Revista Coito Cerebral #10 - Nosso melhor de 2008

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ANO 2 | N.º 10 | JANEIRO E FEVEREIRO DE 2009 | http://revistacoitocerebral.blogspot.com

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Capa: Ricardo Rodrigues Os discos, filmes e livros que mais gostamos em 2008 estão na primeira Coito Cerebral do ano.

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Edição e projeto gráfico } Ricardo Rodrigues | emaildoricki@gmail.com

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Textos } Lia Jacks | liajacks@gmail.com Ricardo Rodrigues | emaildoricki@gmail.com

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Agradecimentos } Rafael Augusto, do site Madonna Online, por ceder imagens que ilustram a matéria sobre a Sticky & Sweet Tour em SP

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ano 1 | n.º 2 | abril de 2008

ANO 1 | N.º 3 | MAIO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

Lisa Li-Lund O folk pop da francesa cantado em inglês

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Enfim, CéU em Porto Alegre Coluna de uma nota só Mallu Magalhães Vida de Mentira Rejane, a secretária que queria ser homem

no universo da maternidade, literatura infantil e projetos para o cinema

Björk sucesso comercial e originalidade

Estados Unidos

claudia tajes: o lado b da vida o homem-máquina: dos nervos ao circuito eletrônico

de

Filme: o amor nos tempos do cólera Otto gomes na estréia da coluna de uma nota só Vida de mentira: dois novos textos de ficção

Há exatos 108 anos, Frank L. Baum lançou o primeiro livro de uma série que se tornaria famosa no mundo inteiro. O Mágico de Oz, adaptado para cinema e teatro, contém muito mais do que aspectos clássicos da literatura infantil daquele período, pois revela-se, segundo estudiosos, uma parábola ao Partido Populista, movimento que marcou a economia dos Estados Unidos no fim do século XIX

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ANO 1 | N.º 5 | JULHO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

ANO 1 | N.º 7 | SETEMBRO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

ANO 1 | N.º 6 | AGOSTO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

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NELSON

RODRIGUES O homem que desmascarou a sociedade

56 ANO 2 | N.º 8 | OUTUBRO / NOVEMBRO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

ANO 1 | N.º 7 | DEZEMBRO DE 2008 http://revistacoitocerebral.blogspot.com

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Especial 365 dias de existência. Um pouco de tudo, diferente de tudo.

Edições anteriores podem ser encontradas no endereço http://revistacoitocerebral.blogspot.com

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Circo e teatro na estética de uma banda cheia de impressionantes etnias musicais Não importa qual a sua influênciam (ela cita muitas): sua criatividade parece não ter fim Músicas consagradas a partir dos inusitados acordes do sambarock A união do universo dos Los Hermanos e Strokes Uma interessante surpresa no cenário da música nacional Da série Cantoras Britânicas: a jovem que sempre cantou como gente grande N o segundo álgum, Elephants... Teeth sinking into heart , a cantora mantém sua fórmula triste Muito além da declaração de amor do estrangeiro ao Rio de Janeiro neste disco já clássico 18 horas de viagem para ver o show do ano - e algumas histórias

Uma forma criativa de fazer e contar histórias A nova representação da literatura gaúcha: o lado avesso do tradicional Pó de parede , uma das melhores estréias do ano

Uma história sobre a esperança e a capacidade de sonhar Mulheres voluptuosas e violência: a fonte de inspiração de Quentin Tarantino Depressão e confusão sexual em N ova York no clima pós 11 de setembro

Lia Jacks elege o seu melhor particular

Dois contos inéditos que privilegiam a angústia do ser humano

As músicas que estiveram presentes em nossos player durante 2008


Um ano de descobertas interessantes Ricardo Rodrigues | emaildoricki@gmail.com

Lá se vai o ano de muitos e distintos acontecimentos: da grave crise econômica global, das tragédias naturais, do esporte mundial, da preparação para receber a nova reforma ortográfica... Tudo implicou capacidade de adaptação e, principalmente, inovação, como fazem os artistas citados nessa edição, a primeira do ano, agora com novo projeto gráfico e periodicidade bimestral. Se existe uma coisa que se repete e que, muitas vezes, nos incomoda demais, são as famosas listas de final de ano. Para tudo há uma lista de “melhores”: os melhores discos, os melhores filmes, as melhores peças de teatro, as melhores novelas, as personalidades que se destacaram, os atletas do ano, os melhores restaurantes, as melhores frases... As pessoas sentem necessidade de compilar uma série de situações e produtos culturais, para fazer disso uma espécie de reciclagem do que já foi notícia – ou apenas indicar o que realmente teve um certo grau de importância, e isso pode ser bem interessante. Mas essa tentativa de reunir os destaques não deve ser vista como uma sentença. Afinal, com critérios para a crítica ser feita ou não, o gosto pessoal acaba pesando. E é por isso que nos rendemos a fazer, também, a nossa lista, mas aqui há uma diferença: essa é a pura expressão de nossas admiralçoes. É claro que muito do que aparecerá nas próximas páginas até faz parte de opiniões (quase) unânimes, mas não tem jeito: a Coito 10 é o reflexo de nosso gosto para alguns segmentos da cultura, e de como entraram em nossos corações. Além de ser a natural expres-

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são de nossas admirações, outra questão difere a nossa lista: nem tudo escolhido foi lançado em 2008. O filme Faster, Pussycat! Kill!Kill!, por exemplo, estreou nas telas em 1965. Bem como a banda Beirut, que está na cena musical desde 2006. Então, essa edição reúne o que nos marcou durante o ano. E não há como negar que a presença feminina nas artes foi mais intensa. Cada uma com sua forma de canalisar pensamentos, mas com algo em comum: a quebra do convencionalismo. No geral, todos surpreenderam de alguma forma. Adoramos conhecer duas grandes novidades na literatura gaúcha: a Carol Bensimon e o também estreante selo Não Editora, uma grata surpresa no mercado editorial desde a extinta Livros do Mal. O pessoal da Não se preocupa com o que o próprio nome diz: dizer não ao comum, aos padrões. E estão conseguindo de forma louvável. A estréia do elogiado Pó de parede fez de Carol o destaque no meio, e é bom saber que cada autor do “não-catálogo” está nessa esteira. 2009 Será um ano e tanto em nossa literatura. Na música, Lisa Li-Lund demostrou uma personalidade artística surpreendente, quando trouxe sua turnê pela primeira vez ao Brasil durante o mês de abril. Tive a oportunidade de assistila no Átrio do Santander Cultural, e presenciei a criação musical sem limites, contendo o mesmo espírito presente na turma de escritores que, com Antônio Xerxenesky, fundou a Não Editora. Isso é o que cada um dos artistas que escolhemos tem em comum: todos, no seu campo artístico, viabilizam uma obra livre, alguns mais comerciais, outros nem tanto. Mas fiéis ao que sentem vontade de fazer, independente do retorno que possam ter.

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Ricardo Rodrigues Publicitário, acadêmico de jornalismo, escritor e mais alguma coisa que ainda não descobriu querer fazer. Atualmente trabalha em assessoria de imprensa, mas já quis ser arqueólogo por conta dos livros antigos do pai e ator de teatro por um motivo que nem ousa mais descobrir. Tem vontade de viajar por lugares que ainda não sabe existir, e para os roteiros típicos de turista também. No campo da literaruta trabalha em vários projetos, alguns há mais de quatro anos. Um desses, ainda no período de fecundação, rendeu idéias para um documentário, mas esse ainda nem passou pelo coito. Poderia, ainda, abrir uma livraria bem pequena.

Lia Jacks Acadêmica de jornalismo, mas poderia ser qualquer outra coisa que quisesse. Isso porque Lia enxerga o mundo com olhos imparciais, na maioria das vezes, mas também acredita que em certas ocasiões todos precisam adotar uma posição. Um de seus vários sonhos (ou seriam objetivos?) é escrever uma coluna fixa em revista, sua mídia impressa favorita. Poderia ser qualquer uma, mas prefere as que falam sobre comportamento (inclusive o irracional). Nas horas vagas, gosta da idéia de ilustrar camisetas, e um dia pretende construir uma marca apenas com as coisas que gostaria de usar mas não encontra facilmente.

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Na foto de Kristianna Smith, Zach Condon ensaia no set de filmagem do clipe de Elephant Gun

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O encanto que vem do

Uma impressionante e bem arquitetada estética colorida revela grande parte da essência musical da banda Beirut. Elementos oriundos do circo e do teatro decodificam a natureza rica de cada composição, como braços articulados de um mecanismo muito original. Repleto de influências étnicas, o resultado final de cada trabalho possibilita ao ouvinte fazer um passeio pela atmosfera quase palpável dos acordes. Mas o Beirut não é novidade. Sob o comando de Zach Condon, o lançamento do primeiro trabalho aconteceu em 2006. Antes disso, o vocalista e multi-instrumentista havia gravado o álbum The Real People - The Joys of Losing Weight, em 2001, aos 15 anos de idade. Na Brasil, o nome chegou às massas devido à minissérie Capitu, da Rede Globo, exibida em dezembro. Dirigida por Luiz Fernando Carvalho (Hoje é dia de Maria e A pedra do reino), diretor que trabalha com os mesmos elementos estéticos do Beirut, o projeto tinha como canção tema Elephant gun. Bastou a primeira exibição para que blogs, comunidades e afins espalhassem a canção pela rede. O vídeo clipe da faixa se assemelha muito com os cenários da minissérie, aquela mistura de antigo com o moderno que, de forma inusitada, casa tão bem. O que acontece, infelizmente, é que Coito Cerebral está inclusa no grupo que ainda não

conhecia o trabalho excepcional desses artistas, que misturam tão bem complexidade com simplicidade. Portanto, 2008 foi, também, o ano de boas descobertas musicais. Visitando sites como o MySpace e Orkut, as descobertas continuam. Do primeiro disco, Gulag orkestar, destacam-se as faixas Prenzlauerberg, Postcards from Italy e Scenic World. É um pouco difícil definir a sonoridade de suas músicas, mas há uma certa influência dos Bálcãs. Já o segundo álbum, The Flying Club Cup, lançado em 2007, passou por forte interferência da música francesa. Destaque para Nantes, La banlieu, Forks and knives (la fete) e Cherbourg. Além dos dois albuns, os EP’s apresentam bons momentos da banda, como a própria Elephant gun. Em fevereiro, deverá ser lançado o EP duplo chamado March of the Zapotec/The real people Holland. No primeiro, March of the Zapotec, a sonoridade está calçada nos metais pesados, gravados em uma cidade do México. Em The real people Holland, o resultado final é uma reunião de melodias compostas com base eletrônica. Após a repercussão da minissérie, Zach, que costuma cantar Leãozinho (de Caetano Veloso) e canções de Gilberto Gil nos shows, ou dividindo o palco com o Bonde do Rolê, concedeu entrevistas à diversos veículos brasileiros, e disse que uma turnê pelo Brasil em 2009 não está descartada.

Assista no site da revista Elephant Gun

Elephant Gun (EP) Beirut BA DA BING 2007 R$ 39,00

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Sem limites para criar

Uma das principais características de Lisa Li-Lund é a sua capacidade de criação. Trabalhando sempre de forma independente, livre das amarras e cronogramas de grandes gravadoras, a moça produz e grava suas canções em casa. Ou em qualquer país que esteja de passagem, através de um gravador Tascam de quatro canais e seu computador (no Brasil, escreveu e gravou My lover gone, exibido pelo site Músia de Bolso). E não para por aí. Até mesmo os encartes de seus discos são produzidos por ela. Cercada de amigos que circulam pelo meio artístico, especialmente na música, fica fácil de entender o alcance de sua sonoridade: a chave de tudo é a mistura. Lisa nasceu na Suécia e mudou-se para Paris ainda criança, em meio à uma família de músicos formada por diversas influências. Começou a compor desde cedo, aos 10 anos de idade. Apesar dos locais onde morou, é a música norteamericana que exerce maior influência em seu trabalho. Velvet Underground, Bruce Springsteen, Dolly Parton, Red Hot Chili Peppers, PJ Harvey, The Supremes e artistas oriundos do hip-hop são apenas alguns nomes de uma lista que inclui, ainda, Beatles e Herman Dune. Confira em seu perfil

no site MySpace a diversa lista que inclui 51 personalidades do universo musical (www.myspace.com/lisalilund). Além do streaming de algumas faixas, vídeos acústicos gravados em parceria com The French Cowboy também estão disponíveis. Em abril do ano passado a turnê de Lisa marcou presença no Brasil. Além de Porto Alegre, passou por Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Na capital gaúcha tocou no Átrio do Santander Cultural. Intimista, dividindo-se entre seu violão, teclado e sintetizador, Lisa mostrou músicas que gravou em cerca de 7 álbuns independentes, priorizando 12000 Waves, lançado com exclusividade no Brasil através do selo Bazuka Discos. Não há uma classificação para o seu gênero musical, pois em uma faixa nota-se respingos de algo que podemos chamar de rock folk. Em outra, o folk mistura-se ao pop. Prova disso é a curiosa e até inesperada regravação para o hit Cry me a river, de Justim Timberlake, batizado de Cry chris (homenagem à um amigo que é fã da canção). Outros destaques do álbum são Sunny sunday, Jewish cemetery, Your shoulder e In that bar (a porção mais folk de todas as 13 faixas). São canções que falam sobre relacionamentos e de sua paixão por animais, tudo com uma dose de humor sarcástico, elemento essencial na sua carreira de compositora.

Assista no site da revista Nina Mick Jagger’s Lips (Gravados ao vivo no estúdio da Rádio UOL) My Lover Gone Ideal Boy (Gravados para o site Música de Bolso)

12000 WAVES Lisa Li-Lund Bazuka Discos 2008 R$ 5,00

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Música, churrasco e afins

Thiago Corrêa, natural de Santo André, São Paulo, e radicado em Porto Alegre, começou a tocar aos oito anos de idade. Vivendo o auge das fantasias infantis, enquanto brincava de achar tesouros inimagináveis (no porão de sua casa), encontrou um instrumento velho, o que ele próprio define como a carcaça de violão. Foi o que bastou para que encarasse o tempo de outra forma. Enquanto as outras crianças brincavam, o menino se dedicava ao aprendizado do instrumento, consertado com cola barata. E foi em um bar perto de sua casa que descobriu o futuro alicerce de sua música. As rodas de samba que presenciou tornaram possíveis o interesse e a paixão por um gênero que, apesar de ter nascido na década de 1970, ainda era desconhecido pelo grande público. Era o chamado sambarock. De acorde em acorde, aprendidos diariamente, logo se tornou o mascote da banda. Até então a música não era encarada como profissão, ao menos não diante da família. Dessa forma, passou a trabalhar como torneiro mecânico, mas, como define em seu blog, já era músico desde que nascera. Foi em um dos muitos churrascos dominicais em família que

Thiago resolveu “sair do armário”, ou, em suas palavras, sair do case. Entre um pedaço e outro de costela, a revelação. Como imaginou, e conforme o que acontece com muitas pessoas que resolvem viver de algum segmento da arte, as reações foram negativas. Mas não havia jeito, o compasso do samba que tocava em seu interior, mais cedo ou mais tarde, seria ouvido. Reações ruins à parte, o rapaz está aí, já consagrado no mercado publicitário e reunindo material inédito para o seu primeiro CD. Seu trabalho pode ser conferido em dois blogs. Além das trilhas e jingles que compôs para empresas gaúchas e de outros estados, o grande barato é escutar canções conhecidas adaptadas para o sambarock. Cada semana o visitante pode votar em três das opções disponíveis, e na próxima a faixa estará lá. Entre todas, algumas chamam a atenção pelo resultado final, como a versão para a trilha de abertura do desenho animado Os Simpsons, que lembra muito as composições do disco Timeless, do Sérgio Mendes. Destacam-se, ainda, Rehab, da Amy Winehouse, Beat it, do Michael Jackson, Kiss, clássica do Prince (será que ele ainda se chama assim?), e até mesmo uma saculejada em Toxic, da Britney Spears. Do material inédito, não deixe de escutar Cara casado, Charme e Zé ninguém. Sem dúvida, um dos artistas mais criativos do ano.

Confira o trabalho do Thiago Corrêa nos endereços abaixo: http://www.thiagocorrea.com http://www.thiagoreclame.blogspot.com

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No detalhe, os pĂŠs de Rodrigo Amarante


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A união dos vice-líderes

Los Hermanos e Strokes marcaram o cenário musical em seus países de origem. A primeira sacudiu a MPB após o lançamento do hit grudento Ana Júlia, através das elogiadas composições de Marcelo Camello e Rodrigo Amarante. A segunda é considerada a responsável por revigorar o gênero rock no mundo. Tanto sucesso de público e crítica não impediu que a banda liderada por Camello resolvesse parar por tempo indeterminado, bem como fizeram os Strokes. E foi essa pausa que proporcionou à dois representantes de cada formação encontrar espaço para produzir um trabalho original, marcado, principalmente, pela falta de pretensão. Rodrigo Amarante e Fabrizio Moretti podem ser considerados vice-líderes na hierarquia de seus companheiros de banda. A figura de Marcelo Camello e Julian Casablancas sempre exerceu influência sobre os demais integrantes, eles carregavam a cara do grupo. Amarante entrou na banda que o projetou para fazer backing vocal, mas acabou gravando diversos instrumentos e compondo. Moretti sempre foi o mais carismático do ponto de vista feminino. Com a separação,

cada um ficou livre para trabalhar no que tivesse vontade. Camello lançou o álbum Sou, preocupado em oferecer uma MPB de qualidade sem muito espaço para arriscar. Amarante fez o contrário. Durante uma viagem à Portugal conheceu Moretti, que é brasileiro, e juntos descobriram diversas afinidades, inclusive musicais. Com a entrada da americana Binki Shapiro, namorada de Fabrizio, formou-se, enfim, o Little Joy. O disco carrega boa parte das características de ambos os grupos, como os vocais inconfundíveis de Amarante e a sonoridade dos Strokes. É uma mistura de rock descompromissado com música feita na beira de alguma praia, e é essa a definição do próprio Amarante. Por terem passado um tempo na Califórnia, o músico acredita que o clima influenciou a composição do disco. Não deixe de ouvir Brand new start, No one better sake, The next time around (com versos cantados em português por Binki), Unattainable, novamente na voz suave de Binki, e Dont’ watch me dancing. O trio se afastará enquanto o Strokes trabalha no disco novo, mas planeja gravar o segundo álbum no final do ano.

Little Joy no Brasil Porto Alegre - 27/1, Bar Opinião São Paulo - 28/1, Clash Club Belo Horizonte - 30/1, Festival Freegels Rio de Janeiro - 6/2, Circo Voador

Little Joy Little Joy Som Livre 2008 R$ 30,00

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Direto do MySpace, a menina que virou mais do que uma simples promessa

{ Mallu Magalhães surgiu no cenário musical como quem não quer nada, mas querendo muito coisa. Considerada por muitos como imatura, jovem demais, Mallu não obteve crédito ao assumir que suas criações expostas no site MySpace não eram apenas brincadeira de adolescente ou uma onda passageira. Foi com um certo amadurecimento musical, aos 15 anos, que a menina demonstrou não se tratar de uma deslumbrada e sonhadora (ao menos não com o que todas as garotas de sua idade costumam desejar). Trocou uma festa de aniversário por dinheiro para gravar suas primeiras músicas. Revistas especializadas, complementos culturais de jornais, uma infinidade de sites e blogs a consideram, incontestavelmente, como a revelação musical do ano. Muito de uma série de elementos que chama a atenção da crítica está na postura da garota, que buscou referências musicais incomuns para alguém de sua faixa etária. O folk de artistas co-

mo Johnny Cash e Bob Dylan estão presentes em toda a atmosfera de seu álbum de estréia. Os acordes, o modo de pronunciar as palavras, o jeito de tocar o violão. Com exceção de O preço da flor, todas as faixas foram compostas em inglês, o que pode conferir maior fidelidade ao seu estilo musical. Em pouco tempo, Mallu se tornou hype, a novidade entre os descolados, e ninguém mais se preocupava com sua idade, salvo quando sua relação com o músico Marcelo Camello, da banda Los Hermanos, se tornou conhecida depois de dividirem o palco em um festival. Mas enfim, artista pode tudo. Em matéria escrita para a edição #2 dessa revista, entendíamos que era preciso cautela ao escutar Mallu Magalhães e considerála essa grande novidade musical que a mídia ovaciona o tempo todo. Isso porque as pessoas costumam tendenciar seus gostos, ou seja, “vou ouvir e gostar desse artista porque está nas paradas”, ou “fulano é o assunto do momento!”. Na ocasião, nos preocupamos com a possibilidade desta menina não passar de uma febre musical muito rápida, empurrada por uma onda de comentários resultantes de nada mais do que outros comentários. Exagero ou não, a menina tem o seus méritos, e é por isso que está entre as nossas descobertas de 2008.

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na coito cerebral #2

Mallu Magalhães Mallu Magalhães Independente 2008 R$ 24,00

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A novidade em meio aos acordes sessentistas da onda musical britânica

A indústria musical britânica parece ter renascido nos últimos anos – em termos comerciais. Porque artistas talentosos nunca deixam de brotar. Nessa esteira, as duas características se uniram através de grandes vozes femininas, curiosamente unidas por um gênero musical e suas vertentes: o jazz e a música negra em geral dos não tão distantes assim anos 1960 e 1970. Joss Stone, Corinne Bailey Rae, Duffy e o fenômeno Amy Winehouse são alguns exemplos de artistas que receberam influência do som que nasceu nos Estados Unidos. O chamado vintage soul liderou as paradas musicais, a estética dos figurinos e a imposição nos palcos. No #3 da Coito Cerebral, Laura Marling iniciou uma série musical entitulada Cantoras Britânicas, que tinha o objetivo de discutir esse fenômeno. Porém, no seu caso, essa interferência foi mínima, e é mais prudente posicioná-la como a artista que iniciou uma nova etapa musical. Entre os músicos que Laura cita como favoritos estão Neil Young e Joni Mitchel – cantora que ficou conhecida nos anos 1970 ao misturar jazz e folk (talvez a única ligação com música negra norte-americana existente em seu trabalho). Com apenas 18 anos de idade, e talvez considerada jovem de-

mais, basta ouvir qualquer faixa do seu álbum de estréia, Alas I cannot swim, para que tenhamos a certeza do contrário. Isso porque existe muita propriedade em sua interpretação, as letras são densas e refletem um punhado de sentimentos sombrios. É como se Laura estivesse há muito tempo na estrada. Ela se difere de suas conterrâneas, ainda, por recusar qualquer tipo de rótulo. Seu negócio é fazer música. Com visual despojado, atitudes objetivas e ostentando expressões duras, a moça surpreende não apenas por sua qualidade musical. Em 2007, pronta para apresentarse em uma casa de shows londrina, Laura foi barrada por ser menor de idade. Barrada no próprio show. Sem pensar duas vezes em deixar o público na mão, encostou-se com os músicos na parede de uma loja que ficava ao lado de duas sex shops e cantou ali mesmo, na calçada. Despretenciosa, o resultado final de seu álbum de estréia, bem como dos EP’s que lançou anteriormente (London town e My manic & I, ambos editados em vinis de 7” com tiragem de 500 cópias), impressiona pela maturidade. Destaque para Night terror, Old Stone, Shine, Tap at my window e Ghosts. Das que ficaram de fora do disco, pro-cure na rede Candelight, London Town e a ótima Mexico.

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na coito cerebral #3

Assista no site da revista Night terror (ao vivo no Mercury Prize 2008)

Alas I Cannot Swim Laura Marling Virgin 2008 R$ 58,00

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A mulher que canta a depressão dos relacionamentos e a superação no próximo amor

Rachael Yamagata tornou-se conhecida nos Estados Unidos através do seriado The O.C., que também trouxe para o grande público nomes como The Killers. Nas cenas, Rachael aparece como ela mesma tocando no bar The Bait Shop, da personagem Alex Kelly. Essa participação, mais a inclusão da faixa I wish you love no filme Terapia do amor, estrelado por Meryl Streep e Uma Thurmann, pode não ter sido suficiente para colocar a cantora nos principais charts da revista Billboard, mas mostrou uma face musical agradável, onde mistura-se o pop e o rock com uma bela levada jazzística. A carreira musical propriamente dita começou através da banda Bumpus. Por ser fã do trabalho do grupo e comparecer em diversos shows foi convidada para integrar a equipe. Após seis anos compondo, gravando e viajando pelos Estados Unidos, em 2002 partiu para carreira solo, ao assinar contrato com a gravadora Arista Records. No mesmo ano lançou seu primeiro EP, contendo uma de suas canções mais conhecidas, Worn me down, tocada em diversos programas de grande audiência da televisão norte-americana. Em jun-

ho de 2004 lançou o álbum, Happesteance, através do selo BMG. Do disco, ótimas canções se destacam, como Be be your love, Paper doll, Reason why e a instrumental Moments with Oliver. De uma forma geral, suas canções refletem uma obsessão por discutir relacionamentos e, por consequência, as separações. A sonoridade depressiva voltaria no álbum seguinte. O disco duplo Elephants...teeth sinking into heart, lançado no segundo semestre de 2008, é ainda mais intimista, de acordo com a cantora. Destacam-se Duet (em parceria com Ray Lamontagne), Little life, a versão instrumental para Elephants, Over and over e Horizon. Uma atmosfera escura percorre as faixas como um desabafo, porém, em contrapartida, se preocupam com a esperança de que, na próxima vez, no próximo relacionamento, tudo será diferente. Esse sentimento está mais presente na faixa título, Elephants, e em Sunday afternoon, conhecida da studio session de Happesteance. Com arranjos diferentes, essa canção “fala sobre aceitar a sua parte ao final de um relacionamento, sobre depressão e até um pouco de obsessão, mas não parar a sua vida por causa disso”, declarou Rachael em seu website.

Assista no site da revista Elephants Faster Sunday Afternoon

Elephants... Teeth Sinking Into Heart Rachael Yamagata Warner Bros/WEA 2008 R$ 67,00

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Till Brönner: além da visão gringa

Pode-se dizer que Till Brönner é um estrangeiro apaixonado pelo Rio de Janeiro. Até aí nenhuma novidade. E que ele, trompetista e compositor, encontra em nossa música inspiração para o seu trabalho, também não soa estranho. No ano em que o mundo celebrou os 50 anos da bossa nova, a maior influência brasileira na música internacional, Brönner dedica um disco inteiro à cidade do Rio de Janeiro e, claro, à bossa. O seu talento como instrumentista aliado à mistura de artistas convidados prova que o seu olhar vai muito além daquela que o estrangeiro possui sobre a nossa cultura. Brönner enxerga sob uma ótica sem estereótipos, o que confere naturalidade ao resultado final. Rio foi produzido por Larry Klein. Através de inusitadas parcerias, o repertório do álbum surpreende justamente por esse elemento. Não são apenas as regravações de canções consagradas da MPB, mas os músicos que dividem nos vocais. Um bom exemplo é a faixa Mistérios, gravada por Milton Nascimento e Annie Lennox, a exlíder do Eurythmics. Vanessa da Mata gravou O que será, de Chico Buarque, em versão cheia de uma nostalgia contida. Tão pupular quanto a bossa nova no exterior, Sergio Mendes participou na faixa Ela é carioca. Ainda no time nacional, Luciana Souza gravou Aquelas coisas todas e Evening, essa em dueto com Milton. Do time internacional, destacam-se Aimee Mann, na canção Once I loved (Amor em paz), Melody

Gardot, com Hight night, e Kurt Elling, em Sim ou não. Das canções solo, destaque para Bonita, Café com pão e Só danço samba, onde prova, também, que é um ótimo intérprete. Durante lançamento do álbum em Lisboa, em novembro, o artista declarou que “com o álbum Rio realizei um sonho. A bossa nova é, para mim, um antigo amor pelo qual nunca deixei de sentir saudades. Finalmente este amor voltou para a minha vida, é esta a sensação que tenho. Quando entramos em contato com os artistas para saber se havia a possibilidade de realizar participações no disco ficamos espantados: nenhum disse que não, o que se deve à imensa popularidade da música brasileira, comprovando que estávamos no caminho certo com a ideia de gravar Rio". Till Brönner nasceu em 1971, na Alemanha. Passou a infância com os pais em Roma, e estudou trompete clássico, até que os discos de Charlie Parker, Chet Baker e Freddie Hubbard, e a própria influência da bossa nova, começaram a ajustar o seu rumo musical na direção do jazz, que o consagraria no mercado europeu e, depois, no resto do mundo.

Rio Till Brönner Universal 2008 US$ 19,99

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15 anos foi o tempo que levou para que Madonna planejasse uma turnê de grandes proporções, e não apenas com datas no eixo Europa-Estados Unidos. 15 anos foi o tempo que levou para que a Rainha do Pop voltasse a pisar em solo brasileiro. A Sticky & Sweet Tour bateu o recorde de maior arrecadação em bilheteria para um artista solo, recorde que era da própria cantora. Foi assim, superando expectativas, que um dos maiores nomes da música desembarcou para duas apresentações no Rio de Janeiro e três em São Paulo, em dezembro. Misturando antigos hits com o repertório de seu último álbum, Hard Candy, o resultado final foi a certeza de que nunca mais o mundo verá nascer outro fenômeno como esse. Por isso, eu embarquei em uma viagem de 18 horas rumo à São Paulo para conferir de perto esse espetáculo, e também algumas histórias paralelas.

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Na quinta e última apresentação da Sticky & Sweet Tour no Brasil, dia 21 de dezembro no Estádio do Morumbi, em São Paulo, Madonna não só saciou a saudade dos fãs que esperavam vê-la de volta ao país desde 1993. Aos 50 anos, Madonna prova, quase sem esforço, que é a última grande estrela da música pop. Em épocas de grande democratização musical, onde diversos canais levam a música de inúmeras formas até o consumidor, nada mais parece capaz de inovar. Não apenas no consumo, mas também na produção. Tido como a mais recente grande revolução musical, o mp3 divide opiniões, ao mesmo tempo em que possibilita o acesso imediato ao conteúdo das gravadoras (na maioria das vezes de forma gratuita, o que tanto gera insatisfação). Considerada uma luta sem vitória, a palavra de ordem é adaptação. Madonna pode ser vista dessa forma, a última grande artista da música pop, que conseguiu chegar aos dias de hoje graças à sua percepção e capacidade de se reinventar. No início dos anos 1980, Madonna nascia em plena revolução estética mais impactante da história, juntamente com a MTV, e juntas iriam marcar a história da música, assim como ocorreria anos mais tarde com o mp3. O vídeoclipe se popularizou como importante meio de divulgação, alternativa para quem não podia acompanhar circuitos de shows ao vivo. Enquanto provocação Madonna o utilizou muito bem. Usou o corpo e o apelo do sexo misturado à religião, duas das características mais marcantes de sua carreira. De polêmica passou a feminista, e depois ícone gay. Era a chegada dos anos 1990. O que poderia sinalizar o início de uma era de ostracismo pós-sucesso, como ocorreu com muitos artistas de sua geração, se mostrou um novo ponto de partida. Erótica, o álbum, bombardeou o mundo de surpresa. Era o auge da exploração sexual de sua imagem, incluindo Sex, um livro de fotografias que as pessoas não estavam preparadas para aceitar (embora quisessem muito ver). A fase seguinte cedeu lugar para a experimentação musical, que começou de forma tímida em 1994, com o disco Bedtime Stories, e ganhou força em 1998, com o aclamado Ray of Light, considerado um novo Like a Prayer. O termo experimental não quer dizer criar música para o underground, mas foi lá que encontrou parceiros para seus trabalhos futuros. Foi neste disco que Madonna flertou abertamente com a música eletrônica. Surpreendeu Dos 80 aos 90, Madonna desfilou estilos e explorou todas as faces de sua imagem

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público e crítica e faturou seu primeiro prêmio Grammy. Nos anos seguintes a reivenção continuou. Contabilizando pequenas baixas, como o não tão bem sucedido disco American Life, a diva transformou sua forte adaptação aos contextos da música como um dos grandes fatores de sucesso de sua carreira que já dura mais de 20 anos. Madonna está sentada no trono que buscou e fez por merecer, através de trabalho duro e inteligência. Um trono que vai demorar para ser ocupado. Talvez nunca seja.

A viagem Se existe uma coisa que me desagrada são longas viagens, não importa o meio de transporte. O fato é que me programar na última hora não me deixou outra opção que não fosse assistir à passagem da Sticky & Sweet pelo Brasil em São Paulo, e de ônibus. Pois bem, passagens, ingressos e mochila nas mãos, me despenquei em uma jornada de 18 horas através de 1122 km por três estados até a capital paulista. Não imaginei o quanto pudesse ser cansativo. Não sinto sono em viagens, e nem consigo comer demais, por isso o esgotamento veio mais rápido. Sem contar as dificuldades do percurso, principalmente em Santa Catarina. Os trechos em obras da BR101 obrigavam o motorista a entrar em desvios com frequência, o que parecia aumentar ainda mais o tempo de estrada. Enfim, chegar no Terminal Rodoviário Tietê foi um alívio, mas o cansaço físico era enorme. Me arrastei até uma lancheria para tomar café e comer alguma coisa (um pão de queijo horrível). Depois, telefonei para a Magda, uma ex-colega de trabalho que está morando na cidade. Para chegar lá era preciso pegar o metrô, cuja estação desemboca na rodoviária. Me impressionei com a rapidez, em vinte minutos foram mais de vinte estações percorridas. Após abraços, trocas rotineiras de informações de quem há muito não se vê, tive o repouso merecido. Não iria aguentar fazer o bate e volta sem pitstop como havia planejado. Durante a tarde choveu muito, o que preocupou todos os fãs que iam para o Morumbi, e os que lá estavam suportaram a chuva sem reclamar. Até porque Madonna fez um ensaio aberto durante a tarde, com o público presente. Quem iria achar ruim poder vê-la de perto um pouco mais cedo?

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Os telões ganham destaque em todo o aparato tecnológico utilizado no palco. Na foto, Madonna canta envolvida por um telão cilíndrico

O gosto do doce Os espetáculos de Madonna são, antes de qualquer coisa, para serem vistos. A música quase passa para o segundo plano. É impressionante o aparato técnico investido em vídeo e iluminação, o que torna o palco um elemento de igual importância. Como de costume, as apresentações são divididas em blocos temáticos. Na S&S, são quatro: Pimp (Candy shop, Beat goes on, Human nature e Vogue), Anos 80 (Die another day, Into the groove, Heartbeat, Borderline, She’s not me e Music), Cigano (Here comes de rain again, Devil wouldn’t recognize you, Spanish lesson, Miles away, La isla bonita/Lela pala tute e You must love me) e Rave (Get stupid, 4 minutes, Like a prayer, Ray of light, Hung up e Give it 2 me). A chuva forte que caiu sobre São Paulo catapultou de vez meus planos de ir ao Morumbi cedo na esperança de pegar um lugar razoável. Ao menos alguém fez a festa; os vendedores de capa de chuva. Por cinco reais você poderia adquirir um “projeto” de capa, que ao vestir mais parecia uma sacola de supermercado translúcida. Comprei uma por achar que pudesse voltar a chover, o que não aconteceu. Melhor assim. Como imaginei a pista estava quase lotada, e os arre-

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dores do material colocado sobre o gramado virado em lama. O que não desanimava ninguém. Fui tentando ultrapassar as pessoas vestindo a minha singela capa de sacola, pois umas gotas esparsas caíam. Mas a sacola era quente demais, e resolvi aceitar a chuva que viesse. O DJ Paul Okenfoald começava o setlist do seu show de abertura naquele momento, eram quase 20h, e o público se animou. Me posicionei em um lugar sem pessoas muito altas na frente, e fiquei observando o palco para avaliar a distância. Julguei longe demais. Fui ultrapassando aquele divertido encontro de gerações até chegar em um local que não era muito melhor, mas me conformei. Não iria ver as gotas de suor da Madonna, então, o jeito seria acompanhar os detalhes pelo telão lateral. Como de costume, alguns dançarinos da equipe foram ao palco para capturar imagens da platéia. Fotografavam e se divertiam, enquanto que remixes de Nelly Furtado, Rihanna e Britney Spears ecoavam em cada canto da casa do Rogério Seni. Homens e mulheres sabiam as letras de cor, e dançavam em uma comunhão com as energias das noitadas livres de qualquer preconceito. É divertido parar e ver os outros nesses momentos de diversão, enfim. Enquanto isso, técnicos da equipe iniciaram um mutirão para secar a esteira localizada na passarela anexa ao palco, realmente a chu-

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va não havia sido pouca. Só que demorou demais. O DJ finalizou o set e mais pessoas chegavam com toalhas brancas para secar a maldita da esteira. O relógio já marcava 22h, e aquele processo parecia não ter mais fim. Gritos de “piranha”, “vadia” e etc. ecoavam pela impaciente platéia. Pouco depois as luzes do estádio se apagaram. Euforia. Estava torcendo que aquele fosse o início propriamente dito, e também porque já estava cansado do cheiro de cigarro de canela de uma mulher ao meu lado. Quando os ruídos que antecedem o começo do espetáculo foram ouvidos ninguém mais se lembrou de atraso e chuva: em poucos instantes, ela seria vista. O espetáculo começa. Um telão em forma de cubo se desfaz em diversas partes e Madonna surge sentada em um trono; uma alusão perfeita à posição que ocupa no

chuva passam a perfeita sensação de que a água está preenchendo um tubo. Nisso Madonna marca mais um ponto, sempre podemos esperar grandes surpresas de sua equipe técnica. O bloco segue com Spanish lesson, a balada Miles away e La isla bonita/lela pala tute. Um grande momento foi registrado com You must love me. A bela canção do filme Evita, nunca executada em suas turnês, apenas na cerimônia do Oscar, sempre emociona a platéia. A comoção foi tanta que a própria artista não conteve as lágrimas. O bloco Rave finaliza o espetáculo, ainda que alguns números poderiam ter sido trocados na ordem do setlist. Mas o melhor momento está aqui. Like a prayer, a enigmática canção que dá título ao disco de 1989, é disparado o ponto alto da noite. Nin-

Na saída conturbada do Morumbi, todos compartilhavam a sensação de ter vivido uma noite única, quem sabe mítica. Apesar do gosto pessoal de quem está lendo essa matéria, uma coisa estabeleceu consenso: Madonna jamais passará desapercebida, e seu valor como artista já escreveu linhas marcantes nos cadernos da música mundo da música. Candy shop quase não pode ser ouvida nem vista, abafada pelos gritos intermináveis e pessoas querendo escalar os ombros alheios e desespero e ansiedade desmedida. Logo começa Beat goes on, enquanto a pessoa, que parece (ou merlhor, é) um mito, chama por São Paulo. Sua forma física é impressionante. Parece difícil uma mulher de sua idade, mãe de dois filhos, ostentar aquele corpo com tanta dignidade. Ao menos para as que não dispõem de sua conta bancária, mas isso não vem ao caso. Human nature, canção de 1994 (com participação de uma Britney Spears insana dentro de um elevador, projetada nos telões), se aproxima do primeiro grande clássico do repertório. Vogue, canção de 1990 que acabou se tornando um símbolo da liberdade homossexual, apresenta dançarinas com roupas que, de longe, aparentam ser apenas a pele. A seguir vem o bloco Anos 80, com duas músicas clássicas do período: Borderline, do primeiro álbum, e Into the groove. Não tem jeito, quem é fã jamais vai esquecer dessa época, embora Madonna, muitas vezes, afirme não gostar de interpretar essas canções. Mas isso se reverteu na divulgação do disco American life, em 2003, inclusive nas turnês promocionais. Music, que fecha o bloco, traz basicamente o mesmo número executado em Nova York e Londres, quando lançou Hard Candy. Porém, sem a presença física de Justin Timberlake, que contracena com Madonna através de telas móveis em seu tamanho natural (na música 4 minutes). O bloco cigano é um dos mais impressionantes em termos técnicos. Here’s come the rain again, do Eurythimics, serve de introdução para Devil wouldn’t recognise you. Madonna canta vestida com uma capa preta sobre um piano, envolta pelos incríveis telões cilíndricos. A projeção de gotas de

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guém fica parado. Com a guitarra nos braços, Madonna convida o público à celebrar uma de suas fases mais notáveis como artista, que aceita de imediato. Após o número de Ray of light, que assim como a canção anterior representa uma virada de fase na carreira, a interatividade assume o espetáculo. Madonna pede que os fãs escolham alguma de suas canções antigas para cantar de improviso, como fez em todas as apresentações. Alguém grita Sorry, outro Deeper and deeper (que ela se nega a cantar), até que pergunta se alguém gostaria de ouvir Like a virgin, pois era assim que se sentia (entre risos corrige: “shine and new!!!”). Hung up e Give it to me finalizam a noite, com a frase “game over” estampada nos telões. Na saída conturbada do Morumbi, todos compartilhavam a sensação de ter vivido uma noite atípica, quem sabe mítica. Gosto pessoal à parte de quem está lendo essa matéria, uma coisa pode estabelecer consenso: Madonna jamais passará desapercebida, e seu valor como artista já escreveu linhas marcantes nos cadernos da música. Enquanto tentava encontrar um táxi para voltar para a

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A representação da década de 1980 e seus exageros é um dos blocos mais animados do show. Na canção She’s not me, Madonna contracena com homens travestidos à sua imagem, e a letra diz: “Ela não sou eu / Ela não tem meu nome / Ela jamais vai ter o que eu tenho / Não vai ser a mesma coisa”

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Passando por mais de 10 países, a Sticky & Sweet Tour é a maior turnê de uma artista feminina em toda a história da música, não apenas em termos de arrecadação. As 653 horas de ensaio foram de grande importância para que as 250 pessoas envolvidas fizessem tudo funcionar no tempo certo, incluindo as oito trocas de figurino de Madonna durante o show. 36 estilistas contribuíram na criação das peças, incluindo Givenchy, as quais foram transportadas em 10 caminhões Na foto, Madonna interpreta a canção Beat goes on, com participação virtual do rapper Kanye West

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casa de minha amiga quase radicada paulistana para, enfim, saborear uma merecida noite de sono, tinha todos os detalhes em minha mente. Mas aos poucos eles foram se dissipando, mas isso simplesmente porque minha memória não é privilegiada, e não por qualquer significado filosófico que pudesse utilizar. No final das contas foi muito interessante e divertido presenciar a passagem de Madonna pelo Brasil depois de tanto tempo, e conferir de perto tudo o que incontáveis resenhas já contaram sobre seus espetáculos. E ver que era tudo verdade.

Mulheres comuns Não é qualquer artista, seja qual for a vertente, que tem cacife para chegar aos cinquenta anos com 25 de carreira, e bem posicionado. Em 2008, qualquer texto que noticiava as novidades da diva utilizava esse viés, o que se justifica em parte. Só que Madonna é, de um jeito ou de outro, uma mulher comum, no sentido de que tem família, uma rotina (diferente de muitas, tudo bem), que acorda com mau hálito, que faz ginástica. Talvez o seu maior mérito como pessoa não seja o sucesso comercial, esse que figura nas capas de jornais e revistas, mas em ser justamente uma mulher como as outras, que administra todas as coisas sem perder a razão. Pensei nisso enquanto fazia a viagem de volta. Ao meu lado sentou uma jovem mulher, Susi, de 30 anos. Depois de dois meses na cidade cinza estava voltando à Porto Alegre para rever os dois filhos. Não tem jeito, tanto tempo dentro de um ônibus sem ter o que fazer acaba trazendo à tona histórias de vida, por mais que você deseje manter a conversa dentro de assuntos tri-

Susi é uma mulher comum, dessas que a gente vê todos os dias. Madonna quase se encaixa nessa categoria. A diferença é que, como poucas, escapou para o mundo viais, ou, às vezes, nem conversar. Enfim, me animei a escutar suas trajetórias. Tratava-se de um caso até que comum; mulher que se separou do marido porque apanhava, mas só depois de bastante tempo nessa situação. Com a morte da mãe e sem trabalho Susi ficou sem ter onde morar, e com a separação encaminhada perdeu a guarda para o ex-marido. “Tive que aceitar, mesmo sabendo que ele fazia aquilo mais para me atingir do que pelas crianças”, contou ela. Pouco tempo depois conheceu um homem que iria ser a peça fundamental para virar o jogo. Paulista, de passagem por Porto Alegre, Beto sentiu por Susie um desses rompantes que nunca acreditei muito, mas enfim... O fato é que começaram um relacionamento muito interessante, e, na época vivendo de favor na capital gaúcha, sem chance de morar com os filhos, aceitou o convite para morar em São Paulo com Beto. “Hoje a história é outra, por isso que estou voltando. Meu ex perdeu o emprego e vive encostado na casa dos irmãos. Agora que tenho um novo relacionamento, estou trabalhando, tenho onde morar, sei que posso conseguir os meus filhos de volta, e já tenho mais um à caminho”, finalizou. Bem, a intenção não era melodramatizar a resenha, mas corroborar com o fato de que existem muitas Susis por aí, mas de vez em quando algumas escapam para os holofotes.

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Trabalho feito por quatro mãos e nenhum instrumento tecnológico

Em um mercado editorial difícil de penetrar pelos meios convencionais, com a crise na cadeia produtiva e as baixas vendas devido ao preço elevado e a falta do hábito de ler do brasileiro, buscar alternativas para produzir literatura é o novo desafio de jovens interessados em escrever. Mas engana-se quem pensou na internet como solução. Os blogs já não podem ser citados como espaço único de criação e divulgação. Na era digital, a solução pode nascer de idéias criativas e simples (o que não quer dizer fáceis). Foi a partir dessa premissa que a escritora gaúcha Clarah Averbuck e a ilustradora paulistana Eva Uviedo trabalharam em Nossa senhora da pequena morte, livro-LP confeccionado sem intervenção alguma de meios digitais (salvo na finalização). Lançado pela Editora do Bispo (empresa especializada em lançar títulos que não tenham nenhuma ligação com padrões conceituais e estéticos), o livro teve tiragem única de 200 exemplares, todos assinados pelas autoras. Além do processo de confecção, o diferencial está na embalagem. Cada livro acompanha um LP diferente, garimpado nos melhores sebos de São Paulo pela própria Clarah. Há “trilha sonora” para todos os gostos: jazz, blues, clássicos de artistas como Billie

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Holliday, Nina Simone, Bob Dylan, Leonard Cohen, trilhas de cinema e até materiais raros da indústria fonográfica mexicana. O conteúdo textual, mistura de prosa e poesia, segue o estilo já conhecido de Clarah. Pode-se descobrir qualquer assunto, e tratado sem pudores. Não esses que envolvem uma linguagem desbocada, ou narrativas que “analisam” o sexo. A falta de pudores está em falar abertamente, deixar transparecer sentimentos, emoções, vontades e desejos, os da alma e os da pele. Há sentimentos nostálgicos, como no texto Sobre amor e mãos frias, onde o ponto de partida é a lembrança do dia em que ele broxou (página seguinte). A autora não gosta de comparações, e, certamente, odiaria saber que esses textos nos lembram Máquina de pimball (Conrad Editora), seu livro de estréia, pela verdade com que as frases brotam das páginas. Sobre as ilustrações, o traço de Eva carrega uma personalidade única. Renomada profissional do mercado, a mistura de ingenuidade dos desenhos com a força, em especial feminina, parece ter sido feito para as palavras de Clarah desde sempre. O non-sense das mulheres polvo, vestidas com lantejoula ou calcinhas de fitas entrelaçadas nas laterais, induzem o leitor para dentro de um mundo muito lúdico, e ao mesmo tempo real.

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“Ela não aprende não aprende não aprende não aprende nunca Mas que puta que pariu Aprende: Coração Não serve Pra nada Só pra quebrar E para cortar os pés nos cacos E doer E sangrar e fazer sujeira E incomodar com o vidro que não sai Aprende Aprende ai, de vez negrinha Coração não tem vez”

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Clarah Averbuck

Eva Uviedo Artista gráfica, nasceu na Argentina, mas escolheu São Paulo para viver. Conciliando tecnologia e arte em seu trabalho desde sempre, Eva coordena o núcleo de mídias eletrônicas da editora Trip e edita vídeo-projeções para shows e afins. Porém, para desenhar, prefere o trabalho à moda antiga: canetas, pincéis, aquarelas, café, cola e durex. Com isso, ilustra capas para CD’s, revistas (TPM, Prana Yoga e Criativa, entre outras), pôsters e camisetas para sua marca, La Tosca.

Gaúcha radicada em São Paulo, 29 anos, é autora de Máquina de pinball (Editora Conrad, 2002), Das coisas esquecidas atrás da estante (editora 7Letras, 2003) e Vida de gato (Editora Planeta, 2004). Recentemente, os livros e textos dos seus blogs foram adaptados para o cinema, no filme Nome próprio, do diretor Murilo Salles, com a atriz Leandra Leal como protagonista. Em outubro lançou Cat life na Inglaterra pelo selo Future Fiction, do grupo Creation Books.

Mais informações: http://esquizofasia.blogspot.com http://www.latosca.com.br/ascoisastodas

Mais informações: http://adioslounge.blogspot.com

Veja mais imagens do processo de criação do livro, do lançamento e da exposição em: http://flickr.com/photos/evauviedo/sets/72157607252224169/detail/

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“Como é que eu me meti nessa, como é que eu saio dessa, quem disse que eu quero sair dessa, esquecer isso tudo, derreter, morrer, agradecer à nossa senhora da pequena morte e dormir uma dormidinha daquelas antes de começar tudo de novo. E de novo. E de novo e de novo, até ele perceber que não há saída senão se entregar e se entregar sabendo que tudo nos espera”, escreve Clarah Averbuck, no texto que dá título ao livro.

Nossa Senhora da Pequena Morte Clarah Averbuck (textos) Eva Uviedo (ilustrações) Editora do Bispo 2008 35 páginas R$ 168,00

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Uma empresa que nasceu para escapar do convencionalismo

{ Eles são jovens, produzem literatura e fazem parte de uma geração formada por influências de diversos campos da arte e, sobretudo, por uma grande necessidade de se libertar das amarras de tudo o que é convencional. São escritores que desejam revirar cada lado dos temas que escolhem para escrever, seja qual for. E também poder opinar em todas as questões que envolvem a concepção do livro e a sua lógica de distribuição, até chegar às mãos e aos olhos do leitor. Isso parece utópico? Talvez, mas não quando se resolve trabalhar de forma independente. Unindo esses e outros princípios, no final de 2007 nasceu, comandada por Luciana Thomé, Rafael Spinelli, Rodrigo Rosp, Samir Machado de Machado, Guilherme Smee e Antônio Xerxenensky ( que nos concedeu a entrevista das páginas a seguir) a Não Editora, e com apenas um ano de vida colocou no mercado grandes obras e um novo momento na literatura gaúcha. Porém, tal empreitada não foi colocada em prática através de caminhos fáceis. Havia a percepção de a tecnologia estava mais acessível, bem como o número de escritores no mercado ter crescido com a ajuda das oficinas literárias.

Portanto, não era difícil começar o empreendimento, mas sim fazer com que durasse. Por isso, critérios como design gráfico e texto bem revisado se tornaram importantes ferramentas no processo como um todo. E isso ajudou a consolidar o nome da Não Editora e a qualidade criativa de suas obras no Estado. O título Ficção de polpa, uma coletânea de contos que tem como tema a ficção científica, o gênero terror e o fantástico, está chegando ao terceiro volume. O catálogo demonstra o apuro técnico e uma preocupação em colocar nas prateleiras produtos culturais inovadores. E o resultado veio rápido: a indicação de Pó de parede, de Carol Bensimon, ao prêmio Açorianos na categoria contos, Desencanto Carrossel, de Diego Grando, em poesia, Areia nos dentes, do Antônio Xerxenensky em romance, e a vitória da Não Editora como editora do ano. Todo o reconhecimento que receberam, apontados por veículos especializados como revelação de 2008, parece não deslumbrar essa equipe, pelo contrário. Possibilita que percebam o mercado literário com um olhar cada vez mais apurado e amadurecido, preocupados em levar boas histórias até um público cada vez mais diversificado.

Antônio Xerxenensky, um dos pensadores da Não Editora

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Desde a editora Livros do Mal, tudo estava tranquilo demais no cenário do Rio Grande do Sul. É necessário que surja uma editora independente de vez em quando para sacudir essa paisagem

A Não Editora surgiu a partir de uma necessidade específica? Houve incentivos culturais, ou algum outro tipo de apoio? A Não Editora foi formada por um grupo de escritores que se conheceu através do lançamento da antologia Ficção de polpa, cujo primeiro volume foi lançado por outra editora. Tínhamos desejo de dar continuidade à antologia e de lançar nossos próprios livros com controle total sobre questões gráficas e outros detalhes, por isso decidimos criar nossa própria editora. Não houve incentivos culturais ou apoio financeiro externo.

Na visão de vocês, como se define o cenário da literatura no Rio Grande do Sul? O Rio Grande do Sul tem uma particularidade em relação aos outros estados que é a questão das oficinas literárias, que abundam pelo solo gaúcho. Há uma grande quantidade de novos escritores (alguns de qualidade, muitos não) que desejam publicar seus textos. E, desde a editora Livros do Mal, tudo estava tranquilo demais no cenário do Estado. É necessário que surja uma editora independente de vez em quando para sacudir essa paisagem e mostrar o que tem sido feito de valor na nova literatura.

Vocês fizeram alguma análise de mercado para chegar aos parâmetros desejados para a editora? Não chegamos a fazer um plano de marketing ou algo elaborado assim; apenas percebemos que havia uma oportunidade e, assim, nos posicionamos: como uma editora independente que não abre mão da qualidade e publica nova literatura. Montamos nossos projetos com uma estrutura de custos simples e sem correr muitos riscos.

Para uma empresa do mercado editorial, é mais interessante segmentar a produção do que apostar em tiragens maiores? Não podemos falar em nome de todas as editoras, mas em termos de editoras independentes sim, é mais interessante segmentar. Não há razão lógica para realizarmos grandes tiragens de novos autores, porque eles não possuem uma base de leitores já formada.

A revista Cadernos de Não-Ficção é mais um produto marcado pela iniciativa criativa desta equipe. Sem periodicidade definida, reúne críticas e artigos de profunda análise do universo literário. No primeiro número, o destaque fica por conta de uma coletânea de textos que estudam o fenômeno David Foster Wallace, escritor que se suicidou no auge da depressão, em 2008, e deixou uma importante obra ainda desconhecida por grande parte dos leitores brasileiros. Foi justamente a sua morte que motivou Xerxenensky a criar a revista, um espaço onde pudesse escrever comentários e ensaios sobre seu trabalho, conforme conta no editorial. Com projeto editorial de Samir Machado de Machado, as páginas reúnem acadêmicos e escritores com muito a dizer sobre literatura contemporânea. O número 1 conta, ainda, com um texto de Daniel Galera. Interessados podem fazer o download da versão em pdf no site da editora (www.naoeditora.com.br).

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Existe um certo descompasso entre a oferta de publicações e a capacidade do leitor em absorvê-la, mesmo em se tratando de livros especializados. Esse pode ser apontado como um problema para o setor econômico da cadeia produtiva do livro? Sem dúvida. Por mais que dados indiquem que nunca se leu tanto no Brasil, o público leitor de literatura, ainda mais de nova literatura, é reduzido. Não é exagero dizer que há mais publicações do que leitores. Por esses motivos que a Não Editora opta por limitar o número de lançamentos por ano. O que a Não Editora prioriza ao definir o que vai ser publicado? Qualidade e relevância. A maioria dos editores precisa acreditar que o original que temos em mão é de grande qualidade e, além disso, é relevante para o cenário literário atual, no sentido de que não é "mais do mesmo", nem um livro de contos que somente reúne um punhado de textos que estava na gaveta do autor. É preciso lançar livros que tenham leitores interessados em conhecer.

Outro diferencial da Não Editora é a revista de crítica literária Cadernos de Não-Ficção. Qual o peso de um veículo como esse para os leitores e para o mercado? A revista não foi criada a partir de critérios do mercado ou esperando gerar retorno em vendas. Reconhecemos, claro, que como produto institucional, ela ajude a divulgar a editora. No entanto, a Cadernos de Não-Ficção existe graças ao desejo de ter um espaço onde se discuta a literatura contemporânea com alguma profundidade. Ela foi criada porque se espera que haja leitores que gostem tanto de literatura a ponto de querer pensá-la extensivamente. Já é possível adiantar o que será publicado em 2009? Confere a informação de que todas as publicações já estão definidas? Podemos adiantar dois lançamentos: em março, sairá Uma leve simetria, romance de Rafael Bán Jacobsen, e, em maio, o terceiro volume da antologia Ficção de polpa. E, sim, estamos com todas as publicações de 2009 praticamente definidas.

Ficção de Polpa, vol. 1 e 2 - Vários | Org. Samir Machado de Machado Azar do Personagem | Reginaldo Pujol Filho Desencanto Carrossel | Diego Grando Pó de Parede | Carol Bensimon

A Virgem que Não Conhecia Picasso | Rodrigo Rosp Areia nos Dentes | Antônio Xerxenensky Raiva nos Raios de Sol | Fernando Mantelli O Professor de Botânica | Samir Machado de Machado

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Temas delicados costura-se à narrativas diretas em uma das grandes estréias do ano

{ Se existe uma discussão que não cabe mais no campo da literatura é o espaço conquistado pelas mulheres. Na verdade, em nenhum setor que envolva produtos culturais. Isso porque, em outros segmentos, ainda encontra-se pauta para conversas e teorias. Talvez a arte tenha sido o primeiro lugar a abrigar a liberdade feminina, meio que continua sendo um grande canal de expressão. O que surpreende hoje não é mais a contrariedade frente à idéias conservadoras, mas o talento. Simplesmente o talento, que se adapta ao tempo e avança alguns anos em casos mais específicos. Por isso, vamos esquecer o fator mulher para falar sobre essa característica que, no final das contas, não é possível de se desenvolver, mas sim descobrir. Em 2008, o mercado teve a oportunidade de conhecer Carol Bensimon. No mês de junho, chegava às livrarias Pó de parede, seu livro de estréia, através do também estreante selo Não Editora. Exatamente 10 anos antes, outra portoalegrense, Letícia Wierzchowski, estreava no mundo das letras. As duas escritoras representam épocas diferentes, com

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outras vivências e formas de enxergar e retratar o mundo que as cercam, mas trazem consigo uma característica em comum: são escritoras que possibilitaram ao cenário literário, cada uma em um período e de maneiras diferentes, um doce sopro de renovação, porém sem carregar isso como ideal. Pó de parede é um livro formado por três histórias curtas, independentes, mas com alguns elementos que as unem: os conflitos que cercam o período em que se deixa de ser adolescente e o início da vida adulta, e a memória construída nessa época. Com narrativas diretas e cortantes, Carol descreve um mundo que poderia ser de qualquer pessoa, e talvez isso possa despertar reações incômodas em alguns leitores. É a nostalgia que não se deseja, mas um tempo que sempre queremos de volta. Por e-mail, Carol, que está na França cursando doutorado na área de literatura comparada, concedeu entrevista para a Coito Cerebral, onde desenrola os fios que cercam o processo de produção dos seus escritos, opina sobre o mercado literário, as conseqüências das ferramentas virtuais, o cotidiano em Paris descrito em blog do Clic RBS, e a finalização de seu segundo livro, Sinuca embaixo d’água, contemplado com a bolsa Funarte de estímulo à criação literária.

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Quando você percebeu que tinha habilidade com as pôr no texto a sensação que determinada música me causa. palavras, e que poderia fazer disso uma carreira? Costumo fazer isso com fotografias também. É difícil ser precisa nesse sentido, mas a certeza que eu tenho é que essas duas coisas aconteceram em momentos difeEscritores de sua geração, muitas vezes, tem uma caracrentes. Por muito tempo, o caminho mais seguro parecia ser terística em comum: a internet. Seja em blogs ou listas de o da publicidade ou do jornalismo distribuição, a rede parece ter (curso que cogitei antes de me dese tornado uma ferramenta. cidir finalmente pela publicidade). Você acredita que ela tenha reO caminho mais seguro parecia Mas, com o tempo, o caminho que levância no processo de criaser publicidade ou jornalismo. eu tinha escolhido ficou meio intoção, ou funciona apenas como lerável, e ser escritora de fim de secanal de divulgação? Mas, com o tempo, o caminho mana já não era suficiente. Como canal de divulgação. Nesque eu tinha escolhido ficou se sentido, acho que fui bastante Nesse período, pode apontar beneficiada, pois sempre acabo intolerável, e ser escritora de alguma influência literária? tropeçando com um ou outro fim de semana não era suficiente Começou na infância e pré-adoblog que cita algum trecho do Pó lescência, com histórias policiais, de Parede, ou que faz um tipo de depois passou por Caio Fernando resenha, enfim. É o livro circulanAbreu, e chegou em Faulkner e Cortázar. do no boca-a-boca virtual. Outro produto cultural influenciou seu trabalho (ou ainda influencia)? Sim. O cinema. Também a música. Ao ponto de pensar “esse capítulo tem que soar como essa música”, enfim, buscar

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A utilização da rede modificou, de alguma forma, o conteúdo ou a forma de escrever? Não. Talvez haja pontos de contato, em termos formais, mas o blog é despreocupado, imediato. Eu escrevo, releio uma vez, e

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http://www.insanus.org/carolbensimon/ No blog Kevin Arnold Para Dois (Kevin Arnold é nome do personagem principal da série Anos Incríveis), registra as impressões de Carol desde 2004. Assuntos diversos, como música, literatura, cinema e o cotidiano costuram-se com a sua narrativa característica.

http://www.clicrbs.com.br/paris75004 Morando em Paris desde o final de 2008 para um doutorado na área de literatura comparada, Carol encontrou nas ruas da cidade (e no seu próprio apartamento) material para um novo blog. Muito mais do que o diário de um viajante, Paris 75004 (referente ao descolado bairro de Marais), descreve as particularidades da cultura local, o cotidiano de um dos destinos mais procurados por turistas e coloca à prova mitos envolvendo o povo parisiense, o que responde por alguns do melhores momentos.

posto. Digamos que a diferença na produção de um livro e de um blog é a mesma diferença entre o consumo de um livro e o consumo de um blog.

Eu não me classificaria como urbana, objetiva e concisa. No caso do urbano: não sei também se entendo o que tu colocas como “urbano”, mas creio que deve estar relacionado com universo representado mesmo, ritmo louco de grandes metrópoles, vioO blog Kevin Arnold para dois, espaço que você divullência e etc. O Pó de parede está longe disso. Quanto ao objetivo ga textos, sempre teve um púe conciso, supondo que isso se refira à blico fiel. Isso ajudou mais tarlinguagem, também me coloco um de, no lançamento do seu pripouco distante de um grupo de escriEu não me classificaria como meiro livro? tores que sim, tem essa característica. urbana, objetiva e concisa. Sim. Para algumas pessoas, o livro De qualquer maneira, não sei se as ofijá vinha com uma espécie de certicinas literárias explicam esse fenômeO Pó de parede está longe ficado de credibilidade, “se gosto no. disso. Me coloco distante de do blog, vou gostar do livro”, algo Você possui formação em publicidaassim. São coisas diferentes sim, um grupo de escritores que de. Durante o tempo em que atuou mas, se você gosta das idéias, da sim, tem essa característica na área, pode dizer que algo contrivisão de mundo, que tal pessoa buiu para a sua carreira atual? Pertem no seu blog, é bem provável gunto porque conheço muitos publique você também vá se identificar citários da área de redação que começaram a escrever ficcom o que está posto nos livros dessa pessoa. ção porque o texto publicitário diminuiu frente às imagens. Sem querer criar algum tipo de rótulo, escritores jovens Parece que contribuiu, no sentido de ter a sensação de estar mais parecem se dedicar a um tipo de literatura mais urbainserida no mundo contemporâneo do que se eu tivesse feito na, mais objetiva e concisa. Pode-se dizer que é fruto Letras, onde parece que é fácil não prestar atenção em todos os das oficinas de criação literária? fenômenos tipicamente contemporâneos. E eu sei bem do que eu

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estou falando, porque fiz mestrado na Letras, e algumas coisas bem estranhas acontecem por lá. Mas há exceções, claro.

Publicar um livro, no sentido físico da coisa, é fácil, e relativamente barato. A dificuldade é aparecer, num país em que há tão poucos leitores, mas tanta gente querendo virar escritor.

Aliás, em que área da publicidade você atuou? Fui redatora.

No momento, você está realizando um doutorado em Paris. Como é a rotina em outro país, conciliando estudos, lazer e a criação de seu segundo romance, Sinuca embaixo d'água? Em 2008 você publicou Pó de Parede, o primeiro livro, pela Não Editora, depois de Como o doutorado está no início, ele escrever contos para revistas e ainda não me absorve tanto assim, aO povo francês é visto de uma jornais. Como foi o processo de inda mais porque aqui na França não maneira bem estereotipada criação e viabilização deste trahá aulas no doutorado. Então quer balho? dizer que é uma atividade meio solitápelos outros povos. Ok, vou tentar ser sintética nessa: ria, enfim, ler livros teóricos, procurar Certamente dão margem para levou cerca de um ano para que eu hipóteses, anotar algumas coisas. O escrevesse as três histórias (e elas que me ocupa mesmo é o romance, isso, mas não devemos foram escritas, aliás, na ordem que que estou meio ansiosa para ver pronacreditar em tudo que contam estão no livro). O formato do livro to, mas que precisa de um tempo que, surgiu, na verdade, da negação de às vezes, a gente não controla. um formato: eu não tinha nenO blog voltou a fazer parte da sua rotina, certo? Primeiro huma vontade de reunir uma dúzia de contos ou mais e com o “making-off” do seu segundo livro, e também no site lançá-los num volume. Queria algo como uma unidade Clic RBS, com o blog Paris 75004. Conte como é escrever forte, e daí acabou surgindo esse formato intermediário, de para esses blogs com objetivos tão diferentes. três novelas curtas, ou três contos longos. Mas o blog nunca deixou de fazer parte da minha rotina! O que você pode citar de diferente da Não Editora com Continuo com meu blog pessoal, o Kevin Arnold para dois, ainda relação às outras empresas do mercado? que eu não escreva por lá com muita regularidade. O making-off Acho que uma das coisas legais de ter lançado pela Não foi do Sinuca... eu tive que matar, por falta de tempo, e também pora possibilidade de participar de todas as etapas da produque não estou conseguindo refletir muito sobre processo criativo ção do livro. Escolher a capista, dar pitaco na diagramação, nessa fase final da escrita. Quanto ao Paris 75004, tem sido uma enfim, até em função da formação publicitária, eu me sentia experiência legal isso de estar inserida num grande grupo de meio autorizada a lidar também com essa parte gráfica da mídia, mas às vezes é preciso cuidar com o que se diz (risos), coisa (ou ao menos com as sugestões), e foi interessante, porque há sempre um desavisado que não detecta sarcasmo ou porque acabou sendo, o produto livro, uma criação um tanironia, e então vem me xingar nos comentários. to coletiva de gente super apaixonada por literatura. Pelo tempo que você está na França, o que pode citar de Pela sua experiência, como você enxerga o mercado “choque cultural” com relação ao Brasil, mais especificaeditorial? Mesmo com tantas e novas tecnologias, formente com relação à Porto Alegre? mas de se divulgar, ainda é difícil publicar um livro? Hehehe, são muitos os choques, positivos e negativos, mas nem

http://www.carolbensimon.com/sinuca Apesar de “desativado”, o blog de Sinuca embaixo d’água, o qual faz parte do endereço www.carolbensimom.com, ainda mantém os posts escritos desde o início do trabalho do romance. Dividido em categorias (Contos, Mitos & Lendas, Mondo Literário, Personagem Ausente, Processo Criativo, Técnica & Assemelhados e Uncategorized), a autora traça uma profunda discussão sobre o processo criativo do livro. A seguir, a reprodução parcial de um dos posts mais bacanas, entitulado O mais pessoal que pode ficar. “Ontem eu precisava captar algumas sensações para o capítulo final do Sinuca embaixo d'água, e fui no local que poderia me causar essas necessárias sensações. Engraçado que tudo pareça frio e calculista quando é só um pla-

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vou tentar resumi-los. O melhor é acessar o meu blog. Neste blog, você fala em desvendar os prováveis mitos sobre o estilo de vida dos parisienses. Como surgiu a idéia de escrever sobre isso? O povo francês é visto de uma maneira bem estereotipada pelos outros povos. Certamente dão margem para isso, é claro, o que não quer dizer que devemos acreditar em tudo que nos contam. Tento então, na série, dar a minha visão de quem já está aqui há algum tempo. O que não quer dizer que as minhas opiniões sejam teses sérias e inquestionáveis. Muito pelo contrário. De qualquer maneira, é bom ver o debate que geram. Culturalmente, o que você tem absorvido por aí? Tudo o que dá para absorver sem gastar muito (risos). O Sinuca... foi contemplado com a bolsa Funarte de estímulo à criação literária, e isso te impôs um prazo para entregar a obra. Na ocasião da aprovação, você já tinha a estrutura pronta? O prazo curto para entrega não dificulta o processo de criação? É, eu tinha uma estrutura, mas nem tudo saiu exatamente como planejado. Por exemplo, o número de capítulos acabou mudando. No mais, foi difícil entregar no prazo, sim, que era bem curto (seis meses). Ah, só para esclarecer: eu precisava entregar o livro pra Funarte em julho de 2008, e entreguei, mas, como eles não tem nenhuma relação com a publicação do livro – a bolsa é para a criação, já a publicação, essa é responsabilidade do autor – eu continuo mexendo nele, reescrevendo alguns capítulos. Não. Reescrevendo todos os capítulos. Do que se trata a história? É a história de uma garota que morre num acidente de carro, ou melhor, a história de pessoas tendo que lidar com isso. Se for possível, poderia adiantar uma palhinha? Putz, como eu não dou nenhuma parte por definitiva ainda, prefiro não arriscar. :)

no, mas, quando a gente dá o play, as coisas acabam acontecendo de um jeito comovente. Na verdade, foi algo bem irônico o fato de eu ir procurar o drama final do meu livro e acabar encontrando um drama pessoal. Dirigi para a Zona Sul e, na beira do Guaíba, lá estava a casa salmão. De noite, eu já tinha visto que ela estava sendo demolida, reformada, cortada ao meio ou sei lá o quê. De dia, pareceu bem mais triste, sobretudo porque é mais visível o desgaste da pintura, o pátio que agora vai virar outra coisa ou outra casa, a janela que dá a impressão de mostrar uma sala vazia, e depois houve também a mulher entrando, lutando com o portãozinho, que teimava em não abrir. A porta também cedeu de um jeito estranho...”. “Eu não sabia, como também não sabia que a casa salmão ia ser reformada, destruída, ia, enfim, virar alguma outra coisa, então tenho nas mãos (pronta a primeira versão) um romance que fala de coisas que já não existem mais. Se foi uma tristeza juntar os pontos e traçar a ausência de tanta gente e tanta coisa, parece que foi também uma maneira de perceber que literatura é exatamente isso, e tudo ainda há de estar ali”.

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Pó de Parede Carol Bensimon Não Editora 2008 122 páginas R$ 25,00


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Humor e tristeza em uma história sobre esperança

Uma das boas surpresas cinematográficas do ano possui um título curioso, e uma história criativa costurada por fatos reais. A população inteira de uma pequena cidade resolve se mobilizar em torno de uma oportunidade financeira. A idéia, por si só, merece atenção. Se esta oportunidade é criada em torno da visita de João Paulo II, a história merece ser contada. Mas quando o personagem principal, ainda que fictício, enxerga na construção de um banheiro público a chance de ganhar dinheiro de uma forma diferente, rapidamente a capacidade do ser humano em sonhar e, acima de tudo, a esperança, se tornam o ponto central. O banheiro do Papa, co-produção entre Argentina, Brasil e França, dirigido por Enrique Fernandez e Cesar Charlone (diretor de fotografia do filme Cidade de Deus), narra a visita oficial de João Paulo II à cidade de Melo, no ano de 1988. Misturando realidade e ficção, a história conta a vida de Beto, um homem que vivia de contrabandear produtos da cidade de Aceguá, percurso que fazia duas vezes por dia de bicicleta, num constante exercício de despistar os fiscais aduaneiros (os quais, muitas vezes, apreendiam todas as mercadorias). A notícia de que o sumo pontíficie está para

chegar à cidade traz os rumores de que mais de trinta mil brasileiros visitariam o lugar. Muita gente, muita fome. Cada morador planeja criar uma barraca, seja para vender lingüiça, cachorro quente ou qualquer outro prato da culinária local. Beto enxerga, no meio de todo aquele furor, uma oportunidade original, já que toda aquela comida precisaria ser evacuada. Os fatos que acontecem a seguir se dividem entre o trágico e o cômico. Beto precisa conseguir dinheiro para contruir o banheiro, e para isso trabalha dobrado, até mesmo conseguindo mercadorias para os próprios fiscais da fronteira. Nesse momento, o filme explora a relação com sua esposa, alterando momentos de briga e de um sólido casamento, e a filha que queria ser jornalista ao invés de ser apenas costureira ou seguidora do trabalho do pai. Apesar do desfecho da trama, é impossível não sorrir com o carisma de Beto, interpretado por César Trancoso. O ator, que fez escola por muitos anos no teatro, mostra muita sensibilidade diante das mazelas de um homem simples, com a postura tipicamente verdadeira dos palcos. Outro fato curioso está na escalação do restante do elenco. A maioria são moradores da região, pessoas que nunca tiveram contato algum com a profissão, o que ajuda a ambientar o público em uma cidade que foi, de certa forma, esquecida por todos.

resenha publicada na Coito Cerebral #5

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A figura feminina protagonizando cenas de violência: inspiração para Quentin Tarantino

É difícil não assistir Faster, pussycat! Kill! Kill! e não lembrar da obra do diretor Quentin Tarantino, mesmo sem saber que esse foi um dos filmes chave entre suas diversas fontes de inspiração. Lançado em 1965, foi dirigido por Russ Meyer, e pela primeira vez colocava a mulher como uma figura ameaçadora e dona da situação em uma história costurada por cenas de luta. A falta de apuro nessas cenas , por exemplo, a inexperiência das então atrizes e uma história superficial não chega a comprometer o espetáculo. Os atributos de Tura Satana e companhia e suas aventuras pelo deserto conseguem criar um clime sedutor, onde a liberdade feminina e a violência caminham juntas. Três strippers ambiciosas e violentas em seus automóveis rasgando rodovias e a secura dos desertos. A cena parece ilógica, ainda mais quando todas gargalham sem motivo algum. Antes disso, uma locução masculina afirma que, de todas as formas onde a violência mais se manifesta, o sexo está no topo da hierarquia. E a mulher, bela, perfumada e culturalmente inofensiva, a maior ameaça. Seja ela uma dançarina, a secretária da mesa ao lado, a professora. Arquitetado em uma estética avantajada, o filme destaca Tura Satana, que interpreta a líder das mulheres, a síntese do poder e da be-

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leza. E isso não foi em vão. Durante muito tempo Meyer foi fotógrafo da revista Playboy, e escolheu suas meninas, litealmente, à dedo. O ponto de partida da história é um racha entre a líder e o namorado de uma ingênua menina. Após perder e lutar com a bad girl, o homem é assassinado e a garota levada como refém. No caminho, enquanto abastecem em um posto de gasolina, o trio descobre que um velho paralítico, o qual vive com os dois filhos em um rancho (um deles com problemas mentais), guarda uma grande quantia em dinheiro. Utilizando a menina como isca para se aproximar, as meninas não poupam todo o poder de sedução que ostentam para seduzir os homens e chegar até o “tesouro”. De uma forma geral, as atuações são artificiais e forçadas ao extremo em momentos equivocados. Isso acaba gerando pontos positivos ao filme, pois a história apresenta doses discretas de humor, e esse elemento acaba sendo absorvido como parte da narrativa. Em paralelo, há momentos de suspense, terror psicológico e muita insanidade. E isso é a cara de Quentin Tarantino. São ingredientes pulsantes de filmes como Pulp Fiction e Kill Bill. Ano passado, o boato de que refilmaria Faster..., com Britney Spears no papel de uma das garotas, correu o mundo. Até o momento tudo não passou de especulação, mas se pararmos para pensar, diante de toda a sua obra, não existe a menor necessidade de refilmar. E ainda mais com a presença de Britney.

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Sexo e dramas psicológicos em uma atmosfera pós 11 de setembro

À primeira vista, o filme Shortbus, do diretor John Cameron Mitchel, que também escreveu o roteiro, pode parecer um simples instrumento apelativo criado para chocar o espectador. E isso realmente aconteceu, em cada festival que foi exibido e em cada sala de cinema. Mas havia algo mais nas entrelinhas e nas “entrepernas” daquela película. A intenção de Mitchel, que havia dirigido Hedwig e Rock, amor e traição, é mostrar as coisas como elas acontecem, inclusive no campo sentimental. Lançado em 2006, o diferencial está no modo como o trabalho foi conduzido. Possui roteiro aberto, é baseado nas experiências reais dos atores e deixou margem para uma dose massiva de improvisação. Para isso, os testes foram abertos à qualquer interessado, mesmo para quem não tivesse experiência em interpretação. Isso porque o filme contém cenas explícitas de sexo e orgasmos reais, coisa que, dificilmente, um grande astro faria. Os personagens principais (na verdade, todos acabam injetando importância na história), são frequentadores de um bar underground chamado Shortbus (o nome faz referência aos ônibus escolares amarelos típicos dos Estados Unidos). É

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no local que discutem política, arte, seus dramas pessoais e fazem sexo sem pudor. É como se fosse uma janela para o purgatório. Envoltos em um misto de nostalgia frente ao mundo moderno, as dificuldades de adaptação e um enorme desejo de saciar a falta de amor, é lá que se encontram. Para narrar essa insólita trama de grande impacto visual está a terapeuta Sofia, uma mulher que fingia orgasmos para não desapontar o marido, Rob. Ela atende o casal gay James e Jamie, cujo relacionamento estava abalado pela falta de perspectivas de James com a própria vida. É através deles que Sofia conhece o Shortbus. Lá encontra Severin, uma dominatrix com problemas de relacionamento, um jovem voyeur, um longínquo prefeito de Nova York (que simboliza, de certa forma, o passado em processo de purgação da cidade) e outros tantos personagens cheios de particularidade. O filme pode ser considerado uma comédia, mas também se enquadra em drama. A diferença é que não há espaço para o espectador sentir pena de ninguém, mas sim um desconforto. Porque pode, e certamente vai haver, identificação em algum momento. É algo que supera a expectativa vouyer em assistir ao filme, mesmo para aqueles mais sacanas. Repleto de momentos surpreendentes e trilha sonora bem sacada, Shortbus pode não mudar os conceitos de ninguém, mas certamente vai distoar, ao menos por alguns momentos, a direção do olhar de cada um.

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Durante algum tempo eu hesitei em acatar muitas verdades que, no fundo, sempre tive. Não falo sobre sexualidade. Quer dizer, também, mas sobre tudo. É uma sucessão de erros que levam a outros, e isso não tem volta. Tudo bem, vamos falar sobre a minha sexualidade. Eu sei que você deve estar se perguntando algo do tipo “mas lá na frente da revista, no Mapa, dizia que essa colunista iria falar sobre os seus preferidos”. E tens razão, só que isso está incluído no pacote. Saber que, como diria o Renato Russo, gosto de meninos e meninas, foi algo que sempre soube, mas neguei, ou fingi que era uma coisa que, com o tempo, iria passar como se fosse uma alergia. Mas não passou. Nem vou entrar no mérito da questão, o que quero dizer é que sinto tanto com o tempo que perdi... As músicas tristes teriam outro significado, os finais de semana, os filmes em casa, as fotografias no Flickr, no Orkut que eu nunca fiz, as risadas sem propósito... Hoje, perto dos 30 anos, o peso que carrego parece muito maior. Porque a situação ainda não está regularizada por inteiro. Nem adiante fazer patuás nas festas de ano novo pedindo auxílio amoroso, por exemplo, nem adianta... Nem vou mais analisar isso que está ficando melodramático . Vou, agora, falar de uma das coisas que mais gostei em 2008, afinal, esse é o propósito desse número da Coito Cerebral, e que tem um pouco a ver com toda esse momento pseudoemocional que quase te fiz mergulhar, leitor.

mesmo no silêncio. Se não fosse algo que acontece naturalmente, diria que, para ser gay nos dias de hoje, seria necessário muita vocação. A mesma que vi nos olhos de dois padres que estavam curtindo aquela balada insana junto conosco. Sim, dois padres, com vocação tanto para o sacerdócio das leis divinas quanto para o orgulho de ser o que são. Eu jamais iria imaginar que, naquela bruma de cigarros fedorentos e quem sabe fumaça para o show dos gogo boys, entre peitos falsos e beijos apressados e longnecks chocas, dois homens comprometidos com o Senhor estariam em uma balada gay. Essa foi a melhor surpresa da noite, com certeza, após o espanto por estar entrando em um universo tão paralelo. Pois os padres eram as pessoas mais apaixonadas que já conheci. Eles tinham essa alegria que é ao mesmo tempo pela vida como um todo e por estarem em um momento de verdade absoluta, isto é, conseguindo ser eles mesmos. Dançavam Rihanna com uma liberdade incrível, beijavam outros homens com uma urgência deliciosa, o que me fascinou. Passei a noite toda sentada em um canto, de costas para um biombo onde, em um determinado momento, pessoas transaram, projetando sombras como um teatro de bonecos muito adulto, e observando tudo o que acontecia naquele lugar. Me perguntei até que ponto vale sacrificar o que sentimos em nome de alguma coisa. Pode não valer, e certamente não vale mesmo, mas é assim que as coisas acabam acontecendo pelo mundo afora. Não são certezas e nem mentiras.

zzz zzz

Pois bem. Uma das coisas mais legais que vivi no ano passado foi, acreditem, ter visitado um bar gay pela primeira vez. Um lugar chamado Indiscretu’s, em Porto Alegre (que de indiscreto não tinha nada). Confesso que estava nervosa, como bem já relatei em outra edição desta coluna, mas não me canso de falar sobre isso. Talvez possa ser uma parte 2, sei lá. Enfim. O fato é que mergulhamos, eu e alguns amigos, em um mundo totalmente underground, porque, mesmo nos tempos de hoje, onde tantas pessoas afirmam com a boca cheia ter mente aberta, ser gay é a coisa mais anônima que eu já vi – salvo nas paradas gays. Me surpreendi com a quantidade de homens que, certamente, no mundo exterior são casados com mulheres, são pais, e com aquela pose excessivamente hétero que só um homossexual escondido é capaz de ostentar. Mas não posso culpá-los por se esconder dos outros, mas sim por envolverem outras pessoas nisso (esposa, filhos, o que é outro assunto). Ser homossexual é duro. Exige quase que um sacerdócio, é um orgulho expressado,

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Lá em cima falei sobre as músicas que teriam outro significado, portanto, queria falar algumas coisas sobre música que descobri há pouco. Um dos álbuns mais bacanas que escutei neste já ultrapassado 2008 é o disco de estréia da dupla chamada She & Him, formada por um dos músicos favoritos da Norah Jones, o M. Ward, e a bela atriz Zoey Deschanel nos vocais, de filmes como Quase famosos e Fim dos tempos. A sonoridade de Volume one traz de volta o pop sessentista, período em que a dupla busca inspiração quando regrava clássicos da gravadora Motown ou Beatles. O restante das faixas, compostas por Zoey, se mantém no clima, e revelam um belo presente entre coisas que nunca mudam no mundo musical. Zoey lembra June Carter em alguns momentos, quando entoa músicas com uma ótima levada folk. Destaque para I was made for you, I should have known better, dos Beatles, Change is hard e Why do you let me stay here. Vale a pena ouvir a regravação de Lotta love, de Nicolette Larson, que não está no álbum, mas encontrada na rede se for bem pesquisada.

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{ João entrou apressado no banheiro. Suor escorrendo pela face. Olhou à sua volta para ver se não havia ninguém. Ninguém. Lado B Odor cítrico de urina no ar, mas isso apenas porque havia rodelas de limão nos mictórios. “Melhor que naftalinas”, pensou, enquanto abria a porta da última cabine. Lá dentro começou a se entregar. Retirou do bolso um pacotinho de papel da farmácia onde estivera há cerca de dez minutos. Um punhado de pílulas que para muitos eram utilizadas uma vez na vida e outra na morte. Talvez João as usasse justamente por medo da morte. Estava com dor de cabeça, um tanto inconveniente. Pensou que pudesse ser por cansaço, mas dormira bem e não tinha feito nenhum esforço físico considerável. “Deve ser por causa da visão, esses óculos estão fracos, tenho certeza”, disse para si mesmo, antes de ingerir o analgésico. Poderia ser, também, por alguma coisa que comeu e não caiu bem no estômago. “Bem que eu senti um enjôo no início da manhã, eu sabia... Mas e se for algo pior?”. João se sentiu tonto, e deve ter ficado pálido, pois sentiu um gelo percorrer seu rosto, descer pelo estômago, depois arrepiou os pêlos do ânus e caiu nos pés, causando a sensação de estar mais raso que o próprio chão. “E se eu estiver com um tumor na cabeça? Meu Deus. Com essas dores freqüentes o tumor deve estar em estágio avançado. Inoperável, com certeza. Talvez tenha que fazer radioterapia, ou quem sabe quimio. Mas sei que não vai adiantar de nada, eu sei. Sei disso. Vou começar a definhar, e nem vou poder aproveitar meus últimos seis meses de vida. E se forem menos? Tô fodido, fodido e mal pago... Devia ter feito um exame antes, um encefalograma, exame de sangue, urina. Devia ter feito exame de fezes. Escarro. E se não for na cabeça? Devia ter feito um check-up completo... Mas o que é que eu vou fazer agora? Eu nem escrevi um livro, não terei nem como escrever meu livro de memórias... Nem tive tempo, só tenho vinte e três anos... Ainda bem que plantei aquela muda de árvore na escola... ”. João se sentou no vaso, nem se importando com a quantidade de bactérias que estariam saltando e se grudando em sua roupa, e tomou dois analgésicos fortes. Para garantir alívio na hipótese do enjôo, tomou junto um flaconete de um medicamento sabor abacaxi, o que lhe provocou, a partir de então, e que duraria o dia inteiro, um enjôo quase metódico. Sentado ali, com medo da morte e com cartelas de remédio nas mãos, era o retrato

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da dor. Um retrato invisível. João, jovem e interessante, apodrecia por dentro. Por dentro dos pensamentos, esses o verdadeiro vírus que acometia seu corpo. João sentiu um sentimento estranho, que não conseguia entender se tratar de culpa. Chorou umas lágrimas evaporadas, sem saber a razão.

Lado A João saiu do banheiro refeito. Cabelo penteado. Bonito e sorridente, cumprimentou uma colega que passava em direção ao almoxarifado. No escritório de design onde trabalhava tinha muitos amigos, era bem sucedido. Um ilustrador que desenhava o mundo e as gentes com a perfeição ainda não definida, pois ainda não havia sido imaginada. As expressões no papel A3 feitas com grafite e manipuladas na máquina eram de pessoas que habitavam um mundo quase fantástico. Por retratar essas criaturas insólitas construiu uma carreira precoce, cheia de elogios e palavras estimulantes. Sentou-se em frente ao seu computador, onde uma mulher, mais surreal do que qualquer outra coisa, ganhava contornos e cores. Alguém entrou na sala com uma torta em mãos. Logo em seguida um coro entoava parabéns prá você, uns estragando a música de propósito, apenas para fazer graça. Lourdes, a redatora, estava de aniversário. Vinte e oito anos, linda, uma dessas mulheres que só não eram superadas por suas ilustrações. E parecia gostar de João. Tanto que a primeira fatia de bolo foi entregue à ele. Quis recusar, mas não seria educado. E ainda ganhou um selinho na boca. Odiava coco.

Lado B Quinze minutos depois João estava no bebedor, enchendo um copo com água gelada. Parecia sentir dores. Sorriu para uns amigos e foi ao banheiro. O Rodrigo urinava. “Diabo, que esse homem parece ter bebido o rio Gravataí!!”, excomungava-o por dentro. E Rodrigo ainda emitia uns sons típicos de quem está gozando, mas era apenas mania. Sacudiu o que tinha para ser sacudido e saiu, sem lavar as mãos, para horror de João. Enfim, pôde entrar na mesma cabine. Havia uns restos de merda grudado na rampa do vaso, segurou seu enjôo. “Sabia que não deveria ter comido aquela torta de coco com morango, eu sabia!”, se xingava, mas era tarde. Retirou de bolso uns comprimidos para o fígado, em uma tentativa de conter aquele enjôo absurdo que lhe corroia as entranhas, e antes que vomitasse. Odiava vomitar. Tinha medo que o vômito lhe queimasse o esôfago por causa do ácido gástri-

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Tomou a píluma mal-cheirosa, que em sua composição tinha pâncreas humano, e tentou relaxar

co. Tomou a pílula mal-cheirosa, que em sua composição tinha pâncreas humano, e tentou relaxar. Tremia de nervoso. Dez minutos depois estava preparando-se para sair, quando alguém entrou no banheiro. Tinha vergonha de que o vissem fazendo cocô, ainda que não estivesse fazendo. Não soube dizer quem era, mas o suposto colega se trancou na cabine ao lado e por cinco minutos defecou a vida. O inimaginável e impossível de ser sintetizado odor lhe causou um novo enjôo, e precisou tomar mais duas pílulas para impedir que golfadas de vômito escalassem seu esôfago.

tava com uma cartela de remédio nas mãos. Os olhos de João brilharam, era tudo o que queria, um remédio para o estômago. Não teria condições de ir até a farmácia da esquina comprar mais naquele momento. – Tome, sempre tenho um desses, para quando a gastrite me devora as paredes do estômago como um leão faminto. Sem pensar no exagero da metáfora utilizada pela mulher ingeriu a pílula, junto com o chá, para potencializar o efeito. Agradeceu e voltou para sua mesa.

Lado A Lado A Um pouco pálido, mas insuficiente para que alguém percebesse, voltou para seu lugar. Muitos ainda comemoravam o aniversário de Lourdes, e raspas de coco se espalhavam pelo piso. O telefone tocou. – Alô, João? Era seu ex-professor, Douglas, lhe convidando à participar de uma palestra na faculdade para alunos calouros. Tentou recusar, mas era muito bem quisto, e seu sucesso profissional inspirador. Aceitou. – Ok professor, estarei lá. De qualquer forma sentiu-se feliz. Era bom ser reconhecido. A verdade é que gostava de ser bajulado, gostava mesmo. Gostava de ser o centro das atenções, até mesmo da inveja que despertava. De vez em quando deixava vir à tona esses sentimentos pequenos, mas que deixavam seu ego do tamanho de um balão. Podia ver na cara de muitas pessoas a inveja corroendo suas entranhas como bichos malditos. Na hora adorava essas constatações, mas depois sentia culpa, e voltava a fingir que nada disso existia. Voltou a ilustrar sua mulher fantástica. Nisso, sentiu uma fisgada no estômago.

Lado B Foi até a cozinha preparar um chá de camomila, as mulheres sempre abasteciam a dispensa com chás de todos os sabores. Enquanto o saquinho liberava o componente na água fervendo, dona Amélia, a secretária, entrou e percebeu sua ansiedade. – Que foi, guri? Sente-se mal? – Um pouco de dor no estômago, já passa. Rapidamente ela saiu e foi até sua mesa. Pouco depois, vol-

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Rodolfo, o dono do estúdio, acabava de chegar de uma viagem à São Paulo. Estivera em reuniões com alguns investidores interessados em viabilizar a abertura de uma filial na capital daquele estado. Era um negócio de meses, e a julgar pela sua expressão satisfeita, tudo correra bem. Ele foi até o centro das ilhas abarrotadas de rascunhos e desenhos e CD’s usados e contou a notícia para todos. A seguir, um frenesi se espalhou pelas imaginações coletivas: quem iria trabalhar na primeira filial? Enquanto os funcionários ocupavam-se em tentar responder a pergunta para si próprios, Rodolfo chamou João ao seu escritório. Ficou nervoso. Ainda com uma taça de espumante em mãos o homem falou, de uma tacada, que queria o rapaz para supervisionar o trabalho em São Paulo. João ficou atônito, mas sorriu, ficou feliz. Há muito que tinha vontade de morar em outro lugar. Seria uma grande mudança em sua vida, mas uma mudança boa. Rodolfo começou a falar, e falar por muitos minutos, muitas coisas que já nem prestava atenção. Pediu desculpas e disse que precisava ir ao banheiro.

Lado B Entrou na cabine de sempre, enquanto que uma dor de estômago crescente lhe maltratava a razão. E o enjôo veio a seguir. Retirou seu pacote de remédios do bolso. Pensou em tomar algo para o fígado, porém não tinha mais. Então tentou se concentrar na dor por alguns momentos. Se fosse dor de estômago por causa de um vômito inesperado, iria arrotar e sentir o gosto do alimento processado e pronto para se expulso. Forçou um arroto. Gosto até que normal, e com isso parou de tremer por causa do nervosismo. Sendo assim, tomou uma cápsula que tinha, que era destinada apenas para nem sabia o quê. Mas para garantir tomou um plasil, porque havia lido na bula que o medicamento ajudava a evacuar os alimentos de forma mais rápida, e assim se tranquilizou. Mas

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Uma vez, leu que, para pressão alta, nada melhor do que uma bala de goma, pois o açúcar aumenta em até 80% o índice glicêmico da pessoa

sentiu algumas reações inesperadas. Um calor, que parecia uma febre incapaz de ser detectada com a mão sobre a pele, alarmou seu organismo. O calor foi tão grande que sentiu falta de ar, mas talvez fosse do nervosismo. Foi até a pia lavar o rosto, e precisou retirar a camiseta. O rosto branco. Muito branco. A pressão caíra ao nível do azulejo. Visão turva. Se apoiou no balcão e respirou fundo várias vezes, como fazem as gávidas. E essa sucessão de ares renovados começou a lhe acalmar. Quando a crise parecia ter passado, tudo o que viu pelo espelho foram lágrimas esparsas.

Lado A A dona Ivete ainda varria os vestígios da festa inacabada. Isso porque alguns ainda festejavam aquele aniversário que jamais lembrariam da data por si só. Festejavam apenas para não voltarem ao trabalho. João voltou para sua mesa ainda com uns resquícios de tontura, mas feliz, imaginando sua vida na selva de pedra. O circuito cultural de São Paulo o impressionava, seduzia, era algo que, algumas vezes, lhe deixava descontente em Porto Alegre. Não que a cidade onde nascera pudesse ser considerada provinciana. Longe disso. Mas aquelas exposições que tanto quis visitar, principalmente aquela do Star Wars, ah... Essa lhe doeu na alma por não ter tido um ou dois dias de folga. Mas isso seria resolvido em breve. E não apenas isso. Seria promovido. Iria ter aumento de salário, e essas facilidades que todos esperam alcançar no trabalho. Quem sabe não se apaixonaria naquela cidade, um desses romances nascidos em frente à um quadro expressionista na parede do museu, ou até em filas de padarias. Cotidiano demais, ele sabia disso, e talvez até impossível. Sempre que pensava nesse assunto colocava alguma música de Damien Rice para visualizar as imagens. Sentia-se um ridículo. Dessa vez colocou Amie, sua faixa predileta. E sofria uns sentimentos de pessoas condenadas à qualquer castigo desagradável. Mas esse surto de um solitário começou a se esvair. Imaginou com mais profundidade a sua rotina em São Paulo. Iria se locomover de carro, mas e se um dia estragasse e precisasse andar de metrô ou ônibus? E se, nesses momentos, sentisse alguma coisa, passasse mal? Começou a entrar em um pânico crescente. Não iria suportar. Em São Paulo tudo é longe, nem se morasse perto iria aceitar a idéia de passar mal na rua. Seu coração bateu rápido. Tirou os fones de ouvido e o som ambiente invadiu seu aparelho auditivo, conduzindo o inferno dos ruídos alheios

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ao seu cérebro. Desligou o tocador de mp3. Sorriu para o seu chefe que podia ser visto através da parede de vidro de sua sala. E foi ao banheiro.

Lado B Sentiu outra tontura, e essa vinha acompanhada por um gosto ácido de coco. Não devia ter comido aquela torta, não devia. E não sabia a causa da tontura. Uma vez leu que, para pressão baixa, nada melhor do que uma bala de goma, pois o açúcar aumentava em até 80% o índide glicêmico da pessoa. Mesmo enjoado comeu uma bala, que desde esse dia carregava sempre consigo, ainda mais em dias de verão sulista. São Paulo... São Paulo... Como iria ser? Como se adaptar naquele lugar, cada vez que se sentisse mal e nenhuma possibilidade de um conhecido estar por perto para lhe ajudar? E o desespero? Não, não iria dar certo. Metrô super lotado. E subterrâneo. Tinha claustrofobia. Nem que morasse à duas quadras do escritório. Sentou no vaso sanitário com a tampa fechada. E choramingou. E ficou nervoso. A bala o enjoou ainda mais, porém surtiu efeito sobre a tontura. Por alguns minutos encostou a cabeça na parede divisória da cabine e cochilou, efeito do plasil que tomara. Estava sentindo-se cansado. Cansado mesmo.

Lado A Quando saiu, parte do escritório estava em silêncio, pois já era final de expediente. Havia aqueles que passavam o dia loucos para irem embora. Jogar futebol, assistir novela, pegar os filhos na creche, não fazer nada. E havia os que supervalorizavam o trabalho. João era um desses. Não se imaginava fazendo outra coisa. Mas nesse dia se preparou para ir embora no horário que tinha que ir. Fechou a tela com a mulher milimetricamente bem feita. Guardou algumas pílulas na mochila e pegou sua garrafa de água mineral, caso precisasse tomar alguma no caminho. Pensou em abandonar São Paulo, antes mesmo de pisar naquele asfalto. Pensou em abandonar tudo, em ir morar em um lugar no meio do mato, onde não precisasse sair de casa para quase nada, um lugar em que ninguém o fizesse comer torta de coco, e não precisasse aceitar temendo ser considerado antisocial. Olhou para a sala de vidro, e seu chefe ainda estava lá, e quando lhe enxergou ergueu a taça, naqueles cumprimentos silensiosos. “Vou lá dizer que não aceito o cargo”. Mas nada fez, pois sua grande vitória era saber dissimular o seu problema diante das percepções alheias.

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{ Ela nunca soube. Nunca soube que não haveria de ter, jamais, talento para escrever poesias. Não era capaz de escrever versos sem métrica, o que dirá um soneto clássico. E nem um haikai. E nem três frases soltas que fossem capaz de expressar qualquer sentimento.

bairro. Não podia entender como um poema com o título Olhos esverdados poderia ter vencido. Queria muito aquela coleção de livros do Jorge Amado. Era estranho que não fossem livros de poesia, mas não estava nem aí. O fato é que foi a primeira grande decepção da sua vida.

Tudo começou aos 12 anos, quando, durante uma aula que não se lembra de qual matéria, rabiscou seu nome na última folha do caderno, depois daquela em que jogara stop. E perdera. E depois de todas as outras em que tentou fazer um questionário de lembranças que nenhuma menina quis responder. Escreveu seu nome por extenso, várias vezes. Maria Eduarda Soares. Maria Eduarda Soares. Maria Eduarda Soares. E acrescentou uma frase: aquela que um dia voou pelos ares. Achou engraçado, se sentiu estúpida. E fechou o caderno. Mas logo depois o abriu no mesmo lugar. De um jeito inexplicável achou aquilo fascinante. Pensou que era capaz de escrever frases bonitas, interessantes, e se quisesse, um dia, iria poder viver de escrever frases para anúncios de revista. Mas foi no período seguinte, na aula de literatura, que descobriu um mundo novo: aquilo era poesia. E tratou de fazer outras rimas, primeiro com o seu nome. Maria Eduarda Soares / Queria fugir e mergulhar nos mares. Maria Eduarda Soares / Fazia de conta com olhares. Maria Eduarda Soares / Bebia a vida nos bares. Até que começou a achar seu próprio nome patético.

Aos 20 anos resolveu que precisava se casar, só para ver se era traída e assim, sofrer por amor, pois leu na entrevista de um poeta famoso que, para escrever bem, era preciso expressar as lágrimas da alma. Mas o diabo era apaixonado de verdade. Sofreu muito por isso, mas esse sofrimento não lhe inspirava nada. Aos 22 se divorciou, e de tão pobre que o homem era não ganhou pensão. Voltou para a casa dos pais. As coisas estavam difíceis por lá, ninguém mais tinha emprego fixo. A irmã caçula só queria saber de fazer sexo casual. Nem inspiração os nomes daquela gente lhe proporcionavam mais. E resolveu viver uma aventura não planejada, para desespero da mãe. Saiu de casa rumo à primeira cidade do interior que viu no balcão de passagens da rodoviária. De lá, poderia ir para qualquer outro lugar, e isso iria lhe gerar material para escrever seus versos de duas linhas. Mas encontrou duas palavras: fome e arrependimento. E até uma terceira: orgulho. Não voltou para casa. Percoreu inúmeras cidades, pedindo carona, comendo de favor. Cabelo sujo. Mas tinha toda a certeza de que era uma mulher dos versos rimados, e disso ainda iria viver.

Alguns anos mais tarde já tinha uns dois cadernos pequenos de 96 folhas cada, encapados com papel contact e desenhos toscos, cheios de versos de duas linhas, porém não mais com o seu nome. Usava o nome dos outros. Clementina, a mãe, não fora difícil, mas ilógico ao usar a palavra tina: a mãe mergulhada na tina. O pai, Roberto, coração aberto. A irmã caçula, Daiana, era aquela que fazia manha. Difícil foi a tia Zulma. Não entendia um nome daquele. Zulma... Zulma... Zulma... A velha que não acertava uma. Sua tia era mesmo uma estabanada, fazia tudo errado. Mas não foi a melhor solução poética.

Um dia, em um município quase menor que suas poesias, resolveu parar. Era ali que iria viver. Não tinha possibilidade de emprego, nem de amor que lhe fizesse feliz ou triste. Ali não havia nada. Era a sua oportunidade de partir para a terceira linha, e de ser reconhecida como uma profissional. Maria Eduarda sorria sozinha pelas ruas não pavimentadas. Na escuridão da noite sem poste apenas seu riso brilhava. E foi numa tarde que morreu. No sentido metafórico, apenas. Um aluno da escola municipal havia vencido um concurso de sonetos. Isso mesmo, sonetos. Cheio de tradicionalismos literários, métrica e o escambal. Olhou seu calhamaço de cadernos com versos de duas linhas e se sentiu impotente, uma mulher sem vida nenhuma, sem razão. E aceitou quando a dona do armazém lhe ofereceu um emprego de doceira.

Com 18 anos gabava-se de ser a única da família, e talvez a única da escola, que lia os clássicos de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes e Mário Quintana. Carregava sempre um livro deles embaixo do braço. Dizia, com a boca cheia, que eram sua influência. Mas ela ainda estava nos versos de duas linhas. E ainda usava nomes. Um dia se frustrou, quando perdeu o concurso de poesias promovido pela livraria do

E assim iniciou uma nova etapa, ainda que não exprimisse qualquer encanto. Virou uma confeiteira barata, fazendo tortas de chocolate e morango esporádicas para festas de aniversários de crianças chatas e mal educadas da vizinhança. Gostava mesmo quando lhe pediam para escrever nomes com glacê. Era este o seu momento. Pois em cada bolo não haveria de caber mais do que duas linhas.

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Durante o ano, muitas faixas novas chegaram até nós, e outras antigas voltaram a fazer parte de nossos players. E isso tudo porque a música é, muitas vezes, um instrumento de trabalho, contribuindo para que aquela ideia mais escondida desse sinal de vida, ou que inéditas se formassem. Em cada mês, 10 músicas foram citadas como parte de nosso processo criativo, e agora, selecionamos algumas entre todas essas listas, e outras que acabaram ficando de fora. É uma mistura disforme, como sempre, e quase capaz de agradar gregos e troianos.

WATCHING YOU Ayo

NIGHT TERROR Laura Marling

RAINHA CéU

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BACK TO BLACK Amy Winehouse

ELEPHANT GUN Beirut


12 000 WAVES Lisa Li-Lund

ILUSIร N Julieta Venegas e Marisa Monte

WORN ME DOWN Rachael Yamagata

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I WAS MADE FOR YOU She & Him

EITHER WAY John West




Reformular a revista Coito Cerebral música regional, mas também de outros lugares mudar a logo esse tipo de fonte

filme, teatro, literatura Histórias diferentes Textos de ficção Inserir histórias sobre geral? Sexo? Sexo

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Um pouco de tudo. Diferente de tudo.

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