Repórter do Marão

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TRADIÇÕES | A pirâmide das roscas numa aldeia de Bragança

A festa que acontece de porta em porta Patrícia Posse | pposse.tamegapress@gmail.com | Fotos D.R. Nem o tempo nem a desertificação populacional esmorecem certos costumes do Nordeste Transmontano. Em Outeiro, freguesia a 24 quilómetros de Bragança, a população vem para as ruas em honra do S. Gonçalo, que este ano se comemora a 7 de janeiro. É nesta festa que todos se tornam membros de uma grande família. “Desde sempre que me lembro de se fazer esta festa, mas não da maneira como é agora. Antes, os mordomos eram quatro rapazes e quatro raparigas solteiras; as roscas eram de pão, não levavam ovos e os homens compravam os ramos para oferecer às moças”, conta Ana Maria Rodrigues, 82 anos. O neto sempre ouviu dizer que em tempos idos houve uma epidemia que matou muita gente e o povo socorreu-se do S. Gonçalo. “Prometeram que, todos os anos, fariam uma festa em sua homenagem caso as suas preces fossem ouvidas e assim foi”, acrescenta Miguel Melo. Originalmente, a data da festa é 10 de janeiro, mas a comemoração acontece no fim de semana mais próximo. Por essa altura, são muitas as pessoas que não resistem a conhecer de perto o ritual que até já mereceu destaque num documentário feito por uma televisão chinesa. Charolo: um artefacto invulgar O olhar não escapa à imponência do Charolo, uma espécie de andor em forma de pirâmide que é coberto pelas roscas e enfeitado com cinco ramos, com doçaria caseira, guloseimas e frutos secos. Com cerca de dois metros de altura, o Charolo é colocado na Igreja de Santo Cristo, santuário que figura em vários roteiros turísticos, em lugar de destaque como se de um andor de um Santo se tratasse e integra também a procissão, aos ombros de quatro homens. Posteriormente, é colocado bem à vista do povo que aguarda o momento do leilão, onde as roscas podem ser vendidas a preços que oscilam entre os 5 e os 20 euros. O remate é feito peça a peça ou, por vezes, juntando duas roscas no mesmo lance. Posteriormente, ao som de uma música criada propositadamente pelos gaiteiros, cada mordomo está incumbido de “dançar a rosca”. Para tal, perfilam-se e, uns metros à frente, nasce uma nova fila com os pares que escolhem. Os homens erguem as roscas e as mulheres dançam de braços no ar. “Quando se escuta um som mais agudo e um toque forte do bombo, rapidamente

devem trocar de posição e bater com os traseiros, por isso, é também conhecida como a dança do bate-cu”, explica o jovem. Pendurada no Charolo ou a supervisionar a dança feita em seu nome, a rosca é, sem dúvida, a rainha da festa. Três sacas de farinha, 1.5 kg de fermento caseiro, 22 dúzias de ovos, 15 kg de açúcar, sumo e raspa de 10 kg de laranjas, leite, manteiga, azeite e aguardente ou Vinho do Porto incluem-se na receita respeitada, ano após ano, pelos mordomos e suas famílias. As roscas apresentam um formato circular, assemelhando-se a um sol, embora possam assumir formas de animais, a representação do próprio Santo ou ainda casais de namorados para que a bênção divina recaía sobre eles. Entregas e despedidas Ao repasto de butelo com cascas, segue-se a entrega da festa aos mordomos novos, sendo que a nomeação obedece à disposição topográfica das ruas da aldeia. À porta de sua casa, cada mordomo dança com uma rosca na mão bem levantada e, no final, partilha-a com os presentes. “Faz-se a despedida dos mordomos que fizeram a festa, chamados então mordomos velhos, e entrega-se aos mordomos novos. Uns e outros dão de beber e comer à sua porta. Esta ementa é normalmente constituída por doces, bolachas, bolos, roscas, as famosas «talaças» da tia Ana Maria e servem-se licores ou vinhos”, relata. Esta ronda termina na casa do presidente da Junta de Freguesia, onde não se foge à regra e se faz nova paragem para satisfazer o palato. A festa fica a cargo de 10 novos mordomos e Miguel está preparado para aceitar mais uma vez essa missão: “é a melhor festa do ano, em que todo o povo se junta e se passeia pela aldeia.” Pandorcada noite fora É pelo atroar de um foguete, lançado depois do jantar, que se percebe o início da Pandorcada, ou seja, um novo périplo pelas ruas ao som da gaita de foles, do bombo e da caixa. “Pára-se em todas as casas e é oferecida uma rosca pelo proprietário para ser dançada. No fim, são oferecidas bebidas e doçuras.” A Pandorcada termina depois de ter passado por todas as habitações. Mas a festa não acaba aí, porque os gaiteiros continuam noite dentro na Casa do Povo. “É tudo uma família nesta festa, junta novos e velhos, dos 8 aos 80”, conclui Miguel.


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