Finanças sociais

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Brasil pensa

foco | 30 de novembro, 2004

Ricardo Abramovay

Finanças sociais

Julio Vilela/FOCO ECONOMIA

O acesso da população carente aos bancos tem o efeito equivalente ao das políticas públicas contra a pobreza

SEM ALARDE, de for ma quase imperceptível e vindas de onde menos se poderia esperar, o Brasil está construindo uma das mais importantes políticas sociais de sua história. Trata-se do acesso de milhões de pessoas a serviços financeiros formais dos quais estavam completamente excluídas até muito recentemente. De um ano para cá, foram abertas nos bancos comerciais pertencentes ao governo 3,8 milhões de contas simplificadas: são contas que não exigem de seu detentor declaração de endereço ou apresentação de comprovante de renda e tampouco são oneradas com tarifas bancárias. Além disso, de agosto de 2003 até novembro deste ano foram celebrados quase 3 milhões de contratos de crédito de baixo montante (até R$ 1 mil), com forte participação do Bradesco, além dos bancos estatais. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro está facilitando a criação de cooperativas de crédito e criando condições para que os bancos privados possam financiar atividades – até aqui mantidas numa escala quase experimental – das inúmeras organizações de microcrédito existentes no País. O retrato da exclusão bancária brasileira, mostrado em estudo divulgado pelo Banco Mundial no ano passado (“Brazil: Access to Financial Services”, Anjali Kumar – World Bank - Washington, 2003), é impressionante e coincide com pesquisa realizada mais ou menos no mesmo período pelo Unibanco: apenas 40% da clientela potencial possuía uma conta bancária no início da atual década. É verdade que os correspondentes bancários, como as lotéricas, oferecem a possibilidade de pagamentos de contas e mesmo, no caso dos Correios, de depósitos de poupança. Apesar de sua importância, esses correspondentes não têm como oferecer serviços financeiros completos para as populações que a eles recorrem: não podem substituir os bancos. Não têm como fazer empréstimos e, sobretudo, não conseguem construir uma relação com seus clientes em que conta bancária, seguros, poupança e crédito – as práticas correntes de qualquer pessoa, independentemente de seu nível de renda – possam integrar-se de forma a favorecer segurança econômica e geração de renda, sobretudo para os que atualmente vivem em situação de pobreza. Mas por que razão pessoas que estão em situação de poRicardo Abramovay é professor da FEA-USP, pesquisador do CNPq e organizador de Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza

breza necessitam de serviços financeiros? Em outras palavras, o que há de tão importante no acesso aos bancos – ou às cooperativas de crédito – quando se trata da luta contra a pobreza? Tudo levaria a crer que primeiro fosse necessário melhorar a capacidade de geração de renda dos mais pobres para que, só então, pudessem demandar aquilo que os bancos têm a oferecer. Sob essa ótica, mais importante que um conjunto diversificado de serviços financeiros, seria oferecer crédito – e, de preferência, subsidiado – para permitir a geração de riqueza, que, uma vez alcançada, seria canalizada, ao menos em parte, para o setor financeiro formal. Não é o que mostra a atual literatura internacional e brasileira sobre o tema. Mesmo quem vive em situação muito precária é obrigado, o tempo todo, a utilizar serviços financeiros variados: mas o faz em condições que tornam ainda mais difíceis sua condição de vida e aprofundam as formas localizadas de dominação que responA falta de dem, em grande parte, por sua acesso aos própria pobreza. No Brasil, existem poucos esbancos tudos sobre as finanças informais aprofunda as dos indivíduos e das famílias que vivem em situação de pobreza. formas de Stuart Rutheford coordena um programa de pesquisa nesse sendominação e tido, na Universidade de Manchester, que investiga, há vários a pobreza anos, o comportamento das famílias em sua relação com o dinheiro. Além disso, ele próprio dirige uma organização de microfinanças em Bangladesh, SafeSave. Seus trabalhos mostram que os pobres precisam muito mais de serviços financeiros que os ricos. As entradas financeiras das famílias pobres são, freqüentemente, muito irregulares, sobretudo quando se trata daquelas que vivem do trabalho por conta própria. O fluxo de renda, durante o ano, não é contínuo. Se já é complicado enfrentar os gastos correntes (alimentação, transporte, energia), a situação fica ainda mais séria quando se trata de uma despesa imprevista ou quando surge a oportunidade de algum investimento promissor. Nessas condições, as pessoas podem não fazer o gasto em questão, fazê-lo vendendo algum bem que possuam ou então – o que ocorre com imensa freqüência – podem recorrer a empréstimos ou a sua própria


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poupança. A poupança é tão importante que Rutheford descobriu em favelas de Bangladesh uma captadora informal de recursos das famílias que passava diariamente pelas casas recolhendo algumas moedas e recebia por isso um pagamento: as pessoas não obtinham qualquer remuneração por sua poupança e ainda pagavam para quem guardava seu dinheiro. Como não tinham acesso a bancos, esse era o meio pelo qual podiam guardar diariamente alguns trocados, o que lhes permitia, no fim do ano, comprar o uniforme escolar de um filho ou mesmo enfrentar a doença de um familiar. Num trabalho realizado para o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e para a Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores (“Laços Financeiros na Luta Contra a Pobreza” – Annablume/FAPESP, 2004), pesquisadores brasileiros encontraram também modalidades informais e não remuneradas de poupança no interior do Nordeste brasileiro. Mas não se trata de uma particularidade local: caixinhas e fundos rotativos são algumas das modalidades de serviços financeiros que se organizam e que mostram a importância dos laços financeiros informais na reprodução dos indivíduos e das famílias por todo o Brasil, inclusive nas regiões metropolitanas. Além disso, outros serviços financeiros como os seguros de saúde (que hoje começam também a ser oferecidos pelos bancos a populações pobres) são fundamentais na vida de segmentos de baixa renda. Portanto, como bem lembra John Kenneth Galbraith, o dinheiro é tão importante para quem o tem, como para quem não o tem. Em sua luta pela sobrevivência, os pobres recorrem, o tempo todo, a serviços financeiros: procuram fazer poupança, seguros e estão sempre dependentes de quem lhes ofereça o crédito necessário a sua reprodução. Se é tão rica a vida financeira de quem vive próximo à linha de pobreza, se encontram meios de satisfazer sua demanda de crédito, de poupança e de seguro, por que então os pobres necessitam de aceder aos bancos? Por que não permanecer nestes mercados já existentes? É que subjacente às finanças informais encontram-se formas de dominação personalizadas e clientelistas que bloqueiam as possibilidades de as famílias exercerem suas liberdades no uso dos recursos de que dispõem. As finanças informais são sempre de curtíssimo prazo e envolvem compromissos, reciprocidades e contrapartidas que encarecem enormemente o uso dos recursos por parte dos que delas dependem. Apóiam-se sobre redes locais de confiança, é verdade, mas exprimem situações sociais em que não surgem mercados concorrenciais e em que as iniciativas dos indivíduos e das famílias ficam confinadas a um horizonte rotineiro e tradicional. Mesmo a oferta, por parte de financeiras, de crédito sem comprovante de renda compromete seriamente a capacidade de geração de renda dos indivíduos em função de seus custos. Da mesma forma, o sistema de crediário oferecido pelo grande varejo trabalha com taxas de juros exorbitantes. A grande virtude da bancarização é que ela pode abrir caminho para a supressão destes vínculos personalizados e

André Sarmento/Folha Imagem

Clientelismo caro

Banco como sinônimo de política social na luta contra a pobreza

clientelistas de dominação e permitir o acesso a mercados melhores e mais competitivos para os que estão em situação de pobreza. O mais importante no processo atual de bancarização dos pobres é a intenção que o acompanha de se estabelecer um cadastro positivo com base no qual serão oferecidos diversos serviços financeiros, a começar pelo crédito. Os indivíduos poderão não só entrar no banco como clientes, mas construir uma reputação de bons pagadores, o que será importante na obtenção de recursos para a satisfação de necessidades vindas da reprodução das famílias (reforma da casa, estudos, etc.) ou de seus negócios. Em 1997 o IBGE divulgou um estudo sobre a “Economia Informal Urbana”, definida como um conjunto de estabelecimentos comerciais de base fundamentalmente familiar, dos quais a maioria vivia em situação muito precária. Das 9,5 milhões de unidades estimadas pelo IBGE em todo o Brasil, a metade não chegava a faturar anualmente o que hoje corresponderia a R$ 10 mil reais. Um aspecto deste estudo chama a atenção: 3,5 milhões de estabelecimentos declararam ao IBGE que gostariam de ampliar seus negócios e 1,5 milhão fizeram algum tipo de investimento durante os três meses que precederam a pesquisa (outubro de 1997). Entretanto, apenas 74 mil investiram com base em empréstimos bancários. Seria absurdo imaginar que estes milhões de pequenos negócios não se interessem por uma relação permanente com os bancos. O acesso ao sistema financeiro é uma das condições essenciais para que possam melhorar a produtividade de seu trabalho e o rendimento de seus negócios. Financiar as atividades econômicas dos mais pobres e estimular seu acesso a melhores mercados é um dos mais importantes caminhos na luta por sua emancipação social.

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