Revista Coito Cerebral #2

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ano 1 | n.º 2 | abril de 2008

Lisa Li-Lund O folk pop da francesa cantado em inglês Enfim, CéU em Porto Alegre Coluna de uma nota só Mallu Magalhães Vida de Mentira Rejane, a secretária que queria ser homem

no universo da maternidade, literatura infantil e projeto para o cinema


edições #

ano 1 | n.º 2 | abril de 2008 ano 1 - n.º 1 - março de 2008 visite: http://revistacoitocerebral.blogspot.com

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EDITOR Ricardo Rodrigues emaildoricki@gmail.com EDITORIA MUSICAL César Luciano Reginato lureginato@gmail.com 2

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ano 1 | n.º 2 | abril de 2008

Lisa Li-Lund O folk pop da francesa cantado em inglês Enfim, CéU em Porto Alegre Coluna de uma nota só Mallu Magalhães Vida de Mentira Rejane, a secretária que queria ser homem

no universo da maternidade, literatura infantil e projetos para o cinema

COITO CEREBRAL É UMA REVISTA EXPERIMENTAL COM PUBLICAÇÃO ON-LINE SEM FINS LUCRATIVOS.

http://revistacoitocerebral.blogspot.com revistacoitocerebral@gmail.com

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ano 1 | n.º 2 | abril de 2008

Lisa Li-Lund O folk pop da francesa cantado em inglês Enfim, CéU em Porto Alegre Coluna de uma nota só Mallu Magalhães Vida de Mentira Rejane, a secretária que queria ser homem

no universo da maternidade, literatura infantil e projeto para o cinema

A capa da edição #2 buscou referência nos atuais trabalhos da escritora Leticia Wierzchowski, dirigidos ao público infantil. Na ilustração, Leticia, grávida de sete meses, recebe o carinho do filho João (6 anos), e sobre sua cabeça o Gato Xadrez, personagem de sua mais recente invenção literária para as crianças.


MAPA

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EDITORIAL

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QUEM SOMOS NÓS

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ENTREVISTA

LETICIA WIERZCHOWSKI COITO CULTURAL: LIVRO

Prata do Tempo

COITO CULTURAL: MÚSICA

CéU COITO CULTURAL: MÚSICA

Lisa Li-Lundi COLUNA DE UMA NOTA SÓ

Mallu Magalhães

VIDA DE MENTIRA

Rejane, a secretária que queria ser homem - pt. 1 VIDA DE MENTIRA

Infernal

NOTAS

O sumiço das abelhas NOTAS

Blog do Almodóvar VEM AÍ...

Perfectly Clear, o novo album da Jewel


EDITORIAL Como é bom poder olhar para a nossa terra e ver que dela brotam talentos indiscutíveis. O Rio Grande do Sul esbanja em talento, seja qual for a área. Temos artistas que são muito representativos nas artes plásticas, no teatro, no cinema, na música, na literatura... Nessa e em outras épocas. Poderia dedicar edições inteiras apenas para artistas gaúchos, o que me daria muito prazer, mas é preciso cobrir os assuntos de forma mais ampla. Por isso, escolho, sempre que possível, um desses artistas para colocar em evidência. Este mês, LETICIA WIERZCHOWSKI representa uma safra de criadores de forma muito justa. A escritora, que já fazia sucesso nos pampas muito antes do Brasil descobri-la através da minissérie A casa das sete mulheres, adaptação do livro homônimo pela Rede Globo, construiu uma carreira feliz. Capa da edição de abril, Leticia vive a fase dupla da maternidade, e seus projetos atuais revelam a criatividade inflenciada pelo universo infantil. Abrindo espaço na Coluna de uma nota só, César Reginato desvia-se dos artistas gaúchos para apre-

sentar a revelação do indie rock Mallu Magalhães, cantora de apenas quinze anos que já recebeu críticas positivas de vários representantes da indústria musical. No começo deste mês, duas outras artistas passaram pela capital gaúcha. A cantora CéU, sensação atual da MPB fez um dos shows mais aguardados dos últimos dois anos na terça, dia 8. Também soltou a voz pelos ares porto-alegrenses a francesa Lisa LiLund, menina que canta em inglês uma mistura agradável de folk e pop (com menos pop e mais folk, diga-se de passagem). Costurando a música com outros produtos culturais está o novo filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, o qual o próprio descreve, através de um blog, todo o processo de pré-produção da obra (até o momento, tratamentos de roteiro, diário de eventos e fotografias estampam a página). Ainda, dois contos de ficção na Vida de mentira. O mês de abril revela-se muito mais musical, mas, acima de tudo, diverso e de braços dados com a qualidade artística.

ricardo rodrigues | editor | emaildoricki@gmail.com

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Quem somos nós

César Luciano Reginato Publicitário, músico, atualmente trabalha com markeing esportivo.

Ricardo Rodrigues Publicitário, acadêmico de jornalismo e, quando o tempo e a criatividade permitem, escritor.

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e mágico de

Ilustrações RICARDO RODRIGUES a partir dos livros da autora


Entrevista Leticia wierzchowski

Letícia Wierzchowski, uma das escritoras gaúchas mais comentadas dos últimos anos, lançou oficialmente o romance De um grande amor e de uma perdição maior ainda na Livraria Cultura, em Porto Alegre, no dia 18 de março. Ao falar “uma das escritoras mais comentadas” não me refiro apenas ao fato de ser conhecida nacionalmente pelo sucesso A casa das sete mulheres, adaptada pela Rede Globo, nem à sua vasta obra literária, mas também por sua personalidade. Letícia encanta seus fãs pelo carisma . A escritora, grávida de sete meses, chegou no local desculpando-se pela contradição de informações sobre o evento publicadas em um veículo de comunicação. Autografou exemplares de amigos e fãs que se encontravam na fila e seguiu para o auditório do mezzanino, onde participou de um descontraído bate-papo com os presentes. De um grande amor... foi lançado no mercado em setembro de 2007, mas por recomendações médicas toda a agenda de divulgação foi cancelada, incluindo a Feira do Livro de Porto Alegre. “O livro estava órfão”, brincou Leticia. Em posterior entrevista por e-mail, contou sobre novos projetos, incluindo romances inéditos e roteiros para o cinema, e como a maternidade influencia o seu trabalho. Você lançou o seu segundo livro infantil, O Menino Paciente, em parceria com Marcelo Pires, com quem é casada, e tem mais um título pronto (Era outra vez um gato xadrez). Escrever para esse público é mais difícil, requer uma maior responsabilidade? Leticia Wierzchowski: É uma coisa nova, mas muito estimulada pela vida diária, pois passo muito tempo com meu filho João, de 6 anos, e entro muito no universo criativo infantil. Escrever pra crianças é muito bom porque elas reagem com uma verdade impressionante. Estou adorando.

Como funciona a sua rotina de escritora? Existe uma metodologia para criar? Dia, horários... Leticia: Ando com a vida meio confusa, mas trabalho durante a tarde. Umas quatro, cinco horas por dia. Tem toda uma vida doméstica e familiar por trás, mas quando começo um romance faço questão de cumprir meus horários cotidianos, porque o fio da narrativa não pode se perder. E nos finais de semana eu não costumo escrever ficção. Se tem um texto pendurado e preciso terminar num final de semana, geralmente é algum artigo para revista ou jornal. E como concilia isso com sua rotina familiar? Leticia: Dá para conciliar tudo. A maioria das mulheres têm uma rotina muito mais rígida do que eu, não posso reclamar... Quem acompanha o seu trabalho sabe que você sempre teve muitos projetos, muitas idéias para colocar em prática. Prata do Tempo chegou a ser escrito no formato de roteiro para telenovela. O que anda circulando por sua imaginação nesse momento? Leticia: Há alguns dias comecei um romance novo. Ainda estamos nos conhecendo, eu e os personagens, mas quero mergulhar no projeto nos próximos dias. É uma história ainda muito incipiente, mas acho que vai brotar. Ah, e tenho um romance pronto que sai no ano que vem, chama-se Os Aparados.

O João tem inspirado o seu trabalho? Leticia: Tem sim. Ele me leva para a infância outra vez, e eu fui uma criança muito alegre, muito criativa. É bom recordar esse olhar, esse modo de enxergar o mundo. É daí que surgem as idéias para escrever aos pequenos. Os três títulos infantis de Leticia foram ilustrados por Virgílio Neves, que também criou a capa de Uma ponte para Terebin.

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Uma Ponte para Terebin foi um grande projeto que você almejou durante algum tempo e realizou. Existe algo que você queira muito escrever? Leticia: Queria terminar a história que comecei com A casa das sete mulheres, e continuei com Um farol no pampa. Aliás, Um farol... é um livro com final aberto. Mas ainda não sei por onde desfiar esse novelo. Venho pensando nisso há algum tempo... Grande parte dos escritores utiliza suas próprias experiências como recurso criativo. Você já utilizou, ou utiliza essa, digamos, ferramenta de trabalho? Leticia: A minha vida está pulverizada aqui e ali. Sensações e experiências comuns a todos os seres humanos que eu busco na minha bagagem emocional. E todas essas referências polonesas, que me lembram a infância e a casa do meu avô, que eu adorava.

Você está escrevendo, em parceria com Tabajara Ruas, o roteiro para a adaptação de O Tempo e o Vento, do escritor Érico Veríssimo, para o cinema. Tendo em vista a complexidade e extensão da obra, qual deverá ser o foco? Quais histórias serão privilegiadas? Leticia: Tudo é muito complexo, e ainda está se criando, se renovando, mudando como deve mudar um trabalho dessa dimensão. Mas é uma grande responsabilidade, às vezes tenho medo... Jaime Monjardim está à frente deste projeto. A idéia partiu do diretor? Leticia: Sim. Ele comprou os direitos do livro e nos procurou. Sobre a adaptação de filmes. Um escritor que você sempre citou, Gabriel García Márquez, autorizou a adaptação para o cinema de um de seus maiores romances, O amor nos tempos do cólera, que dividiu a crítica. Achas que possíveis erros ocorreram em função apenas das ferramentas serem extremamente diferentes ou obras como essa exigem muito do roteirista? Leticia: Eu, pessoalmente, não gostei do filme. Mas não dá pra apontar grandes erros em relação ao romance, ou seja, a história estava lá, mas sem brilho. É um assunto complexo esse, e os erros e acertos não são só de uma pessoa. Alguns erros desse filme eram nitidamente de direção. Mas é uma química muito delicada essa de levar a literatura para o cinema. Os romances A casa das sete mulheres, Um farol no pampa e Uma ponte para Terebim, em especial o primeiro, lhe rotularam como uma escritora de romances históricos, ainda que o gênero seja minoria em sua obra. Ao escrevê-los, como foi o processo de resgatar esse gênero num momento em que a ficção em geral é tão urbana? Leticia: Não penso muito nisso quando escrevo. Quero contar uma história e vou lá. Mas nem só de urbanidade vive a literatura, não é?

Leticia escreveu A casa das sete mulheres quando morava em São Paulo com o marido, o publicitário Marcelo Pires. “Em São Paulo o mundo gira muito em torno do trabalho. Como o meu trabalho era escrever, por um período de dois anos e meio fiquei longe do convívio social por causa do romance”, afirma.

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O experimentalismo de linguagem e temas é uma tendência, em especial entre os escritores de sua geração. Essa prática agrega pontos positivos à literatura? Abre espaço para escritores estreantes que estão em busca de uma direção, um foco literário? Leticia: Olha, não creio em modas nem em formatos. Eu acredito muito é no talento. Mas às vezes a falta de talento se esconde em alguns experimentalismos doidos.

A chegada do seu segundo filho, o Tobias, amplia ainda mais a sua visão do mundo? Afinal, a maternidade muda qualquer perspectiva, certo? Leticia: Tudo que acontece na vida tem que mudar a gente, não é? Se não muda, se não toca, não vale. E ter um filho é uma coisa quase transcendental.

Ainda sobre estrear na literatura. Hoje, com a difusão de meios eletrônicos (blogs, sites, mailing), é mais fácil para um escritor iniciante divulgar seu trabalho? A busca por uma editora ainda mostrase um trabalho difícil? Leticia: Olha, não sei como a coisa anda hoje. Lancei meu primeiro romance há dez anos, e a internet, nesse tempo, tinha um papel irrelevante. Pra mim, foi difícil. Eu só consegui lançar meu primeiro romance com a ajuda do projeto Fumproarte (incentivo cultural para diversas áreas). Aí, depois de ganhar 80% do valor da edição, uma editora do sul se interessou em me publicar. O que eu nunca quis foi pagar meu primeiro livro do próprio bolso. Quis estrear pelo meio correto, com o aval de uma editora, distribuída com alguma lógica. E como é o seu relacionamento com os escritores gaúchos? Leticia: Alguns são meus amigos, outros apenas conhecidos. Mas tenho um relacionamento cordial com todos. O que não faço é amizade com alguém só porque essa pessoa é escritora, nem vivo em guetos literários. Meus critérios de amizade nada tem a ver com meu trabalho. Perguntei porque fala-se muito em uma certa concorrência de bastidores, sentimento por parte de muitas pessoas cada vez que você produz uma obra elogiada pela crítica e pelo público. Leticia: Ah, no tempo do sucesso de A casa das sete mulheres, algumas pessoas chiaram... Mas faz tanto tempo! Como diz o ditado, os cães ladram e a caravana passa. Escrever te deixa feliz? Leticia: Muitíssimo. Mas às vezes também dói.

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O Anjo e o Resto de Nós Romance Ano: 1998 Editora: Artes e Ofícios Publicado sob o financiamento parcial do Fumproarte Obs.: Reeditado pela Editora Record em 2001 Anuário de Amores (fora de catálogo) Contos Ano: 1998 Editora: Artes e Ofícios Prata do Tempo Romance Ano: 1999 Editora: L&PM Editores Obs.: Reeditado pela Editora Record em 2008 eu@teamo.com.br (escrito com seu marido, Marcelo Pires) Ano: 1999 Editora: L&PM Editores

FORA DE CATÁLOGO

A Casa das Sete Mulheres Romance Histórico Ano: 2002 Editora: Record O Pintor que Escrevia (Coleção Amores Extremos) Romance Ano: 2003 Editora: Record Cristal Polonês Romance Ano: 2003 Editora: Record Um Farol no Pampa (A Casa das Sete Mulheres, Livro 2) Romance Histórico Ano: 2004 Editora: Record O Dragão de Wawel e outras Lendas Polonesas (Escrito com com Anna Klacewicz) Folclore Polonês Ano: 2005 Editora: Record Uma Ponte para Terebin Romance Ano: 2006 Editora: Record Todas as Coisas Querem ser Outras Coisas Literatura Infantil Ano: 2006 Editora: Record

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O Menino Paciente (escrito com Marcelo Pires) Literatura Infantil Ano: 2007 Editora: Record De Um Grande Amor e de Uma Perdição Maior Ainda Romance Ano: 2007 Editora: Record Era Outra vez um Gato Xadrez Literatura Infantil Ano: 2008 Editora: Record Os Aparados Romance Ano: 2009 Editora: Record

Antologias Contos de Oficina - Oficina de Criação Literária da Puc n.º 20 (Vários aurores - Org. Luiz Antonio de Assis Brasil) Contos Ano: 1998 Editora: EDIPUCRS | Livraria Editora Acadêmica Ltda. Contos de Letícia: Noturnas | Desilusão | Pequeno inventário das coisas inúteis O Livro das Mulheres (Várias autoras - Org. Charles Kiefer) Contos Ano: 1999 Editora: Mercado Aberto Conto de Letícia: Cronologia de um amor

FORA DE CATÁLOGO

Ficções Fraternas (Vários autores - Org. Lívia Garcia Roza) Contos Ano: 2003 Editora: Record 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira (Várias autoras - Org. Luiz Ruffato) Contos Ano: 2004 Editora: Record Valores para Viver (Vários autores - Org. Maria Isabel Borba e Marcelo Vassalo) Contos Ano: 2005 Editora: Guarda-Chuva Inesquecível - Histórias de Viagem Contadas por quem Sabe Relatos de Viagem Ano: 2006 Editora: Ediouro História de Letícia: Rio Grande do Sul Contos de Agora (Vários autores - Org. Moacyr Godoy Moreira) Audiobook - voz da atriz Leona Cavalli Ano: 2007 Editora: Livro Falante Conto de Letícia: Ciranda

Você conhece tudo sobre Letícia Wierzchowski e sua obra? Quer testar seus conhecimentos? Visite o site da revista e clique no link para um teste de 10 perguntas sobre a carreira da escritora. Boa sorte.

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Coito cultural Livro

A editora Record acaba de reeditar Prata do Tempo, o segundo romance de Leticia Wierzchowski

Engana-se o desavisado que começa a ler Leticia Wierzchowski pelos seus primeiros romances e identifica a influência de Gabriel García Márquez e Érico Veríssimo como característica absoluta de sua narrativa. As grandes sagas familiares e o realismo mágico estão lá, em doses maiores nos livros O anjo e o resto de nós e Prata do tempo, seu terceiro livro e segundo romance, mas os leitores não podem descrever suas características apenas em torno dessas influências. Prata do tempo foi uma das primeiras experiências literárias de Leticia. Sua criação começou em 1995, e as várias versões que se seguiram (chegou a ser escrito no formato de roteiro para telenovela) re-

sultaram em uma obra de grande potencial criativo. Possui uma narrativa forte, porém cheia de sutilezas que são marcas bem definidas nos livros da autora. Descrita com grande riqueza de detalhes, a história é contada através de Laila, personagem que nasce de um desses amores estrondosos. É a partir de suas memórias e histórias contadas que conhecemos Augusto e Eleanor, jovem casal arrebatado por um sentimento que foge de qualquer classificação do amor. A trama inicia na primeira metade do século XX, numa pequena e fictícia cidade litorânea de São Paulo, na divisa do Rio de Janeiro. O recurso de uma personagem narrando se repetiria em outros livros de Leticia, como Manuela em A casa das sete mulheres, e todas assumem um pouco do ponto de vista da própria escritora. Neste romance, a classificação de personagem principal é feita à medida que os anos passam e novos moradores para uma casa estranha chegam ao mundo. A casa. Justamente ela a grande personagem do romance. Uma casa calçada na loucura de um apaixonado, com inúmeros quartos, salas e lugares vazios, equivalente a um labirinto, é a expressão mais forte para os contraditórios sentimentos humanos que nela habitaram. Ao longo das páginas, valendo-se do realismo mágico sem exagerar, Leticia apresenta uma série de personagens que, costurando-se à trama, nos faz perder a expectativa de tratar-se apenas de uma história de amor. É mais do que isso. São várias histórias em uma, histórias sobre pessoas que viveram num tempo onde esperar a felicidade era algo natural. Os finais surpreendentes carregam um punhado de sentimentos diferentes. Muitas vezes são contrários às esperadas conclusões, talvez por isso não iria funcionar como telenovela, formato que vive de uma estrutura padrão amparada por inúmeros clichês. A exemplo de suas metáforas, é uma história carregada de cheiros,

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emoções, gostos, calores e frios, ventos e calmarias. Esse é o resultado máximo que um livro pode causar sobre o leitor; despertar sensações sobre algo que nunca se viu ou viveu, e com tamanha força que torna a leitura uma arma contra o tempo e seus ponteiros estáticos. Nota-se, ao observar o contexto geral de sua vasta obra (são 14 livros, sem contar as coletâneas e os materiais inéditos), que os personagens são fortes, e sustentam com vigor as páginas que habitam. Numerosos em cada obra, cada um carrega a mesma importância, sem perder-se em nenhuma linha. Essa responsabilidade ao escrever é uma característica rara em escritores tão jovens e com uma carreira relativamente curta. Contando o primeiro lançamento oficial são dez anos, o que revela, ainda, disciplina para gerenciar seu grande fluxo de idéias. Disciplina, também, para escrever e para conviver com a solidão do ofício (momentânea, é claro). De tantos personagens, algum certamente vai despertar simpatia, ou até mesmo identificação por suas características. O instransponível Lombardo Serrat, a infelicidade e a felicidade de Leontina, a liberdade de Augusto, a falta de um amor para Alice, o amor de Eleanor, a amizade de Loá, os anseios de felicidade de Laila, a vida de Inácio, a bondade celestial de Theodoro, a altivez da bela Ariana, a entrega de Amparo, a muda, as predições do Sonhador, as poesias de Alan de Cajardos, a placidez de Diego Saccaro. Todos fazem parte de um universo quase fantástico, salvo pela realidade crua do sofrimento de alguns amores frustrados. Prata do tempo é um livro que preserva as histórias bem construídas, que não se rendem ao modernismo e experimentalismos de linguagem típicos dos

escritores de sua geração. Não que o experimentalismo seja um ponto negativo, pelo contrário, possibilita novos caminhos para a literatura e talvez algum gênero com pretensões inéditas, como bem o fizeram alguns escritores no início dos anos 2000 (ver Daniel Pellizari e Claudia Tajes). Leticia utiliza fórmulas que estão à disposição há muito tempo para quem escreve, o que garante propriedade ao texto. Acredita no talento, acima de tudo. Como prova de sua resistência aos malabarismos da nova literatura, em um momento onde demais escritores exercitavam (e muito bem, diga-se de passagem) uma nova fase, Leticia tornava-se conhecida por escrever romances históricos, um gênero que, além de ter predominância masculina, há muito não era apreciado. Sua obra ainda será herança de uma época, de um contexto que se inseriu dentro de outro, uma prova de que escrever com prazer, apenas pelo prazer de ver personagens tomando forma, é o que realmente importa. E, quando acabamos essa leitura, a sensação é de que, realmente, muitos anos se passaram, e que Augusto, Eleanor, Alice, Laila e tantos outros fazem parte de um tempo real onde suas existências dividem espaço com nossos momentos de infância, ou então com histórias contadas por parentes queridos que já não fazem mais parte desse mundo.

Prata do Tempo Letícia Wierzchowski Editora Record Lançamento: 28/04/2008

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Coito cultural MĂşsica


Setlist: Roda | Malemolência | Lenda | Ronco da Cuíca | 10 contados | Sonâmbulo | Concrete jungle | Mais um lamento | Cai o véu | Nanã | Visgo de Jaca | Rainha | Ave Cruz | Bobagem (bis) >> ASSISTA AOS VÍDEOS DO SHOW EM PORTO ALEGRE na página da revista: http://revistacoitocerebral.blogspot.com

A paulistana CéU, 27 anos, aclamada na Europa e América do Norte, começa agora a colher os frutos do seu trabalho no Brasil, três anos depois de lançar o álbum de estréia que leva o seu nome. A cantora fez seu primeiro e aguardado show na capital gaúcha dia 8, às 21h, no Teatro do Bourbon Country. Grávida de cinco meses, a guria, que mistura

de letra simples e toques eletrônicos e, segundo a cantora, música para os casais se bejiarem. As surpresas ficaram por conta de Sonâmbulo (canção inédita), o cover de Visgo de Jaca, do Martinho da Vila e a excelente interpretação para Rainha, música que representa o afrobeat, afirmando a admiração de CéU pela música negra africana. Ave Cruz foi a última canção,

samba, jazz, afrobeat e música eletrônica, chegou pronta para cumprir grandes expectativas, e foi isso mesmo que ela fez.

mas sob fortes aplausos CéU e banda voltaram para finalizar a noite com a canção Bobagem. Falando na banda, seus excelentes músicos, Bruno Buarque (percussão), Pedro Ito (bateria), DJ Marco (toca-discos), Guilherme Ribeiro (teclados) e Lucas Martins (baixo e guitarra) são grandes extensões do sucesso da cantora, todos em perfeita harmonia com sua criatividade.

O disco, lançado nos Estados Unidos em 2006 pelo selo Six Degrees (ela é a única artista estrangeira do cast) e comercializado pela rede de cafeterias Starbucks, vendeu 50.000 cópias nas primeiras semanas, garantindo a primeira coloca-ção na parada Word Music e 57ª posição no TOP 200, ambos da revista Billboard, a maior publicação do gênero no país. Depois de uma temporada de shows na Europa, Canadá e Estados Unidos, passando por grandes cidades e festivais, e com indicação ao prêmio Grammy deste ano por melhor álbum Word Music, CéU ganha o público de sua terra natal. Pode-se dizer que seu nome ainda era desconhecido até o ano passado, quanto cantou a música Wave, de Tom Jobim, na abertura dos Jogos PanAmericanos do Rio de Janeiro, com transmissão para vários países.

Totalmente à vontade, CéU elogiou o teatro e agradeceu a grande receptividade do público. Um sucesso merecido, deixando para trás críticos que a classificaram como desestruturada musicalmente em comparação com outras cantoras da mesma geração, entre elas Roberta Sá e Mariana Aydar. CéU deve ser considerada uma das grandes cantoras da atualidade, sem nenhum esforço.

Em cerca de uma hora e vinte minutos de apresentação, canções conhecidas estavam no repertório, entre elas Malemolência, incluída na trilha sonora da minissérie da Rede Globo Cidade dos Homens e atualmente na telenovela Beleza Pura, da mesma emissora. O show abriu com a canção Roda, uma mistura de samba e dub que rendeu o único vídeo clipe oficial da cantora. O público cantou, em seqüência, Malemolência e Lenda, passando para O Ronco da Cuíca, de João Bosco. Equilibrando as batidas fortes e os sambas, 10 Contados levou ao público uma refinada balada

CéU - 2005 16 faixas Ambulante Discos e Urban Jungle Records com distribuição da Tratore, distribuído, a partir de 2006, pela Warner Music. A produção do disco ficou a cargo de Beto Villares (Pato Fu, Zélia Duncan) e Antônio Pinto na faixa Ave Cruz (trilha dos filmes Central do Brasil, Cidade de Deus e, mais recentemente, O amor nos tempos do cólera) com co-produção da própria Céu.

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Coito cultural Música

Lisa Li-Lund nasceu na Suécia, mas mudou-se para Paris ainda criança. Cresceu em família de músicos, o que não é surpresa para alguém que faz música desde os 10 anos. No entanto, as maiores influências da cantora vem da música norte-americana. Em canções basicamente folk com algumas pitadas pop, letras de humor sarcástico e que falam de relacionamentos e animais, Lisa se apresentou em Porto Alegre na tarde de domingo, dia 6, no Átrio do Santander Cultural, em show com pouco menos de uma hora. De cabelos curtos, vestidinho, pés descalços e muita simpatia, Lisa mostrou músicas de seu vasto repertório solo. Conhecida por fazer backing vocal para o grupo sueco Herman Düne, os sete discos que lançou através de selos independentes proporcionam material de

sobra. 12.000 Waves, o mais recente, lançado com exclusividade através do selo independente brasileiro Bazuka Discos, trazem ótimas canções carregadas de melodias simples, e uma bem sacada regravação de Cry Me a River, de Justin Timberlake, chamada Cry Chris (um grande amigo, chamado Chris, é fã da canção). Suas vastas composições se devem ao fato de Lisa carregar sempre consigo um gravador de quatro canais, onde registra qualquer idéia nova que lhe ocorra. Produzir suas músicas em casa garantem total liberdade de criação, conforme mostra o CD mais recente. As influências vão desde Velvet Underground a hip-hop, gênero que marcou o início de suas composições. Porto Alegre é a segunda cidade da etapa brasileira da turnê. Lisa cantou em Recife dia 3, e segue para o Rio, dia 11 e São Paulo, dia 17 (mais informações na página da revista). 12.000 Waves - 2007 12 faixas Bazuka Discos (independente) Onde comprar: www.revistacoquetelmolotov.com.br (Ouça e baixe a canção Your Shoulder neste mesmo endereço)

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Coluna de uma nota só César luciano reginato lureginato@gmail.com Foto: Divulgação/Myspace

Há alguns meses, gravações despretensiosas surgiram na internet e se tornaram sucesso entre os internautas. Um som que parece vir do passado, relembrando Beatles, Dylan e Johnny Cash, acabou batendo recordes de audiência pelo mundo virtual. O problema (ou não), é que essas gravações são compostas e interpretadas por uma jovem de apenas 15 anos. Há quem possa dizer que a inexperiência possa ser percebida em sua voz, talvez em algumas passagens ou arranjos, mas a verdade é que Mallu Magalhães manda muito bem. Garota de personalidade, que sabe o que quer. Gravou suas primeiras composições com o dinheiro que recebeu de presente dos pais pelos seus 15 anos, e em menos de um ano já participou de importantes programas da televisão, estampou capas de cadernos culturais de periódicos de grande circulação e está fazendo shows por todo o país. Já que Mallu ainda não tem CD, suas canções podem ser ouvidas no Myspace. Além das músicas, a cantora disponibiliza diversos materiais em vídeo. Alguém aí quer apostar que estamos diante de uma grande promessa da música brasileira? visite: www.myspace.com/mallumagalhaes

Mallu Magalhães esteve na reestréia do Programa do Jô. A menina é sensação no cenário indie brasileiro, e chega apoiada por sites como Youtube e Myspace, a vitrine atual da nova geração de músicos independentes. Mallu é, aparentemente, apenas mais uma menina de sua idade. Dona de uma ingenuidade (ou espontaneidade) atípica, a guria é tímida, e às ve ze s b e i r a a infantilidade. Mas ao falar sobre música assume propriedade de quem possui conhecimento e, principalmente, boas influências. Entre os cantores que influenciaram seu trabalho Mallu citou Elvis Presley, Bob Dylan e Johnny Cash (detalhe na foto, no alto, caracterizada como o cantor). Mallu riu das piadas de Jô Soares, ganhou instrumentos musicais do apresentador e os colocou nomes, como se fossem bichos de estimação, brincadeiras um tanto exageradas. Talvez o gênero musical seja o elemento que tanto chama a atenção para a Mallu. Mas o fato é que a moça tem qualidades. Compõe letras criativas e sua voz tem um timbre bem característico, embora ainda vá evoluir consideravelmente com o passar dos anos e a prática dos palcos. Em resumo, a cantora adolescente é uma grande novidade em nosso meio, mas deve ser vista com atenção, para que não seja apenas um produto bem comercializado por estar na mídia. Por Ricardo Rodrigues

Hype All Star com Mallu Magalhães Quando: dia 12, às 21h Onde: Porão do Beco Avenida Independência, 936 Em frente ao Teatro da Ospa Quanto: R$ 15,00 sem All Star | R$ 8,00 com

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Vida de mentira Textos de ficção

A secretária que queria ser homem um conto de RICARDO RODRIGUES

Existem casos envolvendo a mente humana que parecem histórias absurdas extraídas de uma mente muito criativa. Mas Rejane existiu. Rejane habitou um mundo só seu, que para ela significava o único onde podia afirmar a realidade das coisas. Rejane ansiou amar, e todas as dúvidas de sua vida foram embora quando descobriu o que era de fato. Rejane amou, Rejane queria ser amada pelo que era. Mais do que uma história de amor, a história de Rejane evidencia o lado oculto do ser humano. No seu caso, o lado oculto da sexualidade. E nem sempre foi fácil assumi-lo. Rejane levou sua descoberta até as últimas conseqüências, e fez da sua identidade verdadeira uma arma contra si mesma. Essa é a vida deflorada de Rejane, uma heroína deste mundo excessivamente real.

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Rejane era uma mulher calculista. Em quase todos os momentos do dia odiava a sua vida, e não pensava no bem-estar dos colegas de trabalho. Tinha poucos amigos, quatro exatamente, eram o seu círculo vicioso. Começou a trabalhar como secretária na redação de uma revista gay há nove meses, quando percebeu que não nascera para ser freira. O convento era cheio de convencionalismos, paradigmas intactos durante séculos, e a rotina diária daquelas mulheres não atendia às suas expectativas anteriores. Foi tudo muito rápido, ficou quatro meses dentro do convento, quatro longos meses de tortura e resistência psicológica. Foi nesses tempos que se interessou por Freud, pois a Irmã Ruth, uma das mulheres mais santas daquele lugar, embora ainda presa à sua natural e isso é muito natural natureza humana, era louca por sua obra, e a guardava secretamente dentro de sua cela. Numa das muitas tardes insuportáveis com aquelas mulheres que só sabiam rezar para pedir perdão por sabe-se lá o que, Irmã Ruth trouxe o primeiro livro do homem que mudou os seus conceitos. Fora ele a sua salvação, a sua explicação para a mente humana, e convenceu-se de vez que o sexo movia as pessoas desse mundo. Nunca fora louca por sexo, mas observava o que as pessoas faziam por sua causa, e já desconfiava que muita coisa estava relacionada a ele, não apenas o ato em si. Freud só lhe confirmou as suspeitas. Iniciou uma indagação constante sobre o motivo por estar ali. Não nascera para ser freira, porém não nascera para ser prostituta. Ainda, não era uma mulher comum, e nunca seria uma dona-se-casa com um marido bêbado e filhos para cuidar. Era esse o seu conceito de vida, caso não fosse freira ou prostituta, pois era assim que via as mulheres ao seu redor passarem suas vidas, e mesmo através dos noticiários. Ser mulher era um fardo, um karma que só recebiam os pecadores, mas pecadores de quê? Precisava sair do convento. Conversou com a Madre Celina, uma mulher serena e simpática, mas hipócrita de dar dó, e ela não posicionou-se contra sua decisão. Olhavaa como quem diz “Vá, sua prostituta, que seu lugar é

no colo dos homens que pagam por sexo”, e ela não ligava, pois sabia que não era assim. Era uma mulher que pensava em si mesma, e era assim que tinha que ser. Despediu-se das meninas, não porque iria sentir falta delas, mas por uma cordialidade que a cultura dos séculos impôs em seus pais e eles impuseram nela, e foi-se embora, tranqüila, certa do que estava fazendo. Quando chegou no centro da cidade já tinha quem procurar. No dia em que se enclausurou, o primeiro dia de loucura de sua vida, pois achava que ainda teria muitos, sua amiga Olivia, que fora a única amiga que teve durante o colegial, lhe disse que, se quisesse sair daquele lugar, poderia procurar por ela para receber qualquer ajuda. Pois Rejane, tomada por sua loucura de ser santa, largou a casa onde morava, o trabalho, vendeu objetos e doou o dinheiro para instituições de caridade e botou o hábito. O hábito da loucura, do descaso consigo mesma, o hábito que era a cela dos presídios em forma de tecido cinza. Olivia era uma mulher bem sucedida. Dona de uma empresa de médio porte, trabalhava com a imagem pessoal das pessoas. Era bonita, esguia, e os homens a desejavam em todos os lugares que fosse. Era feliz, ou achava que era. Quando Rejane entrou na sala, conduzida pela secretária, Olivia quase desmaiara de susto. Primeiro por não esperar ver a amiga assim, de repente, e segundo pelo estado que Rejane se encontrava. O ambiente precário do convento, o frio das lajes e azulejos, a alimentação fraca, os insetos, o trabalho árduo de homem a deixaram com a fisionomia de um espectro. Olivia largou o seu trabalho e foi ter com a amiga, cheia de saudades e preocupação que estava. Rejane retribuiu o abraço, pois tinha muito afeto por Olivia. Contou tudo o que aconteceu no convento, suas tristezas e descobertas, e pediu-lhe ajuda. Olivia, passando por um momento difícil, onde estava replanejando toda a estratégia de sua empresa, e tendo até que despedir alguns funcionários, disse que ainda restava uma solução, mas não era a melhor, e Rejane disse que não tinha problema. Dois dias depois, após um descanso e banhos merecidos, Rejane estava trabalhando como

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secretária na redação de uma revista gay. Era um ambiente diferente, engraçado às vezes, com mulheres que gostavam de homens e homens que gostavam de homens e homens que gostavam de mulheres. Foi na redação da revista que conheceu Mauro, outro de seus quatro únicos amigos, um homossexual que dividia sua vida entre o trabalho de jornalista e uma agência de acompanhantes masculinos que atuava quase que na clandestinidade, pois, diziam as más línguas que sabiam de sua existência, havia menores envolvidos. Rejane não estava nem aí para a verdade, Mauro era seu amigo e pronto. Rejane trabalhava diretamente com a editora, Gilda, uma mulher que escondia a idade e o bissexualismo. Sempre preferiu trabalhar com o público gay porque era um mercado muito crescente, dizia ela nas reuniões e entrevistas, pois cada vez mais as pessoas largam seus próprios preconceitos. Mas ela mesma não assumia a sua condição sexual. Era uma mulher dúbia. Rejane cuidava de toda a sua agenda de compromissos, profissionais e pessoais também, pois revelou-se muito eficiente no cargo que ganhara por indicação de Olivia. Eram almoços com executivos da editora, jantares com homens e mulheres da sociedade, coquetéis com jornalistas, tudo em uma rotina badalada e glamourosa demais para uma quase freira. Não tinha inveja, porém curiosidade. Uma curiosidade que passava rápido. Com toda a rotina de oito horas diárias de trabalho, às vezes mais, todos aqueles ensaios fotográficos de homens bonitos e viris lhe divertiam o dia. Sabia que, em parte, era um mundo de faz de conta, mas ainda assim divertia-se, pois, em alguns momentos, desejava os modelos das fotografias. Certa vez, quando já era o braço direito de Gilda, precisou acompanhá-la em um coquetel para todos os membros da editora e suas revistas, devido ao sucesso e da liderança de vendas de alguns periódicos, e Gilda fez questão de apresentá-la para um dos modelos que havia posado para a capa da revista algumas edições atrás, sabendo de sua diversão em olhar as fotografias. Rejane sentiu-se atordoada

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e tentada, e aceitou o desafio. Roberto Fish era um ator de telenovelas, conhecido, muito popular mesmo, fazia o tipo galã, o que justificava o volume de correspondências que recebia por semana. Foi escolhido não porque Gilda o achava interessante, mas os leitores da revista enviaram tantas cartas para a redação que foi necessário colocá-lo no ensaio principal para não serem boicotados pelos homossexuais do país inteiro. Ele era charmoso, não exatamente bonito, mas era simpático, e Rejane teve pena do homem por ser tão vazio. Era esse o mundo do glamour. Não podia deixar de imaginar se o que viu nas fotografais era mesmo verdade, e segurou-se o quanto pôde para perguntar. Quando não pôde mais conter-se e Roberto já sabia que tinha algo para perguntar, perguntou. Roberto, cheio de confiança, disse que podia acreditar nas fotografias, era sempre um homem verdadeiro em tudo o que fazia. Sentiu-se muito tentada em ceder às cantadas que Roberto lhe passou logo a seguir, e cedeu. Roberto levou Rejane para o seu apartamento num bairro caro da cidade, um apartamento chique, e imaginou quantas mulheres tolas e idiotas que fazem comercial de xampu haviam passado por ali. Só aceitara o convite por curiosidade, por nenhum outro motivo, pois não conseguia sentir-se totalmente atraída por aquele homem. Preferia vê-lo na revista. Mas quando ele tirou a roupa viu que, realmente, tudo o que estava lá estava ali, agora em três dimensões, entregou-se ao seu jogo que incluía chamá-la de vagabunda e puta durante o sexo. Foi apenas mais uma, a diferença é que não fazia comercial de xampu e não era estrela da TV. Quando foi trabalhar no dia seguinte, um pouco dolorida, Gilda quis saber todos os detalhes, pois excitava-se com a sacanagem dos outros. Rejane, secamente, disse que não fora nada demais, não surpreendeu-se com nada, pois era exatamente como estava na revista. E voltou a marcar jantares e coquetéis para a sua patroa. Para Mauro ela contou todos os detalhes, na hora do almoço, e esse ficou com inveja, afinal, Roberto Fish era o homem do


momento, tendo em sua lista de ex-namoradas até apresentadora de TV. Mauro interrompeu sua conversa com Rejane para atender ao telefone que tocava insistentemente, era de sua agência de acompanhantes. Pediu licença e foi atender na varanda do restaurante, onde ficou por cerca de quinze minutos falando e gesticulando abertamente. Voltou exausto e aborrecido, e pediu para voltarem para a redação. Olivia estava lhe esperando, e lhe abraçou com saudades. Abraçou também Mauro, que era seu amigo de tempos. Perguntou como estava o serviço, e Rejane respondeu que melhor impossível. Havia adquirido a confiança de Gilda, e era respeitada por ela. Mas não estava tudo tão bem. Decepcionou-se com o ator de telenovelas, e sentia que faltava algo em sua vida. Mas não contou nada para Olivia, não queria magoá-la. Rejane, no final do expediente, depois que Olivia fora embora, Gilda, Mauro e os outros funcionários, ficou pensando que a vida deve ser um grande faz de conta. As pessoas posam para revistas, e por mais que digam que não, os seus paus, bundas e peitos são alterados para parecerem maiores, sem imperfeições, ou qualquer oura coisa que possa desagradar os leitores. Isso servia, em parte, para motivar as pessoas infelizes. Pois, se é todo mundo igual, se todos tem celulite ou o pau desavantajado, em quem as pessoas vão espelharse para sonhar com uma mudança? Esse mundo é muito mesquinho mesmo, a começar pelas desgraçadas das freiras e dos padres que elevam Deus como o senhor de todas as coisas, mas se acham capazes de interferir na vida das pessoas. Sentiu-se revoltada e inconformada, e foi para a rua. Saiu andando pelas calçadas de sua cidade imperfeita, e o vento da noite às vezes lhe acalmava, mas logo sentia-se como antes. Viu que as pessoas estão sempre fazendo alguma coisa, em todas as horas sempre tem uma pessoa em algum lugar fazendo algo por ela ou pelos outros. Passou por várias pessoas que trabalhavam com programa. Moças jovens oferecendo seu corpo, rapazes expondo-se ao perigo e expondo outros também, pois

há muitos inescrupulosos por aí que se aproveitam da fragilidade que a repressão sexual causa nos outros. Na verdade não estava nem aí para toda essa gente, mas era algo que precisava observar. Podia ser ela vendendo seu corpo na calçada, mas se fosse, usaria roupas melhores do que aquelas. Sentiu pena mesmo dos bichos. Esses sim, desprovidos de racionalidade, mas muito mais racionais do que várias pessoas, mereceram sua compaixão. Havia dois vira-latas na sarjeta, deitados no chão, e sentiuse como uma mãe aos pés do filho doente. O mundo estava cheio de pessoas que ganham rapadura mas não sabem mastigar, e os que sofrem mais são os bichos. Rejane deixou os animais ali, mas prometeu que se um dia fosse promovida iria buscá-los. Quando passava em frente à um bar resolveu entrar e beber alguma coisa. Pediu algo bem forte para beber aos poucos, e para sentir bem aos poucos a sua mente se entorpecer. Enquanto bebericava alguns goles, um homem sentou-se ao seu lado, e antes que pudesse mandá-lo à merda ele foi logo dizendo que não queria cantá-la, que não a achava bonita o suficiente para isso, e sim que queria conversar, pois percebeu a mesma aura de desgraça que pairava em sua mente na expressão da mulher. Por isso, ela imediatamente gostou do homem, Donatto, ele se chamava, para a maioria das mulheres era um homem interessante, bonito, totalmente independente, médico especializado em cirurgia plástica. Mas Rejane não o viu assim, e o fez um amigo, como Mauro e Olivia. Donatto estava vivendo sua vida do jeito que sempre planejou. Estudou e formou-se no que escolheu, namorou bonitas mulheres e se casou com a que mais lhe despertou amores, ou desejos, mas isso não vem ao caso, teve dois filhos espertos, mas começou a achar que isso é que fez com que tudo perdesse a graça. Era assim que se sentia. Rejane entendeu-o completamente, e contou também a sua história. Donatto entendeu, pois era assim que se sentia também, como contou, perdido e sem a capacidade de conviver com muitas pessoas, pois todas lhes pareciam mesquinhas e inapropriadas para qualquer laço afetivo.

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Rejane bebeu todas que pôde, e no meio da noite não estava bêbada ainda. Donatto havia parado duas garrafas atrás, e ria de tudo o que acontecia na sua frente, por mais triviais que fossem, como o garçom carregando um copo e uma garrafa. Lá pelas três horas, Rejane sentiu-se tonta, e achou que era hora de ir embora. Donatto, que havia vomitado três vezes e melhorado sutilmente, levou-a para casa de carro, e precisou ficar dormindo lá mesmo. Rejane, então, tinha um homem dormindo em sua casa. Nunca antes tivera um homem em seu apartamento, e agora estava um ali, deitado, como se morasse com ela. Sua respiração pesada lhe atiçou a libido, e sentiu uma enorme atração pelo cirurgião plástico. Antes de deitar, por uma falta de raciocínio sóbrio e por costume também, Donatto tirou sua roupa e ficou só de cueca, despertando ainda mais a vontade de Rejane. Ela ficou mais de uma hora observando o seu pênis recôndito por debaixo da cueca samba-canção branca do homem, e já não podia mais suportar o desejo que estava sentindo. Quando, por fim, abaixou sua roupa íntima, e viu o seu pênis caído para o lado, lembrou-se de umas histórias que Donatto contou antes de embebedar-se completamente e antes de vomitar pela segunda vez. Donatto sempre fora um homem festeiro, e tinha todas as mulheres que quisesse. Passava noites inteiras trepando com a rainha das piscinas do clube mais freqüentado da cidade, com a filha do prefeito, com a mãe do seu melhor amigo, com suas vizinhas de andar de prédio e até com a reitora da universidade. Era um homem que não preocupava-se com os problemas exteriores, pois sabia que poderia resolvê-los mais tarde. Era filho de gente rica, o que por si só lhe concedia um status de inabalável. Esse poder, aliado à sua auto-confiança, seja com as mulheres ou com a vida de um modo geral, lhe garantiu um lugar no mundo, todos o observavam como o rei de qualquer coisa. Já havia conhecido outros homens assim antes, e quando outros homens sabiam de suas histórias, seja em roda de amigos ou no trabalho, eram tidos como exemplo. Se fossem mulheres,

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seriam vagabundas e fáceis. Aliando isso tudo ao pênis caído para o lado, o símbolo de suas conquistas, infelizmente todas, Rejane teve um estalo na mente. Talvez fosse isso que estava faltando em sua rotina, um pênis, ou melhor, não exatamente um pênis, mas o fato de ser homem. Nem no sentido anatômico em geral, mas as vantagens de ser homem aliadas com o que a mulher tem de melhor, e que ninguém nunca via, que era a sabedoria e o instinto natural para as coisas. Cobriu Donatto de volta e foi dormir, mas antes pediu desculpas para o amigo, que não ouviu. Estava decidido. Daquela noite em diante, seria homem. CONTINUA...


Vida de mentira Textos de ficção

Infernal Sinésio, um homem cheio de manias e toques e crença no coisa ruim, abriu as janelas de seu quarto e deixou que um ar de falso inverno interferisse no ambiente. Seu corpo nú recebeu os espirros gelados do mundo. Havia feito sexo ruim durante a noite, e precisou se certificar que estava realmente acordado. Um outro corpo repousava na cama, estirado feito um enorme bicho encalhado na enseada. Mas esse não dormia. Gleise, uma puta da Farrapos, das mais baratas, estava encharcada em seu próprio sangue. E do sangue de Sinésio também. Afinal, o corpo de Sinésio estava estendido ao seu lado, tão imóvel quanto o de Gleise, frio e rjio. Consideração número 1: o vento frio que entrou pela janela não era de um falso inverno, mas sim das portas entreabertas do inferno (ventos frios disfarçavam as chamas aterrorizantes). Consideração número 2: Sinésio estava morto, e sua alma suicida seria recebida, em poucos instantes, pelo cão em pessoa. Consideração número 3: Antes de dar cabo da própria vida, garantindo o bilhete de ida para o túnel, Sinésio matara Gleise. E por quê? – Essa vagabunda era enviada do demo!! Ela me deu um sinal!! – pensou ele, enquanto caminhava em direção ao umbral do túnel, já enxergando as labaredas. Gleise, a puta, morrera apenas porque resolvera cobrar R$ 66,6 por uma trepada.

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Notas

Enquanto em Porto Alegre as abelhas atacam pessoas e animais nos parques e residências, causando a morte de cachorros e cavalos, nos Estados Unidos o desaparecimento dos bichos está causando crises prolongadas. A preocupação é tanta que a associação apícola exigiu a ajuda do Congresso. O fenômeno, conhecido como desordem de colapso de colônias, registrou uma queda de 30% na população de abelhas no último ano, e pode devastar uma colônia em poucas semanas. Atinge diretamente a economia na América do Norte, já que as abelhas são responsáveis pela polinização de diversos tipos de legumes, frutas e grãos. Com o objetivo de chamar a atenção das pessoas para a importância do assunto, a marca de sorvetes Häagen-Dazs criou uma campanha intitulada “Help the Honey Bees”. Divulgada em um divertido website, a marca mostra os ingredientes do produto que dependem das abelhas, explicando, de forma lúdica, o quanto elas fazem falta para o setor alimentício. O visitante pode montar e enviar uma abelha por e-mail, baixar wallpapers e proteção de tela e comprar camisetas com o slogan da campanha. A criação é da agência de publicidade Goodby, Silverstein & Partners. Visite http://www.helpthehoneybees.com

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Notas

O aclamado cineasta espanhol Pedro Almodóvar (Tudo sobre minha mãe e A má educação) está pré-produzindo seu novo filme. O roteiro, chamado Los abrazos rotos (em tradução livre Os abraços cansados), iniciado em outubro de 2007,já está no sexto tratamento. Para atualizar fãs e cinéfilos sobre as últimas notícias, Almodóvar criou um blog somente sobre o filme, com textos, fotos e vídeos. Em algumas imagens, Penélope Cruz, que atuou em Volver, aparece passando o texto. O blog é um prato cheio para quem acompanha as tramas non-sense e originais do diretor.

visite:

www.pedroalmodovar.es

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VEM AÍ...

O novo album da cantora norte-americana Jewel, entitulado Perfectly Clear, será lançado no mercado no dia 3 de junho. Seguindo a sonoridade de Goodbye Alice in Wonderland, lançado em 2006, as músicas do novo trabalho estão mergulhadas no folk e country, reforçando o estilo da cantora que não esteve presente em trabalhos anteriores com tanta evidência.

O primeiro single, Stronger Woman, já está disponível para download na loja virtual iTunes, e o vídeo pode ser conferido no site Youtube. No site oficial da cantora, além de Stronger Woman, trechos de duas outras músicas do album podem ser conferidas pelos visitantes: I Do e a faixa título, Perfectly Clear.

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