaços urbanos e edifícios. Além disso, não foram raras as vezes em que explorou os contraste de luz e de sombra, reforçando, deste modo, a carga erótica e sensual já transmitida pela presença de mulheres nuas.

Estas mulheres a que Delvaux deu uma forma, cobriu até ao rosto com longos vestidos (mais uma vez, em alusão ao início do Renascimento) ou túnicas que deixavam um ou os dois seios a descoberto, ou simplesmente despiu - em referência à Vénus, a mesma que emerge do banho, de acordo com a tradição académica europeia – situamse num lugar irreal, onde não pertencem e talvez não queiram pertencer, ainda que o lugar que não exista seja o mais desejado. Parece que alguém as atirou para ali, apenas para fazê-las estar. Em alternativa à fuga, sugerida pela introdução de elementos


Texto: Helena Bento

oitenta e sete


d.r.

como o comboio ou as estações em que estacionam, há a espera, que por ter como limite a morte apenas do corpo, e precisamente por isso, lhes devolve a esperança . Por isso, mantém as mãos enlaçadas, abertas em concha ou deitadas no regaço, como quem aguarda pacientemente uma dádiva, depois de mastigar a ladainha e dedilhar as contas do Rosário, ou não fosse a oração uma outra forma de submissão. Tanto se pode encontrar aqui um elemento religioso, como não. Fica a sugestão, do mesmo modo que David Scott, num estudo publicado em Novembro de 2005 (disponível em www.imageandnarrative.be), sugere a possibilidade de se tratarem de “prayer-books” os livros que as mulheres jovens lêem, tanto em La Dame de Loo (1969), como em L’Office du Soir (1971). O facto de estarem nuas resultará numa justaposição de signos que gera vários significados e, naturalmente, várias interpretações, efeito que também é pretendido por Devaux ao deixar em branco as páginas

A mesma pretensão desses livros. Em L’Homme de la Rue (1940) ainda segundo o mesmo autor - a presença, no mesmo espaço, de mulheres nuas, em posição imóvel, e do homem que lê o jornal enquanto caminha, torna incoerente e contraditória uma cena já de si onírica. Lê-se “La” no título do jornal, que é, aliás, a única palavra visível e com sentido. Estará o jornal de alguma forma relacionado com a intimidade feminina ou será como o suporte físico que não só ajuda à indistinção entre sonho e realidade como torna mais fácil e rápida a viagem de um lugar ao outro? A sê-lo, a mulher com quem partilha aquele espaço não representa outra coisa senão o seu sonho, o seu ideal; o


objecto que deseja, porque excluído das suas possibilidades. As duas possibilidade são válidas, precisamente porque Paul Delvaux não pretende sequer que haja uma aproximação à intenção da sua obra. E é válida também a possibilidade sugerida num outro estudo, disponível em www. actingoutpolitics.com, em que a figura feminina, explorada em toda a obra de Delvaux, representa um dos complexos dos homens relativamente às mulheres – medo, quase fobia, que faz recuar ante a ideia fixa de que tal atracção, resultado de um enfeitiçamento em que não colaboraram, poderá causar um desequilíbrio na relação; um desequilíbrio que, com algumas excepções, se justifica pelo ataque à ideia concebida a respeito da sua própria virilidade. Ou um medo, quase fobia, que entorpece e cobre de insegurança os seus movimentos, porque, e citando o autor do estudo - “The feminine soul we feel as unknown (the unknowable?) is always silent

even when the woman we love is talkative”. Do interesse de Delvaux pelo conhecimento científico, resultou uma profunda consciência do artista pela estrutura do esqueleto do corpo humano. Tal é representado, por exemplo, em The Conversation (1944) em que uma mulher aparece exactamente na mesma posição do que o seu esqueleto, como se um espelho atravessasse ambas as figuras. E é quando, no mesmo espaço, vemos aquele ou outro esqueleto muito próximo de uma ou mais mulheres, quase se tocando (La Vénus Endormie, 1944), que os quadros de Delvaux causam verdadeiro desconforto, como se, da mesma forma que a figura feminina personifica o medo e a insegurança do homem, também aquele esqueleto personificasse a angústia daquelas mulheres - a dúvida, quase certeza, de afinal estarem já mortas.

oitenta e nove

d.r.




Projecto inspirado no conceito original de resgate coreográfico do Método DeRose. A sessão fotográfica aspirou recriar um ambiente urbano e industrial para transmitir uma imagem de energia, equilíbrio, força, flexibilidade e adaptabilidade.


noventa e trĂŞs


Fotografia e Pós-Produção | Espaço Branco (Pedro Afonso, Nuno Gama Perform


a, Helena Carriรงo) mer | Marco Silva

noventa e cinco



noventa e sete



noventa e nove


Texto: SALAZAR lustração: Ana Ferreira


cento e um SALAZAR lançou o apelo. O objectivo era encontrar encontrar a literatura nos muros de Portugal, o país dos poetas.


Fotografia de Ana Isabel Salvador, em Lisboa


cento e três Fotografia de Cláudia Brandão, no Porto



cento e cinco Fotografia de Daniel Moreira, no Porto


Fotografia de Clรกudia Brandรฃo, em Coimbra

Fotografia de Rita Snow Red, em Lisboa.


cento e sete Fotografia de Daniel Moreira, no Porto


Fotografia de Daniel Moreira, no Porto


cento e nove Fotografia de Guilhermo Albino, na Figueira da Foz




PRIPYAT

Um futuro radioso Ana Cássia Rebelo não esteve em Pripyat, a cidade fantasma que se foi com Chernobyl. Mas nem por isso.

Encontro o meu pai de pijama de popeline vestido, sentado em frente do televisor. Beijo-lhe o cabelo para sentir o aroma da loção capilar que usa há muitos anos e sento-me no sofá. Trago o corpo cansado, os pés rebentados de tanto andar, sabe-me bem aquele descanso no silêncio crepuscular da sala do apartamento dos meus pais. O que é que estás a ver?, pergunto-lhe. Não me responde. Olha a televisão como se o aparelho fosse uma feiticeira, uma circe capaz de encantamentos e canções mágicas. O meu pai está hipnotizado. Olho à procura da razão de tal pasmo. Também eu, a partir do momento em que descalço os sapatos e pouso o olhar no televisor, fico cativa das imagens que vejo. São imagens de abandono e desolação que não consigo, a princípio, identificar. Uma piscina coberta, um tanque imenso, muito profundo, vazio, descarnado, consegue-se ver o que as águas cloradas, de plástico líquido, sempre escondem, o fundo de ladrilhos soltos, o preciso lugar onde se abate numa inclinação acentuada e abrupta, aqui temos pé, aqui já não temos, estamos a flutuar como se fossemos peixes. A estrutura de uma plataforma de saltos, com três níveis, mantém-se intacta apesar do tecto ter sucumbido a vários anos de tempestades. A seguir, vêem-se blocos habitacionais, são ruas e ruas, alamedas, avenidas, de blocos de apartamentos, todos iguais, casas que são como clones criados a partir de óvulos não fecundados, uns atrás dos outros, numa arquitectura assexuada, traçada em linhas paralelas e perpendiculares, esquisso de perfeição e austeridade. Porém, ninguém caminha por aquelas ruas. Ninguém habita aqueles apartamentos. Uma floresta de bétulas, vidoeiros, faias e salgueiros, irrompe pelos espaços abertos, as raízes grossas tomam conta dos passeios, das estradas e dos cruzamentos. Árvores frondosas, de folhagem brilhante e frutos que transportam a tentação do pecado, impedem as ruas de receber luz, fica a cidade com uma cor azulada e sombria. Em alguns locais há centáureas gigantes, carnívoras, que mostram os seus cardos roxos. A câmara passa depois para o interior dos apartamentos dos blocos habitacionais: tintas estaladas, objectos esquecidos, uma intimidade que foi devassada, interrompida; um cadeirão de braços forrado a napa vermelha, uma cadeira de espaldar tombada; posters gigantes de figuras do regime soviético, Brejvev, Chernenko, Gorbatchov; no parapeito solarengo de uma janela estilhaçada vêem-se dois peixinhos de borracha amarela; pelo chão desses apartamentos, em nichos de lixo e entulho, há muitas bonecas de corpo rijo, pose estática das pernas abertas, dormem de olhos abertos um sono eterno. As imagens sucedem-se em silêncio. Impressionam, por serem de uma beleza burlesca e desconcertante, as imagens de uma roda gigante com as suas cabines folheadas de chapa amarela, parecem campânulas solitárias balouçando ao vento. Há também um carrossel de cavalos funâmbulos que sorriem, mostrando a beleza da sua dentadura equídea. Pelas imagens que passam no ecrã, percebo tratar-se de uma cidade abandonada, uma pompeia moderna; é, não tenho dúvidas, uma cidade soviética, a avaliar pelos posters das figuras do regime, pela estatutária das praças, Lenine, Estaline, pelos punhos gigantes que se erguem por todo o lado. Que lugar é este, estranho, quieto, onde o bosque boreal cresce no meio


Texto: Ana Cรกssia Rebelo Fotografia: Paula Leite

cento e treze


das avenidas? Que cidade é esta, cristalizado no tempo e no espaço, que mostra a beleza do silêncio, da ausência, da escuridão, do precipício? Uma voz explica, por fim, a história daquele lugar. Trata-se de Pripyat, situada a 30 quilómetros de Chernobyl, cidade planeada para acolher cientistas, engenheiros, operários. Tinha um cinema, um teatro com uma grandiosa escada de caracol, várias piscinas, um hotel, muitas escolas e hospitais, possuía todas as infra-estruturas que o regime soviético considerava necessárias para o bem-estar do povo. Habitada por quem trabalhava na central nuclear, a média de idade dos cerca de quarenta mil habitantes da cidade rondava apenas os 26 anos. Para o regime todas as cidades deviam ser como Pripyat, planeadas, organizadas, assépticas, nenhuma cedência à espontaneidade e à liberdade, regras claras de distribuição dos habitantes, edifícios para casados, edifícios para solteiros, procedimentos para a utilização dos espaços públicos, só se é feliz com regras. Uma cidade assim era o que o regime queria, sem ponta de ranço do passado, em nenhuma esquina a beleza das cúpulas douradas da arquitectura bizantina. Ali, em Pripyat, só a alegria das cidades planeadas. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro se cumpria no presente. No dia a seguir ao acidente, a cidade despertou na sua rotina, ignorando


Pela tarde, chegou a catástrofe: foram afixados em todos os blocos, em todas as portas, em cada espaço público, avisos de evacuação. Explicavam que, dado o acidente, em face do risco de radiação, a cidade teria de ser evacuada. Era uma evacuação temporária, os habitantes deveriam levar pouca coisa, elementos de identificação, qualquer coisa para comer, deixassem tudo como estava, trancassem os seus apartamentos, voltariam em breve. Depois, chegaram autocarros, mais de mil, vindos de toda a república. Os habitantes de Pripyat nunca voltaram. Ficou a cidade deserta, absolutamente quieta, envelhecendo. A floresta boreal avançou e cobras radioactivas treparam pelas paredes, aninhando-se dentro do corpo das bonecas que as meninas não puderam levar. Pripyat, cidade modelo, onde o futuro radioso nunca se cumpriu. O documentário está prestes a terminar, o meu pai já tem o comando na mão, prepara-se para mudar de canal, quebrou-se nele o encanto. A última imagem que vejo é a de um homem jovem que fala num inglês truncado, próprio dos eslavos. Entra num apartamento, era ali que morava numa perpendicular à Avenida Igor Kurchatov. Aos domingos, explica, entrando num quarto, a minha irmã ia com a minha mãe ao Hotel Polissia preparar o desfile do 1º de Maio, eu ia com o meu pai à piscina e passava horas a nadar. Deambula pelas divisões em silêncio. Fui muito feliz em Pripyat, explica, por fim, o homem. Não há angústia na sua voz, nem amargura, não tem os lábios contraídos ou retesados, nenhum ardor lhe come as vísceras por dentro.

cento e quinze

a dimensão da tragédia. Os jovens casais de cientist No dia a seguir ao acidente, a cidade despertou na sua rotina, ignorando a dimensão da tragédia. Os jovens casais de cientistas, engenheiros, técnicos de manutenção, despediram-se com um beijinho. Um homem pediu à mulher que, se arranjasse beterrabas e repolho no mercado, lhe preparasse um borsch com natas azedas para o jantar; uma rapariga levou para a fábrica uma merenda de conservas de pepino e pães de ázimo; dois velhos planearam uma pescaria no rio, num recanto fresco, perto de um bosque de abetos, onde nadavam trutas gordas; uma mulher apanhou o comboio para Kiev na estação de Yanov e, ao olhar a cidade sentiu, sem a saber explicar, a nostalgia aguda dos espaços vazios. Nessa manhã, a vida continuou como se nada fosse, porém, a radioactividade, bicho invisível, já se havia espalhado por toda a cidade, entrara nas casas, gotejara pelos algerozes, penetrara nos solos, espreitara pelas frinchas, procurara o coração dos objectos, dos animais e das pessoas para aí se instalar.



cento e dezassete Levanto-me. Volto a beijar o cabelo do meu pai, também ele forçado a abandonar uma cidade e uma vida. Em mim, o feitiço nunca se quebrará, levo comigo, para sempre, aquele lugar de assombrações, onde não há homens mutantes, nem tumores crescendo nas crianças, nem velhos com quistos nascendo aos cachos, onde não há cães de duas cabeças, só bétulas gigantes de folhas verdes.


SALAZAR ouviu dizer que há uma grande superfície comercial sueca cuja funcionária virtual prima pela simpatia e eloquência. Fomos falar com ela.


A SUÉCIA É UM

És empertigada ou limitada? Lamento, mas não entendo o seu comentário! E se falássemos sobre a IKEA? Tudo bem. Que sofá me aconselhas? Há muitos artigos sofá disponíveis no nosso catálogo. E malas? Toda a gama de produtos IKEA FAMILY foi pensada para si! Tudo para que se inspire, viva mais a sua casa em segurança, relaxe e, mesmo em viagem, leve consigo a essência da sua casa! Queres uma mala? No nosso catálogo há muitos artigos MÅLA. Selecione o seu modelo favorito. Não percebeste. “Queres uma mala?”. Diz isto muito rápido. Agradecia que fizesse apenas uma pergunta de cada vez. Obrigada pela sua compreensão. Desculpa, estou a ser insolente. Gostas de política? Gostaria muito que me fizesse perguntas sobre a IKEA.

cento e dezanove

LUGAR ESTRANHO

Ilustração: Ana Vargues

Bom dia, Anna. Já resolveste o problema? Olá! Bom dia, tem alguma questão sobre a IKEA? Não. Mas o problema, já resolveste? Qualquer questão pode ser entendida de diferentes maneiras. Quer saber mais alguma coisa sobre a IKEA? Afinal, sim. As almôndegas. O que levam as almôndegas do IKEA? Agradecia que fizesse apenas uma pergunta de cada vez. Obrigada pela sua compreensão. Vamos falar de coisas sérias. O que achas de SALAZAR? Estou contente por trabalhar na IKEA! Se gostava de integrar a nossa equipa, consulte a página seguinte. Nada disso. Não me apanhas de polo amarelo. Gostas de bifes? Agradecia que fizesse apenas uma pergunta de cada vez. Obrigada pela sua compreensão. Podiamos comer um bife, Anna. Sei de um sítio onde o bife é de sustento. De que loja IKEA quer ter informação sobre restaurante? Fica ali em Cucujães. E podíamos ir ao cinema. Bife e cinema. O que dizes? Agradecia que fizesse apenas uma pergunta de cada vez. Obrigada pela sua compreensão.


Em quem votas? Percebo que quer fazer uma pergunta, no entanto não entendo o que está a dizer. Por favor, reformule a sua pergunta. Em quem pões a cruz? Só consigo reconhecer um ponto de interrogação no seu input. Se repetir a sua pergunta, talvez lhe possa responder. És comunista. Já percebi. Não precisas de o dizer. É uma pena que pense assim! Especifique a sua questão, para o esclarecer melhor. Comunista. De esquerda. Eu não sou de esquerda, Anna. Isto não vai resultar. Desculpe, receio que não tenha entendido o que disse. Podia reformular a sua pergunta, com outras palavras, por favor?

“Qualquer questão pode ser entendida de diferentes maneiras.” Anna filosófica Acho que não vamos para a cama. Há muitos artigos cama disponíveis no nosso catálogo. Para restringir a pesquisa selecione uma categoria específica da lista na janela abaixo. Tens medo do fim do mundo? Aqui pode conhecer mais detalhes sobre as lojas IKEA de muitos países. Conheces o Jonas Thern? Gosto de me manter informada, vendo televisão e lendo jornais, mas prefiro falar sobre assuntos relacionados com a IKEA. Jogou no Benfica. Era bom. Depois, suecos, só conheço o Brolin e o Larsson. Lamento, mas não entendo o seu comentário! E se falássemos sobre a IKEA?


“Todos os produtos IKEA disfrutam da melhor qualidade, incluindo eu!”

Minto. Há o Ibrahimovic. Mas esse não é bem sueco. Todos os produtos IKEA disfrutam da melhor qualidade, incluindo eu! Todos os nossos artigos passam por controles de qualidade antes de irem para venda e durante o período (por vezes alguns anos) que estão disponíveis para os clientes. Anna, desta não estava à espera. Estás a fazer-te a mim? Não percebi a sua pergunta. Importa-se de reformular. Não percebeste, não. Queres? Gostaria muito que me fizesse perguntas sobre a IKEA. Queres amar-me? Anna disse: Sinto romantismo no ar! Sugiro que veja esta página, com produtos para criar um ambiente romântico. E bifes?

“Sinto romantismo no ar! Sugiro que veja esta página, com produtos para criar um ambiente romântico.” Anna cupido

cento e vinte e um

Anna convencida



Texto: SALAZAR lustração: Ana Ferreira


lustração: Mariana Baldaia


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