Acaso Subversivo

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Acaso Subversivo

Ricardo Mendes Mattos



Acaso Subversivo, Ricardo Mendes Mattos ISBN: 978-85-913155-0-5 Criação: Flagrante Delito São Paulo 2012

acaso-subversivo.blogspot.com acasosubversivo@gmail.com


Somos nós os assassinos Ribemont-Dessaignes

Tudo aquilo que vocês chamam de história não é senão o nosso plano de fuga da civilização de vocês Roberto Piva

Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo Herberto Helder


Certa noite surpreendi o acaso bulinando o Devir, expelindo o ligeiro líquido da existência. Nadei nas cores de Labisse, cujas correntezas traficavam vilezas visíveis apenas aos versados em sutis ironias. Finalmente consegui contato telepático com o desacontecido polimorfo. Seus vermelhos cegavam os horizontes do idioma. Andou com meus pés até o tal viaduto, embaixo do qual adentramos nos audaciosos labirintos do paradoxo. Mal nossas tochas acenderam, pudemos ver aquelas escrituras rupestres selvagens, cintilando suspiros, procuradas por séculos a fio pelos mais fugazes rituais de ayahuasca. do árduo trabalho de decifração, surgiram baionetas arredias que dançavam sob o som de alívios. Custou-me cerca de 97 vidas para desencontrar os significados imberbes daquelas cifras, até que em uma irrupção incontrolável passei a vomitar pequenas libélulas gosmentas aos milhões. Lembro-me de estar caído, esgotado, em meio àquele revoar de esdrúxulos, pouco antes de entrar em sono profundo. Ao despertar, estupefato fiquei ao sentir um mar de poesias que sussurravam palavrões a qualquer movimento. Paralisado, pude apenas subornar aquele ancião embriagado, que tinha o dom de adestrar sandices. Do tumulto de palavras estapafúrdias, consegui trazer do abismo apenas algumas em pergaminho. Uma delas quis estuprar o orvalho... outra chupou o Caos até este gozar em sua cara. Uma terceira vibrou com tanta intensidade na aurora que ví a volúpia correr aturdida. Para domá-las tive que prometer menstruar natimortos nas primaveras, além de limpar o rabo com gravatas toda terceira Lua de Saturno. Transcrevo-as em transe com a sugestão de lê-las para além dos muros de outrora.



Parte I – Punhais à revelia


Conspiração concupiscente Se alicias a lua lobos lambem suas fendas eriçam os pêlos de seu sexo e sua VulVa pari o múltiplo Paira no mar seu olho incandescente suas pálpebras assimilam a linha do horizonte e se piscas amanhece o dia no fluir de seus braços rajam coriscos racham a terra emergem enigmas a cada suspiro os astros mudam de direção e se soluças tormentas acariciam os acasos seus passos dilatam dilúvios e seu hálito inaugura a brisa que nos alisa a face quando morde os lábios e circulas sua língua a existência inflama e delira sua voz arrepia o vento e daí se cria a música

ao sabor do seu encanto

Se sussurras segredos sobrevém o silêncio: matéria de toda poesia


A pronúncia da queda Perigo de letras caindo em outras mãos, Entre assombros escritos em pleno vácuo. Floriano Martins

Esfregue a maquinaria do sonho em seu ventre e sente o elo dos astros que rompe os espectros quantos vê bailar nos espelhos incandescentes, quando se esvai esparso seu ardil de fantoches? É esse o uivo que descabela as janelas em que lhe fitava a matinha de olhos ubuescos esse mutirão de outros que criara para repousar mórbido no conforto do consenso] equipar sua morada com o mobiliário sóbrio do hábito imaginar sua fuga no fantasioso hálito do longínquo o verbo que sussurra seus assombros fremi na mesma miríade do yage quando acalanta a morte no rés-do-chão da relva o que me diz da realidade, no momento em que seus pés despencam nas flâmulas movediças da selva? sorvem avessos seus contornos dispersos nas brisas do salto? A voz que zumbi no trovejar de atabaques silvando batuques selvagens pálpebras trêmulas na torrente do transe quantas máscaras abandonas quando encaras a si na sombra da chama? Naná em Roma


Sufrágio e quinquilharias

Flácidos talheres copulam nos pratos calvos da última ceia Abortos açoitam janelas para melhor verem os obtusos ângulos da vida. Era a hora da morte, sussurrando palidez nos ouvidos da noite. Vira de soslaio as marcas do tempo no rosto do urro. Ouvira os suores nas garras que esfacelam as fotos da infância? Púberes árabes perdem digitais ao rodear os dedos violentamente em seus clitóris As lágrimas dos muros produzem vis espingardas que disparam contra as agonias] Escarram volúpia as línguas que me alucinam o caralho? Escárnio: saber de si nas sombras dos copos que suicidam-se das mesas de bar No fino da agulha passou uma avarento que comprou deus para trepar com a virgem. Pagaremos também pela morte do bastardo? A culpa me chupa na alvoroçada suruba do Nada. Lá se foram as fábulas que dançavam no meio fio da angústia. Ninarei meus filhos com a asfixia do travesseiro?


Ecos ocos

O ser contraditório ambíguo incompreensível A multiplicidade de ser o ser múltiplo: fragmentariamente esquizofrênico o mistério-de-ser o ser-inominável a subversão da classificação a despalavração o absurdo vivido no limiar do paradoxo desencontrado lá mesmo onde se imaginava escondido


Infames embustes

Na consciência do despertar da embriaguez o dionisíaco vê por toda a parte o horrível ou o absurdo do ser humano: esse o repugna Nietzsche

É náusea que navega no sarcasmo ao ver o trânsito mastigando idiotas cuspindo os restos de ruas poluídas nas ruínas da cidade moribunda

Abortos hipnotizam vitrines

ventríloquos tagarelam mesmices

suntuosos prédios encarceram horizontes uniformes originais na vereda do óbvio

É nojo que incendeia a face ensurdecedora gargalhada

do sátiro que encena a comédia vergonha desesperada

de quem vê os espectros da vida prostrada

diminuída

incisão com a faca de cozinha dada através da barriga de cerveja da última época cultural weimar alemã


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Os jogos eróticos desvendam um mundo inominável que a linguagem noturna dos amantes revela. Essa linguagem não se escreve. Cochicha-se de noite, ao ouvido, com voz rouca. De madrugada está esquecida Jean Genet

Ainda os gemidos conspícuos adestrando precipícios na soleira da aurora luzes tingem a retina rubra com vertigens sombras gesticulam orgias nos poros do vento

Ainda a saliva espumosa onde mergulham desejos leve toque do punhal que trago em meu ventre troveja violento nos despojos da noite

espólios do horizonte se riem satisfeitos


Condutores de Cadáveres

Letra em brasa

rodopia no grito

ébrio urro vibra qual estrondo ecoa nos corpos

Cabeleiras incandescentes giram convulsionadas

Rajadas de cotovelos acariciam bocas apaixonadas coturnos feitos na medida para a bunda dos Karetas

Distorções arredias desfilam garras felinas esfacelam a textura do tempo jorram saturnais dionisíacas em cujas orgias foi concebida a vida subversiva

show de 30 anos do Cólera


Hotel du Pavot, quarto 202

Ó concubina dos delírios vorazes Vadiemos à deriva nos becos embebidos de delitos vamos ninar ao murmúrio de estrondos e girar na hemoptise etílica os gritos do sapato encantado que viveu abraçado ao adivinho do maravilhoso


Uma semana de bondade

O devir da vertigem incauto no dorso do dragão bailarino ao som de coriscos que esbravejam: “É preciso gargalhar em dobro para o mundo virar de pernas para o ar” Na fuligem da invenção a noite é um pequeno delito do desejo Emaranhado de ideais ajoelhado em prantos cortejo fúnebre das ilusões trepida

o corpo com o sussurro insaciável

era apenas uma alucinação na ponta dos meus olhos?


Felinos labirintos

Rodoviárias e suas calvas mesmices Milhares de solidões ruminando suas sombras esclerose de bancos adormecem esperas Mochileiros anestesiados da última dose pesada de qualquer miragem Relógios palidecem inconformados Na maré monótona irrompe ondas furiosas Arrastam multidões obedientes em fila ansiosas por repousar suas angústias em enigmáticas poltronas Versos coçam meu cérebro e evaporam tomo nota de seus avessos travestidos de inícios a vagabundagem é meu fastio principal deambulação incontrolável nos murmúrios do silêncio estrondos à deriva nas infinitas estradas Neal tremulando seu sexo a 500 por hora perseguido por uma ninfomaníaca desesperada com suas calças no joelho Ray Charles injeta o ritmo que convulsiona nosso corpo Impassível, Nietzsche sacia aves de rapina no alto da colina Paradas selvagens nos assaltam a cada curva o imprevisível pulula sarcástico Piva cataloga delírios que rastejam velozes na mata os estilhaços de suas visões me acariciam as coxas idílico Dylan nas veredas do absurdo Velejo abismado nas tempestuosas correntezas do Acaso.


Vísceras a esmo

Estetas ruminam falácias fantasiosas aventuras de gabinete criativas caminhadas com o rabo preso na poltrona Arte cerebral que balbucia seus medos

ajoelhada no altar da vida

Temos muito mais o que fazer do que escrever poesia, satiriza Piva A poética encarnada para além das obras de arte a existência como fenômeno estético

Enquanto idéias matinais descortinam o dia Apenas contemplo a Aurora Banho meu corpo vagabundo exponho os vestígios da noite tatuados Seduzo as palavras a voar

envolvo suas asas

e a poesia pousa insinuante em minha pena


Tragos, trapos e anfetaminas

Crua verborragia alicia a cartilha A nervura do ódio não colore as difusas peripécias do passaredo Ainda era cedo quando a janela do vizinho se insinuava Aflorava o ócio do tédio maior? E todos repetiam as mesmas palavras depois da professora Todos escreviam as mesmas frases do ditado E ainda assim os cigarros, xingamentos e brigas Desaprendíamos perfeitamente mal. Tanto melhor. Lembro-me de torturar a monotonia em um infantil copo de cachaça Pulando os muros da normalidade e matando aulas Na fumaça que desfigura, as jaulas se envergonham na memória da libertinagem.


Vestígios do salto

E quando vacilava a pupila as vísceras palpitavam em sobressalto Movia uma pequena nervura em mina asas para sentir se ainda estava lá mas me ausentara

Gotejam seus lábios e vibra em meu corpo suas ondas: “funciona?”, dizia. Estranha forma do transe a dança da lua se aloja em meu ombro estrondo se ouve no mesmo momento em alguma trincheira qualquer do espaço

ainda a fenda em que enviava meus embaraços para ver-me do outro lado as mesmas babas do labirinto “Mas, serve?” – balbuciavas, novamente, um tanto irritada. assimilava o ritmo de sua fala entrava pelos poros feito gomos um a um se infiltrando em minhas entranhas as múltiplas formas de meus desencontros: deriva em busca dos odores das ruas a foto do exato suspiro do vento o momento íntimo em que me vejo e não reconheço as figuras de minhas fugas


reparei como seus olhos adormecem silêncios enquanto gritava: “quanto mede?” letras arredias despencavam de um vazio travestido em ruínas malabarismos da memória suores das saturnais inflamavam meu sexo malicias chupavam o solo a cada folião que bailava cabia todo naquela língua que se insinuava no abismo me desfiz no orgasmo que dali irrompia orgias que incendiavam as várias cores de nossas quedas tom do terror naquele desejo enfim

era eu desfeito

desfile de meus despojos no parapeito dos estilhaços que caíam lentamente daquela violenta porrada no muro me chacoalhava com desespero dizendo: “se vende.....?” finalmente estourava aquela úlcera supurada que solapava meus lábios sussurrei minha primeira palavra longa

disforme

horrenda

corria alucinada para estraçalhar o silêncio estuprei-me

trêmulo desfaleço?

meus pés não cabiam no chão irradiavam trôpegos sem nenhuma fronteira dos elementos podia agora pisar o tempo decerto aliciei a ilusão


vento-me deliro-te E urravas, já muito senhora de si: “É real???” regurgitei sabe-se lá quantos espelhos que pendiam imóveis em nossas sombras desvanecido? será? Rarefeito nas fúteis sobras dos sonhos? inventei-me assim desiludido de minha última imagem mesmo quando salto na imensa miragem ainda eu estava lá..... sempre eu Asa de âncora

infame limite

Eu.............. até ali? turbulento vórtice do real delito: eu surrado negado eclipsado ainda ele. Assassinar-me-ia?


acaricio escombros

escândalos me anunciam

alicio estrondos

espanto alĂ­vios

alucino enigmas

escarro anarquia



Parte II – Truculentos espasmos, nossos anfitriões


03 contos e alguns centauros... quis dizer centavos ou centelhas?!?!?!

De sorte que jamais podemos perder de vista o fato e erguer sinuosas sandices que despontam nos penhascos do inusitado. Contudo, descia dançante algumas alamedas trôpegas em encostas que beliscavam nossas bundas a qualquer devaneio... mascando alguns precipícios que se insinuavam com belas coxas na margem oposta da loucura, ainda que lindos lábios de um rubro estridente balbuciassem glossolalias em uma melodia tão terna que tremia o solo a cada som. Aliás, diga-se de passagem, uma fumaça cintilante e azulada serpenteava daquele olhar vidrado em algum ponto de meu corpo... o que fazia expelir um líquido onírico incandescente, deixando um rastro ou sombras em poças de luxúrias em que nadavam alguns duendes nus de cuja suruba se formou a noite e suas consternações ou mesmo constelações... e até constrições. Sabe-se lá que zumbido ecoava em repetido ritmo que me fazia entrever algo que jamais havia buscado, mas parecia que não vivia atrás de outra coisa. Logo me esqueci, em meio a tal chuva de sapos e revoada de pequenas casas de pedra com suas janelas ventilando com um odor a rosnar tão delicadamente que nossos pêlos eriçavam nesse prelúdio de edifícios se abraçando sensualmente à revelia de dois pequenos ternos que controlavam o tráfego com excepcionais malabarismos usando uma espécie bem comum de cócoras que erguiam horizontes. Logo, duas poesias gargalhavam em bruscos gestos e tapinhas nas costas. O que tinham a ver com as peripécias da verdade, objetiva ou subjetiva, ou qualquer eloqüente teoria sobre a expressão humana? É antes a veleidade que sorviam em longos tragos salpicados com velhacarias e algumas vilezas como tira gosto. Sobretudo saltos exalavam de seus gestos; e quando uma palavra procurava tomar tento era logo suprimida por inebriantes sussurros


do silêncio. Se olhavam para alhures surgia desajeitado rapsodo possuído sabe-se lá por qual sátiro barbudo e bêbado. Mas quando voltavam a ver já era o crepúsculo masturbando a infâmia com voracidade tamanha que até a orgia se surpreendeu aturdida. Ora... toda essa fluidez da fantasia não cabia no alfabeto, ele próprio bastante metafórico e imagético para poder conter todos os seus movimentos. A abstração da letra, ou do número, é das criações mais inusitadas e abjetas que as tais poesias tateavam, mesmo quando centopéias paparicam sacrifícios apenas para abraçarem grandes fatos desacontecidos. Do rufar de urros e demais badulaques alguns algozes meios-fios se fizeram deitar por pesados coriscos calibrando aliases e até uns malucos no entantos fizeram chacoalhar os livres guizos do devaneio. Pois felinas almofadas rasgavam nossa carne em acalantos maternais e víamos nos transformar em jorros purpúreos que tingiam a realidade com aquelas virulentas cores de cólera.

A Montanha Sagrada, Jodorowsky


Gargarejos sonâmbulos Foi ainda esse poeta búlgaro quem definiu a poesia como a tempestade de punhais que faz cócegas em névoas de cócoras. Vivia, ao que tudo indica, sob uma ponte do Sena, em um ano impreciso entre 432 e 2049, segundo a fonte de Diógenes Laércio. Eram dias circulares, na proximidade do vórtice. De qualquer forma, esqueceu-se de dizer que jorram lírios das línguas que esfacelam o óbvio, ao que se pode certamente acrescentar os tais rapsodos colhendo delitos nos becos embevecidos a que nos referimos. Seja qual for a sorte desse velhaco poderia-se bem imputá-lo ao menos 43% das lascívias sombras que vimos bailar nas orlas do crepúsculo, para não dizer de outras tantas lástimas que aliciam alaridos na revoada de idiotas pendurados em suas respectivas gravatas. Não há como não fazer uma precisa relação com o milhão de botinas amontoadas no fatídico dia em que a polícia invadiu com suas subalternas mesmices o show punk. Dito isso, conclui-se que, de fato, malgrado as disposições em contrário e, ainda, considerando as possíveis objeções que se acumulariam com a revelação da verdadeira identidade de Rrose Sélavy, além dos adendos que poderão ser acrescentados em plenário, bem como quaisquer ressalvas ou mesmo ressacas, e até ausências devidamente justificadas por motivos de força maior (a tal infalível chuva de sapos ou acasos congêneres), incluindo aqui os velozes dedos do poeta português ou os dilúvios rarefeitos da feiticeira – em suma, conclui-se que fantoches balbuciam antigos sambas da época da Tia Ciata e foi mesmo ali que a orgia dos tambores sagrados teve seu triste fim quando Donga registrou na oficialidade a quizumba indecifrável que agia no murmúrio de singelos cataclismas. “Pelo Telefone” não marca o início do samba, mas precisamente seu fim. Quanto ao tema que discorríamos, antes da pena correr para seus levianos devaneios que redundam em centenas de espelhos que cintilam outras centelhas de absurdos (lembram-se sempre que “as palavras fazem o amor”), a definição mesma definha em destroços de ínfimas gotas do infinito que empoçam no bocejar dos espantos.


Ipseidade do lapso

Preparava-se então para descrever murmúrios, sobretudo cifrar alguns silêncios que aliciavam passantes com leves tropeços sedutores, já que verdades dissolutas sofriam dissimulações ainda quando a invenção e a invencionice são mesmo comparsas nas ligeiras farsas da fabulação, muito provavelmente oriunda das mesmas prestidigitações daquele conluio de letras a falsear fantasias em meio a falcatruas que desfalcavam o idioma colérico com tratantes que traficavam mentiras sussurradas na soleira da infâmia por um Welles impostor a estuprar com embustes o sublime cotidiano grávido de enganos e velhacarias que violam a realidade com o torpor da fraude de gatunos nas vias mais arredias da noite em que o poeta - de súbito – assalta a escrita.


Tateando o Tártaro

Dá náusea essa pretensão da peripécia com palavras. Se joga o corpo bailarino a serpentear insinuante nas ruas; olhos felinos vertem dilúvios ao cruzarem com outros comparsas da mesma conspiração; se equilibra gueixas no queixo em malabarismos febris de pernas emaranhadas; se escarra escândalos na hora da madrugada mais propícia para a segurança pública, em homenagem à lei do Psiu. No leve toque dos lábios se incendeia a revoada de revoltas. E ainda querem poemas? A substância estática da experiência extática? E a virulência dos des-encontros que empestamos pela cidade? Não é possível que essas solitárias palavras impressas seduzam mais que o sangue incandescente que vagabundeia nas veias da cidade. Revoltada, até a tal realidade foge em crises. Há crimes muito mais salutares do que o poema. O que se congela na obra é uma feia faísca do incêndio que propagamos nos corpos.

cena final de The Last of England, Jarman


Declaração A respeito da matéria intitulada “Ruidosos rugidos em ruínas”, de autoria de Urbano Furtado, que causou forte comoção pública, tendo surgido no diário oficioso desse município, gostaria de me manifestar veementemente contra as argumentações de que vestígios indubitáveis do corpo da Poesia, sobretudo alguns

músculos,

foram

encontrados

nas

escavações do

mencionado sítio arqueológico de San Francisco Zoo, exatamente na jaula dos leões. Tal rufar de rosnares já tinha se manifestado em melodia tão selvagem no conhecido improviso jazzístico de Corso ao prestar uma grandiosa homenagem aos hipsters estilhaçando os discos favoritos de seu comparsa Ginsberg. Ora porque não procuraram outros tantos vestígios da tal Poesia na Naropa? Basta lembrar das libertárias performances do cínico cão. Não estaria a Poesia em meio aos farrapos de seu barril? Algumas imaginações sobressaltadas teriam visto mesmo súbitas aparições da poesia nos famosos planos seqüenciais do delírio, em Satyricon (Boch que o diga!) – com seus anjos incandescentes francamente aliciados pelo ácido. Diga-se de passagem, a reprodução da cena por Greenaway, em seu Propero’s Book (com referência clara a Jarman, não?), deixou escapar a poesia em sua forma mais dançante, especialmente em seu personagem Caliban. Certamente alguns de seus líquidos mais escorregadios e inflamados podem ser encontrados nos lençóis de Piva, essa túnica da orgia, em cujas ejaculações blasfematórias certamente a poesia estapeia a face junto à alvorada. Poderia multiplicar os exemplos aos milhões somente para corroborar a inverossimilhança de se ter encontrado qualquer evidência irrefutável da Poesia. Permanece ela sempre desencontrada, ali mesmo onde seus traços assumiram a feições mais vivenciais. Ricardo Mattos, 09 de janeiro de 1964.


Alaridos alados

A poesia assalta. A sombra e o susto. O toque gatuno no beco labiríntico que nos despe, tingindo a face rubra com o tom do desespero. A poesia assombra. O salto e o surto num parapeito movediço, num lapso qualquer no espaço e tempo. Movimento. O tremor de tudo o que é sedento. Corpo em transe. Dissolução de toda fronteira, limite. O tal “eu”, trôpego, disperso no universo dos tropeços. Corpo elétrico no curto-circuito, escuridão e choque. Há quem escreva, quem pinte.. que importa? O que exprimiria o êxtase? Apenas esboços, lampejos, destroços. A experiência mesma passa ao largo e se ri dos ledos esforços de fixar residência naquelas paradas selvagens.

o corpo em cataclisma de Wellington Duarte durante Dobras


Incestos, incêndios & demais provas de amor

Há o leitor. Alguns o pedem confiança, outros um laço de cumplicidade; há até quem o trate com intimidade contando fofocas de chás das cinco em qualquer penhasco de enxofre. Alicio para ser comparsa. Audácia da formação de quadrilha; vilezas das mais satíricas. Como assaltar o absurdo num salto de capoeira. Neste conluio incito-o ao asco, desespero e traição. Aquele que contradiz, contraria e cospe no verso – me apraz. Há de surgir um Cassady para jogar o poema no chão com a provocação: “pisa-me”.

Hermeto em Montreaux


Fendas

Era de brincar Dada. Dados revoando no estômago até cintilar em voluptuosos escarros. O incerto momento quando incestuoso movimento despia nosso cérebro de todos conceitos: banho anti-séptico em que bóiam nossas faces lúcidas em fotografias supuradas no ácido. Dada transava com qualquer aposta. seis pernas entrelaçando cócoras com iscas de sabre: Dada. família reunida na fraterna comunhão do almoço de domingo: Dada... televisões masturbando espectadores com enigmáticos eletrochoques: Dada. Se fôssemos acompanhar as saturnais dionisíacas na condição de discretos estrondos ou esticássemos algumas telas de Matisse para caber a cabeça de um idiota, Dada lá estava. Dada é o elemento da farsa que a tudo disfarça. No obituário da palavra inscrevia obscenidades disformes. Não de certo a cor das vogais no verbo poético acessível a todos os sentidos: a soleira do silêncio; Dada dardejava sonoros gritos em poesias simultâneas como sua ação mais discreta. Nem tampouco a destruição da velha sintaxe nesse conluio do substantivo com grafismos e ruídos, das palavras em liberdade; Dada se conjuga na capitulação do idioma, na conjuração do sentido. Mesmo a nova forma verbal das palavras como tal, inventadas na intensidade da experiência individual. Dada dúvida... o vão entre sim e não... isto e aquilo. Ser e não ser ininterrupto

é

parte

de

seu

jogo

lúdico

de

se

metamorfosear

incessantemente em cores sempre distintas. Aí o cárcere do conceito que bem significa e comunica se prostra frustrado diante do verbo em estado de desejo. É o que se quer. Dada é divertido. Não compreendem Dada por falta de afeição; em sua intimidade, Dada é logo desconhecido.


Estava lá no Cabaret Voltaire na noite em que Dada seduziu Marinetti com deliciosas coxas insinuantes. Se houvesse apenas uma boa trepada não ficariam trocando injúrias típicas de um tesão recíproco incontrolável – e sempre negado. Decerto Dada bateu a carteira de Khliébnikov em uma de suas ágeis trapaças. Mas Dada assalta a palavra de toda sua funcionalidade. Dada nada significa. Dada nada comunica. Dada nada elucida. Anti-palavra, anti-arte. Não viste o vocábulo exposto junto ao urinol? Dada nada. Em nosso último encontro, Dada fornicou umas quatro aves naquele enorme bocejo da alvorada. Uma pôs-se logo poema; outra voou fora das asas; houve a que começou a mordiscar a bunda de qualquer idiota que passasse. A última gritava em surto: Dada não tem princípios, apenas principia.



Parte III – Acaso Subversivo


Acaso Suversivo

Durante anos engoli a seco as regras, preceitos e modelos Vertigens recalcadas no sóbrio caldeirão da Razão Masturbação puritana e culpas refletidas nos azulejos O enrubescer imberbe a qualquer falha nas boas maneiras Na soleira do destino, inscrevia as linhas dos caminhos corretos

Incerto, num dia qualquer

o nó da gravata trouxe asfixia

Minhas vísceras fervilhavam irrupções de um infinito encolerizado Olhos vibrados no Acaso, suores exalando o Subversivo Num cataclismo explosivo, vomitei delírios aos milhões Velozes traços coloridos em uma miríade estonteante Dizem-me algo sobre a loucura, mas ouço apenas barbitúricos arredios Fui tomado por palavras alucinadas que me chupam o pescoço Gozo com o odor súbito do coito de letras libertinas Senti uma São Paulo de Piva na orgia das calçadas A Vida Dada, vadia, à toa & Poesia

* miríade de cores: lê-se Brakhage


Acaso nยบ 4049

Num daqueles becos em que ruminam atrocidades senti o Azul de Labisse escorrer dos meus lรกbios incontรกveis seios se esfregando em meu corpo o gozo torpe

genitais incandescestes

nem vi quando o Inusitado bateu minha carteira virtuose aliciador de Destinos


Acaso nº 692 a.p.

Nas tortuosas trilhas do urbano pés descalços demoliam avenidas multidões de meio-fios revoavam a esmo e desciam em vôos rasantes para fornicar nossas fantasias distraído vi meu futuro serpentear para um bueiro esvair-se todo nos vãos de minhas mãos ao fundo o Inesperado gargalhava irônico acompanhado de descabelados com gestos de bailarinos.


Acaso nº 1045

Pânico na segunda-feira! Cartões de ponto assassinam funcionários com alfinetadas de ponteiros em suas virtudes mais temidas no mesmo horário na China incongestão econômica fez operários vomitarem suas fábricas ao soar a sirene da surpresa.


Acaso nº 2079 d.n.

Depois que a rebelião romântica tornou banal os ponteiros ventilando e surrealidades verteram relógios derretendo despertadores desesperados continuam acordando idiotas nas previsíveis paragens dos horários cumpridos.



Ricardo Mattos deambula em clarinetes entorpecidos, vomitando palavras sem sentido, sopradas em seu ouvido pelo Desatino travestido em alhures. já menstruou raízes de peiote e provocou aborto de 4 destinos abandonados no meio-fio. Interessa-se por suicídios malogrados e Orgias de acasos subversivos. Desencontra-se quase sempre, além de masturbar o equilíbrio de angústias no parapeito do Gozo. Admira-se por ser lido nas lúgubres alamedas do Abismo.



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