História da Educação - RHE - n. 32

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ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 32 Set/Dez 2010

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/aspheQuadrimestral História da Educação

Pelotas

v. 14

n. 32

p. 1-296

Set/Dez 2010


HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE Presidente Maria Stephanou Vice-presidente: Claudemir de Quadros Secretária: Carla Gastaud Conselho Editorial Nacional Dra. Carlota Reis Boto (USP) Dr. Claudemir de Quadros Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dra. Flávia Obino Werle (Unisinos) Dr. Jorge Carvalho do Nascimento (UFS) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Marcus Levy Albino Bencosta (UFPr) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Maria Juraci Maia Cavalcanti (UFC) Dra. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa) Dr. Antonio Viñao Frago (Univer. de Murcia – Espanha)

Editores Prof. Dr. Claudemir de Quadros Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos

Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti flaviaguidotti@hotmail.com

Consultores Ad-hoc Dra. Giana Lange do Amaral (UFPel) Dra. Berenice Corsetti (Unisinos) Dr. Claudemir de Quadros (UFSM)

Imagem da capa Rembrandt. Betsabé e a Carta do Rei David, 1654. Óleo sobre tela, 142 x 142 cm. Paris, Museu do Louvre.

História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 32 (Set/Dez 2010) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5 Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 5 MATEMÁTICAS MODERNAS E MÉTODOS ATIVOS: AS AMBIÇÕES REFORMADORAS DOS PROFESSORES DE MATEMÁTICAS DO SECUNDÁRIO NA QUARTA REPÚBLICA FRANCESA (1946-1958) MODERN MATHEMATICS AND ACTIVE METHODS: THE REFORMATIVE AMBITIONS OF THE HIGH SCHOOL MATHEMATICS TEACHERS IN FRENCH FOURTH REPUBLIC (1946-1958) Renaud d'Enfert; Tradução Júlia G. Martins; Revisão Maria Helena Câmara Bastos ....... 7 LA FUNCIÓN Y EL PAPEL DESEMPEÑADO POR LA MAESTRA EN LA OBRA DE MONTESSORI THE ROLE AND THE FUNCTION OF THE TEACHER IN MONTESSORI WORKS Alessandra Avanzini ................................................................................................ 31 QUALIDADE DA EDUCAÇÃO E AVALIAÇÃO DO RENDIMENTO ESCOLAR NA REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS (1944-1964) QUALITY OF EDUCATION AND SCHOOL PERFORMANCE EVALUATION IN THE BRAZILIAN JOURNAL OF PEDAGOGIC STUDIES (1944 -1964) Berenice Corsetti; Dilmar Kistemacher ..................................................................... 53 GÊNERO E NAÇÃO: A SÉRIE FONTES E A VIRILIZAÇÃO DA RAÇA GENDER AND NATION: THE SÉRIE FONTES AND THE VIRILIZATION OF THE RACE Cristiani Bereta da Silva; Maria Bernardete Ramos Flores .......................................... 77 O ENSINO PROFISSIONALIZANTE NA IMPERIAL CIDADE DE SÃO PAULO, BRASIL (1823 - 1889) VOCATIONAL EDUCATION IN THE IMPERIAL CITY OF SAO PAULO, BRAZIL (1823 - 1889) Lincoln Etchebéhère-Júnior; Sandra Farto Botelho Trufem...................................... 109


O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO RS PARA AS ESCOLAS REPUBLICANAS (1898) THE TEXTBOOK OF RIO GRANDE DO SUL'S GEOGRAPHY FOR THE REPUBLICAN SCHOOLS (1898) Maximiliano Mazewski Monteiro de Almeida ........................................................... 143 EDUCAÇÃO ESPÍRITA EM MINAS GERAIS: A PRESENÇA DO EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO (1958-1978) KARDECIST EDUCATION IN MINAS GERAIS: ITS PRESENCE IN ITUIUTABA IN HIGH SCHOOL EDUCATION (1958-1978) Nicola José Frattari Neto ....................................................................................... 173 MISSÃO EVANGELIZADORA: MEDIAÇÕES DA PRÁTICA ESPORTIVA EVANGELIZING MISSION: MEDIATIONS OF SPORTS PRACTICE Flávia Obino Corrêa Werle; Ana Maria Carvalho Metzler ......................................... 199 LAS CONSTRUCCIONES HISTÓRICAS DEL "OTRO" Y SU IMPACTO EN EL CAMPO PEDAGÓGICO: UN ANÁLISIS EN LA PROVINCIA DE BUENOS AIRES THE HISTORICAL BUILDINGS OF "THE OTHER" AND ITS IMPACT ON THE PEDAGOGIC FIELD: AND ANALYSIS IN THE PROVINCE OF BUENOS AIRES María Verónica Cheli............................................................................................. 221 Resenha REVISTA CULTURA ESCRITA Y SOCIEDAD Maria Teresa Santos Cunha ................................................................................... 259 Documento LAICIDADE DICTIONNAIRE DE PEDAGOGIE ET D'INSTRUCTION PRIMAIRE PUBLIE SOUS LA DIRECTION DE FERDINAND BUISSON (1878-1887, P. 1469-1474) Maria Helena Camara Bastos ................................................................................. 267 VERBETE LAICITÉ/ LAICIDADE DICTIONNAIRE DE PEDAGOGIE ET D'INSTRUCTION PRIMAIRE PUBLIE SOUS LA DIRECTION DE FERDINAND BUISSON (1878-1887, P. 1469-1474) ..................................................................................................... 277 ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES ..................................................... 295


APRESENTAÇÃO

Mais uma vez a Revista História da Educação vinculada à Associação Sul-Riograndense de pesquisadores em História da Educação (ASPHE) cumpre sua missão de socializar pesquisas e ensaios vinculados a esta área de conhecimento. Com trabalhos de renomados autores nacionais e internacionais temos certeza que os leitores poderão beneficiar-se com artigos de excepcional qualidade. Estes número abre sua seção de artigos com o trabalho do pesquisador francês Renaud d'Enfert: "Matemáticas modernas e métodos ativos: As ambições reformadoras dos professores de matemáticas do secundário na Quarta República Francesa (19461958)" Este trabalho de excepcional qualidade denota preocupação do autor com uma questão cada vez mais presente na área da história da educação – a questão dos métodos. A seguir a pesquisadora italiana Alessandra Avanzini com o trabalho "La función y el papel desempeñado por la maestra em la obra de Montessori" resgata a figura de uma das grandes pedagogas do século XX que com seu trabalho de pesquisa ainda hoje se constitui referência e modelo. Com o trabalho "Qualidade da Educação e avaliação do rendimento escolar na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (1944-1964)" os pesquisadores Berenice Corsetti e Dilmar Kistemacher analisam uma questão relevante no campo da história da educação particularmente tendo como fonte a tradicional "Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos" As temáticas relacionadas com gênero e nacionalidade também tem ocupado cada vez mais expaço na área da história da educação brasileira. É o que o artigo de grande qualidade escrito por Cristiani Bereta da Silva e Maria Bernardete Ramos Flores "Gênero e Nação A Série Fontes e a Virilização da Raça" nos apresenta. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 5-6, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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A seguir recomendamos a leitura do trabalho escrito por Lincoln Etchebéhère-Júnior e Sandra Farto Botelho Trufem "O ensino profissionalizante na imperial cidade de São Paulo, Brasil (1823 - 1889)" que analisa uma questão cada vez mais presente em nossos trabalho: a questão do ensino técnico. O pesquisador gaúcho Maximiliano Mazewski Monteiro de Almeida que tem se destacado na área da análise de textos didáticos, de modo especial os de ensino de história e de geografia nos brinda com um texto de grande qualidade "O livro didático de geografia do RS para as escolas republicanas (1898)". O pesquisador Nicola José Frattari Neto envereda por uma temática também bastante prestigiada em nossa área, isto é, a relação entre educação e confessionalidade religiosa. O texto "Educação espírita em Minas Gerais: a presença do educandário Ituiutabano (1958-1978)" representa uma incursão pioneira na relação entre espiritismo e educação. Com o trabalho "Missão evangelizadora: mediações da prática esportiva" as pesquisadoras Flávia Obino Corrêa Werle e Ana Maria Carvalho Metzler adentram nesta mesma perspectiva em um trabalho de excepcional qualidade. O texto de María Verónica Cheli "As construções históricas do "outro" e seu impacto no campo pedagógico: uma análise da provincia de Buenos Aires" encerra esta seção de artigos com chave de ouro analisando as construções históricas do "outro" no campo pedagógico. Em nossa tradicional seção "Documentos" apresentamos a tradução do verbete Laicidade extraído do dicionário de pedagogía publicado sob direção de Ferdinand Buisson e traduzido por Maria Helena Camara Bastos.

Os editores

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MATEMÁTICAS MODERNAS E MÉTODOS ATIVOS: AS AMBIÇÕES REFORMADORAS DOS PROFESSORES DE MATEMÁTICAS DO SECUNDÁRIO NA QUARTA REPÚBLICA FRANCESA (1946-1958)1 Renaud d'Enfert Tradução Júlia G. Martins Revisão Maria Helena Câmara Bastos

Resumo Nos anos 1940-1950, quando uma reforma geral do ensino parece iminente, a Associação dos Professores de Matemáticas do Ensino Público, animada por um pequeno núcleo de professores militantes, se mobiliza para reforçar o lugar das matemáticas nos planos de estudos, e sobretudo para engajar sua renovação via introdução das «matemáticas modernas». Esses «modernizadores» são influenciados pelas idéias do grupo Bourbaki e por aquelas dos movimentos pedagógicos: desejam simultaneamente abrir o ensino matemático ao espírito das matemáticas contemporâneas – particulartmente a álgebra moderna –, e renovar os métodos de ensino pela adoção e uma pedagogia ativa. Apesar das oposições, algumas de suas proposições serão integradas nos programas de ensino pelo Ministério da Educação Nacional ao fim dos anos 1950. Palavras-chave: reforma; matemáticas modernas; disciplina escolar; ensino secundário; século XX. MODERN MATHEMATICS AND ACTIVE METHODS: THE REFORMATIVE AMBITIONS OF THE HIGH SCHOOL MATHEMATICS TEACHERS IN FRENCH FOURTH REPUBLIC (1946-1958) Abstract In the 1940's and 1950's, when a general educational reform seemed imminent, the Public Education Mathematics Teachers, moved by a

Renaud d'Enfert e Pierre Kahn, En attendant la réforme. Disciplines scolaires et politiques éducatives sous la IVe République, Grenoble, Presses universitaires de Grenoble, 2010. Autorizada a publicação pelo autor e pelas Presses universitaires de Grenoble. 1

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8 small core of militant teachers, mobilizes to ensure and to reinforce the place of mathematics in the study plans and, moreover, to engage their renovation via the introduction of the «modern mathematics». These «modernizers» are influenced by the Bourbaki groupe's ideas and those of the pedagogical mouvements: they want at the same time to open the mathematical education to the contemporain mathematics' spirit – specially modern algebra –, and to renew the teaching methods by the adoption of an active pedagogy. Despite the oppositions, some of their propositions will be integrated in the educational programs by the National Education Ministry in the late 1950's. Keywords: reform; modern mathematics; school discipline; high school education; XXth century. MATEMÁTICAS MODERNAS Y MÉTODOS ACTIVOS: LAS AMBICIONES REFORMADORAS DE LOS PROFESORES DE MATEMÁTICAS SECUNDARIOS EN LA IV REPÚBLICA FRANCESA (1946-1958) Resumen En los años 1940-1950, cuando una reforma general de la educación parece inminente, la Asociación de Profesores de Matemáticas de Educación Pública, dirigida por un pequeño grupo de profesores militantes, se está movilizando para reforzar el papel de las matemáticas en los programas, y especialmente a participar de su renovación mediante la introducción de las "matemáticas modernas". Estos "modernizadores" se ven influidos por las ideas del grupo Bourbaki y las de los movimientos pedagógicos: desean simultáneamente abrir la enseñanza de las matemáticas al espíritu de las matemáticas contemporáneas - álgebra moderna particularmente y renovar los métodos de enseñanza mediante la adopción de una pedagogía activa. A pesar de las objeciones, algunas de sus propuestas se incorporarán en programas de educación por el Ministerio de Educación Nacional a finales de los años 1950. Palabras clave: reforma; matemáticas modernas; disciplina escolar; educación secundaria; siglo XX.

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9 MATHÉMATIQUES MODERNES ET MÉTHODES ACTIVES: LES AMBITIONS RÉFORMATRICES DES PROFESSEURS DE MATHÉMATIQUES DU SECONDAIRE SOUS LA QUATRIÈME RÉPUBLIQUE (1946-1958) Résumé Dans les années 1940-1950, alors qu'une réforme générale de l'enseignement semble imminente, l'Association des professeurs de mathématiques de l'enseignement public, animée par un petit noyau de professeurs militants, se mobilise pour renforcer la place des mathématiques dans les plans d'études, et surtout pour en engager la rénovation via l'introduction des «mathématiques modernes». Ces «modernisateurs» sont influencés par les idées du groupe Bourbaki et celles des mouvements pédagogiques: ils veulent tout à la fois ouvrir l'enseignement mathématique à l'esprit des mathématiques contemporaines – et plus particulièrement à l'algèbre moderne –, et rénover les méthodes d'enseignement par l'adoption d'une pédagogie active. Malgré les oppositions, certaines de leurs propositions seront intégrées dans les programmes d'enseignement par le ministère de l'Éducation nationale à la fin des années 1950. Mots-clés: réforme; mathématiques modernes; discipline scolaire; enseignement secondaire; XXe siècle.

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No tocante ao ensino das matemáticas, o período que se estende da Liberação (1944 a 1960) perpetua largamente, nas salas de aula, as lógicas disciplinares em vigor nas últimas décadas da Terceira República Francesa (1870-1940). No ensino primário, novos programas de cálculo são publicados em 1945 (1947 para as classes em fim de estudos e de cursos complementares), mas as novas instruções lembram que os princípios enunciados naquelas de 1923 e 1938 «permanecem válidos»2. A continuidade igualmente prevalece no ensino secundário, apesar de uma notável evolução de sua constituição devida à transformação, ratificada pela Liberação, das escolas primárias superiores em colégios modernos: segundo Bruno Belhoste, «no fim dos anos 1950, as matemáticas, assim como as outras disciplinas, são ensinadas no colégio e no liceu quase como o eram em 19143». A permanência de modelos disciplinares no entre guerras é ainda mais manifesta se ao período precede uma fase de profundas transformações do ensino das matemáticas: estas, denominadas pela reforma, a partir do fim da década de 1960, de «matemáticas modernas». Mas os anos de 1945 a 1960 também são aqueles de requestionamento e proposições. Mais do que no ensino primário, é no quadro do ensino secundário – mais exatamente aquele do segundo grau, segundo a terminologia em vigor –, em que começa a se fazer sentir o crescimento dos efetivos (os quais dobram ao longo da década de 1950), que as reflexões sobre o ensino matemático se dão de modo mais intenso. Para os professores de Renaud d'Enfert, «L'enseignement scientifique dans l'ordre primaire, du Front populaire à la Libération: ruptures et continuités», in Jean-François Condette et Gilles Rouet (dir.), Un siècle de formation des maîtres en Champagne-Ardennes. Écoles normales, normaliens, normaliennes et écoles primaires de 1880 à 1980, Reims, CRDP de Champagne-Ardennes, 2008, p. 155-163. 2

Bruno Belhoste, «L'histoire de l'enseignement mathématique au collège et au lycée», in Pierre Legrand, Les maths en collège et en lycée, Hachette, 1997, col. Profession Enseignant, p. 373. 3

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matemáticas dos liceus e colégios que se exprimem no Bulletin de sua associação profissional, a Associação dos Professores de Matemáticas do Ensino Público4, a perspectiva de uma reforma geral do ensino, que parece iminente, mas tarda a se realizar – somente ocorrerá em 1959 –, constitui uma oportunidade a ser aproveitada. Eles vêem nela um meio para reforçar a posição de sua disciplina nos planos de estudos e de engajar sua renovação, tanto do ponto de vista dos conteúdos disciplinares quanto do ponto de vista dos métodos pedagógicos, sendo esses dois aspectos estreitamente ligados.

I. Um contexto favorável Contando com mais de 1 300 partidários que ensinam quase exclusivamente no segundo grau (da sexta série às classes preparatórias), ou seja, aproximadamente a metade dos professores que exercem a disciplina5, a Associação dos professores de Matemáticas do Ensino Público (APMEP), constitui, na virada dos anos 1940 para os 1950, espaço de reflexão e de proposições animado por um pequeno núcleo de professores militantes. Seu engajamento, que cresce ao longo dos anos 1950 ao mesmo tempo Sobre esta associação, ver Isabelle Brun, Le Bulletin de l'Association des professeurs de mathématiques de l'enseignement public (APMEP). Période 19451970. Un journal au service de la réforme des mathématiques modernes, Mémoire de DEA de l'Université Paris 7, 1997; Éric Barbazo, L'influence de Gilbert Walusinski dans la création des IREM, Mémoire de DEA de l'EHESS, 2005. Agradeço este último pelas informações que gentilmente me comunicou. 4

Criada em 1910, a APMEP conta com 1 320 participantes em outubro de 1948, cf. Bulletin de l'Association des professeurs de mathématiques de l'enseignement public (doravante BAPMEP) n° 126, outubro de 1948, p. 7. Em 1949, o ensino do segundo grau conta com 2 445 professores em exercício, dos quais 692 são adjuntos, cf. Recueil de statistiques scolaires et professionnelles 19491950-1951, Paris, SEVPEN, 1952, pode ser consultado no site http://www.infocentre.education.fr/acadoc/, ARCH 003. 5

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em que aumentam os efetivos da Associação (em torno de 2 300 participantes em janeiro de 19576), é em grande parte motivado pelo contexto institucional pós-Segunda Guerra Mundial: um contexto de reforma escolar marcado pelos trabalhos, sem continuação imediata, da comissão ministerial de estudo para a reforma do ensino, dita Comissão Langevin-Wallon (1944-1947) e, depois, pelos diferentes projetos de reforma que lhe sucedem. Como pressentem que a reforma que virá pode modificar o equilíbrio entre as diferentes disciplinas – notadamente entre as ciências e as letras –, e que importantes remanejamentos de programas serão efetuados, esses professores se mobilizam em favor do desenvolvimento do ensino científico, em geral, e do ensino das matemáticas, particularmente. Mais do que passar por uma reforma, pela qual esperam e mesmo anseiam, eles desejam ser seus atores e fazer de sua associação uma fonte de proposições. Ao longo da década, a APMEP organiza comissões de reflexões, efetua enquetes, emite votos que visam ao Ministro da Educação nacional e se reúne com a direção geral do ensino do Segundo Grau. Esta última é, aliás, amplamente dedicada ao ensino científico, notadamente após a chegada à direção de Charles Brunold – um físico – em 1952. Ao ligar explicitamente a reforma do ensino e a promoção do ensino matemático, a APMEP está em consonância com o discurso geral, ocorrido nos anos 1950, sobre como a França precisa de científicos e técnicos para assegurar o desenvolvimento econômico e a modernização do país, e sobre a necessidade de fazer das ciências um elemento essencial do «humanismo moderno». Sustentado pelos «tecnocratas do Plano» e pelos científicos em seguida e, enfim, pelos políticos, esse BAPMEP, n° 184, março de 1957, p. 301. No mesmo momento, contamos com aproximadamente 3 100 professores em exercício, cf. Personnel enseignant des enseignements classique et moderne (ex-second degré). Statistiques rétrospectives depuis 1950-1951, janeiro de 1961, pode ser consultado no site http://www.infocentre.education.fr/acadoc/, cote TS 0497. 6

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discurso modernizador deve sua justificação em parte ao crescimento da escolarização pós-elementar, que se opera no mesmo momento, e que se presume que a instituição escolar assumirá para responder a esses novos investimentos7. É assim que, em 1954, Charles Brunold preocupa-se com o desequilíbrio numérico, devido a uma inapropriada repartição da quantidade entre os estudantes científicos e literários, ainda que «seis dentre sete carreiras precisem dos estudos científicos prévios8». Assim como o primeiro projeto de reforma do ensino do ministro Berthoin (1955) lamenta a insuficiência numérica das elites científicas, o projeto do ministro Billères (1956) salienta «a necessidade de 'científicos' da economia moderna»9. Por vezes motivado por esta questão da penúria dos trabalhos científicos, o desejo de renovar a noção de humanismo por seu alargamento, abarcando as ciências e as técnicas, reconhecidas por seu valor cultural, está igualmente no centro das reflexões e dos projetos do pós-guerra. Parte constituinte de um novo «humanismo moderno», as «humanidades científicas» voltam a ocupar lugar de honra. A ocorrência, em maio de 1947, do Congresso das humanidades científicas – do qual Paul Langevin é o iniciador – confirma isso. Também nesse sentido, o projeto de reforma do ministro Delbos (1949) anuncia que, ao lado das humanidades clássicas, «as humanidades modernas, as ciências puras e as ciências técnicas serão a sólida estrutura do tempo presente», enquanto que o projeto Billères relembra que o estudo Cf. Antoine Prost, Histoire générale de l'enseignement et de l'éducation en France. IV. L'école et la famille dans une société en mutation (depuis 1930), Paris, Perrin, 2004, pp. 276-279 (1a ed. 1981). 7

Charles Brunold, «Les problèmes posés par l'enseignement du second degré», in Ministère de l'Éducation nationale, Direction du Second degré, L'enseignement du second degré en 1953 – I, Paris, CNDP, 1954, p. 8.

8

Segundo Luc Decaunes e Marie-Louise Cavalier, Réformes et projets de réforme de l'enseignement français de la Révolution à nos jours (1789-1960). Étude historique, analytique et critique, Paris, IPN, 1962, p. 342 e p. 363-366. 9

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«deve constituir uma das bases sólidas do humanismo» 10. As conclusões do colóquio de Caen (novembro de 1956), que reuniu 250 científicos, industriais, administradores, funcionários, parlamentares e jornalistas, são exatamente no mesmo sentido: «O interesse nacional exige que a maioria das crianças e dos jovens receba uma formação que dê amplo espaço às ciências e às técnicas. […] o ensino científico e técnico deve, então, ser um dos elementos de um verdadeiro humanismo11». A ação da APMEP se insere também em um movimento internacional de promoção e de reforma do ensino matemático tal como o impulsionam a Organisation européenne de coopération économique (OECE) ou o Bureau international de l'éducation e a UNESCO. Seu Bulletin se coloca como o ponto de transmissão de diversas iniciativas, que ultrapassam o quadro estritamente francês, como os encontros da Commission internationale pour l'étude et l'amélioration de l'enseignement mathématique (CIEAEM), criada em 1952 ou as enquetes da Commission internationale de l'enseignement mathématique (CIEM), duas organizações engajadas em favor de uma renovação do ensino das matemáticas e das quais fazem parte alguns responsáveis da APMEP. A associação está igualmente na iniciativa de manifestações como as Journées internationales d'information sur l'enseignement des mathématiques, organizadas em 1955 no Centre international d'études pédagogiques de Sèvres (CIEP). Unindo representantes de uma dezena de países europeus, essas jornadas são motivadas pela «importância do ensino científico em nosso Segundo L. Decaunes e M.-L. Cavalier, Réformes et projets de réforme, op. cit., p. 293. 10

«Les douze points du colloque de Caen. Résolutions adoptées à la séance de clôture du 3 novembre 1956», in Alain Chatriot e Vincent Duclert (dir.), Le gouvernement de la recherche. Histoire d'un engagement politique, de Pierre MendèsFrance à Charles de Gaulle (1953-1969), p. 362. Ver também Arquivos Nacionais (AN), F/17/17509: Voto relativo à reforma do ensino científico, proveniente da Academia das Ciências na sessão de 26 de novembro de 1956. 11

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mundo moderno». Elas colocam em questão tanto o aspecto das matemáticas no horário semanal dos alunos quanto sua iniciação nas «estruturas fundamentais das matemáticas», isto é, nas matemáticas modernas12. De fato, a promoção da disciplina é percebida como estreitamente ligada à questão de sua modernização.

II. Dar às matemáticas o lugar que lhes cabe Para os militantes da APMEP, o contexto é, então, extremamente favorável para o desenvolvimento de sua disciplina. Dos anos 1920 aos 1930, a associação tinha se apropriado dos argumentos «clássicos» para reivindicar o valor cultural do ensino matemático que, a seus olhos, seria o mesmo do latim, isto é, «que visa à formação e à cultura do espírito13». A partir dos 1950, os argumentos sócio-econômicos somam-se ao argumento cultural, ele próprio reelaborado. A APMEP legitima então seu discurso em favor das matemáticas, começando por mencionar «a penúria dos trabalhadores científicos qualificados14» (e notadamente a dos professores de matemáticas é percebida como um obstáculo ao desenvolvimento do estudo científico) e pela necessidade de fazer do ensino matemático «um elemento vivo do humanismo moderno15». Observa-se, aliás, entre o início e o meio da década

«Journées internationales d'information sur l'enseignement mathématiques», BAPMEP, n° 168, março-abril 1955, p. 93-96.

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des

BAPMEP, n° 104, mai 1938, p. 132.

Gilbert Walusinski, «La rentrée à l'heure de la réforme», BAPMEP, n° 179, outubro de 1956, p. 74.

14

Ibid., p. 79. Em 1955, a assembléia geral da APMEP delega seu escritório para «organizar e desenvolver uma campanha de imprensa que explique o papel do ensino científico, no nível do segundo grau, em uma formação cultural adaptada às exigências do século XX e, em seguida, na formação de numerosos técnicos e

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de 1950, uma clara inflexão na atitude de seus dirigentes, inflexão à qual não é estranho Georges Walusinski, presidente da associação entre 1955 e 1958. Fazendo frente comum com as outras associações de professores das disciplinas científicas (Union des physiciens, Union des naturalistes), a APMEP passa progressivamente de uma aproximação cordial com o campo dos clássicos (representado pela Société des professeurs de français et de langues anciennes), para uma clara hostilidade em relação aos defensores das línguas antigas: agora o latim figura como disciplina do passado, enquanto que as matemáticas, bem como as outras ciências, são percebidas como uma disciplina do presente e do futuro. A APMEP sustenta notadamente a idéia de que, devido ao desenvolvimento acelerado das ciências, as matemáticas ocupam – ou vão ocupar por um curto período – uma posição proeminente não somente na esfera industrial e econômica, mas também na vida dos cidadãos, na vida social. Se é preciso, então, formar massiva e rapidamente futuros científicos e favorecer as vocações, trata-se também de fazer das matemáticas o pilar essencial da cultura geral transmitida no liceu ou no colégio, a fim de propiciar ao conjunto dos alunos as ferramentas indispensáveis para compreender e enfrentar o mundo moderno, para participar de sua transformação. Como diz Georges Walusinski, os alunos do segundo grau serão todos «usuários das matemáticas16». Aliás, pode-se notar a emergência, ao longo do período, de certo interesse dos professores de matemáticas quanto às classes não científicas do segundo ciclo, como podemos ver, por exemplo,

pesquisadores de que nossa sociedade precisa» (BAPMEP, n° 169, junho de 1955, p. 155). 16 G. Walusinski, «Les mathématiques et la réforme de l'enseignement», BAPMEP, n° 174, dezembro de 1955, p. 131.

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através de uma série de artigos publicados em 1955 por partidários da APMEP nos Cahiers pédagogiques17. A conseqüência prática é que a APMEP reclama um aumento significativo dos horários alocados para as matemáticas, isso desde a sexta série. Se quisermos formar mais científicos e, em um âmbito mais geral, alunos com um pensamento adaptado ao mundo moderno, é preciso reforçar a parte do ensino matemático e, então, a quantidade de horas alocadas a este desde o início da escolaridade secundária: não somente o nível geral dos alunos será elevado, mas estes também tomarão consciência da importância da disciplina, tanto no colégio como na vida. Com o apoio de suas reivindicações, a APMEP se dedica a uma comparação dos horários de matemática em vigor àqueles instituídos pela reforma de 1902, sempre presente nos espíritos por ter sido muito favorável às ciências18. De fato, à exceção da classe final de Matemáticas elementares, o segundo ciclo parece incompleto: no melhor cenário, quatro horas de matemáticas para as classes de primeira C e M, quando, sob o regime de 1902, os horários das aulas de primeira C e D haviam atingido 7 horas, incluindo desenho geométrico. No primeiro ciclo, com 2 horas na sexta série e 2 horas e meia nas outras classes, o horário das matemáticas é julgado muito fraco em relação àquele da escola primária (5 horas semanais de cálculo no curso médio desde 1945) por um lado, e daquele das classes novas instituídas quando da Liberação (tornaram-se classes-piloto em 1952), de outra parte. Estas últimas, de fato, beneficiam-se de uma hora semanal

Cahiers pédagogiques pour l'enseignement du second degré, n° 3, 15 novembro de 1955, pp. 203-215.

17

B. Belhoste, «L'enseignement secondaire français et les sciences au début du XXe siècle. La réforme de 1902 des plans d'étude et des programmes», Revue d'histoire des sciences, tomo 43, 1990, p. 371-400.

18

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suplementar de trabalhos dirigidos em meia aula para lá desenvolver métodos ativos19. A APMEP não se contenta em comparar os diferentes horários de matemáticas em vigor para apoiar essas reivindicações. Ela justifica igualmente estas salientando a preeminência, a seus olhos indevida, das disciplinas literárias na gestão do tempo dos alunos, ao menos no nível do primeiro ciclo: «Assim como os latinistas, nós não podemos ensinar sem um horário suficiente: devemos reivindicar uma hora por dia no primeiro ciclo20». Denunciando a identidade dos horários das seções clássica e moderna – que relembra a «igualdade científica» estabelecida entre 1923 e 1925 e contra a qual ela lutou particularmente no entre guerras21 – a associação reclama a criação, ao lado da via clássica, de uma verdadeira via científica em que as matemáticas dominariam a partir da classe da quarta série, sendo que alguns a desejavam mesmo desde a classe da sexta série22.

III. Modernizar os conteúdos, renovar os métodos A renovação conjunta dos conteúdos e dos métodos ensino constitui, ao longo do período, um segundo eixo proposições da APMEP, sugeridas por um pequeno grupo partidários que militam ativamente em seu núcleo a partir partir de 1949-1950.

de de de de

Segundo o ato de 24 de junho de 1948, o horário semanal de matemáticas das classes novas é de duas horas, mais uma hora de trabalho dirigido; uma opção ciências de três horas, dentre as quais uma hora e meia de matemáticas, é proposta a partir da classe de quarta série (BOEN n° 23 do 8 de julho de 1948, pp. 823-824). 19

20

BAPMEP, n° 169, junho de 1955, p. 151.

Nicole Hulin, L'enseignement et les sciences. L'exemple français au début du XXe siècle, Paris, Vuibert, 2005. 21

22

BAPMEP, n° 169, junho de 1955, pp. 155-156. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32 p. 7-30, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Primeira ambição: introduzir as «matemáticas modernas» (expressão bastante usada) no ensino do segundo grau. Desde o começo dos anos 1950, a APMEP abre um verdadeiro espaço de trocas e de aculturação coletiva sobre esta questão. Ela organiza, em colaboração com a inspeção geral de matemáticas, ou a Sociedade Matemática da França, jornadas de estudos, estágios de formação, ciclos de conferências em que intervêm professores de faculdades ou de classes preparatórias cujas exposições são em seguida publicadas em seu Bulletin 23. A associação divulga igualmente prestações de contas de obras e de projetos de programas que incluem noções «modernas»24, relações de experiências de modernização conduzidas em suas classes por certos professores, assim como tomadas de posição individuais «a favor» ou «contra» as matemáticas modernas. Influenciados pelos trabalhos do grupo Bourbaki, os «modernizadores» partem da constatação de que as matemáticas são uma ciência viva, além do fato de que as que são ensinadas pouco evoluíram nas últimas décadas. Eles desejam, então, abrir um ensino ao espírito das matemáticas contemporâneas – particularmente a álgebra moderna – que ponha em primeiro plano a noção de estrutura e privilegie, sob o nome de «método axiomático», o estudo das leis às quais os objetos matemáticos, mais do que os demais, obedecem: «A evolução dos problemas em direção às partes jovens e vivas das matemáticas, iniciada, como é natural, no ensino superior […] deverá descer cada vez mais para o ensino secundário25». Se alguns professores de faculdade esperam que os alunos dos liceus estejam assim mais bem preparados para 23

I. Brun, op. cit. pp. 6-7, e seu anexo pp. 31-32.

Ver notadamente o projeto de programa para as classes de 6e e de 5e proposto em 1956 por Lucienne Félix em «Projet de nouveaux programmes», BAPMEP, n° 180, dezembro de 1956, p. 118-119.

24

Lucienne Félix, «Les groupes de travail», BAPMEP, n° 154, janeiro de 1953, p. 62.

25

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receber as matemáticas universitários – cuja modernização teve início desde o início da década de 1950 –, o projeto se pretende em realidade mais global. Trata-se de tornar coerente, desde o início do curso secundário, senão do início da escolaridade, as matemáticas que se ensinam e as matemáticas que se fazem: «seria necessário, nessa nova perspectiva, repensar todo o nosso ensino, desde as pequenas turmas, pois é preciso dar conta da necessidade de certa continuidade e se lembrar do grande número de nossos alunos que não seguem a seção científica, ou que a seguem sem se destinar aos estudos puramente matemáticos26». Desenvolve-se assim a idéia de que são as mesmas matemáticas, certamente elaboradas em maior ou menor grau, que devem ser ensinadas «do Maternal à Sorbonne» - segundo a fórmula de G. Walusinski 27. Os «modernizadores» consideram, de fato, que os alunos devem aprender as matemáticas que serão universalmente praticadas quando forem adultos (estatísticas, álgebra conjuntos...), e que a «verdadeira» ciência deve ser conhecida por todos e não somente por alguns iniciados. Eles estimam, igualmente, que o papel principal do ensino matemático é dar aos alunos os quadros de um pensamento lógico e conduzi-los a fazer a distinção entre o que provém do domínio do sensível e o que provém do da abstração – apoiando-se sobre suas disposições «naturais» (espírito de descoberta, criatividade, senso de abstração), o que não exclui o recurso ao concreto e a utilização eventual de um material pedagógico específico. A argumentação desenvolvida sobre esse ponto se nutre, aliás, de uma crítica, para não dizer de um ataque, aos programas de geometria em vigor, notadamente aqueles do primeiro ciclo: misturando uma abordagem experimental à razão dedutiva, lhes faltaria rigor e eles dariam uma visão confusa, quase falsa, das matemáticas, sendo que a geometria tradicional aparece, por fim, como «a arte de 26

Ibid.

27

BAPMEP, n° 184, mars 1957, p. 306. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32 p. 7-30, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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demonstrar uma propriedade considerando um círculo escolhido astuciosamente ao juntar com felicidade pontos cuidadosamente dissimulados 28», pouco acessível ao aluno médio. A segunda ambição, indissoluvelmente ligada, aos olhos desses professores, à modernização dos conteúdos: renovar os métodos de ensino através da adoção de uma pedagogia ativa. É preciso sublinhar aqui os fortes laços que reinam, ao longo da década de 1950, entre o movimento em favor das matemáticas modernas, que se desenvolve no seio da APMEP, e aquele que permeia os métodos ativos no segundo grau, dos quais o CIEP de Sèvres e os Cahiers pédagogiques constituem os principais locais de debate. Criadas em seqüência à Liberação para acompanhar a criação das novas classes no primeiro ciclo, os Cahiers pédagogiques reúnem «a ala militante do corpo professoral, aqueles que sustentaram as experiências da Frente Popular, e esperaram o plano Langevin-Wallon e que, na espera de uma verdadeira reforma, entram em conflito sobre a inovação pedagógica29». Encontramos aí diversos responsáveis, militantes ou simpatizantes da APMEP que, ao menos alguns dentre eles, ensinam as matemáticas nas classes novas e depois nas pilotos. Entre 1948 e 1960, estes últimos publicam a metade dos 130 artigos (aproximadamente) que os Cahiers pédagogiques dedicam às matemáticas e coordenam diversos números dedicados especificamente à disciplina – um número de 1955 fornece notadamente os resultados de duas enquetes sobre as «matemáticas modernas»30. Distinguem-se notadamente os membros de um grupo de trabalho que reúne professores de matemáticas de classes novas da região parisiense, e estes pertencem à comissão Resposta de Jean Favard à enquete de Henri Mirabel, Cahiers pédagogiques, n° 3, 15 de novembro de 1955, p. 152.

28

Anne-Marie Chartier, «Former la jeunesse par la culture littéraire: le projet des Cahiers pédagogiques (1945-1958)», Hermès, n° 20, 1996, p. 205.

29

30

Cahiers pédagogiques, n° 3, 15 de novembro de 1955, pp. 147-183. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 7-30, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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«Axiomática e redescoberta» da APMEP criada em 1950, comissão cuja denominação revela claramente a vontade de conjugar modernização dos conteúdos e renovação dos métodos31. Pode-se datar dos anos 1920-1930 as primeiras tentativas de introdução de uma pedagogia ativa (ou considerada como tal) no ensino matemático secundário, quando há a instigação do inspetor geral Émile Blutel, que pretendia dar à sua disciplina um valor de cultura geral. Sob o nome de método de «descoberta» ou de «redescoberta», esse último preconiza, então, um ensino da geometria em que, utilizando somente as hipóteses (estas sendo «escritas sobre a própria figura»), os alunos elaboram demonstrações ou pesquisam a solução de um problema sob a direção de seu professor «que buscaria mais despertar a curiosidade e a suscitar o esforço geral por suas perguntas repetidas do que impor resultados32». Logo após a Segunda Guerra Mundial, esta concepção muito magistral da atividade dos alunos continua oficialmente em vigor em relação ao ensino das matemáticas, como o testemunham as instruções de 1947: oposto ao simples registro passivo, o método ativo consiste, sobretudo, para o professor, em fazer um curso dialogado solicitando a participação dos alunos. Para os «modernizadores» da APMEP, os métodos ativos revestem uma significação completamente diferente. Seu Dentre os professores mais ativos, podemos citar Marceline Dionot, Lucienne Félix, Yves Crozes, André Fouché, Henri Mirabel (que participou da comissão Langevin-Wallon) e Gilbert Walusinski. 31

32

Instructions du 2 septembre 1925 relatives aux programmes de l'enseignement secondaire, Paris, Vuibert, 1925, p. 152; Émile Blutel, «Sur le premier enseignement de la géométrie», Bulletin de l'Association des professeurs de mathématiques de l'enseignement secondaire public (BAPMESP), n° 18, janeiro de 1921, pp. 16-20 e n° 19, março de 1921, pp. 27-30; «Géométrie et culture générale», BAPMESP, n° 57 outubro de 1928, pp. 33-38. Ver também a interpretação dada em 1953 pelo inspetor geral Paul Robert, «La redécouverte en mathématiques», Cahiers pédagogiques, n° 4, 1o de fevereiro de 1953, pp. 287293. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32 p. 7-30, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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interesse pelos últimos é devido em grande parte ao fato que eles desenvolvem, segundo eles, «o espírito de iniciativa e de livre pesquisa33». Colocar os alunos em posição de pesquisa é permitirlhes trabalhar com as matemáticas como se matemáticos fossem, isto é, iniciá-los nas «verdadeiras» matemáticas e não na sua caricatura. Nessa perspectiva, as matemáticas são vistas como um mundo a explorar, e cada problema, como uma aventura singular34. A relação pedagógica é igualmente redefinida: o professor não é mais um «demonstrador de teoremas», mas o condutor de um jogo cujas regras são claramente definidas e onde o direito ao erro é reconhecido. Suas concepções nesse aspecto estão certamente mais próximas àquelas de Charles Brunold do que àquelas da inspeção geral das matemáticas. Brunold preconiza, de fato, uma pedagogia da redescoberta aberta pela pesquisa em comum que os métodos ativos desenvolvidos nas classes novas autorizam, a uma «ciência que se faz» e não a uma «ciênciabalanço» 35. Ademais, sua promoção dos métodos ativos nas matemáticas vai ao encontro de uma mudança do olhar dirigido aos alunos, que se traduz por uma maior atenção às suas características psicológicas. Enquanto o crescimento da escolarização dá a sensação de uma baixa do nível e questiona as pedagogias tradicionais, esses professores apreendem seus alunos, menos em termos de dons ou aptidões para as matemáticas do que em termos de abertura a estas: «não existe espírito completamente fechado para as matemáticas. Mas nós sabemos que as vias de Marceline Dionot, «Les classes nouvelles apporteront-elles le remède?», Cahiers pédagogiques, n° 1, 15 de outubro de 1948, p. 11.

33

34 Yves Crozes, «Axiomatique et redécouverte», BAPMEP, n° 147, março de 1952, pp. 242-243 e «Présentation de problèmes en seconde», Cahiers pédagogiques, n° 21, 15 de maio 1960, pp. 46-52.

C. Brunold, Esquisse d'une pédagogie de la redécouverte dans l'enseignement scientifique, Paris, Masson, 1948; Circular «Les méthodes dans l'enseignement du second degré» de 6 de outubro de 1952, BOEN n° 36 de 9 de outubro de 1952, pp. 2765-2767. 35

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compreensão das matemáticas são muito diversas, e a idade mental em que a abstração torna-se «familiar», muito variável dependendo do indivíduo, […] é com o tempo, graças a exercícios repetidos e variados, que o professor poderá encontrar, com esses alunos que não forem preguiçosos, mas que precisem de ajuda, o caminho que convém à sua forma de espírito, ao estado considerado de sua evolução36». É para por em andamento essas concepções nas turmas que a APMEP milita ativamente, a partir da metade dos anos 1950, em favor da organização de «trabalhos práticos de matemáticas» durante metade da aula (o que motiva ainda mais um aumento do horário alocado à disciplina). Esta reivindicação, que recebe o apoio de universitários de renome, é para a APMEP um meio de fazer evoluir o ensino das matemáticas sem esperar uma reforma geral que não ocorre. Substituindo os deveres de casa, julgados pouco frutíferos para os alunos do primeiro ciclo, esses trabalhos práticos retomam o princípio dos trabalhos dirigidos já em vigor nas turmas pilotos, graças às quais os alunos teriam manifestado mais interesse pela disciplina do que seus colegas das turmas comuns. Eles devem permitir aos alunos de fazer uso de seus conhecimentos teóricos em situações concretas, de compreender as vantagens da abstração matemática e de se engajar pessoalmente em um encaminhamento de pesquisa considerado como elemento integrado à atividade matemática escolar37.

G. Walusinski, «Les mathématiques et la réforme de l'enseignement», BAPMEP, n° 174, décembre 1955, p. 130. 36

G. Walusinski, «La rentrée à l'heure de la réforme», BAPMEP, n° 179, outubro de 1956, p. 74-76. Em 1957, a APMEP substitui um concurso de manuais escolares com um preço de 500 000 francos sobre o tema «Criar o amor à matemática por uma iniciação vibrante à pesquisa» (BAPMEP, n° 184, março de 1957, pp. 277-278). 37

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IV. Um começo de reforma efetiva, apesar das oposições? As ambições reformadoras trazidas pela APMEP não são objeto isento de reservas, senão oposições. Se a questão dos trabalhos práticos, e mais geralmente dos métodos, praticamente não suscita debate, tal não é o caso, por outro lado, do projeto de modernização dos conteúdos de ensino. Sobre esse ponto, as objeções são principalmente trazidas por professores de turmas preparatórias e por alguns outros do ensino superior, como Jacques Hadamard ou Maurice Fréchet. Considerando que a jovem guarda universitária quer que suas idéias penetrem nos liceus tendo por único objetivo formar futuros matemáticos, eles recusam a idéia de que o ensino matemático seja organizado em função somente desses poucos alunos de elite. Alguns reconhecem que noções modernas podem ser introduzidas em turmas avançadas de Matemáticas ou em turmas preparatórias, mas estimam, por outro lado, que elas não convêm ao ensino do segundo grau: abstratas demais para serem ensinadas a jovens, abstratas demais para serem acessíveis a um grande número, abstratas demais para formar «utilizadores» de matemáticas, sejam engenheiros ou técnicos38. No fundo, são duas concepções da democratização que se chocam aqui: aos «modernizadores» que querem dividir as «verdadeiras» matemáticas com o conjunto dos alunos, seus contraditores opõem os destinos escolar e social diferenciados desses últimos. As idéias modernizadoras da APMEP encontram igualmente a hostilidade – discreta, mas eficaz – da inspeção geral de matemáticas. Em uma carta a Charles Brunold, o chefe da inspeção geral de matemáticas, Paul Robert se alarma com as ambições modernizadoras da APMEP, notadamente quanto ao Maurice Fréchet, «La méthode axiomatique», BAPMEP n° 167, janeiromarço de 1955, p. 81; Henri Mirabel, «Mathématiques modernes et enseignement secondaire», BAPMEP n° 168, março-abril de 1955, pp. 128131; Cahiers pédagogiques, n° 3, 15 de novembro de 1955, pp. 153-159.

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primeiro ciclo. Não somente a introdução das «teorias modernas» anularia todo espírito de coordenação dos ensinos de matemática e de física, mas arriscaria tornar a disciplina «árida» e, assim, perderse-iam alunos: «as novas percepções tendem a introduzir um pouco de rigor abstrato […] ao preço de teorias massivas profundamente indigestas, conseguindo no futuro somente desencorajar os jovens espíritos39». A irrupção das matemáticas modernas esboça, assim, uma linha de fratura – durável – entre os «modernizadores» da APMEP, que se voltam resolutamente para as matemáticas universitárias religando-as a questões propriamente pedagógicas, e a inspeção geral de matemáticas, que permanece ligada a uma certa tradição matemática – e também a uma certa forma de excelência matemática –, aquela das turmas preparatórias das quais ela provém, e dissocia fortemente as questões de conteúdos e as questões de métodos. Apesar das oposições, a militância da APMEP se revela proveitosa, no sentido de haver uma certa unidade de opinião em relação à inspeção geral de matemáticas e a direção do Segundo Grau. Entre 1957 e 1962, o ministério, que deseja «dar às disciplinas científicas seu pleno valor de ensino de método», remaneja os programas e reforça os horários de matemáticas a fim de «tornar mais concreto o estudo dessa matéria e, por isso mesmo, mais acessível a vários espíritos, podendo encaminhar assim um maior número de alunos rumo aos estudos científicos40». Essas medidas marcam uma evolução sensível no ensino da disciplina neste nível. No primeiro ciclo, o reforço do horário das matemáticas, que passa a ser de três horas (decretado em 12 de agosto de 1957), mas que a APMEP julga ainda 39 AN, F/17/17786: Carta de Paul Robert ao diretor geral do ensino do segundo grau, 17 de dezembro de 1954.

Ato administrativo de 23 de novembro de 1956 que fixa os programas de ensino do segundo grau, das escolas normais de professores e das classes de ensino técnico que se preparam para o exame vestibular, BOEN n° 42 de 29 de novembro de 1956, p. 3008. 40

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insuficiente41, deve permitir a colocação de trabalhos práticos de matemáticas. Sobre isso, uma nota ministerial de 1960 recomenda adotar um encaminhamento análogo «àquele praticado pelos promotores das 'matemáticas modernas' quando estes colocam seus estudantes perante 'situações' matemáticas para habituá-los a reagir frente às mesmas»: se há o apelo ao concreto, é para «conduzir lentamente, mas em grande número, nossos alunos rumo à essência abstrata das matemáticas42». Mas os novos programas do primeiro ciclo (decretados em 12 de agosto de 1957 e 31 de julho de 1958) não integram propriamente noções «modernas», apesar da insistência das instruções sobre as noções de «correspondência» e de «relação». No segundo ciclo, por outro lado, os programas de matemáticas constituem o objeto de um início de modernização. Moderada no nível da segunda classe – os símbolos, o vocabulário e certas noções de conjunto «poderão» ser introduzidas –, esta é mais substancial para a classe de matemáticas em que o estudo dos diferentes conjuntos de números, de polinômios e transformações pontuais do plano e do espaço, deve permitir desenvolver sua estrutura algébrica. O que permanece é que esta primeira modernização, mesmo acrescida em 1965, não transforma fundamentalmente o ensino da disciplina: os programas do segundo ciclo não são inteiramente modificados, mas constituem simplesmente o objeto de renovações pontuais e

Um ato administrativo de 2 de junho de 1960 determina em 4 horas o horário das matemáticas das classes de 6e e de 5e, mas este á passado para três horas no ano seguinte (publicado em 25 de abril de 1961). No 2º ciclo, o horário de matemáticas passa para cinco horas nas 2a e 1a A', C, M et M' (decretada em 2 de agosto e em 15 de outubro de 1962). 41

«Note préliminaire sur les programmes de mathématiques des classes de 6e et 5 », anexada ao ato administrativo de 20 de julho de 1960, que fixa os programas do ciclo de observação, BOEN n° 29 de 25 de julho de 1960, pp. 2297-2308. Este ato administrativo reconduz quase sem mudanças os programas precedentes. 42

e

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limitadas sem que sua economia global se encontre modificada43. Somente alguns anos mais tarde uma comissão ministerial, presidida pelo matemático André Lichnerowicz (1967-1973), reformará o ensino matemático francês totalmente.

*** Na Quarta República, as ambições reformadoras dos professores de matemáticas que militam no seio da APMEP devem então se estender em sentido lato. Participando do movimento de renovação pedagógica, que marca o período, estes não limitam suas reivindicações somente aos conteúdos de ensino, mas ligam estreitamente a modernização de sua disciplina e a renovação das modalidades de ensino inspirando-se em métodos ativos. Se podemos ver neste movimento de idéias e nas transformações disciplinares e pedagógicas, ocorridas entre 1957 e 1962, as premissas da reforma das «matemáticas modernas» desenvolvida dez anos mais tarde, constata-se que esta última reforma se apresenta sobretudo como uma reforma de matemáticos que buscam antes de tudo a correção dos programas do ponto de vista teórico. A composição da Comissão Lichnerowicz, criada em 1966, pode explicar esta notável inflexão: esta é largamente dominada pelos universitários e, apesar da presença em seu seio de professores que exercem ou exerceram a profissão em estabelecimentos pilotos, os principais «modernizadores» ativos nos anos 1950 são aí os grandes ausentes. Notar-se-há, por outro lado, a constância com a qual os reformadores do ensino matemático consideram pouco, nos anos Michèle Artigue, «Réformes et contre-réformes dans l'enseignement de l'analyse au lycée (1902-1994)», in Bruno Belhoste, Hélène Gispert e Nicole Hulin (dir.), Les sciences au lycée. Un siècle de réformes des mathématiques et de la physique en France et à l'étranger, Paris, Vuibert/INRP, 1996, pp. 205-206. 43

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1950, bem como mais tarde nos anos 1960, esta outra parte do ensino «médio» que constituem, ao lado do primeiro ciclo secundário, os cursos complementares das escolas primárias – rebatizados de colégios de ensino geral em 1959 – que oferecem um ensino curto em quatro anos para as crianças de origem popular. É verdade que a APMEP, reservada somente aos professores do secundário até 1945, reúne quase exclusivamente professores de liceus que trabalham freqüentemente no segundo ciclo ou em classes preparatórias 44: hostis à idéia de que alunos da sexta série possam ser confiados a mestres que não receberam formação universitária, estes últimos temem a proliferação dos cursos complementares que fazem concorrência ao primeiro ciclo do segundo grau. Se, então, a identificação dos programas das duas fileiras – tipo secundário e tipo primário –, efetuada entre 1957 e 1964, não encontrou obstáculos maiores, é em grande parte porque novos programas do primeiro ciclo não modificavam fundamentalmente os conteúdos de ensino prescritos anteriormente, e esses últimos podiam consistir objeto de uma interpretação diferenciada segundo as finalidades do nível considerado. Na virada dos anos 1970, por outro lado, é por ter proposto, com o modelo do ensino geral longo como referência e em clara ruptura com os programas precedentes, os mesmos conteúdos a ensinar em um mesmo espírito a alunos com futuros escolares diferentes, que a reforma das matemáticas modernas será dificultada45. Ainda em 1966, os professores do segundo ciclo representam 55 % dos participantes e essas classes preparatórias, 16,6 %, ou seja, em torno de 70 % dos efetivos, contra 15,7 % para o primeiro ciclo (e 11,8 % para os universitários). Os "primários" representam então só 1 % do efetivo dos 6 600 participantes aproximadamente (segundo BAPMEP n° 254-255, setembro-dezembro de 1966, p. 612).

44

R. d'Enfert e H. Gispert, «L'élaboration d'une réforme à l'épreuve des réalités: le cas des "mathématiques modernes", la crise de 1971», Atos do colóquio «L'État et l'éducation, 1808-2008», Paris, INRP, 2010 a ser publicado.

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Renaud d'Enfert é Pesquisador do Service d'histoire de l'éducation/INRP. E-mail: renaud.denfert@inrp.fr Júlia G. Martins é Bolsista de iniciação científica CNPq – PUCRS. Aluna do curso de graduação em História – PUCRS. Maria Helena Câmara Bastos é Doutora em Educação História e Filosofia da Educação; Pós-doutora no Service d'histoire de l'éducation/INRP-França; Professora do PPGE/PUCRS; Pesquisadora do CNPq, FAPERGS.

Recebido em: 12/06/2010 Aceito em: 20/09/2010

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LA FUNCIÓN Y EL PAPEL DESEMPEÑADO POR LA MAESTRA EN LA OBRA DE MONTESSORI1 Alessandra Avanzini

Resumen La función de la maestra constituye un aspecto fundamental dentro del sistema teórico montessoriano. De hecho, Montessori le atribuye a la maestra un papel muy delicado: facilitar el correcto crecimiento del niño "padre del hombre". Es por esto que el papel y la función de la maestra montessoriana deben responder a los puntos de fuerza de su teoría educativa: la necesidad de que haya una fuerte idea de escuela; la necesidad de diferenciar el momento teórico del momento práctico y el papel desempeñado por el científico del desempeñado por la maestra; el respeto que ambos deben tener del niño (ni la maestra ni el científico pueden fijar a priori los resultados de cada niño: potencialmente la excelencia es para todos); el jaque mate a cualquier pretensión de neutralidad/objetividad: cuando la relación es con seres humanos es un sinsentido pensar que existan técnicos capaces de traspasar nociones de manera aséptica. Según cuanto dicho anteriormente, la maestra en Montessori se puede definir como un técnico, en el sentido de que no es el científico al que le corresponde la elaboración teórica sino un técnico. Un técnico que no es para nada ni neutro ni aséptico y cuya humanidad se colocará en un primer plano para que pueda llevar a cabo su propio trabajo lo mejor posible. Palabras clave: Montessori; didactica; maestra. A FUNÇÃO E O PAPEL DESEMPENHADO PELA PROFESSORA NA OBRA DE MONTESSORI Resumo A função da professora constitui um aspecto fundamental dentro do sistema teórico montessoriano. De fato, Montessori atribui à professora um papel muito delicado: facilitar o correto crescimento da criança “pai do homem”. É por isto que o papel e a função da professora montessoriana devem responder aos pontos fortes de sua teoria educativa: a necessidade de que haja uma forte idéia de escola, a necessidade de diferenciar o momento teórico do momento prático e o papel desempenhado pelo desempenho científico da professora; o

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Artigo traduzido do italiano para o español por Margarita Carro Fernandez.


32 respeito que ambos devem ter com a criança (nem a professora nem a ciência podem fixar a priori os resultados de cada criança: potencialmente a excelência é para todos); o xeque a qualquer pretensão de neutralidade/objetividade: quando a relação é com seres humanos é sem sentido pensar que existam técnicos capazes de transmitir conceitos de maneira asséptica. Como dito anteriormente, a professora em Montessori se pode definir como um técnico, no sentido de que não é o científico a que lê corresponde a elaboração teórica senão técnico. Um técnico que não é nem neutro nem asséptico e cuja humanidade se colocará em um primeiro plano para que possa levar a cabo seu próprio trabalho o melhor possível. Palavras-chave: Montessori; didática; professora. THE ROLE AND THE FUNCTION OF THE TEACHER IN MONTESSORI WORKS Abstract The function of the teacher constitutes a fundamental aspect inside Montessori's system of thought. She offers to teacher a very delicate role, that of helping the right growth of child as "man's father". For this reason the role and the function of Montessori teacher must correspond to the principle points of her educative theory, that is to say: the necessity to have a strong idea of school; the need of clearly separating the practical moment (teacher) from the theoretical one (scientist); the respect due to the child both by scientist and teacher (neither teacher nor scientist can pre-established the results of the single child: potentially everyone can become an excellent pupil); the defeat of the idea of neutrality/absolute objectivity, that is to say that when you deal with human being you cannot pretend to transmit notions in a neutral way. Starting from this assumptions Montessori teacher can be certainly defined a technician, but she is a new kind of technician, because she isn't neutral, but on the contrary her humanity is in the foreground so that she can become an excellent teacher. Keywords: Montessori; Didactics; Teachers Training. IL RUOLO E LA FUNZIONE DELLA MAESTRA NELL'OPERA DI MONTESSORI Riassunto La funzione della maestra costituisce un aspetto fondamentale all'interno dell'impianto teorico montessoriano. Montessori, infatti, attribuisce alla maestra un ruolo delicatissimo: agevolare la corretta crescita del bambino «padre dell'uomo».

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33 Ecco, dunque, che il ruolo e la funzione della maestra montessoriana devono rispondere ai punti forti della sua teoria educativa: la necessità di avere una forte idea di scuola; la necessità di differenziare il momento teorico da quello pratico, il ruolo dello scienziato da quello della maestra; il rispetto che entrambi devono nutrire per il bambino (né la maestra, né lo scienziato possono prefissare i risultati del singolo bambino: potenzialmente l'eccellenza è per tutti); la messa in scacco di ogni pretesa neutralità/oggettività: laddove si ha a che fare con esseri umani, non si può pensare a tecnici che passano nozioni in modo asettico. Su queste basi la maestra montessoriana, allora, si può sì definire un tecnico, nel senso che non è lo scienziato cui spetta l'elaborazione teorica, ma un tecnico tutt'altro che neutro e asettico, la cui umanità è chiamata in primo piano affinché possa svolgere al meglio il proprio mestiere. Paròla chiàve: Montessori; Diddatica; Maestra.

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La institución educativa en Montessori Para empezar, un hecho comprobado: la función - y por lo tanto la formación - de la maestra constituye un aspecto específico y estructural en el sistema teórico de Montessori. De hecho, Montessori, desde el principio de su reflexión, le da a la maestra un papel delicadísimo y fundamental: facilitar el correcto crecimiento del niño "padre del hombre", única posibilidad de futuro. Para poder comprender el papel que desempeña la maestra es necesario en primer lugar delinear la función de la educación y el concepto específico de escuela (y también el de ciencia pedagógica) de Montessori: de hecho la maestra es parte integrante de su modelo de escuela. Empecemos basándonos en sus palabras. "Ante nuestros ojos aparece una nueva imagen – escribe Montessori en La mente absorbente en 1949 – era el Hombre que surgía, el Hombre que revelaba su verdadero carácter en su libre desarrollo... Nosotros, como profesores, podremos ayudar como los siervos que ayudan al patrón en una obra que ya ha sido realizada. Nos convertiremos en testigos del desarrollo del espíritu humano, del emerger del Hombre Nuevo, que no será víctima de los hechos sino que... será capaz de dirigir y plasmar el porvenir de la sociedad humana". A través de estas palabras (escritas en 1949, y por lo tanto teniendo todavía muy presente la tragedia de la II Guerra Mundial) se intuye que la educación en Montessori es un proceso profundamente interior, una reconstrucción cultural y espiritual al mismo tiempo. Podemos decir que es todo un renacimiento, una purificación no solo relacionada con la ignorancia sino que atañe también a un hombre que se ha manchado con todo tipo de pecado. Son palabras de las que emana con evidencia una fe en la educación no solo entendida como alfabetización sino también como modo de rescate del hombre, un rescate que es posible sólo História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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por medio del niño, portador de inocencia, y si correctamente encaminado también portador de una visión de la existencia basada en un valor fundamental, el valor de la vida, algo que la sociedad contemporanea de Montessori había demostrado no respetar. " El mecanismo social -dice Montessori- tendrá que adaptarse a las necesidades inherentes a la nueva concepción (de la educación): que hay que proteger la vida. El respeto de la vida como valor fundamental en la educación es, por lo tanto, algo central: esto introduce en el pensamiento de Montesori un gran impulso irénico, evidente y explícito en la última parte de su producción. Llegados aquí, es necesario realizar una serie de precisiones. Una afirmación perentoria como "el mecanismo social tendrá que adaptarse" parece presuponer en Montessori la esperanza de una acción efectiva a nivel práctico-político. ¿Cómo podía en aquel momento Montessori pensar sin caer en la ingenuidad que una sociedad cualquiera, traumatizada por la tragedia de una guerra, pudiese prestar atención a sus palabras? Además, dado que el método de Montessori se delineaba cada vez más como un método de élite y no como algo para aplicar en una escuela generalizada, ¿ cómo es posible que ella pudiese hipotetizar una influencia de tal envergadura en el conjunto de la sociedad? Responder a esta pregunta significa acercarse al núcleo del pensamiento de Montessori, a lo que podemos definir como su "utopía científica": cuando el carácter científico del método sea evidente y objetivo, nadie podrá negar la central importancia de la educación y, por lo tanto, nadie podrá negarse a proteger la vida, en cuanto ésta sería el concepto clave de una idea de educación que habrá sido capaz de demostrar su verdad objetiva. El aspecto en el que Montessori hace fuerte hincapié es exactamente éste: la expectativa de una evidencia científica de su propio pensamiento, de un cientificismo capaz de evidenciar lo que debe ser y lo que no puede negarse. Es por esto que el conocimiento del niño tiene que ser algo difundido de tal modo que nadie pueda lavarse las manos alegando ignorancia: "este História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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conociemiento del desarrollo psíquico del niño tiene que ser ampliamente difundido: sólo entonces podrá la educación adquirir una nueva autoridad y decirle a la sociedad: estas son las leyes de la vida; no podéis ignorarlas y debéis actuar conforme a ellas porque indican una serie de derechos del hombre que son comunes a toda la humanidad". Bajo esta óptica, carece de importancia que a las escuelas Montessori vayan sólo unos pocos y no todos: de hecho, estas escuelas, comparables, como veremos, a verdaderos laboratorios para la construcción científica de la educación, asumen el papel estratégico de contribuir a la definición de esta realidad cientifica que más tarde o más temprano sabrá imponerse por doquier. El mito de la ley absoluta, exacta e indiscutible, la ley científica, es de esta manera vuelto a formular por Montessori – no sin razón formada en el positivismo- dándole una fuerte carga utópica, con la esperanza de construir un mundo mejor gracias a una pedagogía que finalmente será respetada al ser considerada una ciencia. Desde este punto de vista se comprende perfectamente su esfuerzo, enfocado de tal manera que dé a la reflexión pedagógica una autonomía y un preciso papel cognitivo/científico, en particular, y con no poca preocupación y al mismo tiempo un lúcido rigor lógico, con relación a la inminente psicología. Destaca claramente este esfuerzo en las paginas de Autoeducación, donde Montessori pone en duda la capacidad cognitiva de la psicología experimental afirmando que, sin la ayuda de la pedagogía, la psicología no podría llegar a ninguna parte, dado que no es capaz de llevar a cabo correctamente lo que se propone: medir la psique del niño. En las páginas anteriormente citadas, a los test de Simon y Binet se les juzga sin ambiguedad como "arbitrarios y superficiales" y se motiva esta grave afirmación con el hecho de que " para determinar con lógica las diferencias individuales tiene que haber un término constante". Sin esta constante, sin este parámetro común, la observación es casual y História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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superficial y no mide nada real. Por lo tanto, escribe Montessori, el hecho psíquico P es la suma de dos factores: una incógnita X (la diferencia individual) y una constante E, representada por el método educativo. Para poder evaluar las diferencias individuales es necesario haber ofrecido a todos de antemano las mismas posibilidades educativas y los mismos instrumentos de desarrollo dado que el niño es una mente absorbente que se construye a sí mismo y que crece absorbiendo desde la cuna el ambiente y la cultura que le rodea." El hombre es una fusión de su propia personalidad y de su educación, entendiendo por educación también una serie de experiencias que se puedan llevar a cabo. Estas dos cosas no se pueden separar en el individuo: la inteligencia sin el conocimiento es una abstracción". Por lo tanto, también la inteligencia se construye si existen las posibilidades para que esto suceda, de lo contrario, la inteligencia no surge. He aquí teorizada la diferencia neta entre psicología y pedagogía, y también la firme prevalencia, a su modo de ver, de la pedagogía con respecto a la psicología:"la pedagogía determina experimentalmente los medios de desarrollo y el como aplicarlos en relación a la libertad interior; la psicología estudia en la especie o en el individuo las reacciones de la media o individuales". Por lo tanto, la psicología, dado que estudia las reacciones, tiene que trabajar con un material que, por decirlo de algun modo, haya sido preparado previamente por la pedagogía. Sintetizando: no hay psicología sin pedagogía.

El laboratorio científico: la escuela Visto lo anterior, debemos adentrarnos aún más en la lógica científica de la visión pedagócica de Montessori para poder comprender qué papel desempeña la maestra dentro de esta lógica. Toda ciencia – sostiene Montessori- para poder llegar a conocer tiene que contar con un "gabinete científico", un laboratorio en el que observar lo que el científico quiere História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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transformar en ley. Es así que trabaja el biólogo, el cual tras observar la vida, debe recrearla in vitro si quiere que sus observaciones tengan validez científica. Para llevar esto a cabo necesita una figura especial que es el < preparador licenciado>. "Para observar una célula en movimiento son necesarios pequeños vidrios con una cavidad para recoger la gota, es necesario tener preparadas 'soluciones frescas' donde al sumergir las células vivientes, estas puedan vivir, es necesario tener terrenos de cultura, etc. Debido a todo lo anteriormente dicho existen empleos especiales, como el de los llamados 'preparadores' los cuales no son asistentes o ayudantes del profesor sino empleados que en otros tiempos eran siervos superiores más tarde se conviertieron en obreros de categoría superior y hoy en día son casi siempre licenciados. De hecho, desempeñan una función extremamente delicada: deben poseer nociones de biología, nociones de física y química y además cuanto más preparación cultural tengan análoga a la de los investigadores más rápido y seguro será el camino de la ciencia". Continuando con la polémica que mantiene con la psicología experimental, Montessori afirma que " resulta extraño concebir que entre tantos gabinetes naturalistas solo el de 'psicología experimental' haya podido prescindir de una organización para preparar a lo sujetos a observar, los psicológos creen que preparan a los 'sujetos' organizando con palabras la espera y la atención y explicando a los sujetos como deben proceder para responder al experimento... En fin, hoy en día el psicólogo procede del mismo modo que un niño que atrapa una mariposa mientras vuela, la observa durante un instante y después la vuelve a poner en libertad". Por lo tanto, el psicólogo con sus palabras lejos de anclarse en una sólida visión científica se limita a seguir una especie de 'sentido común', creyendo con ingenuidad que para medir la psique del ser humano sea suficiente echar una rápida mirada sin preparar las condiciones del experimento. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Por el contrario, si la pedagogía quiere ser una ciencia, ésta debe poseer un rigor en el método y la posibilidad de ponerlo en práctica en un laboratorio. El científico necesita no solo un laboratorio sino también un ambiente que sea ficticio y ordenado pero que se perciba como similar al natural donde los que viven en este laboratorio durante el experimento son seres humanos, de tal modo que las reacciones que se observen sean atendibles y los hechos observables, es decir, que no sean casuales sino determinados científicamente. No es, por lo tanto, posible observar casualmente a cualquiera que entre en este laboratorio – como hace el psicólogo- sino que es necesario preparar el ambiente y a los sujetos que con este ambiente interaccionan. Obviamente este laboratorio para la pedagogía es la escuela: no una escuela abandonada al caso sino una verdadera escuela/ laboratorio construida siguiendo los parámetros adecuados para la observacion sistemática por parte del científico. Es por esto que hace falta alguien que sea capaz de idear y de construir el material y el ambiente y además tambien hace falta alguien que sepa facilitar con sumo cuidado la interacción entre los sujetos y el ambiente/material.

La maestra Esta figura, es por supuesto, la maestra, figura a la que Montessori define como paralela al preparador licenciado. No se trata de lo mismo a todos los efectos, dado que la maestra entra en contacto vivo y constante con la vida dentro del laboratorio y es, a su modo, responsable humana y científicamente de esta vida. Se demuestra, de hecho, como algo fundamental " el cuidado que hace falta cuando se le presentan al niño los medios de desarrollo y sobre todo la atención prestada al respeto de su libertad, condiciones necesarias para que los fenómenos psíquicos se manifiesten y que puedan constituir un 'material de observación' veraz. Todo esto lleva consigo un ambiente especial y una História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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preparación de personal práctico, que forman un conjunto infinitamente superior, por lo que a complejidad y a organización se refiere, con respecto a los gabientes naturalistas comunes. Este gabinete tendrá que ser la escuela más perfecta que se pueda obtener con métodos científicos donde la maestra sería una figura paralela al preparador licenciado. He aquí que la maestra se convierte como el preparador técnico especializado en algo más: ésta de hecho es un técnico y sin embargo tiene que llegar a compartir con el científico no tanto la idea sino el estado de ánimo con el cual ha sido posible concebir esa idea. En resumidas cuentas, la pasión por su objeto de estudio, el amor hacia el conocimiento. Por lo tanto, se comprende que la formacion de la maestra es fundamental: "no cabe duda de que la preparación de la maestra se tenga que realizar ex novo con este modelo de educación, y de que la personalidad de la educadora y su importancia social tendrán que transformarse... en lugar de la palabra ésta tendrá que aprender el silencio; en vez de enseñar tendrá que observar; y en vez de mostrar una dignidad orgullosa de quien quiere parecer infalible tendrá que darse un baño de humildad." La maestra le tiene que ofrecer al niño el mundo con delicadeza e inteligencia al mismo tiempo. Un mundo sintetizado en ese material y en ese ambiente (preparado por el científico/Montessori) con el cual y en el cual el niño se mueve. Lo que la maestra debe hacer es guiar con paciencia al niño para que comprenda por sí mismo su camino. Es por esto que la maestra tiene que estar preparada para entender el método de Montessori: "la maestra tiene que preparase con método no con contenido". Su superioridad con relación al niño reside solo en un motivo contingente y temporáneo, motivo que fundamentalmente, se basa en el hecho de que la maestra conoce exactamente el uso del material y que tiene que, ser capaz de conducir al niño hacia un uso correcto de las cosas y del ambiente. ¿Qué modalidades História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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deberá seguir la maestra para obtener este resultado? Tendrá que acercarse al científico en su capacidad de observar al niño. Su tarea fundamental será la observación que se sustentará en la paciencia. Paciencia concebida como una larga espera que precede al revelarse del fenomeno." El impaciente –escribe Montessori- no sabe valorar las cosas: aprecia solamente sus propios impulsos y sus propias satisfacciones. El tiempo lo cuenta sólo en base al propio esfuerzo...hace falta una verdadera educación para superar este estado: es necesario dominarse y superarse a uno mismo para relacionarse con el mundo externo y apreciar sus valores...Saber detenerse con exactitud en un trabajo cuyo objetivo pueda parecer mínimo es la base para quien quiera avanzar en campo científico". Es por lo tanto la paciencia la primera característica de la profesora montessoriana, que espera que el evento se revele, evento que, en primer lugar, será 'la polarización de la atención'. Tras un movimiento desordenado, los niños poco a poco empezarán a trabajar y alguno de ellos comenzará a concentrarse y a repetir un ejercicio incluso una infinidad de veces ajeno al mundo exterior. Es exactamente esto lo que la maestra debe saber preparar y esperar, profundizando sobre todo en su propia capacidad de observación. Obviamente otro don fundamental de la maestra es la humildad: la misma humildad del científico que respeta el mundo que observa porque no lo conoce, pero que espera que éste se manifieste. Esta humildad, escribe Montessori, restituirá dignidad al papel social de la maestra, que será más cercano al papel desempeñado por el científico y que será capaz de buscar la verdad en el alma del niño. Dado que esta tarea de observación es extremadamente delicada y compleja, su comprensión/aceptación tiene que pasar, dice Montessori, a través de un verdadero proceso de iniciación: a la maestra hay que iniciarla en su papel, no educarla o prepararla. De acuerdo con lo anterior, lo que ésta debe adquirir es la capacidad que el científico posee de ponerse al servicio de la História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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naturaleza, observándola con humildad y paciencia. Entonces, ¿cómo se formará a una maestra de este tipo? "Yo iniciaría a las maestras a través de la observación de las formas más simples de los seres vivos con todos esos subsidios que la ciencia enseña, las convertiría en microscopistas, en cultivadoras de insectos...la maestra debería preparase siguiendo el metodo de la biología, entrando con sencillez y objetividad en el mismo campo en el que se iniciaron los estudiantes de ciencias naturales y de medicina... el libro de la naturaleza tiene que ser el libro de la nueva maestra, el abecedario de la escuela que tendrá que plasmarla en la misión de dirigir la vida infantil". He aquí que aparece el otro nombre de la maestra montessoriana: directora. El nombre se remite al hecho de que ésta dirige la vida infantil dando apoyo a una misión real: "el gabinete científico, el campo natural en el que la maestra se inicia en la observación de los fenómenos de la vida interior tiene que ser la escuela donde los niños se desenvuelven libres con la ayuda del material de desarrollo. Cuando la maestra se sienta enardecida de interés viendo los fenomenos espirituales de los niños y experimente una alegría serena y un deseo insaciable de observarlos, será entonces cuando ésta se sentirá iniciada. Será entonces que ésta se convertirá en 'maestra'". Por lo tanto, el papel de la maestra es delicado, importante y, todavía más, es determinante para que el científico, que observa la escuela laboratorio desde fuera, pueda construir hipótesis exactas. La maestra debe preparar las condiciones de la observación, dentro de ese laboratorio que es la escuela; tiene que dirigir con humildad y paciencia la vida que allí dentro se mueve; en fin tiene que asumirse de modo total no solo lo que el científico le enseña (el método) sino también el modo y la pasión que este último pone en su investigación, en su observación, volviéndose ella misma observadora apasionada de la vida que crece, que se despierta a la cultura dentro del laboratorio.

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Llegados a este punto, también gracias a la figura fundamental y estratégica de la maestra, el sistema científico está perfectamente estructurado. Veamoslo con un esquema detallado: -un observador externo (Montessori/científico) que ha construido las condiciones científicas del sistema - la escuela laboratorio compuesta a su vez por: - el material: construido por el científico, capaz de garantizar la transformación/crecimiento del alumno que con este material se mide y afina su propia inteligencia; - el ambiente: preparado por el cientifico, es necesario para transmitir una idea de orden y de libertad en un mundo en el que el niño se percibe como figura central; - la maestra (figura directiva y preparadora al mismo tiempo): elemento fundamental, dado que, como ya se ha dicho anteriormente, le garantiza al sistema la posibilidad de existir. Es por este motivo que es necesario iniciarla: si tuviese una mínima visión crítica con respecto a lo que se le enseña correría el riesgo de introducir el caos en el sistema científico observable y malograría todo. Ella tiene que hacer exactamente lo que se le pide, asumiendo el espíritu que mueve al científico, de modo que se cree una forma de identificación total. Es importante evidenciar que esto último no le ofrece el papel de quien decide y que la sitúa en un plano totalmente distinto. Lo suyo es una misión y "ella es una sacerdotisa", portadora de una verdad, observadora de la vida real que se libra dentro de la escuela-laboratorio.

Luces y sombras De lo dicho anteriormente se concluye que son evidentes los lados oscuros de este sistema (dentro de poco hablaremos de ellos) y que también tiene muchos aspectos positivos y, sin duda, interesantes. Veamos los aspectos positivos: História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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-en primer lugar se trata de un sistema científico, en el sentido de que es capaz de crear un movimiento circular activo entre teoría y práctica, manteniendo, al mismo tiempo, entre ambas una diferencia neta y esplícita: el científico elabora la teoría (y solamente él lo puede hacer), la maestra se mueve en la praxis (y sólo ella lo puede hacer); -es un sistema científico que engloba muchos elementos del positivismo pero sin la rigidez positivista, no se limita al mito del dato comprobado sino que se impregna de las nuevas ideas con relación a la visión científica del mundo que caracteriza el debate de los primeros años del siglo XX. El científico se sitúa contemporáneamente dentro y fuera del sistema: fuera del sistema en el sentido en que en la práctica no actúa dentro del mismo y, sin embargo, al mismo tiempo él está dentro del sistema, dado que es él quien lo ha ideado, quien ha estructurado el material, el ambiente y las ideas que la maestra aplica y con las cuales el niño se confronta. Con estas bases el movimiento circular de teoría y práctica se garantiza a través de una óptica no absoluta sino relacional: Montessori como científica es responsable de sus propias ideas. Dentro de una estructura de este tipo la maestra montessoriana se sitúa casi a la par con el ambiente, en el sentido de que ella es la portadora de la cultura que el niño hace suya así como también hace suyo el ambiente. Es una tarea muy delicada y es justo, por esto, que ella se debe atener a desempeñar su papel tal y como el científico se lo ha enseñado, para permitir un éxito adecuado en la transformación que está sucediendo en el niño. Su papel es muy cercano al del médico que tiene a su cuidado a los enfermos en comparación con el médico investigador. El médico que tiene a su cuidado a los enfermos no puede tener iniciativas propias porque no realiza trabajo de investigación y no puede hipotetizar leyes, dado que no ha podido indagar.

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Sin embargo debe saber observar al paciente y conocer lo que el medico científico le ha enseñado, si así no fuese, correría el riesgo de no saber cuidar del paciente. Un defecto en el sistema de cuidado a los pacientes lo puede resolver sólo el médico cientifico y no el médico de pacientes, del mismo modo que no lo podría corregir el profesor dado que no tiene los instrumentos ni la preparación para construir el laboratorio, pero sí la capacidad de aplicar de modo sistemático y práctico una idea ofrecida a priori. Es fundamental destacar este aspecto: el diferenciar con decisión teoría y práctica, no dejando que quepa ninguna duda sobre el hecho de que la práctica no crea conocimiento, o mejor aun, si lo crea, es sólo porque quien ha preparado las condiciones para observar, comprende que es necesario corregir la idea. Al profesor, al que no casualmente se le compara con fuerza a un técnico (el preparador licenciado), no se le permite cambiar de ningun modo las condiciones del experimento dado que el mismo profesor está dentro del experimento y tiene que conocer y tener fe en lo que el científico está haciendo. Viene de aquí la idea de iniciación: se trata de abrazar con confianza la idea de que el método escudriña la naturaleza, y solamente la naturaleza es lo que se le permite conocer al profesor – parafraseando y corrigiendo a Montessori- no es el libro de la naturaleza sino un libro simil al natural que le ha escrito el científico. No obstante, una naturalidad "natural" existe dentro de este sistema: es la incognita X, el niño. A esta naturalidad se la debe dejar libertad de expresión y de despertar a la cultura y es ésta la delicada y central tarea de la maestra, que al mismo tiempo tiene que ser consciente de que no puede decidir ni prever, ni la cantidad de tiempo necesaria ni el ritmo de ningún niño. La cantidad de tiempo necesaria y el ritmo que están fuertemente direccionados por la relación subjetiva de cada niño con el material: "cada niño se entretendrá con el objeto elegido durante el tiempo que quiera, y esta voluntad corresponde a la necesidad de íntima maduración del espíritu, maduración que História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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necesita un ejercicio constante y prolongado en el tiempo. Ningun guía, ningún maestro podría adivinar ni la necesidad íntima de cada alumno ni el tiempo necesario de madurez: dejando al niño libre, todo esto, guiado por la naturaleza, se nos revela". La maestra no puede saber de antemano que es lo que sucederá y, por lo tanto, sólo tiene que preparar el ambiente para que las reacciones se lleven a cabo. Esto es una aportación muy positiva a la educación del niño que, a menudo e incluso en nuestros dias, se considera que se puede encasillar dentro de una previsionalidad absurda de lo que tiene que ser y de los tiempos que hay que respetar. Sin embargo, el niño en el pensamiento de Montessori posee la libertad de ser la incógnita a la que hay que observar con amor, respeto, humildad y paciencia. Además de los aspectos positivos, con relación a la neta y sana distinción entre teoría y práctica de la que se ha hablado, emergen, como previamente anticipado, algunos aspectos que pueden llegar a ser oscuros, desde el momento en que el sistema de Montessori pasa de ser un estímulo rico de fecundas paradojas a convertirse en una jaula absoluta e indiscutible, sobre todo por lo que al papel de la maestra se refiere: ésta no posee libertad de acción y casi ni de pensamiento porque cualquier proceder que sea fruto del caso, libre, corre el riesgo de arruinar el experimento que se está llevando a cabo en 'el gabinete científico'. En ciertos aspectos es una figura similar a la del guardián de la república platónica, está encasillada en un papel que nunca podra permitirse alterar so pena de que se venga abajo todo el sistema. Es fundamentalmente por esto que hay que iniciarla y no educarla, porque no puede tener ideas distintas a las del científico. Igual de peligrosos, en su ambiguedad, resultan términos de los que Montessori hace uso a menudo: apostolado, misión, iniciación, etc. De todos modos, considero que es posible y útil poner entre paréntesis estas derivaciones para que puedan emerger aspectos del discurso que puedan contribuir a definir con términos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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científicamente sólidos el discurso acerca de qué debe ser la educación y cuál debe ser el papel del profesor especificamente. Además, es posible, por lo menos en gran parte, explicar estos aspectos forzados a través del particular contexto histórico en el que se elaboraron: el papel de la maestra durante los primeros años del siglo XX dista mucho del papel que le da Montessori. Aquí se trata – como la misma Montessori afirma- de ofrecerle a la figura de la maestra un nuevo papel social, el cual resurge con una mayor respetabilidad justo porque se acerca notablemente al científico y se hace cargo de su proyecto y de la posibilidad de realizarlo. Esto era algo impensable para las maestra de la época. En resumidas cuentas, había que estimular al máximo la carga motivacional, apostando por un papel que había que conquistar no con una 'simple' educación práctica sino que había que asumirlo como una vocación y desempeñarlo como una misión científica. En este sentido, es necesario retomar el parangón con los guardianes de la república platónica: hay parecidos pero también hay una profunda diferencia que a este punto es necesario explicitar. Los guardianes se someten a un proceso de naturalización de la educación que les lleva a creer que han nacido así; sin embargo a la maestra montessoriana se le llama para que sea consciente del papel 'bloqueado' que tendrá que asumir. Bajo esta óptica, la introducción de una dimensión vocacional está íntimamente unida a este paradójico cambio de condición: el asumir totalmente la concienciación de que el propio papel 'bloqueado' es una parte vital y ensencial del proyecto que se está llevando a cabo. La maestra sabe desde el principio que su figura es fundamental dado que posee una peculiar y reconocida dignidad científica (en la escuela-laboratorio) y social (para poder construir un mundo donde reine la paz partiendo de la posibilidad más grande que poseemos: el niño). Enjaulado dentro de una visión educactiva que no es la suya, el profesor montessoriano no puede ser otra cosa que una especie de sacerdote que cree con fuerza en su propia misión: sacar História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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adelante el verbo del científico, aparentemente mudo y ausente pero, en realidad, acechante en la escena del laboratorio. Con todo, esto no es una contribución aséptica a la ciencia-técnica. Se trata más bien de una labor de altísima moralidad: referir y difundir el respeto hacia un valor fundamental, el de la vida, como 'centro de gravedad permanente', interior para un –Hombre nuevo- y exterior o por así decir oficial para -el nuevo mundo-. En resumidas cuentas, Montessori partiendo de una formación decididamente positivista, nunca deja de repensar su propia obra, siendo capaz de ofrecer a esta ciencia positivista, a la que siempre ha sostenido coherentemente y con fuerza, una pasión y un corazón. Pasión que la misma maestra (el técnico) tiene el deber de abrazar si efectivamente quiere ser maestra. Se desmorona por lo tanto la idea del técnico neutral: el técnico tiene que implicarse no desbarajustando el mundo que encuentra en la escuela-laboratorio sino simplemente amándolo, respetándolo y observándolo con cuidado, con atención y con dedicación; aun más, con humildad y paciencia como habría dicho Montessori. Por lo tanto, o es capaz de entrar con pasión en el mundo que debe dirigir, haciendo suya la mirada de amor del científico, o no es digno de estar dentro de ese mundo. Esta pasión y también la posibilidad de conocer el pensamiento del científico, salva a la maestra montessoriana de ser totalmente igual a los tristes guardianes de la república platónica y le ofrece la oportunidad de comprender el sentido y la importancia de la verdadera misión que está llevando a cabo. También le ofrece una nueva idea: que su papel es fundamental porque irreemplazable. En resumidas cuentas, no se puede, segun Montessori, llegar a ser un profesor de forma casual: hace falta formarse, prepararse, estudiar y ejercitarse. No es, por tanto, una figura que cuenta poco sino una figura central para que la escuela pueda existir, para que se pueda conocer al niño y para que la sociedad se pueda salvar.

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Conclusiones Lo que he expuesto anteriormente es obviamente mi lectura de la visión montessoriana de la maestra, visión que ubica a la maestra en el centro de un no solo complejo sino también sutil sistema científico con las luces y sombras que hemos visto. Se trata de una revisión interpretativa que he construido a partir de sus testos y en la cual he intentado destacar los elementos estructurales que aun hoy me parecen útiles, es más, decididamente útiles, por un lado, para la formación de la maestra y en general del docente y por otro lado, para la construccion de una teoría educativa adecuada. Recatálogo para recordar los principales elementos: - en primer lugar la destacada diferenciación que Montessori marca entre teoría y práctica: ella las diferencia, como hemos visto, aunque sin separarlas del todo, pero dejando una especie de hilo invisible, hilo que deben seguir el científico y la maestra con modalidades y papeles distintos; - la necesidad de una idea allá donde se quiera hacer escuela: sin un pensamiento detrás no se puede construir algo que tenga sentido, que tenga una finalidad intrínseca y un carácter científico estructural; - el respeto hacia lo que Montessori define como la incognita X, es decir, el niño: en sentido lato podemos hablar del alumno. Ni la maestra ni el científico se pueden permitir prefijar o delimitar los resultados de cada niño. Potencialmente la excelencia es para todos, sin excluir a ninguno; - el jaque mate de la neutralidad: especialmente cuando la relación es con seres humanos es un sinsentido pensar que existan técnicos capaces de traspasar nociones de manera aséptica y neutral. El docente es un técnico, en el sentido de que no es un científico y sin embargo su humanidad y su espiritualidad se tienen que situar en un primer plano si quiere conocer y

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desenvolver lo mejor posible su propio trabajo. De todos modos, la verdadera comprensión pasa siempre a través de la pasión; - la activación de la responsabilidad de la maestra y del cientifico. Este punto pasa a través de la concienciación por parte de la maestra del delicado papel que desenvuelve: ser la persona que facilita y dirige el despertar cultural por parte del niño. Concienciación que debe transmitir el científico; - último pero no menos importante, el respeto a la vida como valor fundamental y objetivo de la educación. Este término puede parecer evanescente a la hora de plantear un discurso científico. Sin embargo y sobre todo al ubicar esta afirmacion en los años posteriores a la guerra nos encontramos con dos aspectos importantes: - la voluntad de oponerse a la < educacion a la muerte> que había prevalecido en los totalitarismos, los cuales constituían la negación absoluta de cualquier posibilidad de educación o de reflexión científica acerca de ella. En este sentido la llamada a la vida es una presuposición para plantear nuevamente un discurso científico. La necesidad de ofrecerle a la ciencia un sentido y una finalidad al hombre. Considerando este punto tan delicado, vale la pena recordar que en esos mismos años, un científico de las así llamadas ciencias exactas (nobel de física en 1933), Erwin Shrodinger da como título a su propio trabajo ¿Qué es la vida? buscando una respuesta científica que supiese conjugar un acercamiento técnico/especializado a una busqueda más general del sentido del ser humano.

Alessandra Avanzini es profesora de Historia de la pedagogía en la Universidad de Milán y de Didáctica y Pedagogía especial en la Universidad de Ferrara. De sus publicaciones destacan: La musica. Una dimensione educativa, Bologna, 2001; Apologia História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 31-51, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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della pedagogia, Milano, 2003; Didactica. Teoria e prassi, Tirrenia-Pisa, 2006; L'educazione attraverso lo specchio, Milano, Angeli, 2008; (con Luciana Bellatalla) Peter Pan. Il racconto, il mito, il senso educativo, Milano, Angeli, 2009.

Recebido em: 15/07/2010 Aceito em: 20/09/2010

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QUALIDADE DA EDUCAÇÃO E AVALIAÇÃO DO RENDIMENTO ESCOLAR NA REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS (1944-1964) Berenice Corsetti Dilmar Kistemacher

Resumo Analisamos a qualidade e a avaliação da educação a partir de artigos da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) no período de 1944 a 1964. Constatamos que a escola, enquanto instituição sistemática deveria atingir, de modo eficiente, seus fins e objetivos. Verificamos que o rendimento escolar era não só um desejo, mas um princípio estabelecido para a escola. O diagnóstico dos problemas educacionais seria verificável, de modo eficaz, mediante a adoção de exames precisos e cientificamente objetivos. Os artigos difundiram crenças e valores que contribuíram para afirmar uma concepção educacional calcada no modelo da sociedade capitalista da época. Palavras-chave: RBEP; avaliação da educação; qualidade do ensino; homogeneização de classes; instrução programada. QUALITY OF EDUCATION AND SCHOOL PERFORMANCE EVALUATION IN THE BRAZILIAN JOURNAL OF PEDAGOGIC STUDIES (1944 -1964) Abstract We have analyzed the quality of education and evaluation using articles from the Brazilian Journal of Pedagogic Studies (RBEP) from 1944 to 1964. Since schools are systematic institutions, we have been able to see that they should efficiently reach their purposes and objectives. We have verified that school performance was not just a wish, but also a principle established by schools. The diagnosis of the educational problems would be effectively verifiable by means of adopting precise and scientifically objective exams. The articles have spread beliefs and values that have contributed to affirm an educational conception based on the capitalist society model of that time. Keywords: RBEP; educational evaluation; quality of education; homogeneity of classes; programmed instruction.

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54 CALIDAD DE LA EDUCACIÓN Y EVALUACIÓN DEL RENDIMIENTO ESCOLAR EN LA REVISTA BRASILEÑA DE ESTUDIOS PEDAGÓGICOS (1944-1964) Resumen Hemos analizado la calidad y la evaluación de la educación a partir de artículos de la Revista Brasileña de Estudios Pedagógicos (RBEP) de 1944 hasta 1964. Hemos constatado que la escuela, puesto que es una institución sistemática, debería atingir sus fines y objetivos de manera eficiente. Hemos verificado que el rendimiento escolar no era solamente un deseo, sino un principio establecido por la escuela. Se verificaría el diagnóstico de los problemas educacionales eficazmente adoptándose exámenes precisos y científicamente objetivos. Los artículos difundieron creencias y valores que contribuyeron para afirmar una concepción que se estribaba en el modelo de la sociedad capitalista de la época. Palabras clave: RBEP; evaluación de la educación; calidad de la enseñanza; homogenización de clases; instrucción programada. QUALITÉ DE L´ÉDUCATION ET ÉVALUATION DU RENDEMENT SCOLAIRE DANS LA REVUE BRÉSILIENNE D´ÉTUDES PÉDAGOGIQUES (19441964) Résumé Cet travail présente une analyse de la qualité et de l'évaluation de l'éducation à partir d'articles de la Revue Brésilienne d'Études Pédagogiques (Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos - RBEP) dans la période de 1944 à 1964. Le contenu des articles mène à constater que l'école, en tant qu'institution systématique, devrait atteindre, de façon efficace, ses fins et ses objectifs. Le rendement scolaire n'était pas seulement un désir, mais un principe établi pour l'école. Le diagnostic des problèmes éducationnels serait vérifiable, de façon efficace, par l'adoption d'examens précis et scientifiquement objectifs. Ces articles ont diffusé des croyances et des valeurs qui ont contribué à l'affirmation d'une conception éducationnelle appuyée sur le modèle de la société capitaliste de l'époque concernée. Mots-clés: RBEP; évaluation de l'éducation; qualité de l'enseignement; homogénéisation de classes; instruction programmée.

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Introdução Este trabalho apresenta os resultados parciais de pesquisa mais ampla que vimos realizando sobre a problemática do rendimento escolar e sua avaliação no Brasil, dos anos de 1930 aos dias atuais. Foram utilizadas fontes históricas de tipo documental. Este texto trata de parte da investigação que tomou como fonte os artigos publicados pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP), tendo como recorte temporal o período de 1944, ano da fundação do periódico, até o ano de 1964, momento da ruptura política no Brasil, quando da deflagração do golpe civil-militar. No centro do estudo estão as concepções sobre avaliação e qualidade da educação expressos nos artigos da RBEP, que foram selecionados da Seção Ideias e Debates, conquanto a Revista tenha sido considerada como produto de um contexto social mais amplo e estudada à luz da conjuntura histórica em que se encontrava inserida. O interesse pela qualidade da educação, aplicado ao rendimento escolar dos alunos nos distintos níveis de ensino, especialmente da rede pública, se insere no contexto das mudanças político-econômicas e sócio-culturais experimentadas no Brasil desde a República Velha. Tais mudanças influenciaram tanto as políticas públicas, quanto a compreensão sobre a qualidade do ensino e, portanto, sobre os processos de avaliação do sistema educacional brasileiro, com destaque maior na atualidade, através dos processos de avaliação de larga escala. As concepções sobre a educação escolar são resultado de um conjunto complexo de valores e interesses sociais, sendo culturalmente elaboradas e difundidas pela sociedade numa determinada conjuntura histórica. Nessa perspectiva, os artigos da RBEP foram tomados como discursos de um "sujeito coletivo", situados no seu contexto de produção. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Sob o ponto de vista metodológico, optamos por trabalhar com a metodologia histórico-crítica, procurando articular texto e contexto, analisando os documentos históricos que se constituíram em fontes para nosso trabalho numa perspectiva dialética. Assim, a consideração do cenário histórico foi fundamental para que os textos que investigamos pudessem ter sentido e permitir uma compreensão adequada do assunto que estudamos.

1. O contexto sócio-histórico e educacional O período investigado abarca os anos de 1944 a 1964. Ele compreende o término do Estado Novo e se estende até o golpe civil-militar. Ele significou, apesar dos limites dados pela conjuntura política e social, uma experiência democrática da história brasileira. Outrossim, foi o momento do populismo, política que visou conciliar os interesses da burguesia e as reivindicações dos trabalhadores operários. Boito Jr. (1982) afirmou que a política e a ideologia populistas são, até o presente, uma realidade atuante na formação social brasileira. Ele seguiu afirmando que "o que ocorre é que, no período 1930-1964, é o único período da história do Brasil no qual a política populista afirma-se como elemento específico definidor da política de desenvolvimento do Estado (burguês) brasileiro" (p. 21). A conjuntura política, econômica, social e cultural instaurada após a revolução de 1930 fortaleceu o sentimento de nacionalidade no Brasil. Esse sentimento estava vinculado ao desejo de garantir a autonomia do país, via o desenvolvimento econômico de base industrial. Vargas foi conduzido ao poder por grupos heterogêneos, que aspiravam a diferentes interesses. Sua habilidade política de realizar concessões aos diferentes grupos manteve-o no poder. Mas essa política de "favorecimentos" foi paulatinamente acirrando o radicalismo dos diferentes grupos Diante das reivindicações, que se tornaram freqüentes, Vargas História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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criou a Lei de Segurança Nacional, a fim de neutralizar as manifestações tanto dos operários, quanto da oposição política. O projeto de desenvolvimento econômico via industrialização, visto como mecanismo propulsor das mudanças econômicas e sociais, encontrou apoio das camadas médias, das Forças Armadas e dos empresários. Mas a burguesia industrial não tinha capital para investir na sua implantação. O foco econômico passou a ser a industrialização do Brasil. O ensejo de substituir a economia de importação pela produção interna e, ainda, a nacionalização das indústrias estrangeiras, esteve presente na proposta política do governo Vargas. Apesar da defesa da indústria nacional houve, ao lado do governo brasileiro e de grupos econômicos nacionais, investimentos por parte do governo norteamericano. O incremento dos investimentos na indústria nacional, embora representasse a possibilidade de um desenvolvimento autosustentado, favoreceu a monopolização interna da economia nacional. Contudo, Mendonça (1995) aponta que as mudanças, até então apresentadas, "não teriam sido possíveis [...] sem a participação daquele que foi o elemento chave da industrialização brasileira do período: o Estado" (p.41). Este período foi essencialmente marcado por um dirigismo econômico, afiançado por meio de políticas públicas. A expansão industrial e o processo de modernização e urbanização do país implicaram o rearranjo do mundo do trabalho, era preciso uma legislação trabalhista que se impusesse a fim de controlar a crescente massa de trabalhadores operários que vinha exigindo melhores condições de trabalho e de remuneração e reivindicando melhores condições de vida. Assim, a política trabalhista exerceu papel fundamental no sentido de assegurar o "status" do governo central junto aos trabalhadores. Isto foi possível através da publicação de leis trabalhistas, que culminaram, em 1943, com a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), e ainda, com a construção simbólica, através dos meios de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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comunicação, do presidente Vargas como "pai dos pobres". As leis então promulgadas representaram, de um lado, certas reivindicações dos trabalhadores e, de outro, favoreceram o controle por parte do Estado, que foi assegurado pelo imaginário social construído a partir da política trabalhista e da propaganda oficial, a fim de dar legitimidade às ações adotadas pelo Estado. A gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação contribuiu para atenuar o impacto das medidas autoritárias adotadas pelo governo central, no período do Estado Novo. Nesta direção se faz necessário compreender de que forma as instituições e os aparelhos do Estado foram usados na construção da "nova ordem", seja pelo consenso, seja pela coerção, e, neste sentido, o papel então destinado à educação nacional. A ação de Capanema foi fundamental na elaboração de um projeto político para a educação brasileira. A política adotada pelo Estado trouxe implicações não apenas na afirmação de uma estrutura reguladora para o sistema educacional, seu teor abrange também a formação de quadros de interesse do Estado, a preparação da força de trabalho e ainda a construção de uma identidade nacional coletiva. O período que sucedeu o Estado Novo até o golpe de 1964, foi denominado pela historiografia de "Experiência Democrática" e/ou de "Populismo". Ele representou, para a história nacional, apesar da fragilidade política e social, o momento em que diversos atores sociais passaram a atuar, de modo mais amplo, na luta pela democracia e pelo desenvolvimento econômico e social do país. A análise realizada por Freitag (1986) sobre este período é emblemática. A autora afirmou que, A fase que vai de 45 até o inicio dos anos 60 corresponde à aceleração e diversificação do processo de substituição de importações. Ao nível político, sua expressão mais perfeita é o Estado populista-desenvolvimentista, que representa uma aliança mais ou menos instável entre um empresariado nacional, desejoso de aprofundar o processo de industrialização capitalista, sob o amparo de barreiras História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


59 protecionistas, e setores populares cujas aspirações de participação econômica (maior acesso aos bens de consumo) e política (maior acesso aos mecanismos de decisão) são manipuladas tacitamente pelos primeiros, a fim de granjear seu apoio contra as antigas oligarquias (p. 55).

O período que se inicia em 1946, dentro dos limites apontados por Freitag, representou um novo momento que teve, na direção nacional, os presidentes Eurico Gaspar Dutra, João Fernandes Campos Café Filho, Juscelino Kubitschek de Oliveira e João Belchior Marques Goulart. O contexto histórico de 1946 a 1964 foi marcado pela instabilidade política e social que se agravou a cada novo governo. Ele foi palco de conflitos e alianças entre os partidos políticos, que disputaram a supremacia do governo central. O período, então, que se estendeu do fim do Estado Novo até o momento do golpe civil-militar foi caracterizado, de um lado, por um crescimento econômico acelerado, tanto da indústria pesada, quanto da de bens duráveis. E, de outro, por problemas sociais de diversas ordens. Ele representou igualmente momentos de permanências e de mudanças, seja em relação ao mercado econômico, seja em relação à regulação da força de trabalho. Ele foi, ainda, a "experiência democrática", situada entre distintos regimes autoritários. Neste contexto sociohistórico a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos desempenhou um papel significativo para a educação brasileira. A defesa da industrialização, como garantia de desenvolvimento econômico-social e de autonomia do país, amparava-se na ideia de que a indústria seria capaz de multiplicar a oferta de empregos e assim construir o caminho para a realização da sociedade do bem-estar. Este ideal influenciou a política educacional adotada pelo governo central, uma vez que se fazia imprescindível munir a indústria com mão-de-obra qualificada, a qual seria atendida mediante a formação de quadros técnicos. Assim, ficou estabelecido o discurso recorrente de desenvolvimento História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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nacional, de progresso e de superação dos problemas sociais, via escolarização. Em sua análise, quanto aos limites da política educacional adotada pelo governo central durante o período, Rodrigues (1987) afirmou que, [...] a apreensão do que é 'funcional' aos interesses dominantes implica o desenvolvimento das funções específicas que a escola brasileira foi chamada a assumir, no contexto particular da penetração e do avanço das relações capitalistas no país, atendendo às exigências da ordem econômico-social que se consolidava (p.14 ss).

Em relação à política educacional adotada para o período, grosso modo, pode-se dizer que ela naturalizou o ideário político e econômico por meio de valores e princípios difundidos na sociedade, ou seja, o projeto nacional-desenvolvimentista, este sustentado a partir do discurso da modernização e democratização do país. O cenário nacional foi marcado, também, por diversos conflitos que expuseram, em alguma medida, os diferentes interesses políticos e ideológicos em relação à educação. Destacamos aqui o conflito que se estabeleceu em torno da defesa da escola pública e gratuita versus escola privada. Este conflito ficou expresso nos dois projetos-de-lei da LDB apresentados à Câmara. A nova conjuntura, que se estabeleceu desde o governo de Getúlio Vargas, ensejou não só uma reorganização política e econômica do país, mas também uma reorganização da escola. Esta não poderia permanecer com as mesmas funções do período anterior. Assim, foram realizadas reformas educacionais, iniciadas no governo de Vargas e que se estenderam posteriormente a ele. As reformas educacionais atenderam, em especial, às intenções do projeto de desenvolvimento econômico brasileiro. O objetivo primordial era a formação de quadros técnicos que o país necessitava para garantir o sucesso deste projeto. O sentido pragmático que foi conferido à educação, principalmente pela História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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formação de mão-de-obra, como por exemplo, os cursos técnicos e profissionalizantes, que puderam, em alguma medida, responder à demanda social e econômica que se estabelecia. As reformas empreendidas no contexto examinado encontraram correspondência com o modelo societário vigente. Neste sentido, Nogueira (1991) afirmou que, O estudo da história da educação nesse período informa que o Estado se apoiava na ideologia da Escola Nova, enquanto dava respaldo à política populista e nacionaldesenvolvimentista, mas, por outro lado, atendia ao setor privado, religioso e laico, enquanto mantenedores do dualismo e dos elementos de controle do meio social (p. 159).

2. A RBEP e a construção de princípios educacionais A fundação da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos ocorreu durante a vigência do regime ditatorial do Estado Novo. O lançamento do periódico, provavelmente, esteve relacionado a uma possível mudança nas diretrizes políticas do regime de exceção vigente, no sentido de uma abertura para a liberdade de expressão. Em junho de 1944, é editado o primeiro número da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos - RBEP. Ela surgiu sete anos após a criação do INEP, como uma sugestão do ministro Gustavo Capanema ao professor Lourenço Filho, seu primeiro diretor. Em sua análise sobre a Revista, Brito (2008) enfatiza que Lourenço, assim como Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, "tinha a percepção nítida da eficácia de instrumentos editoriais para a divulgação de ideias e formação de um pensamento criativo, transformador" (p. 33). Em seu discurso, impresso na "Apresentação" do primeiro número da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, o Ministro da Educação Gustavo Capanema afirmava que a ela, entre outros objetivos, pretendia "fixar, à luz dos princípios gerais História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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hoje indiscutíveis [...], os conceitos e normas especiais que devam reger o nosso trabalho nos vários domínios da educação" (id ib). Certamente, a Revista contribuiu para a formação de uma mentalidade pública acerca da educação. Sob a liderança de Anísio Teixeira o Instituto passou a focalizar seu trabalho no âmbito da pesquisa educacional. Anísio defendia, entre outras coisas, que a educação deveria atender às demandas de modernização do país e servir como instrumento da democracia. Dois textos de Anísio Teixeira, "Discurso de Posse", no Inep em 1952, e "A administração pública brasileira e a educação", de 1956, respectivamente, versam sobre os princípios que norteariam o Instituto como centro de pesquisa e sobre o papel do Estado em relação à educação. Ele soube explorar produtivamente o que Mendonça (2008) chamou "de caráter hibrido do órgão, transformando o INEP em uma espécie de miniministério no interior do próprio MEC [...]" (p. 112). Nesta direção Moraes (2008) afirmou que, [...] apesar das mudanças de direção, de objetivos e de políticas pelas quais passou o Inep, e ainda que, por motivos casuísticos, às vezes, tenha exercido o papel de executor de políticas públicas, o Instituto nunca abandonou suas funções primordiais de documentação, pesquisa e disseminação de informações educacionais (p. 9).

No tripé da vocação do Instituto, pesquisa, documentação e disseminação, a RBEP exerceu um papel singular na disseminação de concepções e valores relacionados ao rendimento escolar, à avaliação e à qualidade da educação brasileira. E, a partir do reconhecimento de que a Revista exerceu esse papel, debruçamo-nos sobre ela, a fim de analisar os artigos, buscando articular texto e contexto, para realizar inferências sobre os discursos produzidos e disseminados à época. Gandini (1990) apontou que foram muitos os elementos que constituíram a conjuntura de criação da RBEP e a sua linha História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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editorial. Entre os diversos elementos destacam-se as características pessoais e políticas, tanto de Lourenço Filho, quanto de Capanema e, ainda, a conjuntura social e política do período. Apesar de a Revista não apresentar o nome do editor, no período que se estende da fundação do periódico, 1944, até o ano 1965, ela preservou uma linha editorial. A suposta pluralidade de concepções pedagógicas foi restringida pela expressão de "colaboração, sempre solicitada". Nesta direção, o referido autor lembrou ainda que "o termo 'solicitada' aparece até 1966. Mesmo quando a palavra 'solicitada' é retirada do texto, não é apresentado na Revista nenhum procedimento para que o leitor envie artigos" (p.195). Somente a partir do ano de 1983 apareceram na revista os procedimentos e as normas para a submissão de artigos. A estrutura da Revista foi dividida em cinco seções primárias, a saber, Editorial; Ideias e Debates, principal seção, em que eram publicados artigos, conferências, palestras; Documentação, que publicava relatórios de pesquisa, relatórios de exposições e de congresso, etc.; Vida Educacional e Atos Oficiais. E quatro seções secundárias, Informações dos Estados; Informações do Estrangeiro; Bibliografia e Através das Revistas e Jornais. No ano de 1960 foi inserida a seção secundária: Notas para a História da Educação, inaugurada com a republicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e, excluída, por sua vez, a seção Vida Educacional. A RBEP foi certamente tribuna para a defesa da escola pública e dos ideais de intelectuais vinculados a Anísio Teixeira. É conveniente lembrar que, até o ano de 1983, a Revista publicava somente artigos solicitados, o que evidencia a sua linha editorial. Nesta direção, Freitag (1986) enfatiza que "[...] toda conceituação de educação é necessariamente uma estratégia política" (p.40). Seguramente, podemos dizer que as concepções apregoadas pela Revista desempenharam uma liderança moral e intelectual e, ainda, exerceram uma influência sobre a política educacional História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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brasileira. Dito de outro modo, os discursos da RBEP foram legalmente sancionados pela instituição abalizadora, o INEP.

3. O problema do rendimento escolar: princípios e sentidos Os artigos, então, publicados na seção "Ideias e Debates", principal secção da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, constituíram-se como fonte principal para a investigação que foi desenvolvida. A escolha desta seção, em detrimento das outras, se deu em virtude de reconhecê-la como arena privilegiada para a divulgação das concepções pedagógicas e políticas sobre a avaliação e a qualidade da educação brasileira. A seleção dos artigos analisados envolveu três passos, tomando como referência a opção metodológica adotada para a pesquisa. O primeiro passo envolveu o levantamento da quantidade de artigos publicados pela Revista na seção "Ideias e Debates", a partir dos sumários das revistas, no período que corresponde os de 1944 a 1964. O segundo compreendeu o arrolamento dos artigos que, de alguma forma, abordaram a temática investigada e, o terceiro, por sua vez, consistiu na leitura e seleção dos artigos que, naquele momento, representaram o corpus mais significativo para a análise. A quantidade de artigos publicados pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, na seção Ideias e Debates, no período delimitado, é da ordem de 480 (quatrocentos e oitenta). A quantidade de artigos que versam sobre o objeto de pesquisa, avaliação e qualidade da educação, segundo nossa apreciação, é da ordem de 60 (sessenta) e, os artigos escolhidos e analisados, nesta pesquisa, são da ordem 8 (oito). Apresentamos a seguir duas tabelas que informam os elementos fundamentais dos artigos selecionados e de seus autores.

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Tabela nº. 01: Artigos Analisados. Seção: "idéias e Debates", no período de 1944 a 1964. Autor/a Revista Pg Natureza Temática Palavras-chave (ano/vol/nº) São necessários os Lourenço 1945/IV/10 04 artigo exames escolares rendimento escolar, eficácia do exames escolares? Filho ensino, aproveitamento do Armando alunos, homogeneização Hildebrand A importância do Margaret Hall 1946/VIII/23 11 artigo traduzido diagnóstico rendimento escolar, diagnostico educacional universalização, provas educacional estandizardas, homogeneização, prevenção de dificuldades, professor, Medidas de Iza Goulart 1946/IX/24 16 palestra aproveitamento medição objetiva e científica, aproveitamento Macedo escolar instrumentos objetivos, padrão, homogeneização A homogeneização Lúcia 1948/XII/34 58 monografia para homogeneização de rendimento escolar, eficácia do de classes da escola Marques técnico de classes ensino, controle, padrão, primária Pinheiro Educação qualidade do ensino Avaliação, promoção H. Martin 1954/XXII/55/ 12 artigo traduzido avaliação, promoção controle, verbas, e seriação nas escolas Wilson e seriação escolar homogeneização, currículo, inglesas. avaliação Repetência ou A. Almeida 1957/XXVII/65 13 Conferência: I repetência e reprovação, evasão, retenção promoção Júnior Congresso promoção escolar, aproveitamento e automática? Estadual de automática rendimento escolar Educação SP Os exames e seus W. D. Wall 1959/XXXIII/76 17 artigo traduzido exames educacionais aproveitamento, padrão, medição, efeitos na educação promoção, avaliação Avaliação do Leônidas 1964/XLII/96 03 artigo avaliação, avaliação, eficiência, rendimento escolar Hegenberg rendimentos e aproveitamento escolar, instrução instrução programada pela instrução programada programada Fonte: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – RBEP/INEP.

Artigo

Juscelino Kubitscheck Marechal Castelo Branco

Juscelino Kubitscheck

João Café Filho

Eurico Gaspar Dutra

Eurico Gaspar Dutra

Eurico Gaspar Dutra

Presidente do Brasil Getúlio Vargas

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Nacionalidade brasileira

brasileira Estrangeira

brasileira

brasileira

Autor/a Lourenço Filho Armando Hildebrand Margaret Hall Iza Goulart Macedo Lúcia Marques Pinheiro INEP

Instituto de Pesquisas Distrito Federal

Instrução Pública de Chicago

INEP

04

01

04

01

Referencias teóricas

Oscar Thompson, Sampaio Dória, H. Martin Wilson, Vermon, Methen, Aikin, filosofia lógica - Modelo da Columbia University

repetência e promoção automática exames educacionais, objetividade avaliação do rendimento escolar e instrução programada

avaliação, promoção, seriação

homogeneização de classes, aproveitamento do alunos, medição; ensino universitário; cinema e psicologia da criança; psicologia educacional

Robert B. Mccall; Charles Russel; Raymond Buyse; Edward L. Thorndike; Selznick Broom Bacon, Freeman, Herbart, Binet, Alice Keliher, Meyer, Billett, Rankin, Thorndike, Stern filosofia lógica e psicologia educacional (não cita teóricos)

Monroe Marian; Binet.

Medias de aproveitamento escolar; Avaliação do rendimento escolar

Pesquisadores norte-americanos

diagnóstico educacional, avaliação do rendimento escolar; psicologia; educação especial

J. Delos; Merton; Zelznick; Gouldner; Gulick; Urwick; Barnard

Exames escolares

Tabela nº. 02: Autores. Seção: "idéias e Debates", no período de 1944 a 1964. Instituição Artigos Temáticas exames escolares, escola pública, escola primária, psicologia;ensino particular; INEP 31 Estado; educação rural; formação de professores

H. Martin Estrangeira Educacional/Pesquisa 01 Wilson A. Almeida brasileira USP 17 Júnior W. D. Instituto de Educação da Estrangeira 01 Wall Unesco Leônidas brasileira Professor 01 Hegenberg Fonte: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos – RBEP/INEP.

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Dos artigos analisados, iniciamos destacando a concepção dominante de escola, ou seja, a escola como instituição sistemática e moderna deveria trabalhar para atingir, de modo eficiente, seus fins e objetivos. Ela foi construída para apresentar resultados, e resultados positivos. Portanto, concluímos que o rendimento escolar era não só um desejo, mas um princípio estabelecido para a escola. Caso ela não apresentasse eficientemente os resultados considerados satisfatórios era preciso realizar intervenções políticas e pedagógicas, a fim de corrigir eventuais falhas no sistema de ensino. A universalização da escola, para alguns autores, em resposta aos princípios da democracia, resultou em diversos problemas educacionais, principalmente o problema do baixo rendimento escolar. Segundo esta compreensão os problemas decorriam em função das diferenças naturais e/ou culturais dos alunos. No entanto, a democratização do ensino a todos os segmentos sociais representou o anseio em formar "bons cidadãos" e "bons trabalhadores", para garantir o progresso econômico e social da nação. Seguimos nossas sínteses, considerando o fato de a escola, em última instância, ter como fim promover o rendimento escolar e que este se apresentava, naquele contexto, como o principal problema da educação, conforme fora explicitado por Pinheiro (1948). Destacamos que foi defendido, de modo geral, pelos autores, que o diagnóstico era fundamental, mais ainda, era preciso para verificar o problema do rendimento. O rendimento escolar estava relacionado não só às aptidões dos alunos, mas também às práticas dos professores e, ainda, para alguns, relacionado aos diversos fatores sociais, econômicos e políticos e culturais. O rendimento, bem como o aproveitamento escolar, decorriam das diferenças naturais e culturais dos alunos, e fazia-se necessário mudar os princípios e os métodos de ensino, sem prejuízo da qualidade da educação. Portanto, por meio do História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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diagnóstico da realidade escolar poderiam ser estabelecidos programas adequados atendendo as diferenças dos alunos. Essa premissa acabou por impulsionar diversas propostas políticopedagógicas, das quais destacamos as de homogeneização de classes, e a instrução programada, defendidas por Pinheiro (1948) e por Hegenberg (1964), respectivamente. Assim, destacamos o diagnóstico escolar como um dos elementos de síntese, pois ele não foi somente defendido como imprescindível para avaliar o problema do rendimento, mas também da realidade escolar. Portanto, o diagnóstico preciso do aproveitamento dos alunos deveria primar pela precisão e segurança, a fim de aferir o mais verossímil possível os problemas da educação e dessa forma estabelecer, conforme defendido por Hall (1946), padrões curriculares de acordo com as necessidades dos alunos. O diagnóstico preciso do rendimento escolar e do aproveitamento dos alunos seria garantido pela objetividade dos exames. Registramos que o diagnóstico eficiente seria plausível em função do extraordinário desenvolvimento que havia ocorrido nos métodos quantitativos e qualitativos de avaliação, conforme observado por Hall (1948). Uma vez diagnosticado o problema do aproveitamento do aluno e do grau de domínio deste no que se refere ao conteúdo por ele estudado, seria possível não só a correção, mas também a sua prevenção e, ainda, tão importante quanto, seria possível o aperfeiçoamento dos professores, dos métodos e das práticas de ensino. Cabe mencionar em relação ao diagnóstico que por meio deste, foi verificado a relação que existia entre o aproveitamento do aluno e o trabalho desenvolvido pelos professores, seja em função dos valores destes, seja em função de sua má formação, recebida nas escolas que preparavam os professores. E, ainda, o respaldo ao emprego do diagnóstico escolar se justificava em função dos gastos públicos gerados pelos problemas educacionais.

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Intimamente relacionado ao diagnóstico os exames escolares representam uma das sínteses que extraímos dos artigos. Em relação a eles, iniciamos destacando que Macedo (1946) afirmou, segundo pensadores da época, que tudo o que existia e em certa quantidade era passível de ser medido. Dessa premissa sustentou a autora que os exames sempre existiram; os métodos e os instrumentos para realizar a avaliação é que haviam mudado. Os exames, a fim de cumprir seus objetivos, deveriam ser construídos segundo os critérios da objetividade e da cientificidade. Portanto, eles deveriam ser padronizados, possuir boa técnica, medir com precisão o rendimento escolar, quantificar os resultados aferidos e mensurar estes a partir dos princípios da estatística. Esta mensuração quantitativa deveria apresentar precisão quanto aos resultados aferidos pelos exames. Ainda em relação aos exames, podemos afirmar que foi emblemática a proposta de disseminação das provas padronizadas como o instrumento mais preciso para verificar o aproveitamento dos alunos e a qualidade do ensino. Neste sentido, foi criticado o modelo tradicional de provas, calcadas na apreciação subjetiva dos professores, que representava uma medida muito variável, ou seja, imprecisa quanto aos seus objetivos. A fim de superar a subjetividade das provas tradicionais, foi defendido pelos articulistas, como Hildebrand (1945) que, mesmo tendo negado a eficácia dos exames, nas condições apresentadas, "não supomos desnecessária a avaliação freqüente e segura dos resultados de ensino" (p. 54). Portanto, podemos afirmar que foi unânime a defesa dos exames padronizados, segundo o modelo científico vigente no período estudado. Estes testes "tipo-padrão" deveriam apresentar os seguintes critérios: objetividade, validade, confiança e seletividade. Assim construídos eles poderiam diagnosticar o aproveitamento dos alunos e a qualidade do ensino e, ainda, afiançar, a longo prazo, uma educação adequada e de qualidade.

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Quanto aos exames, podemos dizer que, em grande medida, incorporaram as concepções e os princípios oriundos das áreas da biologia, da psicologia e da estatística, como valores imprescindíveis para a educação ou, ainda, que ela apresentasse resultados positivos quanto aos seus fins. Cabe, também, mencionar dois aspectos que emergiram dos artigos, a saber, que os exames padronizados representavam uma diminuição dos gastos públicos e que a avaliação da educação deixava de ser uma tarefa periférica e passava a assumir um caráter sistemático e profissional. Da avaliação subjetiva à avaliação objetiva, a padronização dos exames passou a ser defendida como um instrumento eficaz não só para diagnosticar os problemas educacionais, como o do rendimento, mas também como possibilidade de assegurar a qualidade da educação nas escolas. Dessa premissa destacamos três propostas político-pedagógicas apregoadas para a educação, a saber, a "homogeneização de classes", a "promoção automática" e a "instrução programada", as quais tomamos como sínteses integradoras dos artigos analisados. No que se refere à homogeneização de classes, primeiramente destacamos que, para alguns autores, ela iria resolver o problema do aproveitamento do ensino, este causado pelas diferenças naturais e culturais dos alunos que se encontravam em classes não segregadas. O problema do rendimento decorreu, segundo Hall (1946), da universalização democrática do ensino. Em seguida destacamos que ela seria realizada segundo o aproveitamento dos alunos, este verificado objetivamente pelos testes de inteligência e de escolaridade. A homogeneização iria evitar o problema do rendimento, pois em turmas organizadas de acordo com as aptidões e condições, os alunos iriam aproveitar melhor o ensino, e evitaria, para os mais "bem-dotados", o desenvolvimento de hábitos negativos. Neste sentido, Pinheiro (1948) relatou a pesquisa desenvolvida por Anísio Teixeira o qual, diante do problema do História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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aproveitamento escolar, havia proposto, segundo a autora, "a reunião dos alunos em classes por suas identidades" (p. 97). Ademais, para Wilson (1954) uma classe única funcionava como um bom "instrumento de educação social" (p. 59). Quanto à "promoção automática" destacamos dois aspectos fundamentais. O primeiro foi a defesa da promoção como estratégica para resolver o grave problema da reprovação e as suas piores consequências, a evasão e retenção escolar. O segundo aspecto foi a importação do modelo britânico de promoções. Neste sentido, Almeida Jr (1957) afirmou que, para obter melhores resultados na educação, a promoção automática deveria ser acompanhada de outras medidas, das quais ele destacou: o aumento da escolaridade, o cumprimento da obrigatoriedade do ensino, o aperfeiçoamento dos professores, a mudança na concepção de ensino e a revisão dos programas, bem como dos métodos avaliativos. A promoção poderia ser realizada pelo critério da idade cronológica do aluno e, também, por intermédio dos testes padronizados que poderiam verificar o seu aproveitamento. Assim, ela contribuiria para a formação de turmas mais homogêneas, que, por sua vez, iriam melhorar o rendimento escolar e diminuir assim os custos sociais, tanto para o aluno quanto para o sistema de ensino. Portanto, nas palavras de Almeida Jr (1957), "a promoção automática se imporá como coroamento da excelência da escola e sintoma de maturidade do povo que mantém a instituição"(p.14). A instrução programada, defendida por Hegenberg (1964), sustentava que poderia garantir o rendimento escolar desejado, desde que fossem seguidos os passos "programados" no planejamento. Segundo Hegenberg a instrução programada poderia uniformizar os conhecimentos de todos mediante a seleção dos alunos de acordo com o seu aproveitamento, que seria verificado objetivamente pela avaliação programada. De modo emblemático podemos dizer que o autor expressou a visão instrumentalista da educação do contexto analisado. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Finalizamos, mas não encerramos em definitivo, nossas inferências e análise sobre as concepções e os princípios divulgados pela RBEP por intermédio dos artigos que foram aqui analisados. Outros elementos dos discursos poderiam ser contemplados como sínteses integradoras sobre as dimensões da educação por nós estudadas, porém, neste momento, as destacamos como ingredientes que, em alguma medida, repercutiram no âmbito das políticas educacionais estabelecidas no contexto estudado e, também, nas praticas pedagógicas realizadas nas escolas.

Considerações finais O estudo empreendido sobre a avaliação e a qualidade da educação a partir de artigos publicados pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, no período que se estendeu desde a fundação da mesma em 1944, até o golpe civil-militar em 1964, permitiu identificar, a partir da análise do texto-contexto, alguns princípios e concepções que foram divulgados pela imprensa pedagógica oficial. A RBEP contribuiu para a disseminação de valores que encontravam correspondência com a conjuntura mais ampla da sociedade, ou seja, com o projeto de desenvolvimento econômico e social do país, via ampliação da indústria nacional. As condições concretas do contexto estudado, geradas pelo processo histórico, favoreceram o desenvolvimento de concepções pedagógicas que estiveram alinhadas ao projeto nacional desenvolvimentista de base capitalista e, dessa forma, a modernização da escola serviu, em grande medida, como instrumento privilegiado para viabilizar este projeto. Assim, a educação foi tomada como um fator determinante para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Neste sentido, a Revista foi fundamental para difundir valores e princípios pedagógicos que corresponderam, em certa medida, ao modelo de sociedade vigente no período. Portanto, podemos dizer História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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que os discursos dos artigos analisados evidenciaram as praticas pedagógicas, sociais e culturais de seu contexto de produção. Dentre as concepções pedagógicas produzidas e apregoadas pela Revista destacamos a visão mecanicista e tecnicista da educação. Estas ficaram evidenciadas, entre outras propostas pedagógicas, pela adoção da "instrução programada", defendida por Hegenberg (1964), como o instrumento privilegiado para garantir o sucesso do aproveitamento escolar por parte do aluno. A visão instrumentalista e tecnicista da educação fundamentou-se no pragmatismo e na psicologia aplicada à educação. Estes princípios foram considerados essenciais para melhorar a qualidade do ensino e o aproveitamento dos alunos. Isto ficou expresso na defesa do diagnóstico do rendimento escolar, ou ainda, do principal problema da educação, o rendimento escolar, conforme afirmado por Pinheiro. Os indicadores de qualidade, do contexto estudado, foram construídos com base no modelo científico e nos princípios da estatística. Eles ditaram o modelo ideal, ou desejado, para a avaliação do rendimento escolar, ou seja, do aproveitamento do aluno e da qualidade do ensino ministrado pelos professores. Consideravam, ainda, que a eficiência da escola deveria contribuir para o progresso econômico e social do país. Portanto, o aprimoramento da escola estava relacionado à ordem democrática de um país moderno. O estudo do processo social e histórico de construção dos princípios pedagógicos para a educação, em especial neste momento, no que tange as dimensões da avaliação e da qualidade do ensino, evidenciaram que os artigos, por meio de da legislação de crenças e valores, contribuíram para afirmar um modelo de sociedade calcado no desenvolvimento do capitalismo, nos moldes de uma sociedade moderna e democrática, nos limites que o contexto histórico apresentava.

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Referências ALMEIDA JUNIOR, A. Repetência ou promoção automática? Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. XXVII, n. 65, p. 3-15, jan/mar, 1957. BOITO Jr. Armando. O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo. São Paulo: Brasiliense, 1982. CARNOY, Martin. Educação, Economia e Estado - base e superestrutura relações e mediações. São Paulo: Cortez, 1990. FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e Sociedade. São Paulo: Moraes, 1986, 6 ed. GANDINI, Raquel Pereira Chainho. RBEP (1944-1952): Intelectuais, Educação e Estado. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 1990. HALL, Margaret. A importância do diagnóstico educacional. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. VIII, n. 23, p. 258-268, jul/ago, 1946. HEGENBERG, Leônidas. Avaliação do rendimento escolar pela instrução programada. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. XLII, n. 96, p. 409-412, out/dez, 1964. LOURENÇO FILHO; HILDEBRAND, Armando. São necessários exames escolares? Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. IV, n. 10, p. 51-54, abril, 1945. MACEDO, Iza Goulart. Medidas de aproveitamento. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. IX, n. 24, p. 52 – 67, set/out, 1946. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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MACHADO, Lourdes Marcelino. A pesquisa educacional no Brasil: breve retrospectiva. MENDONÇA, Ana Waleska P. C. Três momentos de uma (já) longa história: o Inep na trajetória pessoal de uma pesquisadora. In: MORAES, Jair Santana (org). O Inep na visão de seus pesquisadores. Brasília: Inep, 2008. MENDONÇA, Sônia. A industrialização brasileira. São Paulo: Moderna. 1995. (Coleção Polêmica). PINHEIRO, Lúcia Marques. A homogeneização de classes na escola primária. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. XII, n. 34, p. 82-139, set/dez, 1948. RODRIGUES, Neidson. Estado, educação e desenvolvimento econômico. São Paulo: Cortez, 1987, 3 ed. SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. Campinas: Autores Associados, 2004, 15 ed. Coleção Educação Contemporânea. WALL, W. D. Os exames e seus efeitos na educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro: INEP, v. XXXIII, n. 76, p. 59-75, out/dez, 1959. WILSON, H. Martin. Avaliação, promoção e seriação nas escolas inglesas, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: INEP, v. XXII, n. 55, p. 52– 63, jul/set, 1954.

Berenice Corsetti – professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos. E-mail: bcorsetti@unisinos.br.

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Dilmar Kistemacher – licenciado em História e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos. E-mail: kistemacher@yahoo.com.br.

Recebido em: 16/05/2010 Aceito em: 20/09/2010

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 53-76, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


GÊNERO E NAÇÃO: A SÉRIE FONTES E A VIRILIZAÇÃO DA RAÇA Cristiani Bereta da Silva Maria Bernardete Ramos Flores

Resumo O objetivo desse artigo é fazer um exercício de interpretação da coleção didática conhecida como Série Fontes, de autoria de Henrique da Silva Fontes (1885-1966), como uma das leituras dadas a ler pela escola no contexto da construção da Nação republicana. Tal coleção foi distribuída gratuitamente na rede de Instrução Pública de Santa Catarina, e adotada também nos estabelecimentos de ensino privados, entre a década de 1920 até meados da década de 1950. Partimos do pressuposto que os manuais didáticos ocuparam importante função nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX, como veículos do projeto de Estado-Nação, respaldado primordialmente no ideário nacionalista. O foco principal da análise será o de perceber como nesse processo de formação de cidadãos e de construção da idéia de pátria moderna e civilizada, as pedagogias prescreviam o ethos da virilidade para almejar o progresso da Nação. Palavras-chave: gênero; nação; virilização da raça. GENDER AND NATION: THE SÉRIE FONTES AND THE VIRILIZATION OF THE RACE Abstract The aim of this article is to accomplish an exercise of interpretation of the educational collection known as Série Fontes, by Henrique da Silva Fontes (1885-1966), as one of the books given to the students by the school in the context of the construction of the republican Nation. The collection was freely distributed in the public educational system of the state of Santa Catarina, in Brazil. It was also adopted in private schools from the decade of 1920 until the decade of 1950. In this article we assume that the schoolbooks played an important role as vehicles for the propagation of the StateNation project and its nationalistic principles during the last decades of the 19th century and the the first decades of the 20th century. The focus of the analysis will be identifying the way the pedagogies which aimed the formation of citizens and the idea of a modern and civilised country prescribed the ethos of virility to achieve the progress of the Nation. Keywords: gender, nation, virilization of the race


78 GÉNERO Y NACIÓN: LA SERIE FONTES Y LA VIRILIZACIÓN DE LA RAZA Resumen El objetivo de este artículo es hacer un ejercicio de interpretación de la colección didáctica conocida como Serie Fontes, cuyo autor es Henrique da Silva Fontes (1885-1966), como una de las lecturas recomendadas por la escuela en el contexto de la construcción de la Nación republicana. Dicha colección fue distribuida en forma gratuita en la red de Instrucción Pública de Santa Catarina, y adoptada también en los establecimientos de enseñanza privados, desde la década de 1920 hasta mediados de la década de 1950. Partimos del supuesto de que los manuales didácticos cumplieron una importante función en las últimas décadas del siglo XIX y primeras décadas del siglo XX, como vehículos del proyecto de Estado-Nación, respaldado primordialmente en el ideario nacionalista. El foco principal de análisis será el de percibir cómo, en ese proceso de formación de ciudadanos y de construcción de la idea de patria moderna y civilizada, las pedagogías prescribían el ethos de la virilidad para alcanzar el progreso de la Nación. Palabras clave: género; nación; virilización de la raza. GENRE ET NATION: LA SÉRIE FONTES ET LA VIRILISATION DE LA RACE Résumé L'objectif de cet article est de donner une interprétation de la collection didactique connue comme la Série Fontes de l'auteur Henrique da Silva Fontes (1885-1966). Cette série faisait partie des lectures exigées à l'école dans le contexte de la construction de la Nation Républicaine. Cette collection didactique a été gratuitement distribuée dans les écoles publiques de Santa Catarina de même que dans les écoles privées depuis les années 1920 jusqu'à la moitié des années 1950. On part ici de la présupposition selon laquelle les manuels didactiques ont eu un rôle très important durant les dernières décennies du XIXe siècle et durant les premières décennies du XXe siècle en tant qu'instrument du projet gouvernemental qui visait l'idéal nationaliste de l'État-Nation. L'objectif central de notre analyse sera de comprendre le processus de formation des citoyens et l'établissement de l'idée de la patrie moderne et civilisée en ce qui concerne le progrès de la Nation, en faisant ainsi usage des pédagogies prescrivant l'ethos de la virilité. Mots-clés: genre; nation; virilisation de la race.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


79 Meu pai foi sempre a honra em forma humana Tinha a virtude máscula e romana, Não era austero só, - era feroz. (DELFINO, apud FONTES, 1930:27)

Interpretar o passado a partir do presente para redescobrir múltiplas relações de significados que se combinam, se contrapõem ou se afastam, mas que em seus itinerários oferecem explicações possíveis para questões formuladas no tempo. É um pouco nesse sentido que caminha a escrita deste artigo, olhar novamente a Série Fontes, coleção didática, de autoria de Henrique da Silva Fontes (1885-1966), distribuída gratuitamente na rede de Instrução Pública de Santa Catarina, e adotada também nos estabelecimentos de ensino privados, entre a década de 1920 até meados da década de 1950. Conforme lembra Carlos Humberto Corrêa: Por muitos anos as crianças catarinenses aprenderam a gostar da leitura usando os livros da Série Fontes (1995: 8). Passaram pela Série Fontes - Cartilha Popular, Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Livros de Leitura - pelo menos duas gerações, num período de recrudescimento do nacionalismo. Os três primeiros volumes da Série foram lançados em 1920 - Cartilha Popular, Primeiro e Segundo Livros de Leitura. Em 1929, o Terceiro Livro de Leitura e, no ano seguinte, o Quarto Livro de Leitura. Henrique da Silva Fontes (1885-1966), autor da Série Fontes, era Bacharel em Ciências e Letras, formado na cidade de São Leopoldo/RS, e em Ciências Políticas e Sociais, no Paraná. Homem público, ocupou diversos cargos no Estado de Santa Catarina: em 1918, foi encarregado do Serviço de Recenseamento Estadual; entre 1926 e 1929, Secretário da Viação e Obras Públicas; entre 1932 e 1934, Juiz Procurador do Tribunal Eleitoral, foi também Procurador Geral do Estado, entre 1934 e 1937 e Desembargador do Tribunal da Justiça, entre 1937 e 1946, ano em que se aposentou. Ocupou, ainda, entre os História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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anos de 1919 e 1926, o cargo de Diretor da Instrução Pública em Santa Catarina. Paralelo à sua atuação nos diversos cargos públicos de relevância política, o professor Henrique da Silva Fontes lecionou em diversos estabelecimentos escolares de Florianópolis; foi eleito Presidente Perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, membro da Academia Catarinense de Letras e um dos fundadores da Faculdade de Direito e da Universidade Federal de Santa Catarina.1 A exposição dessa breve biografia dá uma mostra da relação que Henrique da Silva Fontes mantinha com os poderes públicos estaduais e o situa como um homem das letras, mas, sobretudo como um homem público, intimamente envolvido com o contexto político e cultural da época. Isso nos permite inferir que o professor Henrique da Silva Fontes abraçou com paixão a causa da formação do Brasil e de seus brasileiros. Durante o período no qual escreve e organiza a Cartilha e os dois primeiros volumes de leitura, Henrique da Silva Fontes ocupava o cargo de Diretor da Instrução Pública do Estado. Exigindo o não reconhecimento dos direitos autorais, ele escreve no prefácio da primeira edição do Primeiro Livro de Leitura: A causa deste empreendimento foi a falta de livros de custo módico que, podendo ser adquiridos sem sacrifício pelos remediados, possam também, à larga, ser distribuídos gratuitamente entre aqueles para quem alguns tostões representam quantia apreciável (FONTES, 1920:05). A Série Fontes postulava à educação a função de plasmar o cidadão-trabalhador, responsável pela harmonia, o bem estar social e o engrandecimento da pátria. Este aspecto foi abordado pela dissertação de mestrado de Paulete Maria Cunha dos Santos (1997). O método de leitura e aprendizagem considerava que a repetição contínua de temas e ideários reconstruiriam um novo tipo de cidadão: À força de ler os livros se 1 Cf. IN MEMORIAM: Henrique da Silva Fontes. Florianópolis: Tipografia Oriente, 1966.

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aprende a doutrina que eles ensinam. Forma-se o espírito, nutre-se a alma com bons pensamentos; e o coração vem por fim experimentar um prazer tão agradável que não há nada que se compare (VIEIRA, apud FONTES, 1930:56) Passando-se os olhos pelos Primeiro e Segundo Livro de Leitura, saltam à vista o desejo do intelectual, naquele sentido sugerido por Antônio Gramsci, intelectual orgânico que enraíza a cultura hegemônica. Em sintonia com o projeto de nacionalização em curso na jovem República brasileira, os livros da Série, destinados à educação primária, reuniam um conjunto de lições, textos, fábulas e poesias de autores locais, nacionais e internacionais, com temas que valorizavam e enfatizavam o civismo, o patriotismo, a cultura e as tradições, numa abordagem centrada no ufanismo patriótico, nos valores cívicos - família, honradez, honestidade – e no culto aos hinos, às bandeiras, às autoridades e aos heróis nacionais. Claramente inspirada em autores de manuais escolares que circularam nacionalmente no final do século XIX, como Abílio César Borges e Joaquim Maria de Lacerda (SANTOS, 1997), a Série Fontes é ilustrativa do empenho da intelectualidade sintonizada com o projeto de Nação na formação do caráter viril, do bom cidadão, do vigor físico, moral, estético e mental da raça. Características almejadas na construção de um Brasil moderno. O livro didático, de modo geral, como artifício cultural, porta específicos sistemas de valores, determinadas idéias, uma cultura. Podem ser considerados importantes mediadores e produtores de "identidades", instrumentos de difusão e consolidação de aspectos culturais que conformam uma memória coletiva e afirmam padrões normativos de comportamentos. Sua circulação e distribuição permitem interpretações sobre um passado contingente, capaz de fornecer um quadro de reflexões sobre idéias e pressupostos que organizam a sociedade e as relações de poder que lhe são inerentes. Nesse sentido, o livro não pode e nem deve ser pensado em separado - tanto na sua elaboração

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quanto na sua utilização - das circunstâncias e condições históricas de seu tempo. Partimos, portanto, do pressuposto de que os livros didáticos, assim como outros produtos culturais que circulam nas escolas, são construtos social, cultural e político. A intenção do texto que se segue é fazer um exercício de interpretação da Série Fontes, de leituras dadas a ler pela escola, no contexto da construção da Nação republicana.2 O foco principal da análise será o de perceber como nesse processo de formação de cidadãos e de construção da idéia de pátria moderna e civilizada, as pedagogias prescreviam notadamente o ethos da virilidade para almejar o progresso da Nação. Acompanhamos, aqui, a idéia de que a masculinidade ocupava lugar importante na ideologia do nacionalismo no contexto das duas guerras mundiais, dos estados fascistas, nazistas, estado-novistas e também dos estados liberais (MOSSE, 1985: 153). O nacionalismo retumbante percorreu o mundo ocidental, na primeira metade do século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, trazendo para o centro das políticas culturais, os investimentos sobre o corpo físico saudável e moralizado de homens e mulheres, mas muito marcadamente sobre o caráter e a honradez dos homens, de modo inelutável. No período, o discurso sobre a crise da Europa, mais precisamente sobre a crise da cultura ocidental, enunciava como sintoma a falta de virilidade das nações ou a feminização da cultura. No Brasil, no período em questão, em meio ao discurso eugenista, à cruzada moralista da Igreja Católica, ao movimento espiritualizante do integralismo, à ideologia militarista e As reflexões apresentadas nesse artigo são recortes de investigações mais abrangentes desenvolvidas pelas autoras nas pesquisas: "De Musas e Apolos. O culto da beleza na formação do Brasil Moderno. Estética, imagem e tradição", coordenado pela professora Maria Bernardete Ramos Flores (CNPq/UFSC) e "Protocolos de civilidades: modelos de conduta pessoal e cívica em leituras escolares (Santa Catarina/décadas de 20 a 50 do século XX)", coordenado pela professora Maria Teresa Santos Cunha (CNPq/UDESC). 2

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nacionalista na perspectiva da invenção da etnia brasileira, ou do processo de modernização e civilização, os investimentos no corpo de homens e mulheres tinham, por princípio, a definição clara, ou re-definição, do que deveria ser o masculino e o feminino. Para Plínio Salgado (1949) jamais deveria haver igualdade na formação dos dois sexos. E, ainda, a mulher não deveria ser nem boneca e nem soldado, nem mulher homem e nem mulher brinquedo (SALGADO, 1949: 107). Homens e mulheres transformaram-se em objetos discursivos, reprodutores de uma prole que constituísse a melhoria da raça, de corpo energético, saudável e disciplinado (LENHARO, 1986: 79). A atenção de médicos, psicólogos, sexólogos, educadores, juristas, e de instituições como o Exército, a Igreja, a Escola, ou das artístico-culturais, como artes, cinema, coral, literatura, prescreviam a normatização da sexualidade, coibindo todo e qualquer comportamento desviante da cópula saudável e perfeita. O discurso da melhoria da raça, ou da regeneração da Nação, vinha ainda acompanhado pelo discurso da virilização da raça. O viril era tomado como um valor universal que media o grau de civilização. Viver virilmente significava viver na plenitude do vigor físico, da energia mental, do preceito das ciências, da vontade de lutar, do governo democrático e consciente dos problemas da nação. Viver virilmente era dever do cidadão. Segundo esse discurso, o Brasil carecia de virilidade. Para Mário Pinto Serva, autor do livro Virilização da raça, de 1923, para salvar o Brasil, para que este deixasse de ser "bigorna" no cenário internacional, uma nação "cavalgada", havia que se adquirir a coragem viril, olhar a face do mal, considerá-lo firmemente (SERVA, 1923: 8). O Brasil teria que dar início à fase viril, positiva, construtiva, civilizadora pela posse da razão, da ciência, do espírito prático e utilitário, do trabalho e da ordem, em contraposição à vida contemplativa, ao espírito fatalista, à morbidez, à literatura de ficção, ao devaneio, características, estas, da mentalidade atrasada e ignorante que grassava no país. Embora Mário Pinto Serva não História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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use o léxico "feminino", na afirmação viril, denega a outra parte que só podemos supor que seja a feminina. Assim, o Realismo deveria suplantar o Romantismo; a coragem e a luta venceriam o medo e a covardia; o racional venceria o místico; a energia, o trabalho, a ação e o senso prático venceriam a morbidez; o objetivo o subjetivo; o positivo, o fatalismo; o construtivo, o contemplativo; a ciência, a ficção; a síntese, o fragmentário; a integração, a dispersão. O tipo-viril, genérico, universal, é aquele que incorpora a cultura viril, regeneradora da raça. Analisar a Série Fontes, a partir desses pressupostos, talvez possa parecer para alguns uma tarefa um tanto inócua pela sua obviedade. Porém, como bem lembra Paul Veyne, uma das características do ofício do historiador e da historiadora é espantarse com o que é óbvio (1998:21). Significa resistir ao embotamento, à obliteração dos sentidos culturais do passado que ainda dotam de inteligibilidade relações e idéias que circulam e organizam o presente. A História não nasce pronta, outra obviedade. Os momentos inaugurais, fundantes de uma história nacional, são construídos e reconstruídos em consonância com discursos políticos dominantes, no interior de contextos históricos bem específicos. A Série Fontes, assim como outros livros didáticos utilizados nas escolas no passado e no presente, bem como as seleções de conteúdos a serem ensinados, atuam como mediadores entre concepções e práticas políticas culturais, tornando-se parte importante da engrenagem de manutenção de determinadas visões de mundo e de história (FONSECA, 2006:73). Diferentes pesquisadores têm reiterado a importância do lugar desses impressos para a permanência de discursos hegemônicos relacionados a uma determinada memória, em detrimento de outras possíveis. É fundamental, portanto, questioná-los como lugares de memória, formadores de identidades, lugares que evidenciam saberes consolidados e aceitos socialmente como "versões autorizadas" da História e reconhecidos como representativos de um passado comum. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Os livros didáticos ocuparam importante função nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX, como veículos do projeto de Estado-Nação, respaldado primordialmente no ideário nacionalista. Como exemplo desse ideário, podemos citar o livro Porque me ufano de meu país, de Afonso Celso, publicado pela primeira vez em 1900, por ocasião do quarto centenário da chegada dos portugueses ao Brasil. Por que me ufano de meu país, expressão do sentimento de independência, da afeição à ordem, civismo e cumprimento do dever, da moral cristã, caridade, tolerância, honradez e doçura foi referência para os intelectuais da geração coetânea na procura do caráter nacional, ou da identidade nacional. A pesquisadora Maria Helena Câmara Bastos (2002) analisa que essa obra se tornou leitura obrigatória nas escolas secundárias brasileiras, e que suas várias edições e traduções transformaram-se em uma verdadeira cartilha de nacionalidade, na Primeira República. O projeto político republicano tornou educação moral, cívica e religiosa eixo das preocupações para aqueles que almejavam o controle das relações e das estruturas sociais, como forma capaz de regenerar o país (BASTOS, 2002). Tal projeto materializa-se em diferentes práticas sob a tutela do Estado, com a instalação da República positivista, no âmbito das políticas de educação, saúde e saneamento urbano, no terreno da intelectualidade brasileira – médicos, educadores, engenheiros -, que buscava romper com o passado de atraso e propor um modelo para a formação da nova pátria, nos parâmetros dos países civilizados, arrastando consigo o retorno de paradigmas espirituais, sexuais e culturais. (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994:15-16). Nas décadas de 1920 e 1930, especialmente, o projeto educacional deixou de ser irradiado apenas pelo Estado, o debate deslocava-se do parlamento, lugar privilegiado até então, para outros setores da sociedade civil. Os educadores passaram a se reunir para debater e construir propostas baseadas em novos modelos pedagógicos. Parte desse grupo - que se propôs a pensar História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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uma nova educação -, seria responsável pelo "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova" que, embora divulgado em 1932, teve suas idéias gestadas em décadas passadas. A "Educação Nova" defendia a socialização do ensino enraizada no princípio de que a pessoa existe para a sociedade (TOBIAS, 1986: 304). Cumpre ressaltar, portanto, que os discursos relativos a este projeto educacional pautavam-se na homogeneização da cultura fundamentada na questão nacional. Era em nome da Nação que o projeto educacional devia atender ao conjunto da população (BITTENCOURT, 1990: 24-25). O projeto nacionalista do governo destinado à "educação popular" foi implantado na capital do país, à época Rio de Janeiro, e em São Paulo. Novos ideais e práticas sobre a educação disseminaram-se pelo país, por meio de cartilhas e livros que orientavam o método, as aulas e os deveres das crianças e jovens.

A nacionalização em Santa Catarina e o Professor Henrique da Silva Fontes Em Santa Catarina, a campanha de nacionalização do ensino foi implantada, em 1911, no governo de Vidal Ramos. Para assessorar a Reforma do Ensino foi contratado, em 1910, o professor paulista Orestes de Oliveira Guimarães. O objetivo da contratação de Orestes Guimarães pelo governo centrava-se na sua experiência e familiaridade com as diretrizes do ensino em São Paulo, que desde a instalação da República, projetava-se como lugar de inovações educacionais. Além disso, este professor já havia travado contato com o ensino de Santa Catarina, atuando como diretor do Colégio Municipal de Joinville, cargo para o qual havia sido designado e que ocupou entre 1907 e 1909 (MONTEIRO, 1984). Trazido como porta-voz dos pressupostos de uma pedagogia moderna, Orestes Guimarães tinha como responsabilidade implantar um sistema de ensino público em História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Santa Catarina, colocando-o em sintonia com a educação escolar paulista. A reorganização da instrução no Estado também colocaria em pauta a escolarização dos imigrantes. A idéia era que, aos poucos, os estrangeiros e seus descendentes passassem a se sentir catarinenses e acima de tudo brasileiros, evitando-se, o quanto possível, choques e ameaças entre imigrantes de "origem" e educadores brasileiros (MONTEIRO, 1984: 56). Dentre as intervenções havidas a partir da Reforma do Ensino, destaca-se além da criação de grupos escolares e escolas complementares - a imposição do ensino em Língua Portuguesa nas escolas de imigrantes (FIORI, 1991:106-107). A partir de 1918, com a criação da Inspetoria Federal das Escolas Subvencionadas pela União, Orestes Guimarães passou a ocupar o cargo de Inspetor Geral do Ensino, em Santa Catarina, função que exerceu até falecer, em 1931 (MONTEIRO, 1984:58). Com a "Revolução de 1930" e, posteriormente, a instalação do "Estado Novo" inaugura-se outra dinâmica na campanha de nacionalização do ensino. O projeto que se materializava, a partir de então, possuía especificidades, pois se construía em torno da afirmação da identidade nacional brasileira e espraiava-se de forma mais contundente, principalmente, a partir dos estabelecimentos de ensino primário. Pode-se afirmar que o Estado de Santa Catarina participou do processo de abrasileiramento do Brasil de forma bastante peculiar, assunto já bastante trabalhado na historiografia. O Sul do Brasil, desde os finais do século XIX estava na mira dos intelectuais e políticos, na esfera nacional, que viam na concentração das populações de origem germânica um risco à unidade nacional. Nesse processo propalavam-se mudanças na política migratória que se sustentava na tese do branqueamento pela introdução de levas de imigrantes europeus e pregava-se a urgência da nacionalização ou do abrasileiramento e assimilação das colônias germânicas. Além disso, a desejada nação moderna requeria a educação do povo de forma a conferir status de sociedade civilizada. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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A educação brasileira teria que enfrentar a "transição" do ensino aristocrático para o democrático, ou seja, implantar a socialização do ensino sob a gerência do Estado. Implantação esta que se deu, em diferentes situações, de forma coercitiva e não sem conflitos. Em relação ao período imediatamente anterior ao Estado Novo, a educação escolar, tida como decisiva para a obtenção da pretensa unidade nacional, passaria a ser alvo de agressivas políticas de nacionalização do ensino no Estado catarinense (FIORI, 1991:134). O interventor do Estado, Nereu Ramos, desencadeou um processo de homogeneização cultural, atingindo principalmente os alemães que, entre outras coisas, foram proibidos de usar o idioma de origem, mesmo na esfera privada, num esforço para constituir a brasilidade do Estado de Santa Catarina, brasilidade posta em dúvida, por conviver com o chamado quisto alemão do Sul do Brasil (CAMPOS, 1992). Há uma relação, portanto, estreita entre a produção e distribuição da Série Fontes com o contexto da Reforma da Instrução Pública Catarinense e o recrudescimento do nacionalismo. Convém chamar a atenção que não estamos falando, aqui, de uma relação linear ou de consensos, simplesmente, mas também de contraposições e posturas dissonantes. Basta lembrar que os livros de leitura indicados pelo reformador Orestes Guimarães foram os da Série Graduada de Francisco Viana. Porém, ao ocupar o cargo de diretor de Instrução Pública, Henrique da Silva Fontes substituiu a Série Graduada de Francisco Viana pelos manuais que ficariam conhecidos como a Série Fontes, de sua própria autoria. Denise de Paulo Matias Prochnow, em sua pesquisa, analisa a hipótese de que Henrique da Silva Fontes - ao assumir a direção da Instrução Pública - teria deixado de lado o caráter laico da educação escolar, inaugurado pelos republicanos e defendido por Orestes Guimarães e adotado uma perspectiva mais religiosa (2009:19). Mas, por outro lado, embora valorizasse a religiosidade, Henrique da Silva Fontes não deixou de vincular sua Série ao sentimento patriótico e História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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a formação do cidadão brasileiro, cônscio de seus deveres para com a República (SANTOS, 1997).

A virilização em pauta Nas lições da Série, a mulher não aparece jamais como cidadã. São os meninos que estão a caminho de se tornarem bons cidadãos, de assumirem o dever para com o trabalho, a família e a pátria; o corpo humano masculino é que aparece nas suas funções fisiológicas e no trato da higiene – o menino iria conhecer seu corpo, domesticando gestos e atitudes, tornando-se guardião de si mesmo. No Terceiro Livro, a galeria dos pensadores, poetas, escritores - Pitágoras, Confúcio, Sólon, Emílio Littré, Aristóteles, Victor Hugo, Cowper, D. Aquino Corrêa, Olavo Bilac, Coelho Neto, Ruy Barbosa - formam o panteão dos homens sábios, de retidão de caráter, plenos de virtudes masculinas em termos de razão, moral, trabalho, magnanimidade, hombridade, coragem, brio, poder... No Quarto Livro, os mitos nacionais povoam as páginas: D. Pedro I, Tiradentes, os proclamadores da República, Deodoro da Fonseca e Marechal Floriano Peixoto. Estes fizeram a pátria, escreveram a história do Brasil, deram o sangue e a vida na honra dos antepassados, do amor à causa nobre, do civismo, e da obediência às leis cívicas. As temáticas são diversas, mas todas desembocam no preceito da conduta masculina para o bom cidadão agir na rua, na casa, no trabalho, na escola, tendo por pressuposto o dever e a responsabilidade com a família, a religião e a pátria. Na Série Fontes, os autores masculinos são vozes autorizadas. Em uma lição sobre graus de parentesco, por exemplo, há um esboço de árvore genealógica, em que apenas avôs, pais, tios e irmãos formam o elo da ascendência e descendência geracional (FONTES, 1930:22-23). As figuras masculinas são pontos inaugurais, referências centrais da história nacional, são heróis capazes de grandes gestos e façanhas, na guerra e na História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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batalha, a exemplo do General Osório, narrado por Dionísio Cerqueira, no Terceiro Livro, que surge no seu belo cavalo de combate num episódio sobre a Guerra do Paraguai: A batalha estava ganha. A derrota foi completa. O campo de batalha ficou literalmente juncado de inimigos mortos. Lopez empenhara nesse dia, quase todo o seu exercito, e atirou-o contra nós por todos os lados. O ataque foi fulminante. As forças eram quase iguais. Tínhamos felizmente a nossa frente o grande Osório, que surgia como um semi-deus nos momentos mais críticos, levando consigo a vitória (1929:29).

O herói nacional é uma espécie de mistura de Deus e de homem. Possui uma marca forte de caráter, gerando um eclãn àqueles que escutam sua história, como foi o caso do grande Osório. Mas há também aqueles vultos proeminentes em acontecimentos históricos "que devem ser lembrados", como D. Pedro I, no texto "O grito do Ipiranga" de Odilon Fernandes, no Terceiro Livro: D. Pedro, austero, indômito, orgulhoso; Já do seu reino, sente-se ufanoso; Ele que rege um povo nobre e altivo; Não quer vê-lo outra vez como cativo. Das lusitanas cores se despoja; E, para longe, enfurecido, arroja; O gládio, então, brandindo, internerato; Celebrizou as margens do regato; Soltando o grito, altissonante e forte, Que nos remia: INDEPENDÊNCIA OU MORTE! (1929:33)

Além de D. Pedro I, há também recorrência à figura de Tiradentes um verdadeiro patriota. Amava tanto a Pátria, que por ela derramou seu sangue conforme explica Renato a Guilherme, dois personagens da lição de J. Pinto e Silva, na lição intitulada: "Dia 21 de abril". Renato conta também que Tiradentes, para livrar seus companheiros da morte chamou toda a culpa sobre si, ao que Guilherme exclama: - Que herói! - Herói mesmo, confirmou Renato. E como herói subiu a forca no dia 21 de abril de 1792. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Como vês, Guilherme, Tiradentes foi uma vítima do amor da Pátria (1929:67). Herói e mártir da República Tiradentes também figura na Série a partir de relações com a sacralidade. Afinal, abnegação e sacrifício pela Pátria são preciosos para validar valores morais e cívicos de um Brasil que se queria construir. Essa relação entre herói, Pátria e virilidade é bastante valorizada em diferentes lições, como no pequeno texto intitulado "Sete de Setembro", sem autoria, que consta no Terceiro Livro da Série: A imagem dos grandes antepassados revive na imaginação de todos, e seus feitos, seu desinteresse, seu devotamento para com a Pátria, tudo é comentado com justo orgulho e ufania. São assim os grandes feitos inspirados no amor da pátria: divinizam os heróis revestem de fulgor os nomes dos batalhadores pelo seu progresso, dos pugnadores de sua liberdade. (...) Todos os progressos alcançados depois são o resultante do patriótico esforço dos homens de 1822. Foi uma geração de fortes. Nomeá-los todos é difícil. José Bonifácio de Andrade e Silva, Padre Diogo Feijó, Clemente Pereira, Evaristo da Veia simbolizam essa plêiade ilustre de abnegados patriotas, que nos diversos momentos da História, concretizam a aspiração nacional (1929: 77-78).

E há, claro, os heróis de carne e osso que marcam presença na Série Fontes. Deles surgem as famílias. Há uma profusão de diálogos entre avô e neto e também pai e filho. Ressaltando suas realizações, o avô é aquele que pode contar ao neto sobre seu passado de glórias nas batalhas, nas vitórias, como podemos acompanhar em "O avô", de Olavo Bilac, no Quarto Livro: Este, que, desde a sua mocidade; penou, suou, sofreu, cavando a terra. Foi robusto e valente, e, em outra idade; servindo a Pátria, conheceu a Guerra; E fica alegre quando vê os netos ouvindo-o, e vendo-o, e lhe invejando a sorte; Batem palmas, extáticos e inquietos. Amando a Pátria sem temer a morte (1930:12). História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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O avô incorpora um duplo papel, inicialmente o de protetor e gérmen da família e, posteriormente, o papel de orador da história do país ou dos antepassados. O pai, este outro herói masculino da Série Fontes, é o que gera riqueza e prosperidade. Ulule a ventania, chova ou faça sol, à hora determinada pelo seu trabalho, meu pai, esteja forte ou esteja combalido, diz um adeus à família e sai de casa (ALMEIDA, apud FONTES, 1930:17). O menino é o ouvinte compenetrado em toda a trajetória da Série. Um adulto em miniatura, em fase de formação, deve demonstrar transparência de caráter, franqueza nas atitudes e palavras, coragem, determinação, crença no futuro, amor ao trabalho e aos estudos, magnanimidade na relação com os outros, louvor aos heróis da nação, respeito às leis cívicas, dentre outras posturas, conclusões de análises também atingidas pelo trabalho da historiadora Paulete do Santos (1997). Nas citações abaixo, denota-se claramente a problemática da Série Fontes inserida nas questões da era do nacionalismo, com todo o cortejo de práticas e discursos militarista, industrialista, racista – instaurado no Ocidente. A lição "Ensinemos o Brasil aos brasileiros", no Quarto Livro de Leitura, do catarinense Lauro Müller, ilustra essa inserção ao convocar os jovens brasileiros a conhecerem a história do Brasil, pois sobretudo nos turbados tempos que vivemos nada parece mais necessário do que ensinar o Brasil aos jovens brasileiros! (1930:49). O autor seleciona alguns ícones da história nacional para mostrar aos jovens o valor da sua raça. Acontecimentos que se sucedem revelando, a começar pela epopéia das caravelas, o vigor do corpo e do espírito dos vencedores do mar. O mesmo vigor que os fez povoadores do ignoto sertão, vencido pela força extenuante do trabalho dos povoadores em meio a natureza selvagem, aumentando sua conquista ao defendê-la heroicamente contra a cobiça das armadas poderosas e na tenacidade valorosa em disputá-la ao rival confiante (1930:49).

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Segundo Thais Nívea de Lima e Fonseca, desde o século XIX diferentes autores de livros destinados ao ensino primário e também secundário apostavam na eficácia do ensino de História para a formação de um cidadão adaptado a ordem social e política vigente (2006:50). O teor de cunho nacionalista na lição de Lauro Müller, assim como a ênfase na história do Brasil, revela, contudo, que se educava o cidadão do sexo masculino. Mesmo quando se alude a virtude das mulheres é na força e na coragem que se constroem os cidadãos viris, pois, ainda segundo Lauro Müller, é: no cadafalso em que pereceram impávidos os seus primeiros mártires e no sangue dos seus heróis fuzilados; nas alegrias triunfais do sete de setembro, na energia nacionalista do sete de abril, na nobreza moral do seu treze de maio e na suprema evolução dos seus destinos políticos do quinze de novembro! Dizer-lhes da bondade e da generosidade da sua gente; da virtude das suas mulheres; da cultura dos seus homens de ciência; (...) da bravura dos seus soldados e marinheiros (...) do amor decidido do seu povo a liberdade e a paz e do rugido de sua alma de leão quando o agridem (1930:49-51).

A ênfase no valor da raça, no vigor do corpo e do espírito, no labor e na bravura, fazia parte de um projeto de construção de masculinidade, de homens para a Nação. Estamos entendendo a construção de masculinidade hegemônica como um projeto perseguido ao longo de um determinado tempo e lugar em seus avanços e recuos. Para Robert W. Connel tal projeto envolve encontros complexos e não mecânicos, com a ação de instituições e "forças culturais" (tais como comunicação de massa, religião e também o feminismo) que, em suas sutilezas e "naturalidades", pode tanto ser coletivo quanto individual (1995:190-191). Uma prática masculinista evidenciada no interior de uma dada cultura como a sindical, por exemplo, ou agenciada pelo Estado, como a disseminação e regulação de discursos impressos e distribuídos em escolas - como a Série Fontes entre as décadas de 1920 a 1950 História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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pode ser interpretada como projeto coletivo de construção das masculinidades. A Série Fontes apresenta uma gama de lições que se propõem a construir e validar a masculinidade hegemônica da época. Ou, melhor, à época havia um empenho maculinista, no mundo ocidental, pela re-afirmação da masculinidade. O fim-desiècle vivera uma crise de identidade e uma sensação de que o mundo estava se feminizando (FLORES, 2007). Se a Europa imperialista do século XIX definira-se em termos de virilidade: o culto do gênio e do grande homem, estilo monumental à moda antiga em arquitetura e pintura, confiança no progresso, celebração das virtudes guerreiras, patriotismo, o fim-de-siècle viu crescer o sensualismo do deus Dionísio, um deus feminino. Para duas gerações de intelectuais, filósofos e ensaístas, a modernidade vinha se caracterizando pelo retorno do feminino, que minava os fundamentos da ordem moral e da fé no progresso e na ciência. As mulheres se tornavam homens (com o trabalho nas fábricas e participação na esfera pública) e os homens amoleciam diante da nova Eva. Acreditava-se que o processo de feminização dos homens e de virilização das mulheres tornava a humanidade culturalmente estéril e inapta para engendrar personalidades superiores (RIDER, 1992:179-180). Assim, o longo período de guerra da primeira metade do século XX, constituíra-se na oportunidade para o reaparecimento em cena do velho herói guerreiro a recuperar a virilidade perdida (BADINTER, 1993). Tanto a identidade masculina, em crise, quanto a identidade feminina, em vias de mudanças, deveriam ser re-habilitadas e reafirmadas. É o que se vê com ênfase nas lições da Série Fontes, pois é da escola que saem os infantes que serão os homens de amanhã: seres de tempera viril, tão úteis na paz pelo que aprenderam brincando, como serão bravos na guerra pela resistência que adquiriram no corpo, com os exercícios... (FONTES, 1929:94). Incentivando a prática do escotismo, escola primária do civismo, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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treinava-se os meninos para o exercício da masculinidade, principalmente a militarista. Tal treinamento vai buscar nas "antigas civilizações" as bases que sustentam a cultura eugênica tão admirada: Os antigos, que tanto se preocupavam com o homem, que é a medula das pátrias, tomavam-no, a bem dizer, no berço e, submetendo-o a um regime austero desde os rigores da intempérie até a indiferença pela morte (...) firmando-lhe na consciência os princípios da Honra, que começa no respeito a si mesmo e culmina no culto da Pátria, tiravam dele o cidadão perfeito. Foi essa intensa cultura eugênica que deu ao mundo o modelo por excelência do tipo humano: belo, sadio, corajoso, varonil e honesto – o "virtuoso" (FONTES, 1929: 92-93).

O modelo de herói masculino atravessa a Série Fontes das mais inusitadas formas. Não faltam exemplos, seja através de lições para meninos, como os temas relativos ao escotismo, seja através de grandes audácias, como Silva Jardim, herói da República, segundo José do Patrocínio. Na pequena história, Silva Jardim em visita ao Vesúvio é engolido por uma garganta de fogo subitamente aberta, mas ainda neste momento supremo o herói não se trai por um grito, limita-se a levar as mãos à cabeça como um único testemunho da sua agonia silenciosa. Bela sepultura o vulcão, extraordinário destino do grande brasileiro: até para morrer converteuse em lava (PATROCÍNIO, apud FONTES, 1929:19). Ou através do exemplo de coragem, como a história do comandante Mariz e Barros, em episódio da Guerra do Paraguai. Muito ferido e tendo que amputar a perna, dispensa o clorofórmio oferecido pelo médico com a seguinte frase: Deixem isto para as mulheres... a mim dêem um charuto. E, fumando, suportou sem um ai toda a operação (SOUZA, apud FONTES, 1930:92).

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A mariologia subentendida Quase ausente na Série Fontes, a imagem da mulher, quando se vislumbra, é a imagem de um anjo da casa.3 São meninas inocentes e, quando adultas, esposas e mães extremosas. Em "Amor Fraternal" de João de Deus, no Segundo Livro, os irmãos mais velhos possuem deveres especiais em relação aos mais moços, repreendendo-os, se for necessário, mas com moderação, especialmente se forem meninas, pois a mulher é de sua natureza mais mimosa, o seu destino mais delicado, por isso também o seu coração mais sensível (1935:80). E essa fragilidade da mulher pode, à vezes, lhe valer um caráter de mulher vadia e desordenada, cabendo ao homem o controle desse corpo desvalido. Na lição "Ordem e progresso", no Terceiro Livro, Rita de M. Barreto trata do sentido da ordem e do progresso narrando a história de um homem honesto e trabalhador, mas por lhe faltar a devida energia, casa-se com uma mulher que só faz gastar seu dinheiro e fofocar com as vizinhas. Moral da história: o marido cansado de trabalhar para os exagerados dispêndios da esposa acaba morrendo e a esposa, sem quem lhe desse dinheiro e sem coragem de trabalhar, acabou mendigando pelas portas. Seus filhos foram internados no Instituto Disciplinar e suas filhas encaminhadas como criadas em casas de família (1929: 123). A energia é uma qualidade absolutamente indispensável aos homens, pois sua ausência pode levá-lo a destruição. Esse itinerário doméstico é uma analogia com o que pode acontecer à Pátria. A Pátria, a nossa grande Pátria, é do gênero feminino, mas a sua condução cabe aos cidadãos providos de energia: Coisa semelhante acontece com a nação. Se o chefe não tem bastante energia e capacidade, se os seus auxiliares, em vez de trabalharem para o desenvolvimento do país, só tratam de divertir-se e gastar; se ainda abusando do poder 3

Expressão apropriada de BRESCIANI, 1992. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


97 procuram fazer fortuna a custa dos cofres públicos, ou transações ilícitas, deixando os negócios do governo de lado; se o povo, em vez de acatar seu chefe e fazê-lo respeitado, promover desordens contínuas, tudo irá para trás e a nação há de chegar a um ponto tal de enfraquecimento que o estrangeiro pode apoderar-se dela com facilidade (1929: 123).

Contudo, apesar da fraqueza feminina, as mulheres na Série Fontes são exemplares. São mães dedicadas à família e capazes de sacrifícios também pela Pátria, como D. Maria de Sousa, em "Heroínas brasileiras", de Osório Duque Estrada, narrada no Quarto Livro: Se conta que, tendo perdido já dois filhos na guerra contra os holandeses e recebendo a noticia da morte de um genro, chamou os dois filhos que lhe restavam, um de 14 anos e outro apenas de 12, e lhes disse: O inimigo acaba de matar o vosso terceiro irmão; quero colocar-vos na carreira deles; por isso, toma a espada e ide, já e já, dar a vida por Deus e pela Pátria (1930:96).

Nos chama a atenção, a exemplo da autora de "Ordem e progresso", Rita de M. Barreto, comentada acima, a presença de várias mulheres na galeria dos "sábios", nas páginas da Série Fontes. Rita Barreto, Delminda da Silveira, Júlia Lopes de Almeida, Ana de Castro Osório são autoras de poemas e trechos de prosas. E o que mais nos intriga é que em sendo mulheres, convivendo com os anseios feministas da época, reafirmam os papéis da mulher na família, como "célula geradora" e similar à pátria. Júlia, autora de diversos textos na Série Fontes, legou uma perspectiva instigante para se pensar nestes paradoxos da história. No diálogo travado com João do Rio no início do século XX, que girou sobre a inspiração de Júlia para a escrita de seus romances e sua opinião sobre diferentes temas, há a seguinte passagem: João do Rio: — E o feminismo, que pensa do feminismo? História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


98 Parece-me ver nos olhos de D. Júlia um brilho de vaga ironia. — Sim, com efeito, há algumas senhoras que pensam nisso. No Brasil o movimento não é, contudo, grande. Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no gênero da Femina... (RIO, 2002:12).

E depois, em outra passagem, João do Rio comenta: A Sra. D. Júlia Lopes de Almeida é o tipo ideal da mãe de família; acha infantil o feminismo, o nefelibatismo e outros maluquismos da civilização. As suas idéias modestas e sem espalhafato, a sua sensibilidade sem extravagâncias souberam tocar o público. A colaboração da Sra. D. Júlia nos jornais aumenta a edição dos mesmos (RIO, 2002:12).

O nacionalismo com sua ideologia fascista mobilizou os desejos femininos em relação à Pátria, proporcionando sua entrada no domínio público da Nação, na luta pelo voto, no direito à educação e a saúde, a despeito do reforço do papel maternal. Convém lembrar, contudo, que os grandes defensores da saúde e da educação das mulheres, a exemplo de Afrânio Peixoto, tinham por pressuposto que um corpo feminino saudável geraria bons filhos para a Nação; uma mulher educada seria esclarecida na função de educadora do lar. O Professor Fontes selecionou algumas autoras mulheres para entrarem nos seus livros. Mas como já era de se esperar, as lições de moral das autoras escolhidas são voltadas, em sua maioria, para o interior do lar, embora o papel da mãe entre com mais força ainda nos textos de autoria masculina. A menina, embora sentada nos bancos escolares, não é a interlocutora e nem sujeito nas lições. No Brasil, a nova situação da mulher, na entrada do século XX, fora percebida e problematizada com ênfase nos programas de saúde, educacionais, nos programas políticos e História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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intelectuais, enfim. Embora, em alguns aspectos, o movimento sufragista da década de 1920, no Brasil, tenha vindo acompanhado de um discurso conservador, proferido pelas próprias mulheres, em vários outros, os objetivos ultrapassavam a luta pelo voto: demanda por iguais oportunidades educacionais e políticas, maiores salários, menos horas de trabalho, condições de higiene e segurança nas fábricas, assistência hospitalar, seguro de acidentes, férias remuneradas, enfim, toda a gama de reivindicações dos trabalhadores masculinos. Isto denota a ativa participação de mulheres no mercado de trabalho, fora da esfera do lar. A crescente industrialização abriu-lhes oportunidade de emprego na indústria, no comércio, nos serviços, na administração. A economia da indústria e do mercado possibilitava à mulher romper com sua dedicação exclusiva ao lar, especialmente as de classe média, levando-a a participar do mundo exterior, de forma um tanto contundente e, talvez, assustadora para os que não viam com bons olhos essas novas Evas, reivindicando democracia sexual.4 Uma das facetas mais fortes do discurso moralizante para as mulheres estava na dessexualização de seu corpo. A apologia da mãe, descarnalizada, tem como função convertê-la no suporte da família indispensável ao fortalecimento do Estado. Prova disso era a identificação entre mãe e nação, o que fazia dos filhos da pátria irmãos. O corpo desvalorizado; os sentidos, a parte mais degradante do ser humano. A espiritualização do corpo e do amor constituiu a contrapartida do ódio à sexualidade. A mulher, dessexualizada, só teria valor, portanto, ao realiza-se na função procriativa. Para Plínio Salgado, Roma caiu em decorrência da preocupação sexual impositiva e absorvente nos costumes do Império (s/d: 85). Os dramas sexuais levaram José a sofrer os mais duros momentos de sua vida, e Maria, percebendo-o, sofreu os mais Convém lembrar que em épocas anteriores, encontramos muitas mulheres também atuando nos espaços públicos, principalmente as pobres que, na maioria das vezes, tiveram que prover o sustento da família, exercendo atividades na rua. 4

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duros vexames, até que as dúvidas se dissipassem (SALGADO, s/d: 64).

Finalizando A história da oposição dos homens à emancipação das mulheres é talvez mais interessante do que a própria história da emancipação das mulheres, dissera certa vez Virgínia Woolf (Apud PERROT, 1995:8). Tanto quanto o movimento operário, o movimento feminista marcou o horizonte da política e do pensamento. O discurso de que somente a virilização da nação, da sociedade e da raça tiraria os povos da decadência em que se encontravam, não fora monopólio dos homens, mas, como movimento intelectual e político, teve nos homens a maioria de seus representantes ou, pelo menos, foram eles os produtores de saberes mantenedores ou restauradores do poder masculino. E, embora alguns deles tenham reconhecido o direito das mulheres em várias de suas reivindicações, parece que nenhum rejeitou explícita e profundamente a idéia de uma plena e inteira igualdade dos sexos, uma igualdade que pudesse ter efeito na ordem do direito, dos papéis sociais e dos costumes. Ademais, se o nacionalismo do século XX, com seu velho patriarcado, já era masculinista, com a exclusão das mulheres do direito ao voto e à vida pública, cujo correspondente culto à domesticidade, piedade, pureza e submissão marcou a história das mulheres (KERBER, 1988). O nacionalismo étnico das primeiras décadas do século XX ganha fóruns de políticas comportamentais. O corpo, branco, belo e saudável, a conduta sexual, a fisiologia das mulheres, o corpo físico, o caráter e a respeitabilidade dos homens passaram para o centro das discussões sobre o uso e a função do sexo e da identidade sexual. Os fascismos representam os casos extremos de nacionalismo (PAYNE, 1995), mas antes de se tornar uma força política, por meio de partidos e regimes políticos, foi um História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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fenômeno cultural que permeou as políticas nacionalistas de governos tanto ditatoriais quanto democráticos. Se é no campo da regeneração da raça, que se intersecta gênero e etnicidade e que o discurso nacionalista-fascista, ao adotar o conceito da hereditariedade saudável,5 dá um substancial reforço à disciplina da sexualidade das mulheres e dos homossexuais, o fascismo pode ser considerado uma ideologia da superioridade masculina (WILSON e FREDERIKSEN, 1995: 2-3). Um masculinismo que se expressa no profundo medo do feminino, da feminização e da homosexualidade masculina, e numa violenta rejeição à mulher não-subserviente, ou à mulher que não correspondesse ao modelo ideal de feminilidade. O fascismo em geral, pode ser considerado uma ideologia masculinista ao extremo, relacionada aos nacionalismos vigentes à época. Estudos evidenciam que o nacionalismo é um essencial ingrediente do fascismo (diríamos que o inverso também é verdadeiro – a cultura fascista foi um forte ingrediente do nacionalismo) e desde que o nacionalismo é sexista ou encerra a dinâmica de gênero não é surpresa dizer-se que o fascismo é também sexista (HAWTHORNE; GOLSAN, 1997: 27). Uma outra questão que nos parece muito importante discutir aqui, diz respeito a idéia de masculinidade hegemônica. Embora freqüentemente o senso comum considere a própria masculinidade como "natural" e estável, claro está, que como produto cultural e historicamente contingente, a masculinidade está constantemente em transformação. Ou melhor, masculinidades, pois o próprio entendimento da construção da masculinidade pressupõe considerarmos as lutas travadas pela A eugenia era tida como a redentora da humanidade. Como ciência, seu papel era investigar a geração para detectar, na genealogia familiar, a presença de elementos degenerativos; como arte, ela aplicaria os meios para produzir a boa geração; enquanto ramo da medicina social, ela seria medida eficaz contra os males causadores da degeneração da espécie e do abastardamento da raça. Sobre este assunto ver FLORES, 2007; SKIDMORE, 1976 e SCHWARCZ, 1993. 5

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posição hegemônica, através do que seria a definição social de masculinidade. Disputas que também estão constantemente alternando as condições que sustentam determinada definição fazendo com que um dado padrão de masculinidade hegemônica fique sujeito a contestações, deslocamentos e transformações ao longo do tempo (CONNEL, 1995:191-192). As masculinidades hegemônicas são produzidas juntamente e em relação com outras masculinidades. Muitas vezes diferentes masculinidades são produzidas num mesmo contexto social. Exemplos disso seriam os deslocamentos sofridos pelas masculinidades hegemônicas européias e norte-americanas, nos últimos duzentos anos. As masculinidades das classes sociais dominantes precisaram mudar e se ajustar a nova sociedade capitalista industrial e ao Estado burocrático, as masculinidades militaristas, de cunho fascista, ou as do tipo cowboy. Por sua vez, também as masculinidades hegemônicas burguesas disputaram formas de masculinidades como as que enfatizam o conhecimento especializado ou as que enfatizam a dominação e o calculismo egocêntrico (CONNEL, 1995: 192). Como podemos compreender as possibilidades abertas pela política distintiva de masculinidade que vigorava à época do recrudescimento do nacionalismo no Brasil nas primeiras décadas do século XX? Refletir sobre estas questões é importante justamente para que pensemos nos mecanismos e distribuição de discursos que validam práticas para a manutenção de poderes e de configuração de posições de sujeito no presente. Os padrões de masculinidades ainda organizam nossa sociedade hierárquica. Entender suas novas configurações, deslocamentos, re-elaborações na distribuição social só é possível se olharmos atentamente para o passado. Antes de encerrar, ainda poderíamos pensar em mais uma ordem de questões. O lugar da produção literária é o quadro onde se inscrevem as normas, os valores e a linguagem, com os quais um grupo social, legitimado pelo estatuto intelectual, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 77-107, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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problematiza questões da sociedade, instaura saberes, enuncia verdades e, afinal, forma a cultura política: um fenômeno, como aduz Daniel Pécaut, de sociabilidade e uma adesão implícita a uma mesma leitura do real, no seio de uma categoria social específica – os intelectuais ou a camada intelectualizada (1990:184). Ademais, o ato de escrever, evocando Rancière, é a maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação. Não é porque a escrita é o instrumento do poder ou a via real do saber, em primeiro lugar, que ela é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a alegorizar essa constituição (1995: 07).

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Cristiani Bereta da Silva é Professora Associada do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UDESC. E-mail: cristianiluiz@hotmail.com Maria Bernardete Ramos Flores é Professora Titular do Departamento e Programa de Pós-Graduação em História da UFSC; Pesquisadora 1C do CNPq. E-mail: bernaramos@yahoo.com

Recebido em: 23/04/2010 Aceito em: 20/09/2010

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O ENSINO PROFISSIONALIZANTE NA IMPERIAL CIDADE DE SÃO PAULO, BRASIL (1823 - 1889) Lincoln Etchebéhère-Júnior Sandra Farto Botelho Trufem

Resumo Constitui objetivo deste trabalho a realização de um resgate histórico no sentido de demonstrar que o Ensino Profissionalizante, hoje significativamente valorizado e discutido, não se configura como novidade na história educacional de nossa província. Desde a época da Imperial Cidade de São Paulo existiram varias iniciativas no sentido de estabelecê-lo, de modo geral com história bem sucedida, de tal modo que alguns deles constituíram-se em embriões de afamadas escolas ou faculdades atuais. Palavras-chave: ensino província de São Paulo.

profissionalizante;

período

imperial;

VOCATIONAL EDUCATION IN THE IMPERIAL CITY OF SAO PAULO, BRAZIL (1823 - 1889) Abstract The objective of this work is the realization of a historical rescue of the Vocational Education, now significantly enhanced and discussed as a novelty in the educational history of our province. Since of the time of the Imperial City of São Paulo, there were several initiatives to establish it, in general with successful history, so that some of them consisted in the embryos of many renowned schools and colleges today. Keywords: vocational education; the imperial period; the province of Sao Paulo. EDUCACIÓN PROFESIONAL EN LA CIUDAD IMPERIAL DE SÃO PAULO, BRASIL (1823 - 1889) Resumen Objetivo de este trabajo es la realización de un histórico en el sentido de mostrar que la enseñanza profesional, ahora mucho mayor y discutido, no está diseñado como una novedad en la historia educativa de nuestra provincia. Desde la época de la imperial ciudad de São Paulo había varias iniciativas para su creación, en general con


110 la historia de éxito, por lo que algunos de ellos consistió en embriones de muchas escuelas e universidades de renombre hoy en día. Palabras clave: formación profesional; la época imperial; la provincia de Sao Paulo. L'ENSEIGNEMENT PROFESSIONNEL DANS LA VILE IMPÉRIALE DE SÃO PAULO, BRÉSIL (1823 - 1889) Résumé Ce travail prétend montrer que l'Enseignement Professionnel, qui est actuellement si discuté et valorisé, n'est pas une nouveauté dans l'histoire éducationnelle de notre province. Depuis l'époque de la Ville Impériale de São Paulo il y a eu plusieurs initiatives, en général réussies, qui ont cherché à l'établir, à tel point que quelques écoles qui ont adopté ce modèle sont devenues les embryons d'actuelles écoles et facultés célèbres. Mots-clés: enseignement professionnel; période impériale; province de São Paulo.

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Introdução Constitui objetivo deste trabalho a demonstração de que na Imperial Cidade de São Paulo o ensino profissionalizante existia já no século XIX. No referente ao ensino básico, a Carta Imperial de 15 de outubro de 1827 determinava, em seu artigo 6º que os professores ensinarão... as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções gerais de geometria,... e o artigo 12º estabelecia que ... as mestras, ...ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica;1... Em complemento, a Lei de 1º de Outubro de 1828 aprovou o Regimento das Câmaras Municipais do Império, que no artigo 76 determinava: Nas Cidades e Vilas, onde não houver Casas de Misericórdia, atentarão principalmente na criação dos Expostos, sua educação, e dos mais órfãos, pobres e desamparados2. Portanto, já se encontra a preocupação em educar a criança sendo que este educar seria prepará-la para sua vida profissional. Nessa época em que as profissões estavam bem delimitadas, meninos e meninas, particularmente os órfãos e os desassistidos, recebiam ensino profissionalizante como alternativa para garantir o seu futuro. Por outro lado, a Imperial3 Cidade de São Paulo, a partir no século XIX, conheceu modificações importantes, quer no campo econômico, quer no campo sócio-cultural: a cafeicultura, em pleno desenvolvimento pelo Vale do Paraíba e interior da província; a ferrovia, com a criação da São Paulo Railway (S.P.R.); o crescimento da imigração européia, como mão de obra Carta Imperial de 15 de outubro de 1827 Manda criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império.

1

2

ALMEIDA, Fernando H. Mendes de (org.). Constituições do Brasil.1963.

O decreto Imperial de 17/III/1823 concedeu à cidade de São Paulo, capital da província de São Paulo, o título de Imperial Cidade. 3

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indispensável aos cafezais, mas também com parcela significativa de estrangeiros nas cidades, particularmente, São Paulo, Santos, Itu e Campinas, contribuindo assim para suas transformações. Paralelamente, novas idéias pululavam na Academia de Direito, criada em 1827, com a existência de reduto de liberais, maçons, livres pensadores, positivistas, republicanos; a imprensa e, por que não afirmar, também o teatro, iniciavam pregações abolicionistas e republicanas; acontecia o aumento de escolas particulares, entre elas o famoso Seminário Episcopal, reduto ultramontano que se opunha à Academia de Direito; o surgimento da educação protestante; os ataques à religião do Estado4. Todos esses foram fatores que modificaram a província, particularmente a cidade de São Paulo. Esta deixou de ser um burgo administrativo e estudantil e, de centro tradicional, tornou-se cidade progressista em busca da modernidade. Outros estabelecimentos de nível superior e nos demais níveis continuaram a surgir no século XIX, porém, já não mais na Imperial Cidade de São Paulo e sim na São Paulo, agora sob a égide republicana. No nível superior tem-se a criação da Escola de Engenharia Mackenzie (1896), o primeiro curso superior particular do Brasil; a Escola Politécnica (1894); a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (1894) e escolas profissionais não superiores, com a Escola Normal Mackenzie, Asilo de Meninas Órfãs N.S. Auxiliadora do Ipiranga, Orfanato Cristóvão Colombo e outros que serão contextualizados em outro trabalho desses autores.

A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casa para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo. (Art. 5º da Constituição Imperial, 25 de março de 1824). 4

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Academia de Direito do Largo de São Francisco (1827) A primeira idéia da criação de uma Faculdade de Direito data de 1823, por iniciativa, em discurso inflamado, do Dr. José Feliciano Fernandes Pinheiro, posteriormente Visconde de São Leopoldo, que se manifestou, a 14 de junho de 1823, na Assembleia Constituinte Brasileira sobre o fato. A petição fora envida à Comissão de Instrução Pública, aos cuidados do deputado Martim Francisco Ribeiro, que foi seu relator. Em plenário, a proposta foi tumultuada, pois várias eram as províncias desejosas de possuírem a Faculdade e o projeto morreu quando da dissolução da Assembléia Constituinte, em novembro do mesmo ano. A segunda iniciativa de implantação do curso no país aconteceu em 1825, resultando no Decreto Imperial de 11 de agosto de 1827, com a criação da Academia de Ciências Sociais e Jurídicas em Olinda e em São Paulo, sendo seu primeiro diretor, nesta última, o tenente-general Dr. José Arouche de Toledo Rendon. Em 1º. de março de 1828 houve a abertura e a instalação solene da Academia de Direito, com as presenças do presidente da província, o conselheiro Tomás Xavier Garcia de Almeida, do bispo diocesano, D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, além de funcionários civis, militares, eclesiásticos e grande concurso de povo. Retrato de época da cidade justifica a necessidade de uma Faculdade de Direito para a cidade, pois, ... em 1836, São Paulo era a localidade mais populosa da província. Tinha boa casaria, bem ordenada, com edifícios de alguma consideração. Tinha população de 21.933 hab., sendo que na província se tinha 362.902 hab. Tínhamos na cidade 8 advogados, 5 médicos, 4 cirurgiões, 7 boticários, 33 sacerdotes, 401 negociantes, 2.199 proprietários de bens rurais e urbanos e 1.099 pessoas sabendo ler e escrever (Müller, 1978 p. XI).

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A aula inaugural aconteceu na antiga sacristia do convento dos franciscanos e, finalmente, a academia ocupou todo o convento a partir de 8 de novembro de 1818, cedido voluntariamente pelo provincial dos franciscanos. A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco era edifício seu vizinho e, à época, a fachada desta estava bem conservada, o mesmo não se podendo afirmar do interior da Faculdade (Diniz, 1978, p. 55). O nome de Academia de Direito foi conservado até 1854, quando seus estatutos foram reformados pelos decretos de números 1.134, de 30 de março de 1853; 1.386, de 28 de abril de 1854 e 1.568, de 24 de fevereiro de 1855, mudando a antiga denominação para Faculdade de Direito. A sua biblioteca, composta inicialmente com grande parte das obras pertencentes ao antigo bispo diocesano D. Mateus de Abreu Pereira5, era a mesma criada em 1825, como Biblioteca Pública, pelo então presidente da província, Visconde de Congonhas do Campo (Marques, 1980, v I, p. 251-254) que provavelmente influenciaria na criação dos cursos jurídicos. O curso de Direito tinha duração de cinco anos e no último ano letivo, o curso chegou a contar com 151 alunos. O curso de preparatórios, que funcionava ligado à Faculdade de Direito, compreendia aulas de Latim, Francês, Inglês, História, Geografia, Filosofia, Aritmética, Geometria, Retórica e Poética, tendo sido freqüentado por até 374 estudantes (Godoy 1978, p. 85). Essa Faculdade de Direito constitui a hoje famosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco, referência nacional da educação de bachareis e formadora de inúmeros homens públicos de nosso Estado e do Brasil, como Rui Barbosa, Padre Pires da Mota, Conselheiro Ramalho, Wenceslau Brás, Campos Sales e outros. 5 D. Mateus de Abreu Pereira fez sua entrada solene em São Paulo a 31 de março de 1797 e faleceu a 5 de maio de 1824. (Marques, 1980, v I, p.138).

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Casa de Correção e Trabalho (1825)A Casa de Correção e Trabalho foi criada pelo então presidente da província, Antônio Lucas Moreira Barros, futuro Visconde de Congonhas do Campo, em 1825, numa das salas da Cadeia Pública. O estabelecimento foi instituído ... com o fim de n´ella cumprirem suas sentenças aquelles a quem a pena de trabalho é imposta (em bastantes casos) no Código Criminal (Müller, 1978, p. 260). Outro presidente da província, Raphael Tobias de Aguiar6, visando o seu melhoramento, transferiu-a para o quartel da Tropa de Primeira Linha, posteriormente ocupado pela Casa do Trem7, em 1834, e depois ainda, ocupada com artigos bélicos, e alguns presos condenados a trabalhos. A direção era confiada a um diretor que deveria prestar contas de sua administração, sendo a despesa orçada em 1:800$000 Reis. Os produtos líquidos dos trabalhos entravam na Receita Provincial. A lei provincial de 10 de março de 1837, parágrafo 6º. do artigo 1º, autorizou o presidente da província a adquirir um terreno e a despender o que fosse necessário para a construção de uma Casa de Correção, e desde aquela época até 1852 consumiuse na construção do prédio no bairro da Luz, próximo ao Recolhimento da Senhora da Luz, freguesia de Santa Efigênia, com o nome oficial de Penitenciária, popularmente ainda conhecida como Casa de Correção. Em 1852 foi instalada uma escola para sentenciados, sendo o seu primeiro professor o almoxarife do estabelecimento, capitão Joaquim Mariano Galvão Bueno, que, em 1874, passou a desempenhar o cargo de diretor daquela casa. Brigadeiro Raphael Tobias de Aguiar governou a província de São Paulo desde 17 de novembro de 1831 a 27 de maio de 1834, e desde 14 de setembro de 1834 a 10 de maio de 1835 (Marques, 1980, v.II, p.191). 6

A rua do Trem é a atual rua Anita Garibaldi, próximo ao Palácio da Justiça e a Sé. Seu nome deriva-se da localização nessa rua da casa do trem bélico da guarnição de São Paulo (Martins, 1970, nota de rodapé n. 4 p. 388). 7

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Em 1852, na presidência do Dr. José Tomás Nabuco de Araújo, a Casa de Correção recebeu iluminação a gás hidrogênio (Martins, 1970, p. 459) e em 1879, a iluminação foi substituída por combustores de gás (Martins, 1970, p. 179). Na segunda metade do século XIX era considerado um estabelecimento quase completo graças ao seu diretor, o brigadeiro Francisco Antônio de Oliveira. Sua organização, em 1870, era a seguinte: um diretor, um escrivão, um almoxarife, um capelão, um médico, um professor de primeiras letras, um sacristão, três carcereiros, um ajudante e 16 guardas. No estabelecimento encontravam-se montadas instalações para encadernação, além de oficinas para alfaiate, sapateiro, marceneiro, latoeiro, ferreiro e trançadores de palha para chapéu. O balanço do número de prisioneiros desde o ano de sua inauguração, em 1849, até o final de 1869 era o seguinte: entraram 533, faleceram 66, saíram 222, 112 foram removidos e 133 ficaram a cumprir pena. A receita neste mesmo ano foi de 43:976$800 Reis, com despesa de 43:878$900 e suprimento do tesouro em 28:902$100 (Marques, 1980, p.166-7). A Casa de Correção, com o tempo, transformou-se no Complexo Penitenciário do Carandiru, que a partir de 2002 foi desativado, seguindo-se sua implosão, como alternativa para se esquecer o trágico massacre de 111 presos, efetuado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo na tentativa de conter a rebelião de 02 de outubro de 1992. A área do Carandiru hoje se encontra reorganizada como Parque da Juventude, inaugurado em setembro de 2003 e ocupando área de 240 mil metros quadrados.

Seminário de Educandas Nossa Senhora da Glória (1825) O Seminário da Glória fora criado em 08 de junho de 1825, pelo presidente da província, Lucas Antônio Monteiro de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Barros8, futuro Barão e Visconde de Congonhas do Campo, tendo como recursos de infraestrutura boas casas, capella e terras próprias (Athayde, 1999, p. 107), com o nome original de Mininas órfãos e educandas de Nossa Senhora da Glória (Borges, 1980, p. 24). Este estabelecimento tinha sido originalmente residência do bispo diocesano D. Mateus de Abreu Pereira, na então chamada Chácara da Glória, com grande extensão de terras situadas entre os bairros do Cambuci e do Ipiranga. Com a morte de D. Mateus, em 1824 e, de acordo com o Aviso Imperial de 8 de janeiro de 1825, passou a ser ocupado pelo Seminário de Educandas. Contava com espaço para jardim, pomar, pastos e matas, de onde se podia retirar a lenha para venda. Foi o primeiro instituto para educação para meninas órfãs e pobres, principalmente, filhas de militares que serviram à Pátria e morreram como indigentes na guerra do Paraguai (http://www.crmariocovas.sp.gov.br/neh.php?t=001, p. 3) Tinha como finalidade, além de abrigar jovens pobres e/ou órfãs, prepará-las para o magistério das primeiras letras (princípios elementares da Língua Portuguesa e as quatro operações de Aritmética), além de incutir-lhes princípios da moral cristã e da doutrina do Estado (Moraes, 2000, p. 78). Ou, ainda, quando adultas, ocasião em que obrigatoriamente deveriam deixar o Seminário, poderiam ser encaminhadas a casas de famílias honradas, para a realização das tarefas domésticas. O presidente da província nomeou como sua primeira diretora dona Elisária Cecília Espínola; Nicolau Batista de Freitas Spinola como administrador externo, além de um capelão, colocando a serviço do educandário dois escravos com morada obrigatória.

Lucas Antônio Monteiro de Barros, nasceu na Capitania de Minas Gerais em 1768. Estudou em Portugal e voltou ao Brasil, dedicou-se a magistratura, foi o primeiro presidente da Província de São Paulo (1824-1827) (Borges,1980, p. 17). 8

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Nos primeiros anos de funcionamento, o Seminário sobreviveu na penúria, no isolamento e na sujeira. Contava então com 12 educandas. Em fins de 1833, é referida a precariedade das instalações da Chácara da Glória: os canos de água da cozinha e do tanque de roupas estavam arrebentados; faltavam bancos na sala de escrever, de modo que as meninas trabalhavam em pé, apoiadas em uma grande mesa; os dormitórios eram muito pequenos, o que obrigava as educandas a dormirem aos pares na mesma cama. Não se conhecem os motivos exatos para essa situação, mas uma das explicações pode ser o fato de que os diretores do Seminário o administravam como coisa privada. Talvez essa miséria cotidiana tivesse a ver com o componente religioso e ascético da devoção beata, popular, reprimido pelo governo ilustrado (http://www.crmariocovas.sp.gov.br/neh.php?t=001, p. 4). Em 1838 contava com 33 educandas (Müller, 1978, p. 262). O imperador D. Pedro I, para sua manutenção, concedeu-lhe 600$000 contos de reis anuais. No Relatório de 1874, o presidente da província, Dr. Joaquim Floriano de Godoy, afirma que a instituição não preenchia seus objetivos e opinou pela sua extinção uma vez que funcionava mais como asilo do que escola (Godoy, 1978, p. 85). Relata-nos Atahyde que: Existia ainda a critica de que às meninas era ensinado "literatura em livros difíceis, em vez de ensinar a coser e bordar," isso nos anos de 1835. Chegando à idade de 18 anos, as meninas deveriam casar-se, o que não era fácil. Não encontrando interessados, a recomendação era a de que fossem entregues as famílias honestas, que deveriam cuidar da órfã, que, em troca, assumiria o papel de criada da casa (Athayde, 1999.p. 108-109).

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Entretanto, o Seminário da Glória continuou a educar, com a sua direção entregue às Irmãs de São José de Chambery9, congregação francesa, a pedido do presidente Franco da Rocha ao bispo diocesano, D. Antônio Joaquim de Melo. As irmãs procuraram melhorar o nível intelectual da instituição e muitas de suas alunas tornaram-se professoras na cidade de São Paulo e também damas de companhia da aristocracia paulistana, cumprindo os objetivos para os quais o seminário fora criado. O antigo Seminário da Glória, lamentavelmente, foi transferido inúmeras vezes de local. Essas transferências ocorreram em 1833, 1844, 1861, 1859, 1862, 1895 e 1896. Por exemplo, em 1833, o Seminário foi transferido para o antigo quartel do 7 º Batalhão de Linha, nos arredores de onde se situa a Praça do Correio. Na atualidade, tem-se a Rua do Seminário, que em 1865, era conhecida como Rua do Seminário das Educandas. Hoje, situa-se no bairro do Ipiranga, como uma escola do ensino do oficial do Estado de São Paulo, com o nome de Escola de Primeiro e Segundo Graus Seminário Nossa Senhora da Glória. Estudar a sua história é o mesmo que reportar-se à historia da educação do Brasil, no tocante ao ensino profissionalizante (Athayde, 1999, p. 108).

A Congregação das Irmãs de São José de Cambéry, então Irmãs de São José constituíam vários grupos independentes, originários em 1650 de uma pequena comunidade da cidade de Puy, formada pelo jesuíta padre João Pedro Médaille, considerado seu fundador. A nova congregação desde o início estava destinada a servir a população, espalhando-se pela zona urbana e rural, fundando escolas. Foram expulsas de suas casas no período da Revolução Francesa (1789). Começou a reorganizar-se a partir de 1808, em 1812 estavam na Sabóia e fundaram a Casa Mãe de Chambéry, nela formaram inúmeras missionárias que partindo da França atingiram vários paises, inclusive o Brasil, (1858). Em 1859 surgiu o Colégio de Nossa Senhora do Patrocínio de Itu, primeiro colégio para moças da província de São Paulo (Camargo & Passos, 1980, p. 13). 9

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Seminário de Educandos de Sant'Ana (1825) O Seminário de Educandos de Sant'Ana foi criado na antiga fazenda Sant'Ana dos Jesuítas, confiscada pela Coroa quando da sua expulsão, em 1759. Surgiu juntamente com o Seminário Nossa Senhora da Glória, em 1825. Tinha a finalidade de amparar meninos pobres, principalmente filhos de militares que serviram à Pátria na Guerra do Paraguai e morreram como indigentes, também criado pelo futuro Visconde de Componhas do Campo (Müller, 1978, p. 262). Foi dirigido por frei Joaquim Francisco do Livramento10 em regime de internato (Athayde, 1999, p. 110). Instalava-se em um edifício velhíssimo e estragado, alugado e sem acomodações para os fins a que se destinava. Constava do currículo dos educandos: Aritmética, Álgebra, Geometria Descritiva, Zoologia, Física e suas aplicações; Mecânica e suas aplicações; Agrimensura, Desenho Linear, Desenho de Figura, Desenho Geométrico, Desenho de Ornato, de Flores e de Paisagens, Desenho de Máquinas, Desenho de O irmão Joaquim do Livramento era na verdade irmão terceiro de São Francisco, portanto, leigo. Nasceu na vila de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis em 1751. Construiu na vila do Desterro com esmolas o Hospital do Menino Deus, inaugurado em 1789, posteriormente, entregue à Irmandade do Senhor dos Passos. Na Bahia fundou em 1808, amparado pelo poder público e generosidade do povo inaugura um seminário para meninos órfãos, denominado posteriormente, Casa Pia e Colégio São Joaquim. Na província do Rio de Janeiro fundou o seminário da Santíssima Trindade de Jacuacanga, posteriormente, transformado em Liceu Provincial em Angra dos Reis, que passou a funcionar no antigo convento de São Bernardino de Sena, extinto em 1858. Conseguiu que o príncipe Regente D. Pedro enviasse como diretor do seminário o padre Viçoso, futuro bispo de Mariana. Na província de São Paulo além instar na fundação dos Seminários de Sant'Ana e Senhora da Glória, foi responsável pelo surgimento de um seminário para meninos em Itu, cujo prédio foi depois ocupado pelos jesuítas e nele instalaram o futuro Colégio São Luis, atualmente, na capital paulista. Faleceu em Marselha em1829, pois havia ido à Europa a busca de padres para seus institutos. (Silva, 1928, p.291, 294-8,302). 10

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Arquitetura, Caligrafia, Gravura, Pintura, Estatuária, Música, Modelação e Fotografia (http://www.liceuescola.com.br/conteudo_ unico.asp?numero_materia=2760301026&id_subitem=421). Havia ainda aulas de primeiras letras, música, oficinas de marceneiro, alfaiate, sapateiro e encadernador. Contava com mais de 100 educandos e as despesas para essas aulas, desde a criação do Instituto, orçavam em cerca de 200 contos de reis (Diniz, 1978, p. 4). Foram criticadas a falta de aulas relacionadas à Agricultura, uma vez que as lavouras eram significativas áreas de atuação para a província de São Paulo. Igualmente criticado era o fato de alguns alunos, às vezes, executarem serviços militares, como guardas de honra em diversas festividades, o que, sem dúvida, constituía um desvio de suas funções. Além de o Seminário receber órfãos que tinham estada gratuita, havia pensionistas que pagavam pelo ensino. Assim, em 1839 havia pensionistas que pagavam a anualidade de 6$400; dois deles pagavam 4$800 e um, 3$200. A instituição era mal dirigida e os objetos domésticos indispensáveis eram pobres. A dotação provincial nem sempre era suficiente para as despesas, que eram cobertas pelo apoio da população. Os rapazes que concluíam os estudos complementares eram enviados para o Arsenal das Docas da Corte ou para a Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, obrigados a trabalhar para a Nação durante certo tempo, como forma de indenização das despesas feitas (Isau, 2006, p. 8081). Os alunos depois de 1857, que se aplicavam nos estudos de primeiras letras, princípio de doutrina cristã e aos hábitos de moralidade, conseguiam empregos como caixeiros. Por volta de 1862 funcionava uma pequena oficina de alfaiataria. Em 1865 os alunos aprendiam ofícios mecânicos e artes, tendo 30 alunos internos e oito externos. Isau, 2006, p. 78) Em 1865 o seminário foi transformado em Instituto de Educandos Artífices, com 32 alunos. Contava com 20 empregados, funcionado em duas oficinas: alfaiataria e marcenaria, mais aulas História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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de Primeiras Letras, Catecismo, Música Instrumental e Ginástica, com 60 alunos, que chegariam logo aos 100. O corpo dirigente constava de um diretor, um capelão, um médico, professores, mestre alfaiate, serventes e custavam aos cofres provinciais 12:520$000 contos de réis. Passou a funcionar em três prédios alugados por 230$000 contos de réis semanais, nas proximidades da Rua do Gasômetro. Havia, porém, reclamações sobre o estado ruinoso dos prédios, sendo insuficientes para a acomodação dos alunos e dos funcionários. Em 1879 o Instituto de Educandos Artífices chegava a 81 educandos. Posteriormente, criaram-se oficinas de encadernação e sapataria, existindo também uma banda marcial composta de 32 alunos (Isau, 2006, p. 79-82). Este Instituto muito contribuiu para a formação dos futuros operários da província.

Gabinete Topográfico (1835) O Gabinete Topográfico foi criado pela Lei Provincial de 24 de marco de 1835, com orçamento para despesas da ordem de 3.200$000 contos de reis, assim distribuídos: 600$000 contos de reis ao diretor; 438$000 contos de reis para gratificação dos alunos; 2.000$000 contos de reis para compra de livros e instrumentos; 162$000 contos de reis para o expediente. Iniciou suas atividades com 14 alunos, instalados no antigo Palácio dos Governadores, hoje região do Pátio do Colégio, centro histórico da cidade de São Paulo. Seu objetivo era o de formar pessoas que pudessem profissionalmente aplicar-se nas construções de estradas, que tanto eram necessárias para a província de São Paulo. À época, a província destacava-se com a produção de café e o porto de Santos já se configurava como um dos mais importantes para saída de mercadorias. O transporte das mesmas, no entanto, acontecia por estradas absolutamente precárias, em lombo de burros. Cada besta conseguia carregar entre 120 e 150 kg de mercadoria e, do oeste paulista (região de Rio Claro) até Santos, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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demoravam cerca de 10 dias. Uma conta básica mostrava que, por volta de 1860, já depois da criação do Gabinete, foram empregadas cerca de 3.000 mulas para esse transporte, que carregaram cerca de 2.600 toneladas de café (Filimonoff, 2009, p. 29). Como outros objetivos, tinha a função de arquivar todos os mapas e memórias de projetos condizentes com a sua função. Os alunos deveriam aprender as matemáticas puras, desenhos necessários para estudarem suas aplicações, medições de terrenos, construções de pontes e estradas, conhecimento dos instrumentos que se empregam nas atividades topográficas. Possuía uma pequena biblioteca com obras e instrumentos relativos à topografia. Diante das necessidades do estabelecimento foi sugerida a criação de um auxiliar do diretor (Müller, 1978, p. 261). O Gabinete Topográfico teve duração curta e atribulada, fechando suas portas em 1838, para reabrir em 1842, então com 23 alunos; voltou a fechar em 1848. O acesso ao curso do Gabinete Topográfico era aberto a alunos com pelo menos 15 anos, com boa leitura, domínio das quatro operações de aritmética e tradução correta do francês. O curso tinha a duração total de dois anos, sem período de férias, exceto por pontes em alguns feriados religiosos, como semana santa, natal, dia de reis e feriados nacionais, conforme resgate de documentos históricos relatados por Filimonoff (2009, p. 45). A conclusão do curso conferia ao ex-aluno a chamada Carta de Engenheiro de Estradas. Já em 1837 existiu um projeto de lei de Azevedo Marque, sugerindo o fechamento do Gabinete em função de seus gastos supostamente desnecessários (Filimonoff, 2009, p. 48). O fechamento do Gabinete em 1838 aconteceu em função de problemas com as verbas a ele destinadas, assim como a ausência de instalações adequadas para seu efetivo funcionamento: foram questionadas gratificações de 50$000 contos de reis destinadas aos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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alunos que mais se destacassem no curso, bem como outras gratificações, de até 20$000 contos de reis mensais, a alunos desprovidos de fortuna, porém com dedicação e bom desempenho nos estudos. A falta de instalações físicas adequadas para abrigar a biblioteca e os mapas, além da ausência de equipamentos agravou a situação do Gabinete Topográfico. Nesse meio tempo, no entanto, coube ao Gabinete Topográfico a execução de trabalhos como: cópias de projetos, mapas, plantas, figurinos de uniformes para todas as vilas, bem como outros desenhos, por ordem de v. EXCIA (brigadeiro Bernardo José Pinto Gavião Peixoto) (Filimonoff, 2006, p. 50),

entretanto, não executaram a planta da cidade, o projeto de esgotamento do Tamanduateí, o projeto do morro do Carmo, tudo isso por falta de instrumento (idem, p. 50). Em 1840 o Gabinete voltou a ser foco das atenções da Assembleia Legislativa, com a propositura de uma lei que permitisse o seu funcionamento, pois a necessidade de construção de estradas continuava a imperar para garantir o progresso da Província e São Paulo. A lei que propunha a sua reativação, no entanto, buscava explicitar as verbas a ele destinadas e as formas de sua aplicação, estabelecendo tetos para as gratificações. Somente em 1842, no entanto, o Gabinete voltou a ser efetivamente reorganizado, com a matrícula de 22 alunos (Filomonof, 2009, p. 54-55). Em 1844 foi criada na província a Diretoria de Obras Públicas, à qual o Gabinete foi anexado. Em 1848, apenas três alunos prosseguiram os estudos no Gabinete, dando ensejo para que o mesmo fosse definitivamente extinto em 1848. O Gabinete Topográfico foi o responsável pela construção da Estrada da Maioridade, que substituiu a antiga Calçada do Lorena, que ligava São Paulo a Santos. Coube a ele também a construção da estrada da Graciosa, ligando a portuária História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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cidade Antonina à Curitiba. Aquela cidade tinha o porto que ligava o litoral ao planalto curitibano e, naquela época, integrava o território paulista, pois a província do Paraná somente foi criada em 1853. Admite-se que o Gabinete Topográfico tenha sido o embrião da Faculdade de Engenharia Politécnica, criada em 1894, já na República, conforme as palavras de seu primeiro diretor: ... a victoria, hoje alcançada, foi em luta porfiada: porque a idéia que hoje venceu não é nova. Nossos avós tentaram realiza-la. Elles bem avaliavam as grandes vantagens que esta região adviria a divulgação de conhecimentos mathemáticos. Crearam, por isso uma Escola de Engenheiros construtores de estrada, que modestamente denominaram Gabinete Topográfico (Paula Souza, fide Filimonoff, 2009, p. 41).

Escola Normal Provincial (1846) ou A Escola Normal e a Catedral (1846) A criação de uma escola Normal, específica para a formação de professores para lecionar no ensino fundamental, passou, antes de sua concretização, por várias tentativas. A primeira delas pode ser mencionada quando da Proclamação da Independência do Brasil (1822). A Constituição do Império, promulgada a 25 de março de 1824, determinava, em seu artigo 179, que a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos. Lembra-se que à época o escravo não era considerado cidadão, não por sua cor, mas por sua condição servil. Tal medida foi confirmada pela Carta Imperial de 15 de outubro de 1827 que mandava criar escolas de primeiras letras para meninos e meninas em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos; ela determinava ainda os vencimentos de mestres e mestras, o

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concurso público de ingresso, a vitaliciedade dos cargos, e o conteúdo programático: os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções gerais de geometria, a gramática da língua nacional e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e História do Brasil11. Quanto às mestras, o texto magno observava as diferenciações de gênero:...além do declarado no art. 6º., com exclusões das noções de geometria e limitado a instrução da Aritmética só as quatro operações, ensinarão também as que servem á economia doméstica; e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimentos nos exames na forma do art. 7º.12

Já antes do Império existiram patriotas que se preocupavam com o ensino, haja vista a Ata das sessões do Governo Provisório de São Paulo, de 20 de setembro de 1821, onde consta que o então deputado e secretário do interior, Cel. Martim Francisco Ribeiro de Andrada, apresentou um memorial advogando a favor da criação de uma escola Normal e da reforma do ensino. O Ato Adicional de 1834 descentralizou o ensino no Império, cabendo às províncias legislar sobre instrução pública e estabelecimentos próprios e promovê-las13. Cabia, portanto, às províncias ministrarem o ensino primário e secundário. Fazia-se necessário formar mestres para atender às necessidades da

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Art. 6º.

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Art. 12º.

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Art. 10 História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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educação e o caminho seria criar uma escola normal provincial, como já existia em outras províncias do Império. Afinal, em 1846, foi apresentado o projeto de criação da Primeira Escola Normal Provincial pelos Dr. João da Silva Carrão e Dr. José Ignácio Silveira da Mota. Tal projeto foi convertido na Lei no. 34 de 16/3/1846, com sua respectiva instalação em 9/11/1846. Lembra-se que esta Escola Normal atendia apenas a alunos homens. O primeiro professor e diretor da Escola Normal Provincial foi o Dr. Manoel José Chaves, bacharel em direito e professor de Filosofia do Curso Anexo à Faculdade de Direito e Tesoureiro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé (Martins, 1970, p. 32). Nessa Escola Normal, cujas aulas eram oferecidas à tarde, as matérias do programa eram Gramática e Língua Nacional, Aritmética, Religião, Geometria, Caligrafia, Lógica e Métodos e processos de ensino, além de Latim, Teologia Dogmática, Teologia Moral (Bush, s/d, p. 9). O curso se completava em dois anos. O professor tomava uma turma de alunos e lecionava até o final do 2º ano, voltando depois a iniciar nova turma. Em 1847 foi aberta a possibilidade de meninas freqüentarem a escola normal, mas tal não aconteceu, sendo o curso suprimido nove anos depois (Busch, s/d, p. 9). O curso normal foi desativado em 1867, portanto, 20 anos após a sua criação, tendo formado apenas 40 professores do ensino primário (Busch, 1946, p. 9). Uma das prováveis razões pelo pequeno número de formandos deve-se à Carta Imperial de 15 de outubro de 1827, pois, ela não exigia do candidato ao magistério o certificado de conclusão de curso de professor normalista, mas apenas a sua aprovação perante a banca examinadora, realizada no Palácio do Governo. Eram os chamados professores de palácio. A segunda Escola Normal Provincial foi criada por inspiração do Inspetor Geral de Instrução, Dr. Francisco Aurélio, de acordo com a Lei de 9 de março de 1874, pois permanecia a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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necessidade de instruir-se a população da província. Esse curso foi instalado em edifício anexo à Faculdade de Direito e era também de dois anos, contando com dois professores. As mesmas matérias eram lecionadas, acrescidas de Cosmografia e Geografia, História Sagrada, Universal e do Brasil, mais Metódica e Pedagogia, e exercícios práticos nas escolas da capital. A Escola Normal fechou dois anos depois por deficiência de instalação, de material didático e pela freqüência quase nula (Busch, op. cit. p. 11). A terceira Escola Normal Provincial surgiu em 1880, graças aos esforços de um ex-aluno da antiga Escola anterior, Dr. Laurindo Abelardo de Brito, então Presidente da Província, que conseguiu a aprovação da Lei n. 130, de 25 de abril de 1880, que reformava o ensino paulista. Nesse meio tempo, envidaram-se esforços e verbas para a construção de um prédio próprio para abrigá-la. A procura pela população para instruir seus filhos, no entanto, passou a ser significativa, a tal ponto que o presidente da província, Dr. Sebastião Pereira, cheio de apreensões, em seu relatório à Assembléia Provincial manifestava que: Tão avultado número de alunos é um fato que se impõe à vossa atenção. Se continuar igual freqüência nos anos seguintes, teremos brevemente todo o professorado composto de alunos-mestres; e, tendo estes vencimentos elevados e certas vantagens, absorverão metade da renda da Província, sendo a outra metade insuficiente para as demais necessidades do serviço público (Busch, s/d, p.11).

Apesar da situação da província na qualidade de grande metrópole e de desenvolvimento econômico, havia cidades do interior que lhe faziam sombra no quesito educação, como a vizinha Campinas, onde o número de escolas particulares superava em muito o das escolas oficiais, pois esta contava com cinco escolas oficiais e 14 particulares. Quando Caetano de Campos assumiu a sua direção, de pronto preocupou-se com a construção de uma sede grandiosa para a formação de mestres, o que só começou a se concretizar já na História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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República, com o Governador Prudente de Moraes, em 1890, na atual Praça da República. O imponente edifício do antigo Colégio Caetano de Campos conseguiu sobreviver, graças a movimentos populares, a uma demolição para a construção de uma estação do Metro (Estação República) e abriga a administração da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Seminário Episcopal (1856) A origem deste instituto prende-se ao bispo D. Antônio Joaquim de Melo14, que o fez construir no bairro da Luz, defronte ao Jardim Público. Sua criação foi graças às esmolas conseguidas em sua peregrinação por toda a sua diocese, que na época abarcava o que hoje constituem os estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Sua construção teve início em 1855, findando em 1860. O instituto era dirigido pelos frades capuchinhos, enviados pelo papa Pio IX, por solicitação do prelado. O estabelecimento ministrava instrução elementar para aproximadamente 140 alunos, lecionando ainda Teologia Moral e Dogmática, enfim, um curso completo para a carreira eclesiástica e também para a formação de leigos. Muitos sacerdotes oriundos deste seminário foram párocos pela província (Marques, 1980, p. Antônio Joaquim de Mello, natural de Itu, nascido a 29 de setembro de 1791, sentou praça como soldado em 1799, na Capitania de Minas Gerais, onde começo a aprender as primeiras letras, deu baixa em 1810, regressando a Capitania de São Paulo. Em 1811 rumou a cidade de São Paulo onde iniciou seus eclesiásticos, sendo ordenado presbítero. No exercício do seu ministério era admirado pelas suas virtudes. Um decreto de 1851 o levou à dignidade de bispo de São Paulo, pois o Real Padroado permitia ao imperador indicar o bispo, cuja confirmação dependia da Santa Sé, foi o primeiro bispo paulista Lutou contra um clero liberal e ainda não conveniente educado, daí umas de suas primeiras atitudes foi fundar o Seminário Episcopal de São Paulo. Pelos serviços prestados à Igreja foi nomeado por Pio IX conde romano, prelado e assistente do sólio pontifício. Faleceu em Itu a 16 de fevereiro de 1861 (Marques, 1980, p. 67-8, 138).

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257-8). O seminário tornou-se um núcleo ultramontano e combatia as idéias liberais, cujo reduto era a Academia de Direito. Nela surgiu uma sociedade de estudantes para combater o protestantismo e o liberalismo, cujo líder era Joaquim Nabuco, filho do senador José Thomaz Nabuco de Araújo, grande defensor dos acatólicos. Provavelmente, a sociedade estudantil estava ligada ao Seminário Episcopal. Entre os professores do seminário podese citar frei Vital Gonçalves de Oliveira, nomeado Bispo de Olinda e Recife (1871) e responsável pelo surgimento da chamada Questão Religiosa, ocasião em que a Igreja e a Maçonaria entraram em atrito. Num Estado cuja religião oficial era a Católica, dois bispos foram julgados e presos. Tal fato ocasionou o descontentamento da Igreja e o desprestígio da Monarquia. Atualmente no prédio em que funcionou o Seminário Episcopal instala-se a Igreja de São Cristóvão. O restante do prédio pertence à Mitra Diocesana, que o aluga para o comércio. O Seminário Episcopal, hoje denominado Seminário Arquidiocesano, instala-se à Av. Nazaré, no Bairro do Ipiranga. Lembra-se que o ensino para os leigos era também dirigido pelos capuchinhos que, em 1899, foi entregue aos Irmãos Maristas. Estes, em 1953, inauguraram o atual Colégio Arquidiocesano, à Av. Domingos de Moraes, bairro de Vila Mariana. Os irmãos Maristas são os responsáveis pelos livros da coleção FTD, sigla em honra ao Frère (Irmão) Theophane Durand.

Sociedade Propagadora da Instrução Popular (1873) ou Liceu de Artes e Oficios Em 1873, São Paulo era uma pequena cidade, com cerca de 30 mil habitantes. A falta de mão de obra qualificada para as fábricas fez com que um grupo de 131 cidadãos, liderados pelo Conselheiro Leôncio de Carvalho, se reunissem para a criação de uma escola profissionalizante, à época denominada Sociedade Propagadora de Instrução Popular, para atender à demanda das História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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emergentes indústrias da capital (Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, 1997, p. 57). Lembrar que até então as escolas públicas apenas atendiam às crianças órfãs ou desamparadas. A iniciativa do Liceu era agora a de preparar os filhos de imigrantes europeus que se encontravam na cidade e espalhados pela província em busca de novas oportunidades de trabalho nas tecelagens e outras fábricas da capital, ou nas fazendas do interior. O presidente da província, Domingos Antônio Raiol, Barão de Guajará, (1883-4) afirmava nos relatório que esta ... instituição continuava a prestar relevantes serviços a Província, desenvolvendo largamente o ensino primário e profissional. O curso primário e o grupo de aulas relativo aos ofícios e artes funcionavam com a maior regularidade possível, sendo freqüentadas por mais de 500 alunos. Grande número de cidadãos tem ali aprendido as matérias da instrução primária e se habilitado para os exercícios dos ofícios e artes.

Diante dos bons resultados da instituição o Presidente da Província mandou entregar à diretoria a quantia de quatro contos de réis pela verba da Instrução Pública, seguindo o exemplo de seu antecessor (Isau, 2006, p. 81). Em 1885 o Liceu de Artes e Ofício contava com 617 alunos, sendo 566 do sexo masculino e 52 do sexo feminino. Possuía um museu pedagógico e sua biblioteca possuía 3.388 volumes e grande número de jornais, franqueados ao público todas as noites. Era presidente da diretoria o Dr. Francisco de Rangel Pestana. Entre os anos de 1888/1889 chegou a possuir 738 alunos, sendo 468 brasileiros. O acervo da biblioteca aumentou para 4.217 volumes, necessitando novo prédio para suas acomodações (Isaú, 2006, p. 80). Era uma instituição para as chamadas classes laboriosas, necessárias para as fábricas paulistas que já começava a prosperar, e que se instalavam próximas ao Gasômetro, na freguesia do Brás, portanto, do outro lado da História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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várzea do Carmo, local preferido principalmente pelos imigrantes italianos. Os alunos eram instrumentalizados no trabalho em marcenaria, calderaria, fundição de bronze e metais finos, assim como em modelação. Passaram pelas aulas do Liceu de Artes e Ofícios (LAO) relevantes figuras de nossa história, como Victor Brecheret, autor do Monumento às Bandeiras, no Parque Ibirapuera. Até hoje as aulas são gratuitas, e o LAO mantém cerca de 1500 alunos (Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, 1993). O LAO de São Paulo hoje se localiza no bairro da Luz, próximo ao rio Tamanduatei. Sua sede anterior, à Avenida Tiradentes, defronte ao antigo Seminário Episcopal, teve edifício projetado por Ramos de Azevedo e hoje abriga a Pinacoteca do Estado, que periodicamente promove mostras de artistas plásticos de projeção mundial, como Rodin, além de contar com réplicas de esculturas, em gesso, elaboradas por seus alunos, como o David, de Michelangelo, e a Vênus de Milo. Em suas instalações foram produzidas todas as ferragens, lustres e demais ornamentos do Teatro Municipal, fundado em 1911. Os hidrômetros domiciliares foram projetados no LAO, assim como os medidores de gás, tanto domiciliares como industriais (Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, 1993)

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Sociedade Protetora da Infância Desvalida (1874)15 e O Instituto Dona Ana Rosa Dona Ana Rosa de Araújo faleceu com 82 anos, em 1872, em sua residência situada à rua da Imperatriz, n. 3616 e deixou grande fortuna para ser aplicada na fundação de um instituto para educar meninos pobres. Ele seria administrado por uma associação denominada Associação Protetora da Infância Desvalida. Era seu testamenteiro o Barão de Sousa Queirós. A nova instituição iniciou suas atividades com dois alunos na chácara do Senador Queirós, freguesia de Santa Efigênia, que conseguiu novos donativos para a instituição, que, afinal, foi fundada a 8 de abril de 1875. Foi transferido mais tarde para o Convento do Carmo, cedido pelo prior frei Antônio da Virgem Maria Muniz Barreto, que era freqüentado, em 1888, por 102 alunos. Mantinha oficinas para ferreiro e serralheiro, carpintaria, pedreiros, pintores e maquinistas. Estes praticavam em duas máquinas existentes no instituto para beneficiar café e arroz. Seus alunos encontravam bons empregos quando saiam da instituição (Isau, 2006, p. 79).

Em Itu havia um estabelecimento para meninas pobres, mantido por particulares, onde se ensinava preceitos necessários para instrucção d'aquelle sexo, a doutrina Christã, as primeiras letras, e a musica.O estabelecimento possuia em 1838 17 meninas. (Müller, 1978, p. 262). Em Casa Branca o juiz de órfãos, por iniciativa própria promoveu com outras pessoas a fundação de escolas agrícolas para receberem os filhos da mulher escrava libertados pela lei de 28 de setembro de 1871(Lei do Ventre Livre). Funcionavam sete estabelecimentos, que são denominados N.S. da Conceição, Cônego Vitorino, Santa Rita, São José, Dores, Santa Iria e Santa Inocência (Godoy, 1978, p. 87).

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Neste prédio funcionou o jornal O Federalista, órgão do Partido Liberal. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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No início do século XX funcionava em um grande edifício, situado no bairro Vila Mariana17, sendo seu diretor Dionísio Caio da Fonseca, que, em 1881, possuía um colégio de instrução primária e secundária situado na cidade de São João do Rio Claro (Martins, 1970, p. 52; 432-3). O largo Ana Rosa, no bairro de Vila Mariana, detém o nome em homenagem à essa mulher. Atualmente, o Instituto Ana Rosa é dirigido pela 5ª. geração dos descendentes do Barão de Souza Queiroz e atende a alunos de Educação Infantil e Adolescentes. Situa-se à Rua Canio Rizzo, nº. 100, no bairro da Vila Sônia, São Paulo.

Escolas Profissionais Salesianas (1882) A Congregação de São Francisco de Sales surgiu no século XIX em Turim, Itália, fundada pelo padre João Bosco, popularmente conhecido por dom Bosco18 e cujos membros são conhecidos por salesianos, objetivando a educação religiosa e a profissionalizante, pois naquele período a industrialização já atingira a Itália. Neste mesmo período, Monsenhor Scalabrini fundava a Congregação de São Carlos Borromeu, dirigida pelos scalabrinianos ou carlistas, que buscavam oferecer amparo espiritual e profissional aos imigrantes italianos que se dirigiram às Américas e à Austrália19. As instalações do instituto funcionaram na Rua Vergueiro e Largo de Dona Ana Rosa, neste largo está situada a estação do metrô Ana Rosa. A instituição, atualmente na periferia da cidade de São Paulo. 17

Na Itália o título de dom é dado aos padres paroquiais, diferente no Brasil que é dado aos bispos e arcebispos, herança da Monarquia, cujo título de dom era reservado ao imperador, membros da família imperial e aos bispos e arcebispos. 18

Em São Paulo, final do século XIX, portanto, já no regime republicano, o padre Marchetti, auxiliado pelo futuro conde papalino Vicente de Azevedo, erigiu o Orfanato Cristóvão Colombo, destinado a inicialmente a filhos de imigrantes italianos, onde além do ensino religioso, havia o profissionalizante. 19

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Em São Paulo os salesianos estabeleceram-se no antigo Campo Redondo, futuro bairro aristocrático dos Campos Elísios, onde fundaram uma capela dedicada ao Coração de Jesus e junto a ela, o Liceu Coração de Jesus, este criado em novembro de 1883. Em agosto de 1885, iniciaram-se as aulas de catecismo e música vocal com 80 alunos. No ano seguinte, abriram-se as aulas do curso primário para alunos internos e externos. O conteúdo programático era Português, Aritmética, Geografia, Francês, Italiano, Desenho (Geométrico e Decorativo), Caligrafia, Declamação, Música e Religião. Os alunos internos estavam divididos em oficinas de alfaiataria, marcenaria, encadernação, douração, sapataria e pedreiro. Projetava-se criar novas oficinas, como tipografia. O corpo discente era composto por 26 alunos internos e 54 externos e o corpo docente, por sete professores. O prédio estava em construção e, após o seu término, poderia abrigar 160 alunos. Em 1888, os alunos internos alcançaram o número de 62, quase todos órfãos, e os externos chegaram a 1.235. Quanto ao comparecimento ao catecismo dominical e dias santificados a freqüência alcançava a 400 alunos. Quando as obras estivessem concluídas, o liceu poderia receber 100 oficiais e 350 estudantes. Este trabalho deveu-se ao labor dos salesianos, ao apoio do governo provincial e às esmolas da população. Em 1888 a classe de música possuía 43 instrumentos e a tipografia estava prestes a inaugurar-se. Partindo dos Campos Elíseos os salesianos procuraram os bairros operários que surgiam além da Várzea do Carmo, na Freguesia do Brás, onde era numerosa a população de origem italiana (Isau, 2006, p.80-81). As oficinas salesianas continuaram com as adaptações necessárias ao funcionamento na cidade e Estado de São Paulo, e o surgimento deste ensino profissionalizante fez surgir uma nova classe social, a estudantil, que, juntamente com os antigos estudantes da Academia, iriam contribuir para o crescimento da metrópole paulista. Eles, juntamente, com os estudantes de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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primeiro e segundo graus de escolas oficiais e particulares, davam novo colorido à Imperial Cidade de São Paulo, incrementando mudanças de hábitos, pois, após as aulas rumavam para os armazéns de secos e molhados onde compravam as gostosas bebidas Caramuru e Gengibirra, ou rumavam para as padarias em busca de saborosos sequilhos doces ou Tarecos, que se vendiam por 40 reis ou uma pataca. Diga-se que a denominação Tarecos desgostava os proprietários das padarias que passavam descompostura nos estudantes ao ouvir a referida palavra, ocasionando gritarias e vassouradas entre os meninos e os proprietários. Era a Caramuru uma bebida feita de milho socado, gengibre, açúcar mascavo e água, em infusão num pote, pelo espaço de oito dias que, depois de coada, era vendida. A Gengibirra era feita de farinha de milho, gengibre, casca de limão e água, ficando também em infusão por alguns dias, sendo vendida por 80 réis, isto é, duas patacas, cada meia garrafa ou botija louçada, que anteriormente, servia para a garrafa de cerveja inglesa. As rolhas das garrafas eram estouradas quando abertas (Martins, 1970, p. 312-3). Os jovens estudantes faziam suas algazarras durante o dia, deixando as folias noturnas para os meninos da São Francisco, que as praticavam desde o início dos cursos jurídicos (1828) na Imperial Cidade de São Paulo.

Ensino Médico (1803) Embora o Ensino Médico na Província de São Paulo tenha tido suas origens antes desta cidade ser declarada como Imperial, esta modalidade de curso profissionalizante transcorreu durante o período que abarca o presente arrazoado, o que justifica breves comentários sobre esse tema. Assim, recorda-se que a situação médica na cidade de São Paulo era muito precária, como igualmente em outras localidades do Brasil de outrora. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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No período jesuítico, São Paulo servia-se da botica do Colégio, principalmente, nos períodos de epidemia, como a varíola (1732), ocasião em que a dita botica recebeu o título de Officina Charitatis (Giffoni, 1970, p. 10,28). A situação sanitária permaneceu precária durante longos anos, mesmo porque os médicos disponíveis apenas se concentravam no Hospital Militar e na Santa Casa de Misericórdia. Tal situação levou o governador da capitania de São Paulo, Franca e Horta20,em 1803, permitir que fossem ministrados, no Hospital Militar, aulas de cirurgia que Ernesto de Souza Campos supõe tratar-se, pela primeira vez no país de germe de uma escola de medicina! (Giffoni, 1970, p. 14). Os alunos de então foram orientados pelo físico Mariano José do Amaral e seis deles receberam diploma no Palácio do Governo. Já em 1888 reuniram-se 70 médicos residentes na Imperial Cidade de São Paulo, presididos pelo Dr. Antônio Pinheiro de Ulhôa Cintra, Barão de Jaguará, e fundaram a primeira sociedade científica da província, a Sociedade MédicoCirúrgica de São Paulo, que perdurou até 1891. Entretanto, a Faculdade de Medicina, instalada inicialmente, no prédio da

Antônio José da Franca e Horta, foi governador da Capitania de São Paulo de 1802 a 1811, provedor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, criou o Hospital dos Lázaros da mesma cidade, instalado –o no bairro da Luz, então periferia da cidade, desapropriado em 1901. Nele existiu a capelinha de Santa Cruz dos Lázaros, na atual Rua de São Lázaro, próximo ao Tamanduatei. Ele foi auxiliado em suas obras por sua esposa dona Luiza Catharina Ghilbert de Miranda, que apelou ao Príncipe Regente Dom João, futuro Dom João VI, para funcionar na antiga fazenda Sant'Ana, desapropriada aos jesuítas, uma Roda de Expostos por se salvarem tantas vidas quantas todos os dias se vêem aparecer (ou perecer) naquela Cidade, por falta de hum socorro (MESCRAVIS, Laima, p. 414). Foi, nomeado, posteriormente, Vice-rei das Índias. O Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Capim Mimoso foi elevada a vila com o nome de Nossa Senhora da Conceição da Franca del Rey, em sua honra, atual Franca. Construiu pontes e estradas na capitania e trouxe consigo o engenheiro Daniel Pedro Muller. 20

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Santa Casa de Misericórdia, surgiu com o Dr. Arnaldo de Carvalho, no início do século XX.

Conclusões Este trabalho demonstra que, ainda no período Imperial do Brasil, particularmente a Província de São Paulo, havia a preocupação com o ensino profissionalizante, não sendo este, portanto, criação e necessidade apenas do final do século XX. Tal tipo de educação tornou-se premente em função, dentre outros aspectos, do avanço da lavoura cafeeira; da população da província, que crescia significativamente; e também em função de uma elite esclarecida, que pregava a igualdade de condições para todos, ao mesmo tempo em que advogava a favor do abolicionismo e da república.

Fontes http://www.crmariocovas.sp.gov.br/neh.php?t=001. das Educandas. Acesso em abril/2010

Seminário

http://www.liceuescola.com.br/conteudo_unico.asp?numero_mater ia=2760301026&id_subitem=421 acesso em abril/2010

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Lincoln Etchebéhère-Júnior é Historiador; Professor Titular do curso de Pós Graduação em Educação, Administração e Comunicação do Mestrado Interdisciplinar da Universidade São Marcos, campus Tatuapé, São Paulo, SP. E-mail lincoln.e.jr@hotmail.com História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 109-141, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Sandra Farto Botelho Trufem é Bióloga. Professora Titular do curso de Pós Graduação em Educação, Administração e Comunicação do Mestrado Interdisciplinar da Universidade São Marcos, campus Tatuapé, São Paulo, SP. E-mail sandratrufem@ig.com.br

Recebido em: 24/05/2010 Aceito em: 20/09/2010

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O LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO RS PARA AS ESCOLAS REPUBLICANAS (1898)1 Maximiliano Mazewski Monteiro de Almeida

Resumo O artigo investiga o processo de adoção do primeiro livro didático de Geografia do RS às escolas elementares da República, analisa o conteúdo da obra e os métodos do autor, evidenciando como esse manual escolar serviu de suporte material tanto para a memória oficial quanto dos opositores ao governo. A investigação demonstra que o sistema argentino de ensino influenciou desde a reorganização da instrução pública até a ausência de mapas ilustrativos no compêndio escolar de Henrique Martins (1898). Palavras-chave: livro didático; geografia; escolas republicanas. THE TEXTBOOK OF RIO GRANDE DO SUL'S GEOGRAPHY FOR THE REPUBLICAN SCHOOLS (1898) Abstract This article investigate the adoptation process to first school book of Rio Grande do Sul's Geography to the primary school grad of Brazilian Republic and analyzes it teaching lessons and the author method employed at this school book, bringing evidences from how that geography's manual was used as material support to the official memory and enough for the govern opositories. This historiography search is competent to prove the argentine teaching system influence since the reorganization of public instruction till the no utilizing illustrative maps in that didact book by Henrique Martins (1898). Keywords: textbook; geography; republican schools. EL LIBRO DIDÁCTICO DE GEOGRAFÍA DE RIO GRANDE DO SUL PARA ESCUELAS REPUBLICANAS (1898) Resumen El articulo investiga el proceso de la adopción del primero libro didáctico de la Geografía del Estado del lo Rio Grande do Sul a las

O presente artigo resulta da dissertação de Mestrado Mandado Adoptar: livros didáticos de História e Geografia do RS para as escolas elementares (1896-1902), sob orientação da Profª. Drª. Maria Helena C. Bastos (PUCRS/2007). 1


144 escuelas elementares de la Republica brasileña e analizando el contenido de la obra y los textos empegados por su autor, evidencia como eso manual escolar servio de suporte material tanto para la memoria oficial cuanto a los opositores daquelle gobierno estadual. La investigación demonstra que lo sistema argentino de enseñanza influencio desde la reorganización de la instrucción publica hasta la ausencia de mapas ilustrativos en el manual escolar hecho por Henrique Martins (1898). Palabras clave: libro didáctico; geografía; escuelas republicanas. LE LIVRE DIDACTIQUE DE GÉOGRAPHIE DE RIO GRANDE DO SUL POUR LES ÉCOLES RÉPUBLICAINES (1898) Résumé L'article examine le procès d'adoption du premier livre didactique de Géographie de Rio Grande do Sul dans les écoles élémentaires de la République. On analyse le contenu de l'ouvrage et les méthodes de son auteur pour montrer comment ce manuel scolaire a servi de support matériel et pour la mémoire officielle et pour les opposants du gouvernement. L'investigation montre que le système argentin d'enseignement a influencé la réorganisation de l'instruction publique et explique même l'absence de cartes illustratives dans le manuel scolaire d'Henrique Martins (1898). Mots-clés: livre didactique; géographie; écoles républicaines.

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Introdução Nesse artigo, analiso o livro didático Geografia do Estado do Rio Grande do Sul, sob autoria de Henrique Martins, professor do Colégio Militar de Porto Alegre, apresentado para a avaliação do Conselho Escolar em dezembro de 1897. Entre as justificativas para concentrar a pesquisa no livro didático de Geografia, destaco que, sobre manuais escolares desse gênero há poucos estudos, tornando-se mais rarefeitos quanto maior a distância do objeto pesquisado das práticas cotidianas do sujeito pesquisador. A história da manualística escolar2 de História e Geografia do RS nos ensina que, desde o primeiro manual do período republicano, seus autores também foram profissionais de diferentes áreas - Jornalistas, principalmente; enquanto os livros didáticos de Geografia do RS originaram-se de catedráticos ou especialistas nesta Ciência. Os compêndios regionais de história, por exemplo, em relação ao tempo presente, têm recebido atenção especial de pesquisadores (LAYTANO, 1979; FLORES, 1989), enquanto os de Geografia, praticamente, foram esquecidos pela historiografia3. O registro mais antigo à aquisição de livros didáticos, no RS, encontra-se nas Atas do Conselho Diretor de Instrução Pública, em 22 de julho de 1873. Naquela ocasião, em sua 4ª Augustin Escolano Benito, atualmente, tem proposto denominar de manualística um novo campo disciplinar para as Ciências da Educação "que agruparia todo o conjunto de estudos em torno da história dos modos de projeto, produção e uso dos livros escolares. Este campo, que está dando origem a um corpus de conhecimentos acadêmicos especializados, começa a construir rubricas de estudo no currículo de história da educação, integrando-se nos programas de investigação sobre a cultura da escolar". 2

Encontrei apenas duas notas bibliográficas, uma em Ari Martins (1978, p.351) e outra, em Pedro Villas-Boas (1974, p.302). 3

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reunião, foi definida a compra de "100 livros de 'História do Brazil' de Pe. Pinheiro a 1:800 réis e de 200 'Geographias' de Berlinck por 900 réis"4. A partir disso, podemos afirmar que os manuais escolares de geografia do RS, desde o século XIX, foram produzidos por educadores, especialistas nessa disciplina5. Em 1897, sob o decreto Nº. 89, de 02 de fevereiro, foi reorganizada a instrução pública no RS aos moldes castilhistas6. Instituída a obrigatoriedade do ensino de Geografia regional, um manual para auxiliar nesses estudos tornou-se necessário. O discurso oficial já apontava a "falta de uma Geografia e História do Estado, escritas de acordo com as modernas exigências do ensino" (Relatório, 1896, p.296) e admitia que "muito se ressente o nosso ensino público primário de uma geografia do Estado" (idem, p.304), permitindo aos membros do Conselho Escolar desconsiderarem alguns critérios do novo regulamento para aceitar o livro de Henrique Martins, entregue em manuscrito. Durante a sessão de 22 de dezembro de 1897, foi aberta exceção para o recebimento de obras manuscritas. O inspetor Arthur Toscano7 defendeu, Considerando que o Conselho Escolar funciona pela primeira vez, colhendo de surpresa aos autores de obras didáticas com a decisão de não receber livros manuscritos

4 Instrução Pública. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Livro de Atas das Sessões do Conselho Diretor da Instrução Pública, 1871/1895. Livro I-55. p12. O título do livro era Compêndio de Geografia da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, autoria do professor Eudoro Berlinck, publicado em 1863. Esse compêndio escolar foi republicado em 1965, através de iniciativa do prof. Dante de Laytano, que reeditou uma série de obras científicas sobre o RS.

Na década de 1860, o prof. Eudoro Berlinck era membro do Conselho de instrução pública e possuía uma escola em atividade na capital (RS). 5

Ver TAMBARA, Elomar. A educação no RS sob o castilhismo. Pelotas: Ed. Seiva, 2006. 6

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Inspetor da 1ª região escolar – sede Porto Alegre História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


147 e os impressos apresentados depois do dia 20 sejam admitidos ao exame deste conselho todas as obras desse gênero impressas e manuscritas apresentadas no curso desta sessão (AHRGS, livro 56, p.6)

O Inspetor Geral, Manuel Pacheco Prates, nomeou a Toscano, Penna e Cidade (Arthur Toscano S. Barbosa, José Penna de Moraes e Lucio Cidade) para elaborarem parecer sobre os livros História do Rio Grande do Sul para o ensino cívico, por João Cândido Maia; Geographia do Estado do Rio Grande do Sul, por Henrique Martins; e Poder da Vontade8 por D. Rosa Fontana.

De manuscrito a livro oficial A aprovação de Geografia do Estado do Rio Grande do Sul (1898) foi marcada por um intenso debate, em 31 de dezembro de 1897, na décima sessão do Conselho Escolar. O debate estabelecido no Conselho Escolar levou os inspetores decidirem através do voto. As reconhecidas "competências" do autor serviram de argumento para defender o manuscrito, porém a falta de afinidade da obra ao método intuitivo havia concentrado as críticas dos avaliadores. Em ata foram registrados os argumentos que representavam a divisão de opiniões, no Conselho Escolar, além de Os editores sul-rio-grandenses eram, famosos pela pirataria. Protegidos da constituição, imprimiam livros sem a autorização dos editores originais e não efetuavam o pagamento de direitos autorais. "O poder da vontade", obra cuja autoria foi de Samuel Smiles, tratava-se de um livro de auto-ajuda, publicado e distribuído pelas livrarias de Garnier, no século XIX, no Rio de Janeiro, traduzido, por orientação do próprio autor Samuel Smiles, a partir da edição francesa, trabalho realizado por Antônio José Fernandes dos Reis. Protegidos da constituição, imprimiam livros sem a autorização dos editores originais e não efetuavam o pagamento de direitos autorais. O livro de Fontana (1897) pertence ao Acervo de 0bras Raras da PUCRS. 8

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descrever o resultado da votação, evidenciando a vantagem obtida pelo Inspetor geral e seus partidários republicanos. Quatro votos decidiram a questão favoravelmente pela adoção. Dois votos foram contrários. E o sétimo voto, retirado da contagem, caracterizado como abstenção. Segue o texto da ata da sessão que julgou a aprovação do manuscrito, para demonstrar a extensão das considerações e os fundamentos críticos dos inspetores contra a aceitação da obra e os entendimentos sobre o que se esperava de um livro didático de Geografia. Ata da 10ª Sessão do Conselho escolar, Aos trinta e um dias de dezembro de 1897, [...] lido o parecer da comissão sobre Geografia do Rio Grande do Sul, por Henrique Martins, depois de longa discussão em que tomaram parte quase todos os membros do Conselho, votaram a favor do parecer aprovando a obra Srs. Prates, Toscano, Fernandes e Lucio Cidade, que retirou o seu parecer em separado e disse que votava pelo parecer [sic] visto que o Sr. Inspetor Geral declarou ter examinado detidamente a obra, achando-a boa. Deixou de votar o Sr. Brandão declarando que 'conquanto se reconheça a competência do autor da obra de que se trata no parecer sujeito á votação para ser coerente com o procedimento que teve em cima das sessões anteriores porquanto só ontem viu o manuscrito, digo só ontem viu a mencionada obra em mão de um dos dignos membros da 1ª comissão e portanto não a leu'. Votaram contra os Sr. Pena que declarou 'votava contra a aprovação do livro atendendo a falta de mapas apesar de reconhecer a competência do autor e Duplan que justificou o seu voto pelo modo seguinte 'considerando que o objeto de ensino de geografia na escola primaria é dar-se ao aluno um conhecimento tão exato quanto seja possível do nosso mundo terrestre, principalmente dos lugares em que vivemos, forma geral, acidentes particulares com as conseqüências que estes deixam, raças de homens, animais e plantas, espécies de minerais, estabelecimento dos homens e mudanças que sua industria, comércio, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


149 relações recíprocas tem introduzido nas condições materiais, divisões especiais que seu modo de viverem e de se agruparem em sociedade comporta; é considerando que tudo isso pode ser e representa sendo a geografia mais ciência da vista, por assim dizer, á vista das crianças é que deve dirigir o mestre, considerando que limitar-se a fazer o aluno ler e decorar um tanto por exato e lógico que seja, importa em cercar-se o ensino, substituir o concreto pelo abstrato quando o concreto é acessível as cousas pela palavra onde ate certo ponto constituem o próprio saber, considerando que um texto de geografia não pode passar de intermediário, de auxilio para firmar na memória o que foi primeiramente percebido pela vista, ou na própria natureza, ou em relevos, estampas e mapas. Considerando que o manuscrito de Geografia do Estado sujeito ao exame do Conselho não é acompanhado de trabalho algum de cartografia, etc. que seja a explicação e comentário como deveria ser atendido a insuficiência dos mapas existentes e a falta de concordância destes com a matéria exposta no aludido manuscrito; parece-me que Geografia do Estado, pelo Dr. Henrique Martins, embora tenha todas as qualidades que se deve esperar do seu prezado autor, não preenche a lacuna apontada pelo Sr. Inspetor Geral em seu relatório uma vez que de acordo com o artigo 6º do Regulamento em vigor se tenha em vista ministrar o ensino nas aulas sustentadas pelo Estado de conformidade com os metódos e processos mais universalmente adotados hoje em relação a essa disciplina, e pelos motivos expostos voto contra o parecer da 1ª comissão'. [AHRGS, livro 56, p. 14-16. negritos nossos].

Analisando as informações do documento apresentado acima, encontra-se Pedro Henrique Duplan9 argumentando, a partir dos fundamentos pedagógicos de ensino intuitivo, utilizado Inspetor da 2ª região escolar – sede em São Leopoldo; ex-diretor da Instrução pública e ex- diretor da Biblioteca do RS, cargo no qual foi substituído pelo autor didático José Pinto Guimarães (O Rio Grande do Sul para as escolas). 9

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desde o período imperial, sobre as contradições do voto do inspetor geral que, através de decreto (n° 89 – 02/02/1897), havia oficializado o método intuitivo10 no sistema escolar do RS republicano. Duplan reivindicava a inserção de figuras e mapas, conforme os métodos "universalmente" adotados na disciplina de geografia, criticava o excesso de textos naquele livro. Os republicanos discordaram, salvaguardando a figura do autor o qual, naquele ano, seu livro Chorografia do Brasil (1896) alcançava a quinta edição e ainda circulava a segunda edição de Elementos de cosmografia (1882). O Inspetor Geral aprovou o manuscrito, ignorando as longas e contrárias considerações e exigências de exatidão no conteúdo das lições, formuladas pelo conselheiro escolar H. Duplan. O Inspetor Geral, Manoel Pacheco Prates, posteriormente, valorizou a obra de Martins como merecedora da adoção pelo "nome de seu autor, ilustre homem de letras que relevantes serviços tem prestado a sua pátria [...] impõem-se este seu último livro pela exatidão, método e moderna orientação". (Relatório, 1898, 474). Esse discurso justificava improcedentes as críticas à ausência de mapas naquela publicação, feitas pela comissão que avaliou o manual, porque os mapas intercalados no texto ou em folhas próprias, além de encarecerem os livros, tem o grave inconveniente de pretender obrigar a criança a ler simultaneamente em duas páginas do mesmo livro; por isso os modernos compêndios de geografia abandonaram este pernicioso método, seguido, em verdade ate 1895 na O método intuitivo compreendia a apreensão do conhecimento através da "lição das coisas", partindo do concreto ao abstrato, através de objetos didáticos utilizados em sala de aula que correspondiam a uma coleção pedagógica. Entretanto, o livro de leituras tornou-se o principal, senão o único, instrumento auxiliar de ensino disponível para professores e alunos durante o período republicano. Para o método intuitivo, no Brasil do século XIX, ver SCHELBAUER, Analete Regina. A constituição do método de ensino intuitivo na província de São Paulo (1870-1889). Tese, USP,2003. 10

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151 República Argentina, de onde foi ultimamente banido, como atesta Alfonso Cosson em seu minucioso e recente compendio de geografia para as escolas elementares (Ibidem).

O sistema escolar implementado buscava métodos de ensino cuja matriz era norte-americana e, sob o ponto de vista dos castilhistas, haviam sido satisfatoriamente empregados na República Argentina. Nessas circunstâncias, o processo de gênese da Educação republicana no Estado obrigava, de modo figurado, a dançar um tango, pois seguia o modelo argentino como exemplo de modernidade11. A impossibilidade de inserir gravuras nos livros didáticos encontrava-se explícita no argumento de "encarecer" os custos de produção e por uma estranha patologia, um tipo de "miopia cartográfica", segundo admitiu o inspetor geral, Manoel Pacheco Prates, "jamais [o ensino de geografia] poderá ser ministrado nos microscópios mapas intercalados no texto e sim em cartas murais. Para este ensino, quanto maior for a escala adotada, tanto menos dificuldades encontrará a criança para formar idéia aproximada da extensão da região objeto de seu estudo" (idem, p.475). A idéia de mapa de Pacheco Prates encontra paralelo em um texto de Jorge Luís Borges, em História da infâmia universal (1993). Borges narrou a história da confecção de um mapa que cobria, em extensão e detalhes, toda a superfície do reino ao qual retratava. Depois de terminado, o objeto tornou-se impróprio para a consulta e foi abandonado no deserto. Para Pacheco, um mapa seria quanto mais didático se sua escala gráfica correspondesse ao tamanho real do espaço a representar.

Conforme admitiu em relatório à presidência do Estado, o inspetor geral, para redigir o texto do decreto nº. 89, "guiei-me pela legislação norte-americana, vantajosamente aplicada na República Argentina, tive o cuidado de fazer as profundas modificações exigidas pelo nosso meio e pela Constituição do Estado" (Relatório, 1897, p.408).

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Detalhe da folha de rosto da obra didática às escolas elementares fornecida desde aquele ano pelo Estado do RS. "Henrique Martins – PRIMEIRA EDIÇÃO – PORTO ALEGRE – Livraria e officinas a vappor de Franco & Irmão – 1898"; (Fonte: IHGRS). Na página seguinte havia a dedicatória "seu distinto amigo Dr. Manoel Pacheco Prates, ilustrado e digno inspetor geral da instrução pública do Estado do Rio Grande do Sul". Para nossa análise, um fator que auxiliou na aprovação, encontrava-se naquela dedicatória, "um gesto que inicia estas relações de clientela, ou de patrocínio" (CHARTIER, 1999, p.39), uma antecipação de agradecimentos. Após o parecer positivo do Conselho Escolar, o manual passou pelo processo de oficialização. Recebeu registro em livro próprio: os Atos de adoção de livros; documentos que confirmam o compromisso do Estado em distribuir os manuais reunidos em livro próprio, não contam, porém, com mais de meia dúzia de registros. O ato de adoção, além de avaliar a qualidade do material após a impressão, faz um breve histórico institucional. Sobre Geografia do Estado do Rio Grande do Sul, de Henrique Martins, diz História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


153 [Ato] Nº 2_Ato de 16 de fevereiro de 1898 mandando adoptar para o uso nas escolas elementares a Geografia do Estado do Rio Grande do Sul por H. Martins [...] Considerando que a 'Geografia do Estado do Rio Grande do Sul' por H. Martins approvada em manuscripto enquanto texto e methodo pelo conselho Escolar, em sessão de 31 de dezembro do anno próximo passado, reúne as condições exigidas para um livro destinado ao ensino elementar porque esta nitidamente impresso em papel e em formato próprio.12

Tendo sido feita impressão tipográfica nas oficinas de Franco & Irmão, em Porto Alegre, e o ato de adoção, os livros de Martins chegaram ao Almoxarifado da Instrução Pública13, órgão responsável por receber diversos materiais e proceder o seu envio às escolas elementares. A primeira compra de livros pelo Estado, efetuada em 1898, envolveu a aquisição de 4500 exemplares, obtidos pelo livreiro Rodolpho José Machado, fornecedor de materiais escolares. Naquele ano, 2913 exemplares do manual foram prontamente distribuídos às escolas, restando ainda 1587 unidades no aguardo de entrega. É provável que as aulas da 1ª Região escolar, isto é, de Porto Alegre e arredores, tenham sido as primeiras a receber os novos manuais de Geografia. Em 1899, pode-se verificar a maior quantidade de livros didáticos encaminhados às aulas públicas e o menor registro de exemplares armazenados. O quadro, abaixo, descreve o movimento de livros de Geografia, no almoxarifado da Instrução Pública, composto a partir de dados obtidos do Livro do Registro do mapa demonstrativo

Instrução Pública - Livro 195 -Livro do Registro de Atos de Adoção de livros escolares e material de ensino:1897/1898. [pg.2, Ato nº 2; 16 de fevereiro de 1898]. 12

AHRGS. Instrução Pública. Livro do registro do mappa demonstrativo dos objetos recebidos pelo almoxarifado da Instrução Pública e distribuído ás escolas. 1898/1903.

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dos objetos recebidos pelo almoxarifado da Instrução Pública e distribuídos às escolas de 1898 a 1903. (AHRGS/Livro - I 99), Livros Recebidos Distribuídos Restantes

1898 4500 2913 1587

1899 1500 3021 6

1900 1500 1391 115

1901 115 -

Cada exemplar do manual de Geografia do RS era adquirido por 2$000 (dois Réis), conforme os valores estipulados nos contratos com fornecedores de móveis e utensílios escolares (AHRGS - livro 196), para os anos entre 1898 e 1902. Segundo esses contratos, cabia, também, ao governo do Estado a responsabilidade por distribuir os manuais escolares, no período mencionado. Entre 1898 e 1900, o almoxarifado da instrução pública recebeu 7500 livros de Geografia do RS, tendo o Estado desembolsado 15:000$000 (Réis) nas suas compras. Esse manual possui 96 páginas, enquanto o de História14, com 217 páginas, equivalia em preço (2$000). Sob tais condições, o manual de Henrique Martins não era avaliado por seu número de páginas, porque nesse caso, seu preço equivaleria ao livro de leituras de José Pinto Guimarães, O Rio Grande para as escolas, com 101 páginas e adquirido, pelo governo, do mesmo fornecedor, Rodolpho José Machado, a 1$000 cada unidade.

O conteúdo de Geografia do RS (1898) O livro de Geografia conservou seu conteúdo inalterado por mais de dez anos, apenas os dados quantitativos (número de habitantes do estado, no total e em cada cidade, número de escolas MAIA, João Cândido. História do Rio Grande do Sul para o ensino. Porto Alegre:Franco & irmão, 1898. 14

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e alunos) foram atualizados. Comparando as edições de 1898 e 1909 (4ª ed.), não foram verificadas variações significativas no número de páginas (96) ou itens do índice. A obra é dividida em duas grandes partes. A primeira, dedicada à geografia física, contendo três capítulos: Orografia (relêvo), Hidrografia (rios e lagoas) e Ilhas e portos (p. 5-46). A segunda parte refere-se à geografia política do Estado, dividida em quatro capítulos sem títulos (p.47-96). No primeiro capítulo, estão descritas as divisões (interior e litoral); as coordenadas cartográficas (longitude e latitude) chamadas por "posição astronômica"; linhas divisórias do Estado; população e clima. O segundo capítulo trata da organização burocrática, inclui os itens como divisão administrativa, judicial, eleitoral, eclesiástica, as fronteiras, as polícias e a força pública, e também a instrução pública15 e as fronteiras. O capítulo terceiro aborda a "produção natural" (os três "reinos": mineral, vegetal e animal), além de desenvolver os itens - agricultura, industria, comércio, vias de comunicação, telégrafos e telefones. O último capítulo trata das ocupações humanas cidades, capital, vilas e povoados. Em recente publicação sobre a avaliação das coleções de livros didáticos no Brasil (SPOSITO, 2006) foram analisados os conteúdos de Geografia do ensino fundamental. Os erros mais freqüentes, encontrados nos manuais modernos são tautologismos. Apontamos, porém, que tais enunciados continuam circulando, ao longo de um século, em alguns livros didáticos de Geografia, tanto naqueles descritos por Sposito (2006, p.55-71) quanto em Sobre instrução pública declarou haver uma Escola de Guerra, as faculdades de Engenharia, de Medicina e Farmácia, e de Direito. Liceu de Agronomia em Pelotas e outro em Taquara. Descreve o ensino primário como "livre, leigo e gratuito" denominando o inspetor geral como diretor da instrução pública. Atualizou os dados de freqüência nas aulas, "33 alunos por escola sendo o número destas de 1025". Apontando a divisão do estado em regiões escolares e a presença dos inspetores regionais, conclui o item dizendo que "o inspetor geral e os inspetores regionais formam o conselho escolar" (MARTINS, 1909, p. 61-2).

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Henrique Martins. Vejamos esses exemplos: "ilha é uma porção de terra cercada de água por todos os lados" (MARTINS, 1898, p. 42), ou "ponta é uma porção de terra estreita e baixa, que entra pelas águas" (idem, p. 23), "planalto é uma planície situada em altura maior ou menor" (idem, p. 7) ou "a superfície da Terra é a sua parte exterior e chama-se também superfície terrestre" (p. 6). Martins entende que a Geografia "tem por fim a descrição da superfície da Terra" (MARTINS, 1898, p.5), sem a declarar uma ciência. Descreve a Terra como "um corpo redondo, assemelhando-se á uma bola; ela tem quase a forma de uma esfera e está solta no espaço" (idem, p. 5). O que se questiona é a imagem que expressou a representação do planeta, como "um corpo redondo [...] solto no espaço", sem qualquer menção ao seu movimento orbital. A imagem produzida para definir a totalidade da superfície terrestre - "corpo redondo" -, não pode ser explicada como uma analogia do autor16 foi, no mínimo, despropositada. Martins não especifica quais metodologias e técnicas foram empregadas para efetuar a sua "descrição" geográfica do Estado. Mas, é evidente a pesquisa bibliográfica como principal método aplicado para a elaboração do livro Geografia (1898). Na primeira nota de rodapé17, pode-se ler: "(1) O Rio Grande do Sul pelo Dr. Alfredo Varella18, que consultamos diversas vezes" Em A Poética do espaço, o filósofo Gaston Bachelard analisou "a fenomenologia do redondo" (2003, p. 235-42). Bachelard argumenta que as referências ao modelo de "ser redondo" são utilizadas para enriquecer a descrição de uma imagem, porque a geometria euclidiana conceituou a esfera como algo "perfeito". Assim, a imagem da Terra como um "corpo redondo, solto no espaço" foi uma abstração de tal ordem, escrita por Martins, que apenas o recurso literário pode justificar seu uso. 16

A numeração das notas de rodapé, em Geografia do Estado (...), reinicia a contagem a cada nova página. Havendo, no total de vinte e sete (27) notas. 17

Alfredo Augusto Varela (Jaguarão, 16/09/1864 – Rio de Janeiro, 27/07/1943) publicou Rio Grande do Sul, descrição geográfica, histórica e econômica, Porto Alegre: Oficinas a vapor da Liv. Universal, editores Echenique e Irmão - 1897, 1ª edição. 18

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(MARTINS, 1909, p.15). Sendo esse mesmo autor, referido, ainda, uma segunda vez em nota: "(1) Dr. Alfredo Varella. – O Rio Grande do Sul." (idem, p. 39). A leitura da obra de Alfredo Varela19, O Rio Grande do Sul (1897), permitiu qualificá-la como a base textual do livro de Henrique Martins (1898). Tornou-se possível afirmar que a obra Geografia de Martins foi composta, exclusivamente, pela compilação do texto de Varela. Encontram-se, inclusive, as mesmas citações em Varela, da obra de Arthur Montenegro, das quais valeu-se Henrique Martins (1898). A organização e a denominação dos títulos, disposta pelo índice de Martins (p. 956), seguem, identicamente, o índice de Varela (1897, p. 507). Em relação ao livro didático de Martins, o texto de Varela distancia-se pelo seu estilo literário, pela variedade de dados empíricos, reflexão crítica e número de páginas (507 páginas). Varela, ao descrever aspectos da Instrução Pública, criticou a forma de escrita dos manuais didáticos, fazendo a seguinte proposta "para obter-se um resultado conveniente, que o Estado ordenasse que os livros do ensino primário fossem redigidos em ortografia fonética" (VARELA, 1897, p. 392). Essa característica crítica da análise de Varela, entretanto, Martins não a assumiu na sua adaptação "didática" daquela obra. Outro autor citado é "(1) J. Arthur Montenegro20. –

Encontramos, na coleção de obras raras da Biblioteca Central da PUCRS, além do livro citado, entre outros trabalhos de Varela: Pátria: livro da mocidade, editado em 1900 pela Lammert, no Rio de Janeiro. A folha de rosto informava, em favor da editora, que entre outras obras do mesmo autor "A entrar para o prelo – (...) Geografia riograndense para escolas". Varela pretendia participar do mercado de livros didáticos. 19

José Arthur Montenegro (Sobral, 29/02/1854 - Porto Alegre, 04/04/1921) publicou Notas para a carta Geográfica do Rio Grande do Sul, em 1895, cuja edição coube à Liv. Rio Grandense, Rio Grande (60 págs.). Militar e funcionário da Estrada de Ferro (P. Alegre – Uruguaiana). Membro da Academia de Letras do Ceará e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (VILLAS-BOAS,

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Notas para a carta geográfica do Rio Grande do Sul." (idem, nota1, p. 25), que recebeu uma segunda nota de referência: "(1) Arthur Montenegro. – obra citada." (nota 1, p. 40). Mereceram destaque, também, Ayres Cassal21 (p. 40, nota 2), o capitão Hyppolito das Chagas Pereira22 (idem, p. 30, nota 1) e o coronel Bento Porto e seu mapa (idem, p. 48, nota 1). A referência cartográfica foi valorizada no texto escolar, porque, segundo concordou Henrique Martins (1898), o mapa atualizava as fronteiras naturais do RS, "assinalando que o rio Barrocas não afluía ao rio Touros, mas sim ao Rio das Contas", definia uma versão para a linha divisória entre o RS e Santa Catarina ao "continuar pelo rio das Contas até o Pelotas" (MARTINS, 1909, nota 1, p. 48). As notas utilizadas serviram como um artifício para produzir sentido realista à escrita, articulando nomes próprios (autores, personagens e lugares), descrições de eventos e textos arrolados. O historiador Michel De Certeau (1982, p.122) apontou que "a citação é o meio de articular o texto com sua exterioridade semântica, de permitir-lhe fazer de conta que assume uma parte da cultura e de lhe assegurar, assim uma credibilidade referencial". O mapa citado23, no livro de Martins (1898), é uma 1974, p.325). Em 1894, publicou em Rio Grande, uma proposta de estatuto para o Instituto Histórico e Geográfico do RS. Por considerar o rio Santa Maria como a origem do rio Ibicuí. Conhecido como Aires de Cazal, autor de Chorografia brasileira, 1817. 21

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Pela informação que localizava a nascente do rio Taquari na serra do Maia Côco.

23 Em 1992 (Bagé, 29-31/out.), os Anais do II Simpósio sobre Fontes para a história da Revolução de 1893 (URCAMP, 1992, p.31-35), traziam, em anexo, um pequeno texto intitulado Breve esboço do cerco de Tijucas de Breno Meletti Duarte (s/p). Na bibliografia do artigo consta o mapa dos oficiais Bento e Rath, porém, indica a origem gráfica na "Impressora Paranaense (Curitiba, s/ data)". Essa evidência indica uma segunda impressão da obra cartográfica. O mapa original foi impresso na oficina litográfica de Ignácio Weingartner, (Acervo de obras raras/ PUCRS).

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fonte que possibilita efetuar conexões entre documentos diferentes, como relatórios da instrução pública e atas do conselho escolar.

Fig. 1. Mapa: A guerra no Rio Grande do Sul, suas principais operações. Pelo tenente Francisco Rath e coronel Bento Porto (1896), citado em Martins. Escala de 1:2.000.000. Anexo ao mapa segue um texto: Nota Explicativa. Constituindo uma cronologia dos acontecimentos da Revolução Federalista, complementa as informações do mapa, enumera as "principais batalhas" e três História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


160 invasões do RS. Descreve a "volta de Gumercindo", os deslocamentos das tropas federalistas e republicanas nos estados do Paraná e de Santa Catarina, traça o rumo da frota rebelde na costa brasileira, em uma evidente apologia aos revolucionários. (Fonte: PUCRS).

Martins dedicou ao capítulo II - "Hidrografia" - vinte e cinco páginas, nas quais concentrou dezoito notas de rodapé (MARTINS, 1909, p.20-45). Tendo a palavra escrita como o único recurso à disposição do autor, para comunicar suas lições, devido ao impedimento da utilização de imagens de mapas cartográficos. Martins esforçou-se em representar o espaço geográfico através das pormenorizadas descrições copiadas do texto de Varella (1897). Citamos, como exemplo para a argumentação, as seguintes "descrições" de Martins, Perto de Itapuam há uma bóia iluminadora, outra em S. Simão e um mangrulho iluminador na barra de S. Lourenço.[...][a lagoa] Mangueira ou do Albardão, assim chamada porque fica na costa que tem esse nome. É a antiga Saquarembó dos espanhóis. Tem ela 120 quilômetros de comprimento e 12 em sua maior largura e fica á leste da Mirim.[...] Desde alguns anos desapareceu o arroio Tahim que era um canal de descarga dessas lagoas para a Mirim (MARTINS, 1909, p. 24-5).

Tantas páginas e notas de rodapé concentradas em um único tema encontram explicação histórica, para além da valorização do "grande número de rios notáveis, não só por sua situação como por serem navegáveis em maior ou menor extensão" (ibidem), comprovam a importância, naquela época, dos recursos hídricos como meio de transporte. As possibilidades de navegação foram indicadas em informações do tipo "profundidade do canal navegável [da Lagoa dos Patos] varia de 9 a 11 metros, sendo entretanto de 3 ½ metros apenas próximo ao canal de S. Lourenço" (idem, p. 24) ou, "Jacuí [...] excelente via de comunicação entre a capital do estado e numerosas localidades e centros produtores" (p. 28). As descrições de embarcações aceitas nos rios qualificam a navegabilidade do "Taquari [...] podendo ir História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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pequenos vapores" (p. 31), do "Caí [...] navegável por vapores de médio calado" (p.32), do "Gravataí [...] freqüentado por lanchões e um pequeno vapor até o porto das Canoas" (idem, p. 33) e do "Capivari [...] rio de pequena extensão e pouco fundo, apenas navegável por iates" (idem, p.34). Ainda, sobre o tema "vias de comunicação", admitiu haver "inúmeras" estradas de rodagens, em geral, "se tornam más na época das chuvas", e apesar dos "obstáculos que embaraçam a navegação, obstáculos que o governo trata de fazer desaparecer, para cujo fim há contínuos trabalhos. Mesmo assim a navegação é entretanto muito animada e importante" (idem, p. 71-2). No capítulo III – Ilhas e portos (idem, p.42-45) – denominou cinco portos existentes no RS. Ao finalizar comentou: "o chamado porto das Torres, ao norte da costa. É aí que se projeta construir um porto de primeira ordem, em ligação com a capital do Estado por meio de uma estrada de ferro" (idem, p. 45). Esta questão do porto em Torres, não é a única inserção textual a qual propõe ao leitor um futuro a ser construído pelo governo republicano. Um tempo no qual a modernização proposta pelos republicanos solucionará os obstáculos herdados do passado. Como exemplo disso, o autor destacou a intervenção tecnológica sobre o rio Caí, no porto "Maratá, lugar em que está sendo aplicado, pelo engenheiro Dr. Costa da Gama o sistema de barragens automóveis, o que produzirá um notável melhoramento em sua navegabilidade" (MARTINS, 1909, p. 32). A imagem do tempo vivido por Martins encontrou, sob a forma do texto didático, a oportunidade de transformar-se em memória narrada. Nesse caso, a perspectiva de integração entre as colônias de agricultores do vale do Caí e a capital do Estado, sustentada pelos "melhoramentos da navegabilidade", foi marcada pela participação do estado republicano, evitando a qualquer outro grupo, futuramente, assumir a autoria do empreendimento em seu discurso de reconstituição histórica.

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Martins (1898, p. 55-56), também, descreveu a Instrução Pública no Estado, apresentando índices de freqüência, quantificando escolas, "em média 43 alunos por escola, sendo o n° destas 668, que são as providas de professores, porém de escolas criadas é de 770". Contudo, os números citados extrapolam os relatos da Instrução Pública. Em 1899, o Inspetor Geral, Manuel Pacheco Prates, admitia a existência de 741 escolas no Estado, sendo que 523 em funcionamento, isto é, providas de professores 24 . O número de alunos do sexo masculino era de 11.276, e o de alunas 8.777; um total de 20.053 alunos matriculados nas escolas públicas. Quanto aos professores, naquele ano, estavam registrados 590 profissionais de ensino. As técnicas de escrita de livros didáticos, no RS de finais do século XIX, assentavam na compilação. Os critérios utilizados na seleção dos textos de Geografia incluíram propaganda republicana, visão estratégica militar do território, notas à memória dos traumas decorrentes da Revolução federalista (1893/95) e ausência de críticas à economia do RS. E, nesse caso, traços das lembranças de certos episódios da Revolução Federalista (1893/95) foram, imediatamente, após o término do conflito, inseridos na quinta edição de Elementos de Chorografia do Brasil (1896) e, posteriormente, em Geografia do Estado do Rio Grande do Sul (1898). Essas inserções narrativas são lembranças pessoais do autor aos leitores. Houve, em Martins, urgência em delegar no passado um lugar à violência exacerbada da guerra civil ocorrida no Estado. Em fevereiro de 1893, dá-se a invasão federalista e principia a guerra civil, encarniçada, feroz e desumana

Correspondendo estes números ao cadastro de dados de 31 de maio de 1898. Ao que se "entendia" por escolas incluía-se salas alugadas, nas quais havia um professor responsável por um turma de níveis escolares diversos. Relatório 1899. Instrução Pública. p. 10. Anexo: Quadro demonstrativo do movimento das escolas públicas do Estado no anno de 1898. p. 10 24

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163 que ensangüenta o solo rio-grandense, que por cerca de 3 anos tem seus campos talados, suas cidades invadidas, casas incendiadas, tendo como conseqüência a desolação completa da campanha. Finalmente, em 23 de agosto de 1895, estabeleceu-se a paz que a anistia concedida pelo congresso Nacional parece firmar definitivamente, e oxalá que assim seja e que os rio-grandenses se compenetrem de que a paz é o melhor dom de que podem gozar para que seu Estado progrida, desenvolva-se e assuma entre seus co-irmãos a posição a que tem direito. (MARTINS, 1896, p.164)

Apesar de atribuir à "invasão federalista" como a deflagração do conflito, em fevereiro de 1893, Martins serviu-se do termo guerra civil, para generalizar as práticas de violência, evitando apontar os responsáveis pelas casas invadidas, pelos incêndios nas cidades e nos campos, pelos assassinatos. A região da campanha25, segundo Martins, sofreu "desolação completa" devido à "guerra civil", encontrando-se em um estado decadente. Diante do que o autor fazia votos para uma confirmação definitiva da anistia concedida pelo Congresso Nacional: "oxalá que assim seja" (ibidem). Há lugares, no livro Geografia (1898), associados à lembrança de episódios daquela guerra civil. Quando refere-se ao rio Camaquã cita em nota que "nas pontas desse rio que fica o capão Carovi, perto do qual feriu-se [sic] o combate de 10 de agosto de 1894, no qual morreu Gumercindo Saraiva, celebre chefe revolucionário" (MARTINS, p. 38-9). Também, ao descrever um dos afluentes do rio Quaraí, o arroio Invernada, A região onde se encontra a "verdadeira riqueza do estado": a criação de gado (Martins, 1909,p. 68) – apesar de não ser feita "com os devidos cuidados" (ibidem). Essa região alcançaria a modernidade se a produção artesanal de queijo e manteiga atingisse a escala industrial (ibidem), e substituísse a tradição do pastoreio, racionalizando a criação do gado "solto no campo" pela "introdução de animais de raça" e o "emprego de forragens especiais" na alimentação do novo rebanho, o que demandaria o confinamento do gado (p. 69).

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Martins abriu espaço em nota de rodapé para lembrar "à margem deste arroio, no lugar denominado Campo Osório, que houve o ultimo combate da revolução federalista e onde morreu o contraalmirante Saldanha da Gama, a 24 de junho de 1895" (p. 41, nota 2). E, ainda, a cidade de Bagé, "tornou-se celebre, durante a ultima revolução, pelo sitio que sofreu da parte dos federalistas que não conseguiram tomar a cidade, verdadeira praça de guerra, cujo comandante era o então coronel Carlos Telles" (p. 81). Segundo Julio Aróstegui (2006), as memórias históricas surgidas da guerra civil diferenciam-se em duas vertentes, uma está ligada à memória da celebração, oficial e vitoriosa; a outra, subterrânea, é a memória da frustração, traumática, pertence aos vencidos. O desejo de recordação dos fatos de um passado histórico está ligado, sempre, à auto-satisfação coletiva, à autorealização e auto-afirmação de uma história comumente celebrada. Os lugares de memória nascem, indefectivelmente, de um sentimento com esse sentido [...] O trauma coletivo, o fato trágico, o fracasso, o extermínio, levam em seu seio a memória da luta, do confronto, da repressão da lembrança e da tensão por sua recuperação. A memória do trauma é a da derrota, no mais amplo sentido. (ARÓSTEGUI, 2006 p. 70).

Podemos enquadrar Henrique Martins, também na linha de memorialistas do trauma, daqueles que ficaram com as recordações da derrota. Os elementos que compõem as lembranças, inseridas em Geografia (1898), recuperam um passado marcado pela tragédia e morte dos líderes da Revolução Federalista. Suas narrativas testemunham o "célebre chefe revolucionário"26 (MARTINS, 1898, p. 39), apontam para o local do "último combate da revolução federalista" (ibidem, p. 41) e as referências bibliográficas do autor indicavam obras de crítica à 26

Gumercindo Saraiva. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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sociedade do RS (VARELA, 1897) e uma cartografia produzida para narrar as campanhas dos federalistas (PORTO, 1896). Martins rememorou as circunstâncias, os lugares e as datas, com precisão, que envolveram a morte de dois revolucionários (tratados respeitosamente) opositores aos republicanos castilhistas e destacou o sítio à Bagé, evidenciando derrotas militares e vidas perdidas. A Revolução de 1893 também interferiu na instrução pública, professores foram acusados de propagar "idéias federalistas". Restaram alguns fragmentos (após o vandalismo praticado nas folhas do livro de atas do Conselho Diretor de Instrução pública - AHRGS, Livro 55) que testificam, durante os anos da Revolução federalista, a ocorrência de investigações dos inspetores regionais sobre o envolvimento e simpatia de professores às idéias revolucionárias. Duas folhas ainda permanecem para provar que, nas reuniões ocorridas em 20 de outubro de 1894 e 13 de junho de 1895, o Conselho julgou e avaliou acusações a professores e professoras do ensino público.

Considerações Finais No Rio Grande do Sul, desde meados do século XIX, a impressão de livros didáticos, pelos castilhistas, dependia que o Estado assumisse a função de editor, selecionando os textos adotados para o ensino público, transformando-os em objetos escolares. A singularidade do conteúdo destinado às leituras nas aulas elementares, a fim de refletir a doutrina republicana, passou primeiramente pela reforma de 1897, extinto o Conselho de Instrução Pública, assumiam as autoridades o Conselho Escolar. O autor de livros didáticos de Geografia, o professor Henrique Martins participou do mercado editorial do RS, no período de transição entre Império e República. O seu livro Geografia do Estado do RS (1898-1909) foi oficialmente adotado e distribuído às escolas elementares do Estado. A disciplina de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Geografia regional foi mantida no currículo escolar desde a Reforma da Instrução Pública de 1897 (RS, Dec. Nº. 89, 02/02/1897). O lugar intelectual da elaboração do texto de Henrique Martins, a Escola de Guerra de Porto Alegre (ou Colégio Militar), especificamente, a cátedra de Geografia, condicionou sua abordagem à problemática da navegabilidade. O pensamento estratégico-militar restringiu a observação empírica de Martins à praticidade, orientando-o apenas a avaliar os usos imediatos dos rios e lagoas como vias de comunicação. Porém, há aspectos materiais que desmentem os principais argumentos que sustentaram a aprovação daquela obra no Conselho Escolar (1897). Primeiramente, trata-se de uma cópia (Varella, 1897), isto é, a obra não foi intelectualmente elaborada por quem a apresentou ao Conselho Escolar (Martins, 1897). O livro que originou a Geografia do Estado do RS destinava-se a um público leitor diverso dos alunos das escolas elementares. Em questões de referências bibliográficas, o livro didático de Geografia do RS republicano castilhista conservou, ao longo das suas quatro edições (1898-1909), as notas de rodapé que indicavam autores e obras utilizados para sua compilação, manteve-se ao longo de uma década feito a partir de cópia de partes do livro editado por Alfredo Varella impresso em 1897. Os apontamentos de Martins aos esforços do governo republicano, abrem espaços à memória oficial cujo público leitor deveria ser seduzido pela narração dos empreendimentos republicanos que, naquele momento histórico, dedicavam-se às melhorias necessárias ao progresso do Estado. A ausência de ilustrações (mapas e figuras) não garantiu um preço equivalente aos demais livros adotados, esse manual custava o mesmo valor (2$000 ou dois mil Réis) que a obra de João Maia, História do RS (1898), a qual possuía o dobro de páginas da Geografia. A tecnologia tipográfica do RS, em finais do século XIX, limitava a produção de ilustrações nos livros História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 143-171, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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escolares, as gravuras de mapas eram, em geral, importadas, o que encarecia o preço final dos exemplares. A análise de conteúdo, ao manter o interesse na transposição dos elementos de memória social introduzidos no espaço-texto de Martins, potencializou a percepção de um processo de longa duração que envolve a 'tradição de lembranças' pedagogicamente formatada para a sociedade do RS associada à doutrina do PRR. Existem três notas de rodapé, nas quais H. Martins citou eventos da Revolução federalista – as mortes de Gumercindo Saraiva27 e Saldanha da Gama, o "cerco a Bagé". O autor copiouas do texto de Varela (1897), porém essas notas carregam a memória da derrota, da dor da perda, enfim são memórias daqueles que sofreram com a derrota, não são lembranças de comemorações. As relações que estabelecem os textos das citações mencionam acontecimentos federalistas e não com o governo legalista. O que faz pensar em H. Martins como simpatizante do movimento revolucionário, considerando, também, o debate provocado quando da apresentação de seu livro ao Conselho Escolar em 1897, sendo sua aprovação decidida pelo voto dos inspetores.

Referências ALMEIDA, Maximiliano M. M. de. Mandado adoptar: livros didáticos de história e geografia do RS para as escolas elementares (1896 -1902). Dissertação de Mestrado. PUCRS, 2007.

Esse foi o bode expiatório da perseguição castilhista efetuada pelo Sen. Pinheiro Machado e sua Divisão do Norte. Morto, o túmulo de Gumercindo foi profanado, o cadáver esquartejado, sendo que sua cabeça e espada foram apresentadas no gabinete do presidente do Estado naquele ano de 1894.

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Maximiliano Mazewski Monteiro de Almeida é Mestre e Doutorando em História das Civilizações Ibero-Americanas / Programa de Pós-Graduação em História /PUCRS - linha de pesquisa: Sociedade, Ciência e Arte.

Recebido em: 28/04/2010 Aceito em: 20/09/2010

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EDUCAÇÃO ESPÍRITA EM MINAS GERAIS: A PRESENÇA DO EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO (1958-1978)1 Nicola José Frattari Neto

Resumo Este trabalho visa compreender a ação da União da Mocidade Espírita de Ituiutaba, UMEI, no período de 1958 a 1978. Em 1958 foi criado o Ginásio do Educandário Ituiutabano, em Ituiutaba, Minas Gerais. Naquele momento existia carência de ensino secundário na cidade, pois somente havia instituições escolares particulares. Tendo em vista esta situação, é nosso objetivo neste artigo discutir como a UMEI influenciou as práticas educativas desenvolvidas na escola, inclusive com a criação de um grêmio estudantil. A escola obedeceu, a princípio, as Leis Orgânicas do Ensino Secundário, propostas por Capanema ao longo do governo Vargas. Em consonância com as diretrizes das Leis Orgânicas, o projeto do grupo espírita de Ituiutaba procurava reforçar os valores nacionalistas, ao se engajar numa proposta pedagógica voltada para a formação patriótica. Palavras-chave: Espiritismo; secundário; Leis Orgânicas.

Instituição

escolar;

Ensino

KARDECIST EDUCATION IN MINAS GERAIS: ITS PRESENCE IN ITUIUTABA IN HIGH SCHOOL EDUCATION (1958-1978) Abstract This study is aimed at understanding the action of the Kardecist Youth of Ituiutaba UMEI during the period from 1958 to 1978. in 1958 the "Educandário Ituiutabano" was created in Ituiutaba, Minas Gerais. At that tame there was a lack of high school institutes in the city because there were only private schools in this area. Recognizing this situation it is our objective in this article to discuss how UMEI

Este texto resulta da pesquisa intitulada Educandário Espírita Ituiutabano: caminhos cruzados entre a ação inovadora e sua organização conservadora. Ituiutaba, Minas Gerais (1954-1978), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação, FACED, da Universidade Federal de Uberlândia, UFU, sob a orientação do prof. Dr. Carlos Henrique de Carvalho. 1

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174 influenced the educational practives developed in the school, including the creation of a Student Council. The school obeyed, basically, the principles of the Organic Laws of High School Education proposed by Capanema during the Vargas Government. In accordance with the Organic Laws the project of the Kardecist group of Ituiutaba made an effort to fortify the nationalistic values, by engaging in a pedagogic proposal aimed at a patriotic formation. Keywords: Kardecists; Educational Institutions; High school education; Organic Laws. LA EDUCACIÓN ESPÍRITA EN MINAS GERAIS: LA PRESENCIA DEL EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO EN EL LAPSO (1958-1978) Resumen El presente trabajo tiene la intención de comprender la acción de la Unión de la Mocedad Espírita de la ciudad de Ituiutaba, el UMEI, en el lapso de 1958 hasta 1978. En 1958 fue creado el Gimnasio del Educandário Itutiutabano, en la ciudad de Ituiutaba, en la Província de Minas Gerais. En aquél momento, existia carencia de la enseñanza secundária en la ciudad, pues solamente existia instituiciones escolares particulares. Haya visto que esa situación es nuestro objetivo, en este artículo, discutiremos como la UMEI influenció las prácticas educativas desarolladas en la escuela, incluyendo la creación de um grémio estudantil. La escuela obedeció, en princípio, las Leyes Orgánicas de la Enseñanza Secundária, propuestas por Capanema al largo del Gobierno Vargas. Seguiendo las diretrizes de las Leyes Orgánicas, el proyecto del grupo espírita de Ituiutaba procuraba reforzar los valores nacionalistas, al dedicarse a uña propuesta pedagógica objetivando la formación patriótica. Palabras clave: Espiritismo, Instituición Escolar, Enseñanza Secundária, Leyes Orgánicas. L'ÉDUCATION SPIRITE DANS LA RÉGION MINAS GERAIS: LA PRESENCE DE LA INSTITUTUION EDUCATIONNEL EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO (1958-1978) Résumé Cet travail a comme but comprendre l'action de la União da Mocidade Espírita de Ituiutaba – UMEI, dans la période 19581978. Dans la région de Minas Gerais, en 1958, a été crée la Instituition educationnel – Ginásio Educandário Ituiutabano, de Ituiutaba. A l'époque il n'existait pas de lycées publiques, il'avait seulement des institutuions educacionnels privées. En partant de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


175 cette situation, on espère en cet article, discuter comment l'UMEI a influencée les pratiques éducatives dévelopées dans le Ginásio Educandário Ituiutabano, surtout, avec la creation d'une association des étudiants. Le Ginásio Educandário Ituiutabano a obéit, d'abord, les lois municipales pour les lycées, proposes par le Monsieur Capanema, pedant le governement Vargas. En accord avec cettes lois, le projet du group spirite de Ituiutaba cherchait de renforcer les valeurs nacionalistes, en s'engageant dans une proposte pédagogique dirigée pour la formation patriotique. Mots-clés: Spiritisme; Institution Secondaire; Lois Municipales.

Scolaire;

Enseignement

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1. Introdução Este trabalho visa compreender parte do funcionamento de uma instituição escolar confessional espírita, o Educandário Ituiutabano, fundado em 1958 e extinto em 1978. Essa escola foi instalada pela União da Mocidade Espírita de Ituiutaba, UMEI, por estar em seus fundamentos a construção de orfanatos, escolas e hospitais, na tentativa de amenizar o impacto que o crescimento econômico e populacional da cidade causava, sobretudo à população carente. A pequena cidade de Ituiutaba era considerada a "capital do arroz", entre as décadas de 1950 até meados de 1970, por haver alcançado destaque no setor agropecuário. Mas por trás de seu crescimento econômico os índices demonstravam, que naquele momento em 1950, cerca de 57% da população era analfabeta. Observando o painel educacional da cidade encontramos, no momento de sua abertura década de 1950, duas escolas confessionais católicas e uma escola particular, com ensino primário e secundário. Mas as altas mensalidades dificultavam o acesso do alunado pobre2. O único grupo escolar da cidade, fundado em 1908, sendo o terceiro do Triângulo Mineiro, não oferecia vagas suficientes a todos, além de atender quase exclusivamente às famílias mais ricas, pois seu prédio havia sido construído em um local mais central da cidade, onde a população Encontramos três dissertações que falam dessas escolas particulares e confessionais de Ituiutaba; são elas: MORAES, Vera Cruz de Oliveira. Tudo pela pátria: a história do "Instituto Marden" (1933-1942). Dissertação de Mestrado em Educação, UFU. Uberlândia, 2004; OLIVEIRA, Lúcia Helena Moreira de Medeiros. História e memória educacional: o papel do Colégio Santa Teresa no processo escolar de Ituiutaba, Triângulo Mineiro, MG (1939-1942). Dissertação de Mestrado em Educação. UFU, Uberlândia. 2003; COSTA, Maurício A. A ação dos estigmatários em Ituiutaba, MG. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. UCG, Goiânia. 2003. 2

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carente não possuía acesso fácil3. Na zona rural o ensino era mais precário. A maioria da população estava ligada aos trabalhos do campo, mas as quatorze escolas municipais primárias já instaladas, permaneciam fechadas, pois não havia professores disponíveis4. Foi observando esse quadro do ensino local que a UMEI construiu o Educandário Ituiutabano, declarando que a escola seria leiga, após uma série de lutas e perseguições criadas por seus opositores católicos e alguns políticos da localidade. Procuramos encontrar em sua gênese indícios que indicaram a transferência dos princípios da UMEI para o Educandário, pois ao pesquisarmos sobre o funcionamento dessa escola, percebemos que ela não obedeceu aos ideais de laicidade e sim, apresentou uma filosofia interna espírita, calcada nos princípios da UMEI. Estes princípios também foram responsáveis pela organização, pelas práticas pedagógicas e alguns dispositivos que auxiliaram na implantação de seu regimento interno e projeto pedagógico, sendo um deles o Grêmio Estudantil.

2. A presença da UMEI no educandário A União da Mocidade Espírita de Ituiutaba, UMEI, foi fundada em 5 de maio de 1947, por um grupo de jovens cuja idade variava de 16 a 20 anos. Seu primeiro presidente, Germano Laterza, contava então com 15 anos. Os jovens que compunham o grupo freqüentavam alguns dos centros espíritas já espalhados por Ituiutaba, mas necessitavam de um espaço próprio a fim de desenvolverem os projetos assistenciais e educacionais a que se Quanto ao ensino primário em Ituiutaba verificar: FERREIRA, Ana Emília Cordeiro Souto. Da centralidade da infância na modernidade à sua escolarização: a Escola Estadual João Pinheiro, Ituiutaba (MG). Dissertação de Mestrado em Educação. UFU, Uberlândia. 2007. 3

4 CÂMARA DOS VEREADORES. Ata da reunião realizada no dia 17 nov. 1955, p. 53 e 54. Ituiutaba, 1955. Livro nº 12, p. 53 e 54.

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pretendiam desde a formação. O Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo, primeiro centro fundado na cidade, em 1938, abriu as portas para receber as reuniões entusiásticas dos jovens da UMEI. Apesar de esta possuir diretoria própria, ficava subordinada à diretoria do Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo e às orientações do senhor Vergílio Pereira de Almeida, membro representante da União Espírita Mineira, de Belo Horizonte, que se encontrava em Ituiutaba por ser inspetor do Banco do Brasil. Ao que parece, o caráter das reuniões da UMEI era inovador, pois, além dos estudos sobre o Espiritismo, estudavam esperanto, dedicavam-se às práticas assistenciais nos bairros carentes da cidade e, sobretudo, a apresentações teatrais, à recitação de poemas espíritas da lavra de Francisco Cândido Xavier e ao canto. O objetivo principal, além do entretenimento e da própria evangelização por meio da arte, era contagiar os amigos que não freqüentavam as reuniões e conquistar novos jovens que pudessem vir acrescentar ao grupo. Como vemos: Procuravam atrair as pessoas para o Centro Espírita, através do teatro amador. Por exemplo, Odemério Pedro da Silva escreveu uma peça teatral intitulada "O porquê dos acontecimentos" – história de um brilhante advogado que, após sua ascensão pela vida, decaiu, quando começou a usar mal a sua inteligência, tornando-se presa fácil de hábeis obsessores, perdendo o mérito de sua encarnação. Eram temas simples de cunho espiritualista e evangelizador (MALUF, 1992, p. 151).

Os jovens da UMEI não se limitavam aos trabalhos no centro; promoviam saraus literários, festas comemorativas na casa dos integrantes, pequenas excursões a fazendas próximas, onde realizavam gincanas, jogos, piqueniques, estudos doutrinários, e visitas mais distantes, como ao médium Francisco Cândido Xavier, mesmo que em grupos menores. Mas esses jovens inovaram dentro do próprio movimento espírita ituiutabano, enfrentando problemas com a direção do Centro Espírita História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Eurípedes Barsanulfo ao desejarem prosseguir com as peças teatrais e o desejo de comprar um alto-falante, necessário para as peças e as palestras, pois o salão do centro espírita ficava lotado. O desagrado do presidente do centro ficou claro, e os jovens decidiram se mudar. Foram convidados, pela diretoria do Centro Espírita Amor Fraterno, a continuarem seu trabalho nessa outra instituição5. O estatuto da UMEI só foi registrado em 1955, e nele encontramos, em seus fins, tanto uma compilação das ações que vinham desenvolvendo quanto alguns fatores novos, tais como: a) – Promover a propaganda e difusão da doutrina espírita, pela palavra falada, escrita, imprensa, rádio, etc. b) – Promover estudos teóricos, práticos e científicos da doutrina espírita e o estudo comparativo das doutrinas análogas. c) – Organizar reuniões sociais e recreativas. d) – Promover a educação cívica de seus associados ou afeiçoados, inspirada num sadio patriotismo. e) – Construir Educandários, asilos, Escolas e outras organizações de caráter benemérito educacional, que tenham por normas os princípios puramente cristãos, e isto através de campanhas filantrópicas, doações angariadas ou qualquer meio de renda lícita (ESTATUTO DA UNIÃO DA MOCIDADE ESPÍRITA DE ITUIUTABA, 1955, p. 2).

Esses fins, contidos no Estatuto da UMEI, fundamentaram o trabalho de fundação e orientação do Educandário Ituiutabano desde a instituição de seu Regimento Interno. Como podemos constatar, com relação aos itens "a" e "b", mesmo a escola não promovendo a propaganda e o estudo do 5 Todas as atas da UMEI foram descartadas, ficando apenas uma análise feita pela espírita e memorialista Maluf (1992.).

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Espiritismo, os princípios espíritas direcionavam a instituição, principalmente no tocante aos aspectos do Conselho Diretor, enfocado pelo Regimento Interno. O conselho do Educandário Ituiutabano estava acima da própria diretoria da instituição; só poderia ser composto por membros pertencentes à UMEI e espíritas, de onde viria a indicação para o cargo de diretor e secretário da escola6. Aqui, também o item "e" estava em vigor. A ação do conselho, no âmbito interno da instituição, garantia um caráter mais conservador e segregacionista a ela, pois fazia cumprir o Regimento Interno para ocupação dos cargos de diretor e secretário; dessa forma, garantia que fossem ocupados só por espíritas. Foi a forma encontrada para não permitir a entrada de líderes contrários à identidade religiosa dos fundadores da instituição, assegurando que o projeto da UMEI continuasse a ser executado. Encontramos, nas entrevistas com ex-membros do conselho, que padres católicos estiveram, por muito tempo, à espreita da instituição, quer na tentativa de se ministrar a catequese católica ou de se apossarem do todo; e que outros líderes educacionais e políticas da cidade sempre desejaram a direção da instituição, na tentativa de transferirem o prédio para o Estado, distribuindo cargos que seriam nomeados, acabando com o corpo docente voluntariado e, conseqüentemente, com a ideologia difundida. Assim, a direção da instituição iniciava-se no Conselho Diretor, ou "olho" da UMEI, que deveria ser composto apenas por membros espíritas e que possuía plenos poderes administrativos e pedagógicos. O conselho indicava os cargos de diretor escolar e secretária, ficando a direção da escola composta só por espíritas. A intenção com esse ato era manter a escola leiga, pois os padres O caráter conservador estava explicito neste trecho: "Só poderão pertencer ao Conselho Diretor pessoas maiores de 21 anos, que gozem de boa reputação social, que tenham no mínimo quarto ano primário e que declararem que aceitam os princípios espiritualistas kardecianos." (EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO, Regimento Interno do Educandário Ituiutabano, 1957, p. 24) 6

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católicos desejaram se apossar da instituição em seus primeiros tempos para ministrarem a catequese. Além disso, essa atitude manteria afastados alguns políticos locais que desejavam promover-se em meio ao povo, utilizando o Educandário (D'AVILA, 2006)7. Mas constatamos que simpatizantes do Espiritismo, também, colaboraram com sua direção. O farmacêutico e maçom João Damasceno8 foi tesoureiro da UMEI no período de construção do Educandário, entre 1954 e 1958, sem nunca freqüentar as reuniões dos jovens da UMEI. Foi respeitado e juntou-se ao grupo por amizade aos irmãos de maçonaria, principalmente Germano Laterza, presidente da UMEI, e por ser favorável à causa. Após a inauguração, continuou, durante os 20 anos de funcionamento do Um caso curioso a ser ressaltado foi o colhido do primeiro diretor do Educandário Ituiutabano, Ângelo Tibúrcio D'Avila, professor de línguas neolatinas, farmacêutico e então vereador de Ituiutaba. Relata Ângelo: "(...) o interesse dos padres apareceu depois da construção ao funcionar a escola, tanto que, ao assumir a diretoria escolar, impus uma condição: só aceitaria o cargo se não houvesse pregação religiosa de espécie alguma no educandário, pois que fora construído independentemente disso. Assessorado pelo inspetor Edelweiss, o padre João queria implantar o catecismo no educandário, naturalmente fazendo uma cabeça de ponte para se apossar do resto, como atualmente estão os estrangeiros com a Amazônia, negociando com os índios em suas reservas. O inspetor Edelweiss era o recadeiro. Disse a ele: "Bem, o senhor trouxe o recado, leva a resposta. Em Uberlândia, o padre fulano (hoje falecido) cismou de conquistar senhora casada, cujo marido descobriu e passou piche no r... dele. Diga para o padre João que, se ele vier aqui com pretensões, vou fazer a mesma coisa, piche aqui tem de sobra. Foi o mesmo que botar água no fogo" (D'AVILA. 2006) 7

DAMACENO, João Batista (2006) nasceu em Frutal, Minas Gerais, em 18 de dezembro de 1914. Fez o curso de Farmácia na faculdade que originou a UFMG, em Belo Horizonte, e trabalhou em várias cidades do país até se instalar em Ituiutaba. Católico por formação e maçom, foi tesoureiro da diretoria da UMEI que construiu o Educandário Ituiutabano, sendo convidado pelo presidente Germano Laterza. Também fez parte do Conselho Diretor que permaneceu na instituição. Reside atualmente na rua 24, 1.377, em Ituiutaba, e é farmacêutico aposentado (2006) 8

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Educandário, fazendo parte do Conselho Diretor, que, segundo ele, influenciava fortemente e estava muito presente nas decisões, principalmente nas questões de ordem administrativa, como as campanhas para término da escola, reformas e manutenções diversas (DAMACENO, 2006), ficando as questões pedagógicas nas mãos de Paulo dos Santos9, o diretor. Nessa intenção do Conselho Diretor, encontramos a coerência em garantir liberdade de religião dentro da escola permeando o projeto da UMEI com mais um princípio de sua filosofia interna. Muito mais que assegurar a implantação de uma escola confessional espírita, mantendo o próprio conservadorismo, o conselho garantiu um caráter mais livre para a instituição, acolhendo jovens de todas as religiões. Manteve um todo coeso a fim de não priorizar grupos que poderiam vir a se formar dentro do próprio conselho, ocasionando priorização no sentido religioso. Naturalmente, essa abertura também garantiu mais liberdade a outros caracteres, como o político, o de crítica e o de discussão, garantindo uma educação de vanguarda na escola em alguns pontos e contrastando com a educação confessional e rígida destinada a outras instituições de ensino. Esse senso mais democrático possuiu seu alicerce nesses princípios igualmente. Veremos que, a partir da ação do Conselho Diretor, a questão da liberdade e democracia no ensino permeou as práticas e a condução do Educandário. Seu aspecto leigo, fundamentado pelo conselho, não permitiu sequer a adoção da disciplina Religião no curso Ginasial, O Professor Paulo dos Santos nasceu em 02 de junho de 1927. Em 1960 assumiu a direção do Educandário Ituiutabano até 1973. Era professor, advogado e psicólogo. Ministrava aulas de todos os conteúdos escolares, embora sua formação fosse em Português. Fundou o Colégio Padre Júlio, em Campo Florido, Minas Gerais, em meados da década de 1950; o Ginásio Estadual de Gurinhatã, Minas Gerais, em 1966; e a Creche Espírita Josefina de Magalhães, em Ituiutaba, Minas Gerais, em 1967. Foi vereador e delegado de polícia na cidade de Gurinhatã, durante a década de 1970. Foi sepultado em 23 de abril de 1982, em Ituiutaba. 9

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não estando esta registrada em seu currículo. O Conselho Diretor do Educandário foi contra o capítulo III das Leis Orgânicas do Ensino Secundário, que afirmava, no Art. 21, que o ensino de relação constitui parte integrante da educação, sendo lícito aos estabelecimentos de ensino secundário incluí-lo nos estudos do primeiro e do segundo ciclo (BRASIL, 1942) e, em parágrafo único, explicitava que os programas de ensino de religião e o seu regime didático serão fixados pela autoridade eclesiástica (BRASIL, 1942). A promessa feita, nos jornais locais, foi cumprida, e nenhuma forma de ensino religioso foi ministrada naquela escola. Mas é necessário levarmos em consideração que o Conselho Diretor esteve amparado pela Constituição de 1946, que já não enfatizava mais o ensino religioso, que deixou de ser obrigatório. A Constituição já expressava certa liberdade na possibilidade de ministrá-lo ou não. O texto redigido no Artigo 168, V, apresentou o seguinte tópico: o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável (BRASIL, 1946). Pelas entrevistas com exprofessores, ex-funcionários e ex-alunos do Educandário, concluímos que nunca houve aulas de ensino religioso durante os anos de funcionamento do Educandário10. Quanto aos itens "c" e "d" dos fins da UMEI, que tratavam do aspecto social, recreativo e cívico da instituição, vemos que esses fins orientaram muitas práticas educativas no O ponto mais polêmico no debate educacional da Constituição de 1946 foi a questão do ensino religioso: "A liga eleitoral católica (LEC), como em 1934, formulou um programa cuja aceitação era condição para o apoio católico aos candidatos. De seus dez pontos, quatro eram prioritários, o ensino religioso nas escolas públicas, a equiparação do casamento civil ao religioso, a indissociabilidade do matrimônio e a assistência religiosa em quartéis, presídios e hospitais". No âmbito educacional, o debate católico foi vencido, e os alunos puderam escolher qual ensino religioso gostariam que lhes fosse ministrado, e isso além do horário (OLIVEIRA, 2005).

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Educandário no tocante às artes e às aulas-passeio, práticas muito difundidas pelo professor Paulo dos Santos. Começaram com a fundamentação do Grêmio Lítero-musical Bernardo de Guimarães. Mesmo tendo suas reuniões transformadas (de um grêmio de caráter mais nacionalista, em voga no momento de sua implantação, em 1958, passou a um grêmio mais atuante nos problemas da escola e da comunidade, já sob a influência de Paulo dos Santos, a partir de 1960), o grêmio recebeu influência dos jovens da UMEI quanto à arte e recreação: declamações, formação de coral, montagem de peças teatrais de autoria dos próprios alunos, tudo isso continuou a existir no interior do Educandário, principalmente pelo fato de o orientador do grêmio ser Germano Laterza, fundador da UMEI, seu presidente e principal fundador do Educandário. Vejamos como o Grêmio Estudantil representou essa transferência de princípios da UMEI para o Educandário.

3. O Grêmio Litero-Musical Bernardo de Guimarães Para Candido (1978), a estrutura de uma escola deriva de sua existência como grupo social, escapando até mesmo da legislação e das normas administrativas, pois estas ganham novo significado na dinâmica do todo escolar. Por isso, mesmo sob a mesma regimentação, encontramos escolas tão diferentes. Dessa realidade, nasce a necessidade da observação do grupo ou dos vários grupos formados no âmbito escolar, observando sua vida profunda e total, bem mais que a única análise dos mecanismos de direção escolar. Propõe o autor que, quando o educador conseguir analisar a escola nesse todo, e não apenas como cumpridora de uma legislação, encontrará sua autonomia. Conseqüentemente, a adoção desse ponto de vista alarga e aprofunda a visão do educador, permitindo-lhe uma ação educacional também mais larga e compreensiva (CANDIDO, 1978, p.108). E, nesse sentido, continua: História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


185 (...) é preciso dar atenção ao que há de específico na sociabilidade da criança e do adolescente em face do adulto; aos tipos de agrupamento por eles desenvolvidos; ao mecanismo de seleção dos líderes; ao conflito com os padrões sociais impostos pela educação, etc. (CANDIDO, 1978, p. 110).

Dessa forma, a escola se torna um ponto de tensão, representando os padrões da própria sociedade num jogo que deve ser compreendido pelos educadores para uma atuação melhor entre os alunos. Há, então, variadas divisões que devem ser identificadas na tentativa de se melhorar a atuação. Pelos grupos de alunos formados na escola, verificamos o surgimento de diversos líderes, baseadas principalmente no prestígio, que é uma condição de seu exercício, junto com a idade e o sexo. Na liderança de alunos, o elemento pessoal sobrepõe-se ao elemento institucional, ao contrário da liderança exercida pelos educadores. Vejamos de forma mais ampla a questão: A liderança de alunos constitui uma das vias principais de manifestação dos tipos de personalidade, sendo além disso fator importante de integração grupal, visto como o líder encarna ou impõe valores ligados à dinâmica da vida social da escola. A sua conduta sugere aos demais os tipos de comportamento fundamentais a esta, seja no plano dos agrupamentos e das normas oficialmente estabelecidas e sancionados, seja no plano dos agrupamentos e das normas desenvolvidos à sua margem, ou em oposição a elas (CANDIDO, 1978, p. 123).

Dessa forma, a liderança entre alunos no Educandário Ituiutabano sempre foi instigada, desde os primórdios da escola, principalmente por meio do grêmio estudantil, que nasceu com ela, além das lideranças naturais que se formaram espontaneamente entre os alunos nas salas de aula. O Grêmio Lítero-educativo do Educandário foi fundado em 8 de março de 1958, com a presença de seu patrono, o inspetor federal do ensino secundário doutor Edelweiss Teixeira, o presidente da UMEI e História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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orientador Germano Laterza e o diretor da instituição, Ângelo Tibúrcio D'avila. No primeiro ano de funcionamento do grêmio, somente os 27 alunos do 1º ciclo ginasial participaram, pois os outros quase 500 alunos estavam matriculados no ensino primário, sob a responsabilidade da diretora Nair Gomes Muniz. Após a formação da diretoria, composta pelos alunos, chamou-nos a atenção o fato de o inspetor federal apresentar o nome de alguns poetas e literatos, sugerindo Bernardo Guimarães para o nome do grêmio. Segue pequena biografia apresentada pelo então inspetor Edelweiss Teixeira: Entretanto entre outros nomes apontava o de Bernardo Guimarães como o mais ligado às atividades literárias do Triângulo Mineiro: nascido em Ouro Preto, viera ainda criança para Uberlândia onde o pai passou a exercer a função de Juiz de Direito. Estudou no Seminário de Campo Belo hoje Campina Verde. Escreveu solene, cenas e fatos do Brasil Central. Foi Juiz Municipal em Catalão. O seu conto "Jupira" prende-se a um fato de Campina Verde. Foi o introdutor do sertanismo na literatura brasileira. Por todos estes títulos merece ser conhecido e cultuado pela mocidade do Triângulo Mineiro (ATA DO GRÊMIO ESTUDANTIL, 15 de março de 1958).

É interessante como o aspecto literário esteve marcado nos primeiros anos de funcionamento do Grêmio Estudantil Bernardo de Guimarães. Nas atas das reuniões do grêmio, que vão de 1958 até 1965, vimos mudar o perfil das reuniões e dos alunos militantes. Entre 1958 e 1960, as reuniões eram realizadas semanalmente, ainda que a ênfase desses encontros fosse no primeiro semestre. Verificamos que o grêmio era o momento do encontro literário, pois os alunos declamavam poemas e apresentavam biografias de poetas e literatos ilustres. Também o inspetor Edelweiss Teixeira apontava os erros mais comuns no falar cotidiano. Esse momento era dedicado, igualmente, à leitura das normas, dos direitos e deveres dos alunos, ao entoamento do

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Hino do Educandário, no início das reuniões, e do Hino Nacional, ao seu término. A pauta da reunião do dia 12 de abril de 1958 marcou detalhadamente a recepção do Ministro da Educação Clóvis Salgado na cidade e, também, as comemorações em função do Dia de Tiradentes, com apresentações artísticas desenvolvidas pelos alunos, tais como teatros, declamação de poemas e cantos. A presença nacionalista estava nas reuniões do grêmio, nos hinos, nos "vivas" dados ao Brasil e no estudo dos poetas e literatos brasileiros principalmente. Percebemos, por meio das atas, que, embora houvesse uma diretoria estudantil, os temas para as pautas eram indicados pelo inspetor Edelweiss Teixeira e pelo orientador Germano Laterza, cabendo aos alunos do grêmio apenas o cumprimento das ações propostas. Encontramos, nessas ações da UMEI no grêmio estudantil, a compactuação com a idéia de construção de uma nova identidade nacional coletiva, sedimentada na educação, desde os anos de 1930, pelo Estado Novo e que permeou as escolas até a década de 1960. Essa formação integradora estava presente no ensino de História e Educação Moral e Cívica, enfatizada nas leis orgânicas do ensino, mas, sobretudo, com o objetivo de formar um caráter cidadão nos alunos, buscando, nos exemplos dos grandes homens brasileiros, defensores da pátria, e no apoio moral católico, a nova identidade brasileira, cívica e patriótica. Essa educação neutralizaria os regionalismos e a fragmentação política, formando uma nova consciência nacional indissolúvel. As comemorações cívicas nesse período se tornaram importantes mediadores para a nova visão de mundo e da história: Celebrações cívicas e estímulos aos sentimentos patrióticos são especialmente úteis e eficazes no jogo político, pois lidam com a história e com a memória. Numa perspectiva mais geral, as festas são vistas como momentos propícios à afirmação de identidades, crenças e valores, à rememorações de tradições, à legitimação de hierarquias sociais. Ainda que se constitua em lugar de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


188 memória, a festa cívica dedica-se, antes de tudo, à exaltação da nacionalidade, e na maioria das vezes o seu principal objetivo é a comemoração de um episódio ou de um personagem vistos como significativos da história da nação ou como símbolos de valores relevantes para a consolidação de uma identidade nacional (FONSECA, 2005, p. 46).

Assim, compreendemos que o Grêmio Estudantil Bernardo de Guimarães se fundamentava, entre 1958 e 1960, em alguns pressupostos dessa educação, que tentava garantir um novo sentimento de nacionalismo aos alunos em busca dessa identidade nacional, sendo direcionado pelo inspetor federal e pelo orientador. E, ainda, em meio aos relatos cívicos, encontramos registros de brincadeiras realizadas por seus membros, como entrevistas com professores, alunos e convidados, todas num clima mais descontraído; apresentações de poesias e crônicas pelos alunos; apresentação de um jornal narrado, mais voltado aos comentários juvenis da escola, como anúncio de aniversários, recados, datas de festas e outros. Mas, a partir da chegada do professor Paulo à escola em 1960, as reuniões deixaram o tom nacionalista e ocuparam-se de problemas mais próximos da instituição, como o engajamento do grêmio nas campanhas de manutenção e ampliação da escola. E as brincadeiras deram lugar a algumas montagens teatrais, sempre num sentido mais contextualizado com a realidade dos alunos. Apesar de, entre os anos de 1961 e 1965, os registros serem poucos, quase limitados a simples troca de diretoria, colhemos algumas manifestações do grêmio com relação a campanhas em prol da manutenção e reforma da escola; participação no cenário estudantil da cidade, com a inteiração de alunos educandarianos nas chapas concorrentes ao Grêmio Estudantil Municipal; participação nos bailes de Rainha Estudantil e Rainha da Primavera; organização de bailes e eventos outros para arrecadação de recursos financeiros em prol do grêmio e da própria escola. Também nesse período, apesar dos poucos registros, havia História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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concorrência de chapas para eleição, o que não havia no início do grêmio, quando os integrantes eram escolhidos pelos dirigentes da escola. O caráter solene e literário das reuniões dos primeiros anos do grêmio estudantil cedeu lugar a discussões mais voltadas aos problemas da instituição e ao engajamento nas forças estudantis da cidade, com a presença de líderes que iam se formando e despontando na escola, assumindo compromissos em áreas distintas como as artes, o esporte e a política estudantil, o que aconteceu justamente a partir da presença do professor Paulo. Esse aspecto da liderança entre os alunos foi um processo bastante fomentado por Paulo como diretor, em sua prática pedagógica, em sua capacidade de perceber e despertar tais lideranças. Sua rapidez de raciocínio e senso psicológico o capacitava para a integração dos alunos nas diversas tarefas que a escola poderia oferecer, não permitindo que os líderes ficassem apenas no âmbito dos grupos por afinidade, mas que, igualmente, fizessem parte na condução da escola. De maneira geral, como nos relataram os entrevistados, os alunos assumiam as tarefas por gosto por dada prática ou certo trabalho, despertados por um convite que era dirigido, principalmente, àqueles mais atuantes e noutros casos, àqueles mais indisciplinados, Daí a atenção que lhe dá sempre a administração, procurando selecionar líderes de acordo com os seus interesses e, graças a um sistema de destaque e recompensas, servir-se deles para os seus desígnios pedagógicos. É antiga a prática de escolher decuriões, chefes de batalhão, entre os alunos mais ajustados ao que se poderia chamar a ideologia oficial da escola, propondoos ao mesmo tempo como modelos e como auxiliadores da direção e do ensino (CANDIDO, 1978, p. 123).

O anfiteatro ou auditório era o ponto central para o desenvolvimento das atividades do grêmio e de todas as atividades festivas e extracurriculares do Educandário. Criou-se, no História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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imaginário dos alunos, grande respeito pela importância que aquele lugar representava, tornando-se o coração da instituição. Podemos ver isso nas memórias de uma ex-aluna: Final de semana, ele [professor Paulo dos Santos] deixava a gente fazer brincadeiras dançantes no anfiteatro. (...) Era legal demais, o povo da cidade ia para dançar, e nós alunos preparávamos o "auditório" com declamação de poesias, cantos e outros, fazíamos um "auditório" muito bom. Também havia muita palestra lá. O anfiteatro era aproveitado para eventos como as formaturas. Na época que o Chico Xavier esteve aqui em Ituiutaba, a sua palestra foi lá. O anfiteatro era muito grande, possuía muitas cadeiras, um palco elevado... Eram muito bonitas as cortinas. O auditório era muito importante; era o auditório! (CLAUDINO, 2008).

O auditório era o centro das festividades do Educandário: reuniões, palestras, shows e festejos. Era o lugar que acolhia todas as manifestações. Aliás, a cidade não oferecia um espaço para manifestações de estudantes; havia apenas um clube que possuía salão de festas. O desenvolvimento do projeto da UMEI para o Educandário foi efetivado na parte pedagógica, pelo professor Paulo dos Santos. E encontramos, na tentativa de reconstrução desse projeto, muitas semelhanças com o método intuitivo de ensino já previsto em Minas Gerais desde 1911, por meio do decreto n. 3.191. Sobre o projeto educacional da UMEI e Paulo dos Santos, vejamos: O Paulo era atuante demais da conta e se dedicava inteiramente à direção da escola, não descuidava da disciplina, da parte didática, da parte dos conhecimentos gerais, da música – a escola possuía fanfarra e até um coral. O coral ficava por conta da professora de Canto Orfeônico e o teatro, por conta do grêmio. Havia sempre um grupo de teatro fazendo algumas montagens. Eu estava um pouco afastado do grêmio, mas me lembro de algumas peças, peças pequenas que envolviam ecologia, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


191 meio ambiente, sentimentos morais, sobre a história; eles participavam intensamente. Essas comemorações eram na escola mesmo, nos dias das comemorações e festas. Tudo funcionava no auditório, que foi construído para isso, até show de rock foi apresentado em fim de semana, muitas pessoas foram participar desse festival de rock. Uma coisa bem montada, já aperfeiçoada para a época, na década de [19]60. E a diversão era pequena em Ituiutaba e na região: tirando o cinema, não tinha aonde ir, então tinha que aproveitar a escola para ser o meio de comunicação, o meio de instrução, o meio de informações para os jovens daquela época (FRATARI, 2007).

A fala do ex-professor evidencia que a integração promovida no Educandário, além de reforçar a filosofia da UMEI, era utilizada por Paulo dos Santos para educar, socializar, despertar nos alunos sentimentos de integração e, sobretudo, apontar a escola como lugar/espaço de convivências e vivências. A escola passou a ser referência para os alunos, a maioria carentes, incluídos nela, que lá encontravam a oportunidade de desenvolvimento cognitivo e social, haja vista que a pequena Ituiutaba não oferecia recursos nas áreas da cultura, do esporte nem na educação. Continua o ex-professor: Os alunos ficavam os três períodos na escola. Iam para lá para praticar esportes, formação do time de futebol de salão campeão da cidade. Também para o ensaio da banda marcial, que era concorridíssima, porque todo mundo queria fazer parte da banda, para sair da cidade, nas viagens para os concursos e apresentações, para tocar os hinos marciais. A professora de música, Ana Rosa, vinda de Uberaba, influenciava demais na ornamentação, nos cartazes, nas acrobacias que se faziam e treinavam na escola, enfocando o verde, que era a cor predominante, a capa verde da fanfarra era colocada pelos alunos ao sair para o desfile. As bicicletas todas com aros enfeitados, colocados previamente ali para fazer o desfile. A população gostava demais das apresentações do Educandário, porque eram coisas assim, que lembravam o História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


192 circo [risos], chamavam a atenção e era mais bonito que as escolas particulares (FRATARI, 2007).

Mesmo com o saudosismo do entrevistado, comum a alunos e professores ao se recordarem, podemos observar outros traços do cotidiano daquela instituição escolar, que, em períodos extraturno, funcionava com variadas atividades implementadas pelo professor Paulo, sempre auxiliado pela professora de Canto Orfeônico Ana Rosa e pelos alunos que lideravam cada frente de trabalho. Havia ali formação de times de futebol de salão e a fanfarra, projetos concorridos, principalmente pelas viagens que faziam nos torneios e apresentações na região, Uberaba/MG e Goiânia/GO. E também o recebimento de alunos de outras cidades em dias festivos, como nas paradas de Sete de Setembro. Os alunos que estudavam no período diurno faziam essa movimentação durante a semana, pois os alunos do noturno estavam empregados durante o dia. Mas esses últimos, também, participavam dos jogos, da fanfarra, dos desfiles, das festas e dos grupos de arte durante fins de semana, não permitindo que a escola fechasse. O Educandário era referência, também, no lazer.

4. Considerações finais A pausa na pesquisa torna-se relevante à medida que for utilizada para refletir sobre o objeto, para a busca de novos apontamentos e imersão no mundo no próprio universo do objeto, do que foi encontrado ou conhecido ou as particularidades do espaço escolar. Por isso, toda proposta de conclusão do estudo não é fácil, pois sabemos que não esgotamos o tema, mas apenas podemos chegar a alguns apontamentos preliminares sobre o caminho percorrido e o que pudemos constatar (ou reter) dessa caminhada. No caso do Educandário Ituiutabano, o que nos moveu foram as notícias encontradas nos jornais locais: uma escola História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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construída por uma associação espírita e declarada laica numa pequena cidade do interior mineiro. À época, Ituiutaba começava a despontar no cenário econômico como a "capital do arroz" do Triângulo Mineiro, indo na contramão dos caminhos da industrialização "pavimentados" por Juscelino Kubitschek. Nesse contexto é que emergem as polêmicas em torno da criação da escola espírita. Ela se apresentava como uma inovaçâo, podendo ser considerada como de vanguarda social, já que tinha como proposta atender aos setores mais carentes do município, pois até então a predominância era de escolas particulares ligadas, em sua maioria, à igreja católica. Além do mais, o Educandário foi implantado em via inversa, pois nasceu para preencher a lacuna do ensino público da cidade, estando aberto à população de forma gratuita, como ação filantrópica, visando atender a população sem escola, que somava 57% de analfabetos. Mas o que nos parece contraditório é que, para garantir a própria inovação, houve a necessidade de se formar um Conselho Diretor, que garantiu um caráter conservador à instituição. O Conselho Diretor era composto por membros da UMEI e espíritas locais e esteve presente dentro da instituição nas campanhas para sua manutenção, na contratação da diretoria da escola e, também, apontando soluções para problemas administrativos e educacionais. Acima dessas funções, garantiu que não houvesse infiltração religiosa nem política na escola, assegurando que o projeto educacional dessa união espírita fosse implantado sem proselitismo na tentativa de se manter uma escola aberta a toda população, independentemente de religião, gênero ou etnia. Não encontramos, na documentação da escola, vestígio da aplicação de um ensino religioso, seja no currículo ou nos relatórios anuais. Mas, pelas entrevistas, percebemos uma educação espírita implantada que já estava na raiz do projeto. Pela documentação de abertura, ficou demonstrado que a UMEI transferiu seus princípios à instituição, princípios estes que comungavam, em parte, com o desenvolvimento nacional no que História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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tange ao nacionalismo evidenciado pelas leis orgânicas do ensino secundário; mas também transmitiu ao Educandário seus ideais de juventude espírita na continuação de práticas que, no interior da escola, foram utilizadas para a aprendizagem apoiadas nas leis orgânicas e em algumas práticas do método intuitivo, previsto em lei desde a Primeira República, talvez por ter sido utilizado na 1ª escola espírita do Brasil, em Sacramento, Minas Gerais. Essa metodologia permitiu que o projeto da UMEI fosse desenvolvido, principalmente porque encontrava na figura de Paulo dos Santos um diretor e professor capaz de compreender as necessidades da escola e da comunidade escolar. Ficou evidenciado que, com a chegada desse professor, o Educandário tomou o impulso para o que foi criado, conseguindo uma movimentação social, garantindo a muitos jovens a oportunidade do estudo e, mais além, da formação técnica, pois os cursos Normal e Técnico em Contabilidade, também, foram implantados mais adiante. O Educandário ainda auxiliou na sedimentação do Espiritismo na cidade, pois, com sua ação, aos poucos a comunidade escolar volumosa − principalmente pela atuação do professor Paulo – passou a respeitar mais os princípios espíritas, deixando de ver essa religião como obra do demônio, conforme pregava a Igreja, mesmo que não passassem a freqüentá-lo de forma maciça. Percebemos que os espíritas em Ituiutaba colaboraram para a higienização da cidade, refletindo o que se passava no país, principalmente com a proposta de desenvolvimentismo instalada por Kubitschek. Enquanto a cidade crescia e enriquecia, tornandose um dos pólos mineiros da produção de grãos, os espíritas cuidaram da parcela escondida de delinqüentes, órfãos, idosos e doentes mentais, com a construção de instituições filantrópicas nas décadas de 1950 e 1960. Fato esse verificado em inúmeras cidades brasileiras com a construção de asilos, creches, orfanatos, lares e escolas. Os princípios espíritas de filantropia não objetivaram formar mão-de-obra qualificada na abertura do Educandário; História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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mesmo porque, Ituiutaba voltava-se ao trabalho agrícola, necessitando, em sua maioria, de trabalhadores braçais sem qualificação. Fato esse considerado, principalmente, pela escolha de um curso ginasial em detrimento de um curso profissionalizante e por a escola não possuir fábricas ou meios outros que sustentassem a própria manutenção. A escola contribuiu, assim, para a pressão nacional havida, para a vulgarização do ensino ginasial no país, uma vez que as leis orgânicas do ensino secundário foram criadas por Capanema no governo Vargas, em 1942, com o propósito de formar apenas uma elite brasileira. Dessa forma, o Educandário foi instalado para reverter os índices de analfabetismo da cidade e colaborar para a formação secundária dos alunos, bem ao modo dos liberais que lutavam por uma lei educacional mais voltada a um ensino público e laico. Mas, ao mesmo tempo, pelos princípios confessionais implantados, destinou-se a garantir uma formação para a ascensão social dos alunos, preocupando-se com uma formação moral diferenciada do civismo, implantado no sistema educacional nacional, apresentando singularidades quanto ao ensino que se assemelharam a outras experiências educativas espíritas no Brasil. O Educandário inovou o sistema educacional local, tendo em vista essas considerações. Tanto ao ser instalado quanto ao instalar os cursos de formação ginasial e técnica; ao oportunizar cursos extracurriculares, não mais pensados na educação feminina como simples formação para o casamento, mas na profissionalização da mulher; ao instalar a primeira creche da cidade em suas dependências; e ao dar uma formação moral de acordo com a proposta espírita de formação integral do ser. A UMEI garantiu um modo de ascender à comunidade escolar para que se revertessem os quadros de criminalidade e prostituição onde foi instalado o Educandário. Mesmo enfrentando problemas graves de superlotação de turmas, falta de docentes qualificados, desprezo da ação política municipal e não-valorização da experiência educativa História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 173-198, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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por certa parcela social e educacional da cidade, a escola mantevese apoiada numa proposta filantrópica, bem ao gosto dos trabalhos espíritas desenvolvidos pelo Brasil.

5. Referências BRASIL. Decreto-Lei nº 4.244, de 9 de abril de 1942. Lei Orgânica do Ensino Secundário. www.soleis.adv.br acesso em 20 de mar. 2008. BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Promulgada a 18 de setembro de 1946. In: Fávero Osmar (org.). A educação nas constituições brasileiras 1823-1988. 3ª Ed. São Paulo: Autores Associados, 2005. CÂMARA DOS VEREADORES. Ata da reunião realizada no dia 17 nov. 1955, p. 53 e 54. Ituiutaba, 1955. Livro nº 12, p. 53 e 54. CANDIDO, Antonio. A estrutura da escola. In: PEREIRA, Luiz & FORACCHI, Marialice M. (Orgs.) Educação e sociedade (leituras de sociologia da educação). 9ª Ed. São Paulo: Editora Nacional, 1978, p. 107-128. CLAUDINO, Nauri Sônia Melo. Ituiutaba/MG, 17/04/2008, 1 fita cassete (60 min). Entrevista concedida a nós. COSTA, Maurício A. A ação dos estigmatários em Ituiutaba, MG. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, UCG. Goiânia. 2003. D'AVILA, Ângelo Tibúrcio. Brasília/DF, 21/11/2006, 1 fita cassete (60 min). Entrevista concedida a nós.

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DAMACENO, João Batista. Ituiutaba/MG, 27/08/2006, 1 fita cassete (60 min). Entrevista concedida a nós. EDUCANDÁRIO ITUIUTABANO. Regimento Interno. Ituiutaba, 1957. Arquivo da Superintendência Regional de Ensino de Ituiutaba. FERREIRA, Ana Emília Cordeiro Souto. Da centralidade da infância na modernidade à sua escolarização: a Escola Estadual João Pinheiro, Ituiutaba (MG). Dissertação de Mestrado em Educação, UFU. Uberlândia. 2007. FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. A exteriorização da escola e a formação do cidadão no Brasil (1930-1960). Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 41, p. 43-57, jun. 2005. FRATARI, Eurípedes Luiz. Ituiutaba/MG, 11/10/2007, 1 fita cassete (60 min). Entrevista concedida a nós. GRÊMIO ESTUDANTIL BERNARDO DE GUIMARÃES. Atas das reuniões de 1958 até 1965. Livro 1. MALUF, Maria Gertrudes Coelho. Foi assim... Ituiutaba: S/E. 2002. MORAES, Vera Cruz de Oliveira. Tudo pela pátria: a história do "Instituto Marden" (1933-1942). Dissertação de Mestrado em Educação, UFU. Uberlândia. 2004. OLIVEIRA, Lúcia Helena Moreira de Medeiros. História e memória educacional: o papel do Colégio Santa Teresa no processo escolar de Ituiutaba, Triângulo Mineiro, MG (1939-1942). Dissertação de Mestrado em Educação, UFU. Uberlândia. 2003.

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UNIÃO DA MOCIDADE ESPÍRITA DE ITUIUTABA. Estatuto. Ituiutaba, 1955. Arquivo da Superintendência Regional de Ensino de Ituiutaba.

Nicola José Frattari Neto é Mestre pelo Programa de Pósgraduação da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. Endereço para correspondência: Rua 22 com av. 23 e 25, 1375. Centro, Ituiutaba, MG. CEP: 38300-076. E-mail: nicolafrattari@yahoo.com.br Carlos Henrique de Carvalho é professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. Rua Aracaju, 201. Bairro Santa Rosa, Uberlândia, MG. CEP: 38401-254. Email: carloshcarvalho06@yahoo.com.br

Recebido em: 14/05/2010 Aceito em: 20/09/2010

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MISSÃO EVANGELIZADORA: MEDIAÇÕES DA PRÁTICA ESPORTIVA Flávia Obino Corrêa Werle Ana Maria Carvalho Metzler

Resumo Este trabalho, elaborado com base em fontes documentais, entrevistas, imagens e outros artefatos culturais, enfoca as propostas de Congregações Católicas masculinas, com especial enfoque às que promovem a formação do professor rural, em meados do século XX, no Rio Grande do Sul. Discute a "formação integral da pessoa" frente à função do esporte em escolas normais rurais, assim como em relação aos princípios fundantes das Congregações. É possível afirmar que a prática do esporte atuava como elemento mediador e de integração dos grupos e comunidades, contribuindo para a missão evangelizadora, para a ocupação do tempo livre, disciplinamento da conduta e a conformação a normas e regras. São analisadas três instituições de ensino (Escola Normal Rural da Arquidiocese, Escola Normal Rural La Salle e Escola Normal Rural Murialdo), demonstrando maior evidencia de prática esportiva a Escola Normal Rural La Salle de Cerro Largo. Esta escola, uma vez transformada em Escola de Educação Básica, abandonou a temática rural de formação de professores mas manteve a preocupação da prática esportiva. Palavras-chave: formação do professor rural, esporte escolar, educação rural. EVANGELIZING MISSION: MEDIATIONS OF SPORTS PRACTICE Abstract This paper, has been elaborated based on ducumental sources, interviews, images and other cultural artifacts, focuses on the proposals of male Catholic Congregations, with special emphasis (focus) on those that promoted rural teachers education, in the mid twentieth century, in the Federal State of Rio Grande do Sul. It discusses the "integral formation of the person" in face of the role of sport in rural normal schools, as well as in reference to the founding principles of the Congregations. It is possible to assert sports practice actuated as a mediating element as well as of integration of the groups and communities, contributing to the evangelizing mission, through the occupation of free time, disciplining the conduct and the


200 conformation to norms an rules. We analize three educational institutions (Rural Normal School of the Archdiocese, Rural Normal School La Salle, and Rural Normal School Murialdo), being demonstrated greater evidence of sports practice by the Rural Normal School La Salle of Cerro Largo. This school, once transformed into a School of Basic Education, abandoned the rural thematics of teacher education, but it kept the preoccupation with sports practice. Keywords: rural teachers education; school sport; rural education. MISIÓN EVANGELIZADORA: MEDIACIONES DE LA PRÁCTICA DEPORTIVA Resúmen Este trabajo, basado en fuentes documentales, entrevistas, imágenes y otros objetos culturales, se centra sobre las propuestas Congregaciones Católicas masculinas, con especial énfasis en las que promueven la formación de maestros en zonas rurales, a mediados del siglo XX, en Río Grande do Sul. Discute "la formación integral de la persona" frente a la función del deporte en escuelas normales rurales, así como a los principios fundadores de las Congregaciones. Se podría decir que la práctica del deporte actuaba como elemento mediador y de integración de los grupos y comunidades, contribuyendo a la misión de la evangelización, para la ocupación del tiempo libre, la disciplina de la conducta y la conformación con las normas y reglas. Se analizan tres instituciones educativas (Escola Normal Rural da Arquidiocese, Escola Normal Rural La Salle e Escola Normal Rural Murialdo), mostrando más evidencia más de los deportes en la Escuela Normal Rural La Salle de Cerro Largo. Esta escuela, una vez convertida en Escuela de Educación Básica, dejó de lado la cuestión de la formación docente, pero mantuvo la preocupación por los deportes. Palabras clave: formación de maestros rurales; deporte escolar; educación rural. MISSION ÉVANGÉLISATRICE: MÉDIATIONS DE LA PRATIQUE SPORTIVE Résumé Cet article s'intéresse aux propositions des congrégations catholiques concernant la formation du professeur rural. Ce travail, basé sur des sources documentaires, entretiens, images et autres artefacts culturels de la moitié du siècle XX, au Rio Grande do Sul (Brésil), discute la « formation intégrale de la personne » et la fonction du sport dans les écoles normales rurales. Cette formation intégrale est aussi mise en perspective par rapport aux principes fondateurs des congrégations História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


201 catholiques. L'analyse démontre que la pratique sportive avait un rôle médiateur et intégrateur des groupes et des communautés. Elle contribuait ainsi à la mission évangélisatrice par l'occupation du temps libre et l'apprentissage de la discipline des comportements et de la conformité aux règles et normes. L'analyse de trois établissements scolaires (Escola Normal Rural da Arquidiocese, Escola Normal Rural La Salle e Escola Normal Rural Murialdo) montre que la pratique sportive était plus importante dans l'Escola Normal Rural La Salle de Cerro Largo. Cet établissement, une fois transformé en école d'éducation basique, a abandonné la thématique rurale de la formation des professeurs mais a gardé la préoccupation par la pratique sportive. Mots clés: formation du professeur rural; sport scolaire; éducation rurale.

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Introdução Em meados do século XX para superar a crise oriunda do esgotamento do modelo primário-exportador, o Estado brasileiro assume as funções de produtor, financiador e gerenciador. Institui políticas regulatórias para promover o desenvolvimento industrial, a urbanização e a formação de uma classe trabalhadora que atendesse aos ideais de nacionalidade. Tais políticas alteram a representação de espaço urbano e rural. Impulsionado pela industrialização, o espaço urbano é percebido como dinâmico, moderno, autônomo e, acima de tudo, um lugar em que são respeitados os "direitos dos cidadãos". Em contrapartida, o espaço rural é definido como um lugar atrasado, de privação, sem direitos adquiridos, de submissão e dependente das cidades. No plano educacional, de acordo com Cury (2005), entre 1931 e 1937, são vários os decretos que criam escolas nacionais, autorizam o funcionamento de escolas superiores, oficializam estatutos e regulamentos e, sob, inspeção, concedem equiparações. Diferenciado por níveis de ensino primário, secundário, superior, de formação de professores, o sistema educativo está organizado para atender os centros urbanos. A iniciativa privada, ocupou com suas propostas e iniciativas, espaços educativos no meio rural e, segundo Almeida (2005), apresentou participação direta na estruturação das primeiras Escolas Normais Rurais. No Rio Grande do Sul, como nas demais regiões do Brasil, a década de 1940 se caracteriza pela implantação de Escolas Normais Rurais as quais em território rio-grandense são criadas e/ou mantidas por Congregações de Confessionalidade Católica masculinas. Em 1941 são criadas a Escola Normal Rural da Arquidiocese de Porto Alegre e a Escola Normal Rural La Salle, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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em Serro Azul (atual Cerro Largo, situada a 515 km de Porto Alegre) e, em 1942, a Escola Normal Rural Murialdo, em Caxias do Sul. A Escola Normal Rural da Arquidiocese de Porto Alegre, dirigida por Irmãos Maristas,em 1945 é transferida para Guaporé onde funcionou até 1954; a Escola Normal Rural La Salle, mantida por Irmãos Lassalistas, funciona até 19721 e a Escola Normal Rural Murialdo, mantida e administrada por Padres Josefinos, reconhecida pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul, funciona até 1972. A abertura destas escolas intriga e leva a questionamentos. Por que, num contexto em que as políticas públicas tendem a incentivar a urbanização do país, as congregações investem na formação do trabalhador rural? Que conhecimentos e práticas podem representar a cultura escolar das Escolas Normais Rurais? Através de projeto de pesquisa2 identificamos que as primeiras Escolas Normais Rurais criadas no Rio Grande do Sul são administradas por Congregações de Confessionalidade Católica, cujos docentes, irmãos ou padres europeus, migram para esta região com objetivo de incentivar a educação, formar professores rurais e, de modo especial, propagar os ideais missionários da evangelização. No desenvolvimento deste projeto identificamos que a concepção de educação cristã na formação de professores rurais está presente na cultura escolar das unidades de ensino em estudo. Compreendemos cultura escolar como, A partir de 1972 a Escola Normal Rural La Salle fechou. Em seu lugar é criada a escola de Educação Básica La Salle Medianeira. 1

O projeto de pesquisa História das Instituições Escolares: escola de formação de professores, desenvolvido na UNISINOS com apoio do CNPq, tem como objetivo estudar a cultura escolar de Escolas Normais Rurais e propõe-se a produzir representações destas escolas considerando as políticas de formação dos professores no Rio Grande do Sul. 2

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204 (...) um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a incultar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). (JULIA, 2001, p. 10).

Entre as práticas escolares, ressaltamos, neste artigo, o papel do esporte em Escolas Normais Rurais e sua relação aos princípios fundantes das Congregações de Confessionalidade Católica. Por meio de visitas às unidades escolares e com base em fontes documentais, em revistas de veiculação interna das Congregações, em entrevistas com ex-alunos, em imagens e artefatos culturais, observamos que o esporte é uma das práticas educativas presente, em diferentes períodos históricos, nas Escolas Normais Rurais do Rio Grande do Sul.

Textos e contextos da prática esportiva Em reportagens de jornais e periódicos, reunidas pelos irmãos gestores das Escolas Normais Rurais do Rio Grande do Sul, o esporte aparece como uma prática constante, principalmente, na Escola Normal Rural La Salle. Diversos são os motivos das comemorações mas o esporte está presente em campeonatos de futebol, gincanas, olimpíadas entre as escolas da rede lassalista ou organizadas na unidade escolar. Usualmente as comemorações patrióticas da Semana da Pátria, as recepções de autoridades que visitam a escola e as comemorações festivas incluem competições esportivas e atléticas. Da mesma forma excursões promovidas para cidades próximas muito seguidamente promovem torneios e partidas de futebol. Tais eventos estão

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registrados em Livros Históricos da Escola Normal Rural3 de diferentes datas: De 07 a 11 de Setembro, houve solenidades, veio o quadro de futebol da Escola Normal Rural Assis Brasil de Ijuí para jogar com os nossos alunos do La Salle, vitória para o nosso quadro por 4 x 2. (1955). No dia 23 os nossos jogadores excursionaram a Ijuí para jogar contra a Escola Normal Rural Assis Brasil,os nossos perderam na partida principal por 7x2. (1956). Dia 23 de Abril reiniciam as aulas na Escola Normal Rural La Salle. Dia 05 de Maio veio visitar-nos a Escola Normal Rural Assis Brasil de Ijuí. Realizaram-se os jogos de vôlei e futebol, a noite houve reunião dançante no Clube Cruzeiro do Sul, até às 22h. Nós retribuímos a visita no dia 30 de Maio "Festa da Ascensão", a UNEC [União Estudantil Cerrolarguense] perdeu em todas as partidas. (...) dia 28 o onomástico do irmão provincial às 08:00 horas houve missa nas intenções dele com a assistência de todos os alunos, houve uma sessão solene para homenagear o reverendo irmão e à tarde realizou-se o "Torneio de Futebol Irmão Provincial" sagraram-se vencedores os secundaristas, tendo lhes sido entregues as medalhas pelo homenageado. (1957).

Outro documento que informa sobre as condições materiais da escola para a prática de esportes e atividades físicas é o Boletim de Estatística, com dados solicitados pelo Ministério da Educação. Neles, as competições atléticas e jogos, a existência de "instalações de Educação Física incluindo campos de vôlei basquete e futebol", bem como de um "Departamento Esportivo que promove excursões esportivas" também são informadas. Portanto, na década de 1950 há práticas escolares esportivas e O Livro Histórico da Escola Normal Rural é um caderno onde são narrados acontecimentos ocorridos no estabelecimento, enriquecido com recortes de reportagens sobre a escola e registros minuciosos de fatos, redigido por Irmãos gestores, diretores da escola. 3

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dependências apropriadas para esportes, nem sempre declaradas na proposta curricular formal do estabelecimento mas que, por outro lado, estão institucionalizadas, por meio de um "Departamento" que coordena as ações esportivo/recreativas. O esporte também está presente nas narrativas de exalunos da escola: O Aurora Futebol Clube era um campo de futebol que foi criado aqui na cidade pra, e (...) campeonatos esportivos. E um dos fundadores era um irmão lassalista, Irmão Ambrósio, já falecido. (ex-aluno da Escola Normal Rural La Salle).

O esporte, incentivado pelos gestores das comunidades escolares e da mantenedora, atua como integrador entre escola e comunidade, religiosos e leigos, escolas da rede bem como reafirma a concepção cristã de educação. Nas entrevistas há vários registros da amizade e companheirismo vivenciados entre alunos e entre alunos e professores em decorrência das atividades esportivas realizadas, incluindo informações fornecidas por ex-professores. Mas havia fora da sala de aula uma amizade invejavelmente vivenciada. Eu saía com todos, jogava futebol, jogava basquete. Companheirismo, amizade. E então ali era tudo igual porque quando você tá jogando um futebolzinho, um basquete ou de qualquer outros jogos, você igual só tá na horizontal, não tem vertical. É todo mundo na horizontal. (depoimento de ex-professor, leigo, responsável por disciplinas especificas de zootécnica e agropecuária).

Os entrevistados muitas vezes apresentavam fotografias da época da Escola Normal Rural e dentre estas, muitas, são de times de futebol, registros dos momentos de premiação das equipes esportivas ou dos jogos durante sua realização. No acervo de

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documentos da escola igualmente muitos registros fotográficos são encontrados sobre as realizações esportivas. Se a unidade escolar está plenamente integrada à comunidade local através da prática esportiva e se tais práticas proporcionam integração das unidades escolares do campo e da cidade, podemos questionar: Em que contexto, está inserida? É uma característica específica da Escola Normal Rural La Salle, da educação cristã ou tal prática está permeada de um discurso nacional sobre a inclusão do esporte no sistema educativo brasileiro? Na década de 1940, período de criação das primeiras Escolas Normais Rurais no Rio Grande do Sul, as práticas esportivas estão associadas aos ideais de uma moral e cívica brasileira e a ideais higiênicos. Tais debates e reflexões compõem a obra Contribuições para a História da Educação Física e dos Desportos no Brasil, publicada em 1943 pela Imprensa Nacional, demonstrando que a educação física faz parte das narrativas institucionais, muito embora tenha se tornado uma atividade escolar obrigatória em todos os níveis de ensino somente em 1971 pelo Decreto 69.450. Até que ponto os discursos sobre a inclusão de práticas esportivas no sistema educacional podem influir na cultura de uma escola particular de confessionalidade católica? Se considerarmos que as informações entre urbano e rural são dificultadas pelo distanciamento e que os meios de comunicação (radio, jornais e cinema), provavelmente, não chegam a fornecer tais especificidades da educação é mais provável que o esporte tenha sido trazido na bagagem cultural dos primeiros Irmãos e Padres que migraram para o Brasil. Para Tesche (1998), a adesão à prática da ginástica é significativa nos estabelecimentos educacionais da colônia alemã, pois as escolas são regularmente supridas por pastores ou professores formados na Alemanha seguindo, por conseguinte o modelo pedagógico lá adotado. Seguindo a hipótese de Tesche, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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concluímos que a prática esportiva não é característica especifica da Escola Normal Rural La Salle, mas de escolas em comunidades de imigrantes e descendentes de alemães. Será que as afirmativas de Tesche explicam a predominância da prática esportiva nesta escola e, especificamente, nesta década? A prática esportiva é uma característica cultural da Escola Normal Rural La Salle ou perpassa os ideais proferidos pela Congregação mantenedora da rede lassalista? Destaca Compagnoni que, em 1935, três Irmãos Lassalistas oriundos da Alemanha chegam a Serro Azul para assumir a missão educativa e encontram neste município uma população majoritária de descendência alemã (COMPAGNONI, 1980). O Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs é uma congregação religiosa de origem francesa4 e confessionalidade católica introduzida no Brasil em 1907 para atender a missão evangelizadora através da educação. Após consolidar no Rio Grande do Sul uma rede de dezoito escolas voltadas para a educação básica, a Província Lassalista de Porto Alegre5 cria, em 1941, a Escola Normal La Salle em Canoas e, por convênio com o Estado do Rio Grande do Sul, a Escola Normal Rural La Salle na colônia Serro Azul, atual município de Cerro Largo. A primeira tem por objetivo formar Irmãos professores para a própria comunidade educativa e a segunda, formar os candidatos ao magistério primário rural, enviados pela prefeitura local, municípios e paróquias vizinhas. Além das escolas de formação de professores, situadas em Canoas e Cerro Largo, as demais escolas de educação básica 4

Sobre a história dos Lassalistas ver Compagnoni (1980) e Corbellini (2002).

Os Irmãos assumiam escolas por as avaliarem como importantes para a formação cristã da juventude, demonstrando especial interesse em escolas de formação de professores, particularmente os do meio rural, obra que, no dizer dos próprios irmãos "estava muito no coração do Fundador da Congregação Lassalista, São João Batista de La Salle". 5

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atendem os municípios de São Lourenço do Sul, Porto Alegre, Pelotas, Caxias do Sul, Carazinho, Vacaria, etc. Tais municípios não apresentam as mesmas características de Cerro Largo quanto à descendência de sua população, nem seus gestores e/ou professores, os irmãos lassalistas, são originários ou descendem da Alemanha. Em sua maioria, os primeiros grupos de Irmãos que chegam ao Brasil são da França, país de origem da Congregação. Embora com características diferenciadas da Escola Normal Rural La Salle quanto à descendência de sua comunidade e de seus gestores, todas as unidades escolares desta congregação adotam a prática esportiva em mesmo nível de importância na cultura escolar e em décadas precedentes. Um exemplo desta integração entre o esporte e a cultura escolar lassalista pode ser identificado em 1907, com a chegada do belga Mainaud-Pierre, mais conhecido como Irmão Pedro. Além de membro-fundador Sport Club Canoense e do Sport Club Internacional, Irmão Pedro atua como treinador dos estudantes no time do Sport Club Canoense e os que considera mais aptos nesta prática são apresentados para atuarem no Sport Clube Internacional. Durante o período de 1908 a 1941 encontramos registros e narrativas sobre a organização de gincanas esportivas e jogos de futebol de alunos lassalistas bem como artefatos materiais como troféus e imagens que destacam a prática esportiva nestas unidades escolares. Avançando com a pesquisa ainda nos questionávamos: Será a prática esportiva uma característica específica da rede lassalista? Rodrigues (2000), ao tratar da chegada dos primeiros Irmãos Maristas da França para Bom Princípio, no Rio Grande do Sul, nos fornece novas informações: Os Irmãos devem ter sabido da nova prática esportiva divulgada na Europa, o futebol. Em 1894, um inglês já havia introduzido o jogo em São Paulo. Os três História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


210 primeiros Irmãos chegaram no porto de Rio Grande, dia 20 de julho de 1900, no dia seguinte a fundação do primeiro clube de futebol no Brasil: Sport Club Rio Grande (...). O Grêmio Porto-alegrense foi fundado em 1903, quando os Irmãos já estavam na Escola São José, na Alberto Bins (...). O Esporte Clube Internacional foi fundado em 1909. Na Escola São José de Porto Alegre surgiu o Clube São José que está no Passo da Areia. (RODRIGUES, 2000, p. 112).

Permeados por tais contextos, em 1912, no Colégio Santa Maria, da cidade de mesmo nome, os Irmãos Maristas criam o Esporte Clube 14 de Julho e o Esperança com alunos do internato, o São Luís e o Avante com alunos do externato. Além do futebol, outros esportes integram as unidades escolares como tênis de mesa, basquete e voleibol. De acordo com Rodrigues (2000), todas as escolas procuravam divulgar as atividades esportivas e os internatos dispunham de campos de futebol quase sempre junto ao colégio. Oriundos da Itália, os Padres Josefinos, pertencentes à Congregação de São José, chegam a Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, em 1915. Embora com menor destaque que a rede lassalista, observamos que o esporte também está presente na escola Normal Rural Murialdo. A disciplina de Educação Física integra a grade curricular da escola, ensinada pelo Irmão Giuseppe Gasparini que mantêm um time de futebol denominado de Grêmio Esportivo Murialdo e inclui a prática da ginástica em solenidades de formatura dos professores rurais. O esporte, a educação religiosa, a arte e o lazer são registrados, ainda hoje, pela Congregação dos Padres Josefinos, como integrantes na concepção de educando. O esporte também é apresentado com destaque na biografia do fundador, São Leonardo Murialdo (1828- 1900), por ser este praticante do alpinismo e apreciador da natação.

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Parece-nos que a prática esportiva não representa um lugar, uma década ou uma escola específica, mas integra-se a uma cultura: a cultura da fé. Por que as congregações masculinas de confessionalidade católica adotam a prática esportiva e, de modo especial o futebol, em suas unidades escolares? Qual a relação entre esporte e evangelização?

Evangelização e prática esportiva: propósitos das congregações católicas Partindo de uma releitura da obra do fundador do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, João Batista de La Salle, os irmãos lassalistas destacam a importância da pessoa em sua integralidade, a partir das dimensões física, psicológica e espiritual. O físico ou corpo é representado como morada de Jesus Cristo. Em Regras de Civilidade Cristã, editada em 1703, João Batista de La Salle afirma que os cristãos devem considerar o corpo como templos vivos onde Deus quer ser adorado em espírito e em verdade: tabernáculos que Jesus Cristo escolheu para morada (JUSTO, 1991, p. 163). As palavras do fundador dos lrmãos lassalistas parecem se aproximar das concepções de Educação Física que influenciam as narrativas no Brasil do século XIX, ou seja, de associar o esporte a saúde e ao bom comportamento. A saúde integra os componentes físicos e espirituais enquanto que o bom comportamento se especifica no ideal de cristandade. Entendemos que o a Congregação dos Irmãos Lassalistas, ao realizar uma releitura das obras do fundador e, de modo especial, de Regras da Civilidade Cristã, adota a prática do esporte coletivo e, de modo especial o futebol, como um instrumento de conformação as regras e disciplinamento da conduta. Além de ocupar o tempo livre dos estudantes, o esporte tem por objetivo integrar a rede de escolas, a qual os lassalistas denominam de Comunidade Educativa. Esta representação de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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esporte parece ser compartilhada tanto pelos Irmãos Maristas quanto pelos Padres Josefinos que acreditam ser a prática esportiva proporcionadora de convívio social, instrumento de melhoria da saúde e fortalecimento da vontade, componentes representativos da boa conduta cristã. Nos discursos das Congregações dos Irmãos Lassalistas, Maristas e dos Padres Josefinos o esporte é um componente mediador da evangelização plenamente integrado as normativas da Igreja Católica. Imbuídos da fé cristã, associam a formação educacional aos ideais identitários de seus fundadores entendendo a pessoa nos aspectos físico, psíquico e espiritual, com um ser em sua integralidade. Para os Irmãos lassalistas, a dimensão física está centrada na experiência corporal e representa o primeiro estágio da pessoa, acreditando que o sentido transcendente da vida repercute na forma pela qual se trata e valoriza o corpo. A dimensão psicológica, associada ao processo de comunicação, tem maior abrangência que a física, pois neste nível situam-se o processo de liberdade, participação, integração e consciência. A dimensão espiritual inclui a busca de um sentido para a vida, a vivência religiosa, o diálogo com Deus, ou melhor, quando Deus torna-se o modelo de ser e agir da pessoa humana. De acordo com o Plano de Formação dos Lassalistas (1998), a educação cristã privilegia o terceiro nível e, a partir dele, escolhe os conteúdos e processos educativos: modo de valorizar a dimensão física, os conteúdos intelectuais, os modelos de relacionamento, os conteúdos de conscientização, o conceito de liberdade, a participação responsável. Para a cultura cristã, o físico é uma representação da alma e dos níveis de aproximação com o transcendente, o primeiro passo para iniciar o processo de formação da pessoa humana e, neste caso, do futuro educador. O modelo de educação cristã, normatizado pela Igreja Católica, adota a prática esportiva como mediadora dos princípios História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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da fé caracterizada pelo convívio social, cuidado e disciplinamento do corpo para alcançar a espiritualidade. Tal concepção permeia os fundamentos das Congregações de Confessionalidade Católica e as unidades escolares mantidas e/ou administradas por estas, muito embora com particularidades culturais. Através das fontes que resgatam a memória das Congregações Maristas, Lassalistas e dos Padres Josefinos e suas respectivas unidades escolares, observamos maior freqüência da prática do esporte na rede escolar administrada pelos Irmãos lassalistas. A relação entre o esporte, especialmente o futebol, e as demais dimensões formativas da instituição, atua como integrador dos princípios cristãos e evangelizadores, em diferentes períodos históricos, na rede lassalista. Em 1972, no segundo encontro das Comunidades Educativas Lassalistas foi criada a primeira Olimpíada, a Lassalíada. Corbellini destaca que, foi uma tentativa de fazer nossos alunos vibrarem pelo que é nosso. Um passo decidido que ambiciona congregar todos os lassalistas, servindo-se do esporte. (...) E queremos que com sua jovialidade, lealdade, entusiasmo e espírito fraterno façam com que a Primeira Lassalíada transcenda a competição esportiva para ser um passo a mais na Construção das Comunidades Educativas Lassalistas. (...) Esperamos que, no final de tudo a fé ainda vacilante em muitos, nas Lassalíadas, crie corpo e faça continuar essa promoção que, pelo amor de Deus, não é pequena (CORBELLINI, 1973, p. 40).

No trecho acima é possível identificar que, passados trinta e dois anos da criação da Escola Normal Rural La Salle, o esporte para os Irmãos administradores da rede Lasallista, continua atendendo aos mesmos objetivos: como formador de uma Comunidade Educativa Lassalista, demarcador de uma possível identidade e auxiliar no cumprimento da missão evangelizadora. O esporte é representado como capaz de integrar pais, professores, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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estudantes e ex-alunos em direção ao fortalecimento da identidade cristã. Referindo-se à gincana anual lassalista, Loro descreve que o objetivo principal é a integração dos alunos dos colégios lassalistas, preparando-os, assim, para depois, continuarem como ex-alunos (LORO,1972). A gincana, atividade comum nas unidades escolares desta congregação, utiliza o esporte como ferramenta demarcatória de uma identidade lassalista, voltada para a pessoa humana e suas três dimensões a rememoração da figura de La Salle e o fortalecimento e consagração de uma certa leitura da história do colégio. As premiações também são características da cultura escolar, tanto para o bom jogador e/ou bom aluno que, neste caso, está representado pelo que atende as hierarquias, regras disciplinares, o sentimento de pertença e valorização da identidade lassalista. O bom esportista, neste caso, deve ser honrado, premiado, pois está mais próximo da verdade cristã e da salvação. Encontrar-se-ão nas quadras de esporte, competindo para fazer jus aos troféus e medalhões, enquanto estaremos esperando que se conscientizem do espírito da Comunidade Lassalista do Rio Grande do Sul. (...) E queremos que na soma dos medalhões que individualmente conquistarem, carreguem nos ombros jovens a taça devida ao Colégio Campeão. (CORBELLINI, 1973, p. 40).

A prática esportiva e suas honras A cultura escolar das primeiras Normais Rurais do Rio Grande do Sul mantidas e administradas por Congregações de Confessionalidade Católica mostra-se impregnada pelo esporte. A premiação aos vencedores através de medalhas ou troféus está associada à concepção cristã de pessoa. No futebol, um esporte coletivo, o técnico é sempre identificado ao educador Irmão ou História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 199-219, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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padre. Por que esta identificação? O Irmão educador ou padre está mais próximo da salvação uma vez que já atingiu a dimensão da espiritualidade (o terceiro nível), e, como tal, cabe a ele orientar os que ainda não atingiram esta dimensão. Um depoimento de ex-aluno destaca o papel do professor na prática do futebol na Escola Normal Rural La Salle: Então era dada uma importância de igual, havia a preocupação em formar um professor, mais ou menos preparado em todas as áreas. No esporte também, porque o pessoal do interior queria também que o professor fosse o técnico do time. Eles jogavam então futebol. Por isso o colégio aqui se envolveu muito nessa parte esportiva com a comunidade porque aqui existia um time muito tradicional. Até hoje existe. Mas não mais tanto de futebol de campo, era o Aurora Futebol Clube (ex-aluno da Escola Normal Rural La Salle).

Os vencedores são premiados por estarem mais próximos de alcançarem a salvação e propagarem a fé na comunidade. Os prêmios, medalhas, taças ou troféus são considerados honras não só eminentemente esportivas, mas, acima de tudo porque o educando está mais próximo do nível espiritual. Destaca um ex-aluno da Escola Normal Rural La Salle: Tinha a prática de esportes e com isso também se formou um time de futebol do La Salle então os internos formavam o time de futebol do La Salle que competia com o Aurora. Então saía uns 3, 4 encontros anuais. Era 6 grenal em Porto Alegre e Aurora e La Salle em Cerro Largo. A mesma guerra. A mesma guerra, então isso aí era, contava como espírito de educação para competição, instrutivo. Então tudo isso integrava o conjunto do Grenal: Trata-se da forma usual de designação do momento de jogo, da partida de futebol, entre dois times de futebol com maior número de torcedores no Rio Grande do Sul, ou seja, Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e Sport Club Internacional. 6

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216 currículo que a gente tinha que aprender aqui" (ex-aluno da Escola Normal Rural La Salle).

As premiações e o incentivo as competições entre as unidades escolares da rede lassalista é percebida como o espírito da educação cristã em que os melhores, estão mais próximos de Deus. Identificamos troféus com nomes de religiosos (Exemplo: Taça Irmão Adão), ou mesmo com design semelhante aos cálices utilizados nas missas para a consagração do vinho demonstrando a associação entre fé e esporte cujos lideres são os religiosos capazes de preparar novos cristãos. Por volta da década de 1960, a simbologia representada nos troféus, taças e medalhas, não aparecem mais, o que não significa que o ideário da fé ainda não esteja presente na prática esportiva. Colecionar os troféus e honras pode ser uma fonte de memória escolar representativa da importância da escola na preparação de bons professores, aqui identificados como pessoas que atingiram as dimensões física, psicológica e espiritual que constituem a pessoas na sua integralidade.

Conclusões O estudo demonstra a contribuição da educação física e especialmente das práticas esportivas na cultura escolar, na perspectiva das ordens religiosas que a adotam como um reforço de sua missão evangelizadora, integrando possíveis missionários da fé. Propagação da fé, integração, disciplina e respeito às regras, convívio e demarcação de uma identidade parece-nos ser esta a representação do esporte para as Congregações de Confessionalidade Católica. Mas fé e esporte são uma especificidade das instituições de confessionalidade católica? Será que as Igrejas pentecostais não estão no mesmo caminho? Os atletas de Cristo, jogadores de

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futebol dos mais diversos times brasileiros, não estão cumprindo o mesmo papel? O esporte é uma prática associada à missão de evangelização por ser o primeiro estágio da formação da pessoa humana, segundo a educação cristã. Portanto, uma prática para atingir a principal dimensão (espiritual), segundo a proposta confessional, tornando a pessoa (o educando) mais próxima do diálogo com Deus. Ou seja, através do esporte coletivo integram a comunidade e propagam a fé no meio rural. Cabe ressaltar que, embora as escolas ainda preservem as fontes e artefatos culturais que compõem a memória escolar, essas já não apresentam locais de destaque. O esporte continua sendo uma prática escolar nas unidades mantidas pelas Congregações Maristas, Lassalistas e dos Padres Josefinos, mas integradas às disciplinas de Educação Física, atualmente, obrigatórias nos currículos escolares e ministradas por "leigos". Os espaços escolares ainda destacam os ginásios de esporte, mas sua representação como propagadora da fé cristã é mais tênue, apresentando, por outro lado, diversificação por idade e por modalidades esportivas. No entanto, ainda preservam os ideais de integração das comunidades educativas.

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Flávia Obino Corrêa Werle. Doutora em Educação pela PUCRS, Professora Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, pesquisadora do CNPq. e-mail: flaviaw@unisinos.br Ana Maria Carvalho Metzler. Doutoranda em Educação UNISINOS. Licenciada em História, Mestre em Educação pela PUCRS, doutoranda em Educação pela UNISINOS. Experiência profissional no ensino superior: PUCRS e Centro Universitario La Salle. e-mail: amcmetzler@terra.com.br

Recebido em: 12/03/2010 Aceito em: 20/09/2010

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LAS CONSTRUCCIONES HISTÓRICAS DEL "OTRO" Y SU IMPACTO EN EL CAMPO PEDAGÓGICO: UN ANÁLISIS EN LA PROVINCIA DE BUENOS AIRES María Verónica Cheli

Resumen Toda acción y práctica pedagógica situada en un contexto histórico tienen efectos a través de sus discursos, los cuales están teñidos de sentido, significado y verdad. Conceptos e ideas que desde la modernidad (con su legado de la razón ilustrada) hasta la actualidad con el posestructuralismo, están a travesadas por relaciones de poder. En este largo proceso histórico se fueron construyendo distintas denominaciones para nombrar al "otro", enunciado como "anormal", "especial", "diferente" o "diverso". La pregunta central que guían este ensayo se refieren al proceso de construcción de esas denominaciones y sus consecuencias para la escolarización de la infancia: ¿integrarla a una sociedad plural o administrar las diferencias identificándolas para gobernarlas? Partiendo de esta pregunta central, propongo analizar y problematizar los discursos pedagógicos vinculados al sistema educativo de la provincia de Buenos Aires durante el siglo XX. En esta dirección, y tomando al otro como objeto de conocimiento y control que lo instituye como una figura social peligrosa, estas reflexiones apuntan a continuar un debate que pone en tensión el paradigma médico evolucionista con otros surgidos desde las ciencias sociales. Palabras clave: anormal, diferente, diversidad, sistema educativo argentino, infancia. AS CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS DO "OUTRO" E SEU IMPACTO NO CAMPO PEDAGÓGICO: UMA ANÁLISE DA PROVINCIA DE BUENOS AIRES Resumo Toda ação e prática pedagógica situada em um contexto histórico tem efeitos atraves de seus discursos, os quais estão plenos de sentido, significado e verdade. Conceitos e idéias, que desde a modernidade (com seu legado da razão ilustrada) até a atualidade com o posestruturalismo, estão atravessadas por relações de poder. Nesse longo proceso histórico se foi construindo distintas denominações para nomear o "outro", enunciado como "anormal",


222 "especial", "diferente" ou "diverso". A questão central que guía este ensaio se refere ao processo de construção dessas denominações e suas consequências para a escolarização da infancia: integrá-la a uma sociedade plural ou administrar as diferenças, identificando-as para governá-las? Partindo desta pergunta central, proponho analisar e problematizar os discursos pedagógicos vinculados ao sistema educativo da província de Buenos Aires, durante o século XX. Nesta dirección, e tendo o outro como objeto de conhecimento e controle que o institui como uma figura social perigosa, estas reflexões apontam para continuar o debate que tensiona o paradigma médico evolucionista com outros surgidos das ciencias sociais. Palavras-chave: anormal, diferente, diversidade, sistema educativo argentino, infância. THE HISTORICAL BUILDINGS OF "THE OTHER" AND ITS IMPACT ON THE PEDAGOGIC FIELD: AND ANALYSIS IN THE PROVINCE OF BUENOS AIRES Abstract Every pedagogic action and practice in a historical context has its effects through debates, which bear sense, meaning and truth. Concepts and ideas have been influenced by power relationships since modernity (with the legacy of positivism) up to now with the poststructuralism. Throughout this long historical process different names have been used to call "the other", such as "abnormal", "special", "different", "diverse". The leading question of this essay refers to the building process of these names and its consequences for childhood education: whether to integrate them to a plural society or to manage the differences trying to identify them in order to govern them? I propose to analyze the pedagogic debates related to the educational system of the Province of Buenos Aires during the XX Century. Considering "the other" as an object of knowledge and control, makes it a dangerous social figure, these insights aim at continuing a debate that questions the evolutionist medical paradigm in relation to other paradigms that have arisen since the social sciences. Keywords: abnormal, different, diversity, Argentine educational system, childhood

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223 LES CONSTRUCTIONS HISTORIQUES DE "L'AUTRE" ET LEUR IMPACT DANS LE CHAMP PÉDAGOGIQUE: UNE ANALYSE DE LA PROVINCE DE BUENOS AIRES Résumé Toute action et pratique pédagogique située dans un contexte historique a des effets par ses discours, qui sont pleins de sens, de signification et de vérité. Des concepts et des idées qui, depuis la modernité (par son legs de la raison illustrée) jusqu'à l'époque actuelle, avec le poststructuralisme, sont traversés par des relations de pouvoir. Dans ce long processus historique, des dénominations variées ont été construites pour désigner "l'autre", enoncé soit comme "anormal", comme "différent" ou comme "divers". La question centrale qui guide cet essai se rapporte au processus de construction de ces dénominations et à leurs conséquences sur la scolarisation des enfants: s'agit-il de les intégrer à une société plurielle ou d'en administrer les différences, en les identifiant pour les gouverner? En partant de cette question centrale, je propose d'analyser et de mettre en lumière les discours pédagogiques liés au système éducatif de la province de Buenos Aires pendant le XXème siècle. Dans cette direction, et prenant l'autre en tant qu'un objet de connaissance et de contrôle qui le définit comme une figure sociale dangereuse, ces réflexions demandent qu'on continue le débat qui confronte le paradigme médico-évolutionniste avec d'autres paradigmes surgis à partir des sciences sociales. Mots-clés: anormal; différent; diversité; système éducatif argentin; enfance.

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Introducción Este artículo se propone realizar una periodización tentativa en las distintas formas de clasificación y jerarquización de la infancia, a través del análisis y de los cambios en la legislación educativa en la provincia de Buenos Aires, desde sus orígenes hasta la actualidad. Se toma a la legislación como analizadora de las diferentes conceptualizaciones dentro el campo pedagógico. Este trabajo esta conformado en cinco apartados 1) Identidad nacional y construcción de la diferencia en los inicios del sistema educativo bonaerense. 2) Positivismo: expansión del sistema educativo y Pedagogía normalizadora. 3) La segregación educativa de la infancia "anormal" y el nacimiento de la pedagogía diferenciada. 4) Una nueva retorica del "otro" en el campo pedagógico: "Sujetos con necesidades educativas especiales". 5) Surgimiento de la Pedagogía de la diversidad ¿"sujetos diversos? Intentan construir una genealogía de la educación especial devenida en pedagogía de la diversidad: destino de la infancia anormal.1 Como veremos más adelante, estas clasificaciones y formas de denominar la diferencia, estuvo estrechamente asociada al proceso de la conformación del Estado y de la identidad nacional

Se tomará la denominación, anormales para designar aquellos grupos cada vez mas numerosos y variados de la modernidad: Los sindrómicos, los deficientes, monstruosos, los psicópatas, discapacitados, los rebelde los extraños, los poco inteligentes o sea al resto. Sobre estas denominaciones genéricas de los anormales se incluyen diferentes identidades cuyo significados se establecen discursivamente en el campo de los estudios culturales a travesados por relaciones de poder y saberes de la diversidad humana. Veiga-neto (2001) 1

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De este modo, el trabajo se propone revisar las formas en que se tematizo las relación entre homogenización e igualdad en el proceso de escolarización bonaerense. Relación que congeló a la diferencia como "amenaza", "anormalidad", cristalizándola como inferioridad, ignorancia, discapacidad, deficiencia, etc. Como es sabido, la escolarización y la conformación del sistema educativo moderno supuso procesos de normalización y disciplinamiento, que como señala Foucault, la biopolítica es la presencia de los aparatos del estado en la vida de la población, a través de la disciplina y la regulación. El poder, entendido como un conjunto de estrategias y tácticas mediante las cuales los individuos construyen sus experiencias subjetivas y asumen identidad dentro del campo social.

Identidad nacional y construcción de la diferencia en los inicios del sistema educativo bonaerense En la provincia de Buenos Aires el sistema educativo moderno se inaugura el 26 de septiembre de 1875 con la ley de educación común Nº 988. Los hechos que impulsaron su creación en la década del 70 se dieron cuando definió sus límites territoriales mediante la campaña del desierto y se aprobó de la Constitución nacional de 1853 que en su art. 5º señala, que una de las condiciones de las autonomías provinciales es, que éstas garantizarán la educación elemental a su población. De este modo, el sistema educativo provincial se fue organizando articulado al proceso de organización del Estado Nacional desde una propuesta oligárquico liberal que implicó en un primer momento llevar a cabo el proyecto de civilización, y luego el proyecto normalizador sustentado en el positivismo y la conformación de la identidad nacional. De esta manera el sistema educativo de la provincia de Buenos Aires en su origen puso en el centro de su discurso, el binomio civilización y barbarie planteado por Sarmiento, quién História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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afirmaba que para lograr el desarrollo era necesario educar a la barbarie, lo que significó hacer desaparecer todo sujeto preexistente, ya que, en su visión era considerado como un obstáculo y amenaza para la civilización. En esta primera etapa, "Sarmiento clasifica a la sociedad Argentina en tres grandes grupos por medio de interpelaciones diferenciadas. a) Los sectores "americanos", compuestos por los aborígenes no integrados que aun habitan la Patagonia y el Chaco. Estos sujetos no logran siquiera formar parte de la categoría barbarie, y por lo tanto, están biológica y esencialmente determinados a ser un estorbo para el desarrollo. No había ninguna forma de redimirlos. La única solución a este "problema" era el exterminio. b) Los grupos bárbaros que estaban compuesto por los sectores rurales, los gauchos, "los indios amigos", los sectores urbanos "pobres e incultos" y los migrantes internos. Estos sectores eran posibles ser redimidos por medio de la civilización, y de esta forma convertirse en participantes del progreso propuesto. c) Los grupos, civilizados que estaban compuestos por los sectores urbanos "cultos y de buena Posición" y los inmigrantes del norte de Europa o EE.UU. estos sujetos tenían la misión de civilizar a los sectores bárbaros, tanto por instancias intencionales como por medio de la socialización espontanea." Pineau, (1997 p. 27) La clasificación de Sarmiento no es casual que aparezca en este momento histórico teniendo en cuenta que a mediados del siglo XIX surge la antropología cultural en la tradición del iluminismo, que tomó el método comparativo de las ciencias naturales el cual explica la presencia de la alteridad social y cultural. Así postuló una separación entre nosotros y los otros, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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definida desde el evolucionismo Darwiniano, supone diferencias irreductibles y absolutas presentándonos una imagen del otro en tanto diferente, salvaje. Boivin, (2004) En otra línea de análisis podemos ubicar a Foucault, que si bien no habla del "otro", ni de la alteridad. En su visión de la biopolítica, los procesos biológicos se convierten en un asunto de Estado. Se analizan los estados globales de la población, sus ritmos, cadencias. La biopolítica es la presencia de los aparatos de Estado en la vida de las poblaciones. A través de la disciplina y la regulación. En el cual la disciplina es un dispositivo cuyo objeto es el cuerpo y su lugar de construcción la institución. Es la anatomía-política de los cuerpos organizada en cuarteles, fábricas, hospitales, asilos, escuelas y prisiones. Y -agrega Foucault— el racismo es la condición de aceptabilidad de la matanza en una sociedad en que la norma, la regularidad, la homogeneidad, son las principales funciones sociales. El racismo es la metafísica de la muerte del siglo XX. Foucault, (1976) Esta categorización realizada por Sarmiento, nos revela una clasificación del "otro" que marca una diferencia entendida como peligrosa, el "otro" como diferente, en este caso para concretar el proyecto civilizador. Dicho de otro modo, la vinculación entre Estado Nacional y Sistema Educativo se dio en encontrar medidas contra los peligros que impedirían llevar a delante la formación de la identidad nacional. La obligatoriedad que sancionó la Ley de Educación Común de 1875 en su capítulo I2, planteada como un derecho, estaba dirigida principalmente a los sectores de la población más desfavorecidos, a los grupos populares que había que disciplinarlos para convertirlos en ciudadanos.

Art. 1º La educación común es gratuita y obligatoria, en las condiciones y bajo las penas que esta ley establece. 2

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Esta visión se percibe claramente en un artículo publicado en la Revista de Educación "La pedagogía nos señala el derrotero a seguir, o sea: alumbrar las tinieblas del cerebro ignorante, que indica civilizar y civilizar es, oponerse a la barbarie a la bestialidad que son uno de los tantos males sociales que nuestro país adolece, llamado a convertirse en mal crónico, sino se toman medidas de sabia previsión, con tiempo. Que busquen los juristas y puritanos, el mal por esas latitudes, y allí encontrarán en la mayoría de los casos, el origen de los crímenes y otros delitos." D.G.E. (1910 p. 116)

El paisaje de las calles estaba poblado de niños sueltos, sin tutela familiar, desplazándose por las calles donde aprendían las peores artes de la delincuencia. Esta obligatoriedad combatía la "ignorancia" para que la ilustración llegue a las masas. La instrucción era el dispositivo por el cual se lograría formar sujetos civilizados. En el artículo 23, la instancia de la familia funcionaba como principio normalizador. Es esa familia, del proletariado urbano que se le daba el poder inmediato sobre el cuerpo del niño, pero se la controlaba desde afuera. Debían amparar a sus hijos en los sentidos de impedir que mueran, vigilarlos, y al mismo tiempo encauzarlos, acompañados de una disciplina pedagógica, la familia estaba atravesada por criterios políticos, morales y médicos. Como señalan numerosos autores, la sociedad burguesa, se ocupaba de sus hijos para luego desprenderse de ellos de acuerdo Art. 2º Los padres, tutores o personas en cuyo poder se encuentren los niños residentes en la provincia y que reúnan las condiciones en el art. 3º están obligados a darles un mínimo de instrucción que de en tiempo en tiempo fijará el Consejo General de Educación; considerando, tanto los recursos y necesidades peculiares de cada localidad en razón de sus condiciones económicas, cuanto las necesidad esencial de formar el carácter de los hombres por la enseñanza de la religión y de las instituciones republicanas. 3

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a la concepción de la sociedad capitalista4, ya que, el cuerpo es un instrumento de prestación para las exigencias de la producción y desarrollo. La identidad del niño tenía mucho que ver con el papel de la familia, con la relación que se establecía entre familia y escuela. La discusión fuerte que se generaba tenía que ver con "de quién es propiedad el niño"; esto se veía en la obra de Sarmiento, pero también en la estructura de la Ley 1.420 con el Congreso pedagógico de 1882. Como señala Carli (2000) la niñez tenía una doble posición. La niñez como una prolongación de la familia, que era la posición de los católicos en esos momentos. Y por otro, la niñez era considerada propiedad del estado, como el germen de la sociedad civil, de la sociedad política futura. Entonces la identidad de los niños tenía que ver con esa vinculación entre la intervención de la familia (con autoridad de los padres) y el papel de la escuela. Modeló una identidad del niño muy ligada a su lugar de hijo y a su lugar de escolar, de alumno. En esta Ley de Educación aparece una nueva denominación del "otro" como "débil" Art. 3º El deber escolar dura ocho años para los varones y seis para las mujeres, principiando todos a los seis cumplidos, salvo la debilidad del cuerpo o del espíritu.

Ya no como condición de pertenecer a cierto grupo social. Si bien no especifica, deja abierta la interpretación que los débiles de cuerpo y espíritu estaría haciendo referencia a algún tipo de "anormalidad", que por el momento no es tema de preocupación en este insipiente sistema educativo en cuanto su "Conserven a sus hijos con vida y bien sólidos, corporalmente bien sanos, dóciles y aptos para que nosotros podamos incorporarlos a una maquinaria cuyo control ustedes no tiene y que será el sistema educativo, de instrucción y formación del estado.", en Foucault, M (1975 p. 243) 4

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atención pero si de la psiquiatría y la medicina higienista a través de las instituciones de control social.5 Por el momento podemos asociar esta debilidad con la peligrosidad para la formación del Estado Nacional, momento en que surge "la pedagogía higienista, preocupada por el futuro racial, donde los infantes débiles y escrufulosos del presente traían desesperanzadas y temibles visiones sobre soldados imposibilitados de defender la patria, madres incapaces de cuidar una prole sana, obreros y trabajadores marcados por la degeneración mental y física, correlato del crimen, la locura, y los vicios de la civilización occidental". Di Liscia y Bohoslavsky, (2005 p. 94) Esta pedagogía higienista se refuerza porque a fines del siglo XIX en Buenos Aires hubo una epidemia de fiebre amarilla que no estaba equipada para emergencias sanitarias dándoles un lugar de centralidad a los médicos higienistas que empiezan a actuar a través de la educación y el castigo modelador. Momento en el cual, se comenzó a asociar a la higiene con el progreso y la civilización, mezclando lo preventivo con lo disciplinador. Mientras la educación moral se la podía relacionar con la obediencia de la política conservadora, ser bueno. La higiene tuvo su centralidad en ser limpio. Lo dicho hasta acá lo podemos ver en las publicaciones de la época, en 1907 Augusto Bunge comienza a enviar publicaciones desde Europa a la Revista El Monitor de Educación Común enfatizando la necesidad de educar a los niños débiles y atrasados de manera diferencial, fomentando la creación de escuelas para niños débiles y de las colonias de vacaciones, justificando dicha afirmación que su retraso se debía a malas Antes de ser una especialidad de la medicina, la psiquiatría se institucionalizo como dominio particular de la protección social, contra todos los peligros que puedan venir de la sociedad, debido a la enfermedad o a todo lo que se puede asimilar directa o indirectamente a esta. La psiquiatría se institucionalizó como precaución social, como higiene del cuerpo social en su totalidad." En: Michel Foucault. (1975 p. 49) 5

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condiciones físicas, "si estos niños estuviesen sanos y robustos tendrían capacidades normales o superiores". (Mec año XXVIII Nº417, 1907) En 1909 Ramos Mejías presentó un proyecto al Consejo Nacional de Educación ideado por Bunge e Ingenieros diciendo que los niños a beneficiarse serían aquellos que sin estar propiamente enfermos, eran constitucionalmente débiles por una enfermedad anterior o por falta de alimentación suficiente proveniente de las escuelas públicas y de los grados iníciales.6 Se observa que aunque se hable de escuelas, se privilegiaba la salud por sobre la instrucción, ya que se consideraba que los alumnos débiles intelectualmente no debían extenuarse intelectualmente, sino robustecerlos a partir de una dieta balanceada y ejercicio físico en un ámbito natural e higiénico. Como parte de este proceso en la provincia de Buenos Aires en el año 1924 se fundan las colonias de vacaciones de Mar del Plata, Baradero y Tandil, las cuales dependían del Departamento de Higiene. El Ministerio de Educación de la provincia de Buenos Aires, no solo las difundieron a través de los boletines oficiales sino también en los libros de lectura, como el siguiente "Colonias de vacaciones" "Toma en cuenta el traslado por ferrocarril a Mar del Plata de un contingente de escolares para remediar su debilidad, en la imagen aparecen vestidos con guardapolvos blancos y gorritos. En el dialogo los niños dicen, ¡Adiós mamá hasta la vuelta! y las madres responden ¡Adiós hijo querido! ¡Pórtate bien y vuelve fuerte! Y finaliza "fuerte volveremos, señora, porque nos levantarán y acostarán temprano. Harán mucho ejercicio. El baño será diario, la alimentación sana y abundante.

"El movimiento a favor de la infancia anormal, tanto a nivel de los individuos que lo reivindican como de las instituciones que lo fijan, no puede ser aislado de un movimiento mas amplio que se refiere a la infancia en peligro " Muel, F. (1981p 126) 6

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Dormirán en habitaciones ventiladas. Y al aire libre, pasarán todo el día". Di Liscia y Bohoslavsky, (2005 p 99) Otro capítulo de destacar en la revisión de la Ley de Educación de 1857, es el capítulo VI, artículos adicionales que menciona la educación en cárceles y asilos. Art. 87 Es obligatorio para ambos sexos, en las respectivas cárceles y asilos de la provincia, sin limitación de edad, concurrir a las escuelas que en ellos se establezcan.

Cuyos antecedentes se encuentra en la constitución de 1853, en nombre de la civilización, el castigo estaría monopolizado por el Estado, esta práctica racional tendría lugar en la cárcel, el art 18 dice "limpia y sanas para la seguridad y no para el castigo de los reos detenidos en ellas". Eliminando de esta forma todo castigo primitivo incompatible con la sociedad civilizada, vinculando sociedad y estado nuevamente. Como señala Caimari, "Estas ideas estaban en sintonía con la puesta al poder transformador del estado que también proyecto el sistema de educación público. Visto de este modo, la pena penitenciaria era un aspecto más de la reforma desde arriba de la sociedad, una reforma que, en este caso, extendía sus instrumentos modeladores hacia las clases bajas, que formaría el grueso de la población carcelaria." Caimari, L, (2004 P. 48) Impregnado el sistema penitenciario de medidas disciplinarias e higienistas propias de la época los resultados fueron otros, de desorden y descontrol, muy pronto las cárceles albergaron allí a los acusados de presidio, hombres, mujeres, adultos y niñoscondenados o simplemente abandonados, los menores huérfanos vivían con los penados, uno de los pabellones fue convertido en asilo infantil, (1886) donde recibían instrucción. Aunque las autoridades coincidían en que la cárcel no es un lugar adecuado para dar instrucción a esos niños desgraciados pero que aprendieron sus oficios con los grandes criminales capitalinos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Este desorden y descontrol está en estrecha relación con la crisis política y económica de 1890, con la expansión urbana, el crecimiento demográfico, los movimientos migratorios. Los encargados de estas cuestiones sociales fueron los higienistas quienes se ocuparían del hacinamiento, marginalidad, prostitución, alcoholismo y crimen. Pronto adquirió unas connotaciones políticas, cuando a esos temas se les adoso un movimiento obrero cuya conflictividad se la asocio a las tradiciones anarquistas y socialistas de los trabajadores recién llegados. Esta situación nos revela la diferencia entre los procesos analizados por Foucault y la forma caótica en el cual se conformó el estado en nuestro país.

Positivismo: Expansión del sistema educativo y Pedagogía normalizadora En este escenario, la escuela se fue convirtiendo en un aparato masivo, el sistema educativo, recién a fines del siglo XIX y principios del siglo XX se produjo una homogenización, comenzando el período normalizador cuyos efectos reguladores se hicieron sentir en la pedagogía no sólo a través de la disciplina para producir un efecto en el cuerpo sino a través de la regulación de la población escolar. Esta articulación de disciplina y regulación da surgimiento a la pedagogía normalizadora sustentada desde la biología7 y la estadística. Desde esta perspectiva lo importante era encontrar una serie de regularidades y normas del comportamiento y del crecimiento para explicar sus desvíos. Dicho de otro modo, la norma, lo normal sirve para explicar la anormalidad, produce la anormalidad, no es casual que en este periodo surgiera una En el capitalismo se exigió a la bilogía cumplir con un papel de productora de conocimientos científicos, de aval ideológico y argumento de autoridad de lo que sucede en lo económico, político y social. Achard, (1988) 7

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tecnología psicométrica que clasifica a los niños que se desvían de la norma.8 A esta pedagogía normalizadora, le corresponde un educador que era portador de una cultura que debía imponer a un sujeto negado, socialmente inepto e ideológicamente peligroso a los sujetos inmigrantes pobres, a los gauchos que habían sobrevivido, los indígenas que habían escapado del exterminio. Estos sujetos no se los consideraba confiables, entonces la normalización implicó crear la norma general en términos de aquello que se puede medir cada una de las singularidades, e identificar si cada una cumple con ella o se desvía del parámetro común. La normalización implica que hay que corregir al sujeto desviado. Los pedagogos normalizadores reformularon las formas de enseñar y aprender en la Argentina Un claro ejemplo de esto se ve cuando en "1910 en la Argentina, la doctora Hermosina de Olivera publicó un artículo en la revista del Consejo Nacional de educación en la que decía niños atrasados debían clasificarse como sigue: a) La muchedumbre heterogénea que por su organización psíquica y física es incapaz de aprovechar los métodos comunes de enseñanza, b) Los imbéciles, idiotas, sordomudos, ciegos y epilépticos y c) Los distraídos como prefieren llamarlos los padres, o atrasados. No simplemente anormales y están atacados por debilidad mental por causas múltiples y pasajeras, son especialmente los hijos de nuestra clase obrera, con funcionamiento lánguido de cerebro, producto de una alimentación deficiente. Perturban la disciplina, ocupan un lugar En el campo médico pedagógico se crea un corpus científico, cuyo análisis permitiría comprender lo que los sistemas de clasificación (nosografía psiquiátrica y métodos de medidas psicológicas referidas a la infancia) deben a los intereses socio-económicos de los productores de sistema de clasificación y extraer del discurso científico un discurso político y social que permitan reconocer las funciones sociales que cumplen dichas clasificaciones. En Muel, F. (1981 p. 124) 8

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inútilmente en las clases comunes, desalientan a la maestra e influyen en sus condiscípulos." Puiggrós, A. p. (1900 p.134-135) La pedagogía comienza a percibirse en esta época como disciplina científica cuando recibe los aportes del positivismo, conjuntamente con la aparición de las escuelas normales, definiéndose a la pedagogía en sus aspectos técnicos y administrativos. En esta construcción se encontraron dos posturas en la provincia de Buenos Aires por un lado cuando llega a la D.G.E. Enrique Urien, con sus seguidores, quienes intentaron sostener lo propuesto por Sarmiento de mantener las fronteras abiertas entre sociedad civil y sistema escolar, llegando a abrirse 37 escuelas normales populares en distintos puntos de la provincia de Buenos Aires. Cuando en 1914 llega a la D.G.E el Dr. Matías, Sanchez Sorondo, su accionar se oriento en otro rumbo a unificar y normalizar el sistema sacándole peso a la sociedad civil, nombrando a un inspector, Máximo S. Victoria para fiscalizar las escuelas normales populares cuya primera medida fue pedir la uniformización de los planes y homologación con los normales nacionales, (comenzando el proceso de homogenización.) A los docentes buscaba convertirlos en los ojos de la D.G.E estableciéndose una cadena jerárquica inspector-docentesalumnos.9 "Hacia arriba la mirada era de imitación y hacia debajo de control absoluto" Pineau (1997) Por su parte Francisco, Berra consideraba necesario que el docente conociera las ciencias con que se basa la educación, en especial la psicología con orientación biologicista. En esta misma época se crea el Universidad de la Plata el Departamento de

Los inspectores y la burocracia educativa no sólo cumplieron una función central en la producción de datos y de saberes especializados, sino también en la difusión y circulación de discursos regulativos como el higienismo y el nacionalismo, que se articularían en un mismo registro de cientificidad con la nueva ciencia pedagógica. En: Suasnábar, C. y Palamidessi, M. pág. 6 9

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Pedagogía con orientación positivista y en psicología experimental.10 Siguiendo a Dussel (1993) no creemos correcto hablar de una "pedagogía positivista". Consideramos que de dicho movimiento no se derivó directamente en una pedagogía triunfante, sino que puso a su disposición una serie de significantes a ser articulados por el discurso educativo, sus dos puntos nodales son, en primer lugar, la consideración de la escuela como la institución "natural" de la difusión de la única cultura, la de la burguesía europea para algunos, la cultura científica para otros o la cultura nacional todas y cada una de ellas como instancia de disciplinamiento social y en segundo lugar la creación de un método científico que permitiera el desarrollo y el progreso de la humanidad. Estos postulados se legitimaron en el campo pedagógico a través de ciertos reduccionismos por ejemplo a la pedagogía se la redujo a la psicología, y ésta a su vez en biología, estableciendo quienes triunfarían en el terreno educativo y quienes no tendrían esperanzas. Este nuevo paradigma caracterizó a los sujetos sociales excluidos, "sujetos diferente"11 como producto de unas enfermedades sociales o como expresión de deficiencias provenientes de la raza o la cultura. Por lo tanto, el individuo con problemas de conducta presentaba problemas de adaptación al medio y, como tal, era un organismo enfermo y se ubicaba en un grado menor en la escala evolutiva. Por el contrario, el individuo que se adaptaba al medio, La pedagogía positivista avalada por el gobierno de la época vio en los saberes de la psicología experimental una herramienta de utilidad. V Mercante realizó una serie de investigaciones como base para la restructuración educativa. Así pudo ordenarse la población infantil según parámetros de normalidadanormalidad, rendimiento escolar, aptitudes. 10

11 Obedecen a una construcción, una invención, son un reflejo de un largo proceso que podríamos llamar "diferencialismo", esto es una actitud,-sin dudas racista- de separación y de disminución. Skliar, C. (2005 p. 14)

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a la escuela era un organismo superior y sano. Se tenía la creencia que a través del darwinismo social se evitarían los estragos causados por las enfermedades físicas, psíquicas y sociales, en este momento surge con ímpetu las clasificaciones, la corrección de los desvíos y otras prácticas ortopédicas La normalización por lo tanto "implicaría crear una norma general en términos de la cual se puede medir cada una de las singularidades individuales, e identificar si cada uno cumple con ella o se desvía del parámetro común" Dussel, I y Caruso, M. (2003, P. 148) Los normalizadores influidos por el positivismo, desarrollaron tácticas dentro de este modelo que se tradujeron en la elaboración de fichas de control (físico y psicológico) de los alumnos; en el establecimiento de rígidos principios pedagógicos fundados en la psicología racional (ir de lo simple a lo complejo, de lo indefinido a lo definido, de lo concreto a lo abstracto); en la fijación de escalas de clasificación y diferenciación de los alumnos según edades, logros, orígenes sociales, razas. El supuesto que sostenía a esta pedagogía se fundaba en la necesidad de homogeneizar la enseñanza con el objetivo de asegurar la igualdad de los diferentes grupos. A esta corriente de la pedagogía normalizadora se le presentó una tendencia alternativa. La Escuela Nueva, suele ubicarse el desarrollo de las ideas de la educación nueva, en la Argentina, durante las décadas del ´20 y del ´30, Carlos Vergara había sido a fines del siglo XIX un precursor del gobierno propio infantil, también se reflejo en la Escuela Normal de Paraná a través de José María Torres y Sara Eccleston. Resulta muy difícil sintetizar sus planteos en la medida en que bajo esa denominación se incluyen pedagogos de muy diversas tendencias e incluso de diversas orientaciones políticas. Lo que los unía era la defensa de la autonomía infantil y las críticas a la escuela tradicional, retocada científicamente por los "normalizadores.

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Dada su complejidad, "este movimiento pedagógico fue objeto de múltiples críticas. Una de ellas es que no consiguió modificar la concepción educativa dominante en la fundación del sistema escolar (Carli, 2002). Por otro lado se considera al movimiento reformador, de filiación burguesa, una postura que privilegió los procesos de obtención del conocimiento por sobre los conocimientos mismos (Saviani, 1980). Por último, Dussel y Caruso (2003) señalan la coincidencia entre la emergencia del escolanovismo, el taylorismo y la intensificación del capitalismo, sosteniendo que la escuela nueva pude ser vista también como un ajuste de la pedagogía a ese modo de producción". En: Museo de las Escuelas. Hoja Genealógica. Escuela Nueva p. 2

La segregación educativa de la infancia "anormal" y el nacimiento de la pedagogía diferenciada Mas allá de estas discusiones generadas por las diversas posiciones mencionadas, el impacto en el campo pedagógico tanto de los normalizadores como de los que defendían la escuela nueva, sumado a la gran masificación en el sistema escolar, fue la segregación de aquellos niños "anormales", como se mencionó anteriormente que se alejaban de la norma, la normalidad a través de las clasificaciones de los test psicométricos12 y los aportes de la psicología de las diferencias individuales, dando origen a la pedagogía diferencial. De este modo comienza a inicios de los 50' a construirse un sistema de segregación para corregir los desvíos con la creación de clases especiales dentro de la escuela común. Como se refleja en el siguiente articulo publicado en la Revista de educación.

12 La aparición de los test de inteligencia como el de Binet-Simon se los relaciona con el momento de masificación de la escolaridad, con la llegada de alumnos que no reunían las condiciones para estar en la escuela

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239 "Las clases estarán construidas por alumnos de igual o aproximado nivel psicofísico. Los niños al ingresar a la escuela, deberán ser repartidos en las distintas graduaciones de la clase de acuerdo a su capacidad adquisitiva de conocimiento. Con el mismo, la escuela podrá encarar racionalmente el problema del fracaso escolar, entidad absurda nacida de la heterogeneidad de clase. Se esta retrasado con respecto de alguien que se halla adelantado, pero si todos los alumnos pueden luchar con armas naturales iguales, en la competencia escolar, solo habrá en el aula homogénea, pequeños retrasos o adelantos." D.G.E. (1950 p 49)

Se empezaron a normativizar estas prácticas a través de instrumentos legales, por ejemplo en el Decreto Nº 6013/58 que menciona la creación de "los grados A" indicados en los siguientes artículos: Art. 11º. Dentro de la escuela común funcionarán secciones destinadas a los niños de aprendizaje lento de la misma escuela y establecimientos provinciales próximos que llevarán la designación de Grados A. Art. 12º. Los Grados A están comprendidos dentro del régimen y organización general de las escuelas comunes considerándose cada una de estas secciones a los efectos de establecer la categoría de la escuela. Art.13º. El personal docente de los Grados A depende, en el aspecto administrativo, de la dirección de la escuela donde funciona; y en su aspecto técnico pedagógico, de la Dirección de Psicología y Asistencia Social Escolar, cuyo contralor estará a cargo de los Inspectores Técnicos de la citada Dirección de Psicología.

Esta diferenciación de los alumnos en distintos niveles mentales, afectivos, expresivos y de comportamiento moral y social. "De alguna manera, esta clasificación era lo que le permitía sostener el mismo tiempo un modelo de instrucción para todos y una postura conservadora en lo social, contribuyendo a mantener las desigualdades existentes" Dussel y Caruso. (2003. p. 186) História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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Graciela Frigerio (1999) vincula un doble mandato con los orígenes de la escolarización. " es posible afirmar que, como huella y marca de su paradoja de origen, la escuela es una institución atravesada permanentemente por dos tendencias, una reproductivista, conservadora, que tiende a perpetuar un orden; y una tendencia innovadora, transformadora que se propone modificar ese orden", donde las diferencias individuales son puestas al descubierto por las descalificaciones y el fracaso. En este escenario se fueron creando las condiciones para la creación de un sistema paralelo de escolarización para alumnos "anormales", "deficientes", "discapacitados", "inadaptados" "excepcionales" dando surgimiento a la creación de escuelas especiales. Los antecedentes legales en la provincia de Buenos Aires, fueron la reforma constitucional de 1949, que al remplazar la Dirección General de Escuelas por el Ministerio de Educación, asumiendo Avanza como ministro de educación, introdujo modificaciones tanto en el aspecto administrativo y organizacional, destacándose un mayor control por parte del estado provincial. Este aumento de control por parte del Estado fue acompañado por una mayor obligación en la garantía del ejercicio de sus obligaciones, poniendo un fuerte énfasis en los derechos sociales, recibiendo la influencia de la declaración de los derechos del hombre y del niño. En este marco se destaca la aparición de la "asistencia escolar y educativa"13, a su vez en 1948 se crea el Instituto de Psicología educacional, de quien dependen las escuelas de niños excepcionales cuya legislación a parece en la Provincia de Buenos Aires en 1951 a través la ley Nº 5650 en su Capitulo II, artículo 5to. Punto c) 13 La asistencia pública debe tener sus reglas: se dirige a los indigentes que, no tienen medios, estando en peligro o convirtiéndose en peligro para si y para los demás. En: Muel F. (1981 p 127)

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241 c) Las escuelas excepcionales estarán destinadas a atender la niñez, con deficiencias psíquicas, con deficiencia físicas o que haya mostrado, por poseer malos hábitos de importancia, una incompatibilidad precoz con el orden social. En consecuencia, se organizarán escuelas especiales para niños anormales y deficientes mentales, escuelas especiales para ciegos, sordomudos y deficientes físicos y escuelas de internados de reeducación social. Cada una de estas escuelas se regirá por reglamentos propios.

En la provincia de Buenos Aires las transformaciones abarcaron todos los estamentos sociales, y la educación no fue ajena a este proceso. En el año 1948 Mario Vitalone es seleccionado para el cargo de Secretario Técnico de la Dirección de Psicología Social Escolar. Al año siguiente (el 9 de agosto de 1949) se le encomienda la organización del Departamento de Niños Excepcionales y es elevada a la jerarquía de Dirección de Enseñanza el 1° de enero de 1952, siendo Director de la misma durante 24 años. (D.G.C y E. 2002 p. 11) Los debates en el campo pedagógico desprendidos de las publicaciones de los Boletines Nº 13, 14 y 15 (1.959) de la Dirección de Enseñanza Diferenciada de la provincia de Buenos Aires, giraban alrededor de la siguiente interrogación ¿La pedagogía de excepcionales es una pedagogía diferenciada? Esta discusión ponía en juego la existencia de un departamento de enseñanza específico, discrepancias que iban hasta la supresión del mismo hasta su consolidación definitiva dentro de los servicios pedagógicos oficiales. En otras palabras, lo que se estaba discutiendo era, si la pedagogía para los alumnos diferenciados tenía un campo formal propio dentro del quehacer educativo, es decir, distinguiendo su especificidad que no se superpongan a la educación común, ni a la terapia médica o psíquica y si se le podía asignarle una modalidad diferencial que la especifique.

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Al mismo tiempo que, considere la naturaleza epistemológica de la pedagogía para alumnos diferenciados, a fin de asignarle la ubicación que le correspondiera dentro del campo de la pedagogía y de determinar sus propias posibilidades cognoscitivas. Así en el Boletín Oficial señala. "En el caso de la disciplina que nos ocupa –la pedagogía para alumnos diferenciados- la posibilidad de una desviación de base epistemológica es mucho mayor si pensamos: 1º) En la frecuente referencia a factores patológicos como presupuesto de las irregularidades 2º) En la índole experimental y positiva de las disciplinas auxiliares. 3º) En las características diferenciales de las técnicas pedagógicas que utiliza; todo lo cual puede llevar a exaltar su autonomía respecto a la pedagogía general y a favorecer un matiz biologista y cientificista en la formación de los educadores diferenciados. Boletín Nº15 Dirección de Enseñanza Diferenciada. Provincia de Buenos Aires.Ministerio de Educación. 1959 Pág. 4 y 5

Pero al mismo tiempo se generaba otro problema que consistía en considerar si existía una modalidad formal que agrupe a todas las "excepciones" en una sola pedagogía. Estas discusiones sobre la pedagogía para alumnos diferenciados se fueron delimitando al centrarla, con una matriz que, radicaba fundamentalmente en la técnica pedagógica y, por ende, sus modalidades fueron propiamente práctica, fundada por un lado en el conocimiento que proporcionaban las ciencias auxiliares (psicopatología, patología médica, criminología, etc.) y por otro, en el arte pedagógico, cuyas reglas, adecuadas a las necesidades del sujeto, ordenan rectamente la enseñanza diferencial. Por lo dicho hasta acá, la pedagogía diferenciada, tomó en su configuración los paradigmas médicos- terapéuticos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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conjuntamente con los normativos-evaluativos, siguiendo la tradición normalizadora, en términos de la rehabilitación, reeducación de los sujetos, anormales, discapacitados. Sujetos cuyos cuerpos se apartan de los cánones de la normalidad, y que, por ende, se transforman en objeto de estudio e intervención de la medicina y la pedagogía –con un fin correctivo– cuyos agentes intervienen para normalizar. En esta perspectiva funcionalista, la discapacidad es pensada en términos de déficit o de desviación social. Sustentada en el darwinismo social o sea, es el "otro" el que se distingue, se aleja de lo "uno", convirtiéndose en distinto, peligroso. Entonces "la discapacidad se define a partir de la carencia, de la falta, de la diferencia, enfatizando el déficit, los limites. Aquello que les falta a las personas, como expresión de la ruptura con el ideal de completud de lo humano" Vallejos, I. (2005 p. 33) En este sentido, se despoja a la discapacidad de su producción social remitiéndola a un fenómeno de carácter estrictamente individual, de origen biológico, que expresa alguna anormalidad en el estado de salud y se manifiesta en términos de deficiencias individuales. Como expresión de que no funcionan como deberían. Esta visión medicalizada es propia de la sociedad capitalista, centrada en la naturaleza del trabajo y del mercado, las exigencias de acumulación, la producción de sujetos útiles tanto a la producción como a la reproducción social y la tipología del hombre normal como sujeto deseable. (ídem. p. 37) De esta manera, el sujeto se define como sujeto a otro por control y dependencia y sujeto como constreñido a su propia identidad, instaurando la lucha por la sujeción, subjetivación y sumisión, esta se instaura como consecuencia de procesos económicos, sociales, de fuerzas de producción, luchas de clases y estructura ideológica que determinan las formas de subjetividad. Foucault, (2001)

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En este sentido la discapacidad asume características universales y desconoce las condiciones sociales, políticas, históricas y culturales en las que se producen. Es la sociedad la que discapacita a aquellos sujetos que tiene alguna deficiencia. La discapacidad así entendida es una categoría social y política. Es una invención producida a partir de la idea de normalidad en el contexto de la modernidad y en estrecha vinculación a una estructura económica, social, política y cultural, es decir, es una forma más de inclusión que encuentra la normalidad para no dejar nada fuera de su órbita (Oliver, 1998) Entonces la discapacidad así entendida, es una producción social, originada en relaciones desiguales, en la apropiación desigual de los bienes materiales y simbólicos. Negar un abordaje social, político, histórico y cultural en este territorio, constituye el primer nivel de discriminación, en el cual se entretejen todas las demás exclusiones.

Una nueva retorica del "otro" en el campo pedagógico: "Sujetos con necesidades educativas especiales" Los antecedentes que dan origen a esta nueva denominación del "otro" en el campo pedagógico como, "sujeto con necesidades educativas especiales"14, las encontramos en la década del 50' cuando se empieza a cuestionar la postura innatista, para abrir paso a la postura ambientalista, que consideraba las El concepto de N.E.E. si bien aparece en la década del 60 tuvo su difusión en 1978 en una publicación en el Reino Unido encargada por el secretario de educación a una comisión presidida por Warnok, en esta publicación se define a las N.E.E: problemas de aprendizaje que demandan una atención más específica y mayores recursos educativos, poniendo el énfasis en la escuela y en la respuesta educativa, para esto se debía conocer el perfil del alumno sus limitaciones, retrasos, determinar la etiología (orgánica o ambiental) y analizar sus potenciabilidades de desarrollo y aprendizaje valorando cuales son los recursos educativos mas apropiados, contemplando la integración en contraposición de la segregación, marginación 14

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variables sociales y culturales como determinantes de la anormalidad y discapacidad a causa de ausencia de estimulación o de procesos inadecuados de aprendizajes. En este momento se empezó a diferenciar entre causas endógenas y exógenas. En las décadas del 60', 70' la discapacidad y la deficiencia tenía una vinculación estrecha con la capacidad del sistema educativo para proporcionar recursos apropiados en relación al déficit o las deficiencias, los cuales se establecían en función de la respuesta educativa. Por lo tanto, la escuela podía intervenir para favorecer el desarrollo y el aprendizaje de los alumnos con capacidades diferentes, con el apoyo de las didácticas especiales. Así se comenzó a desarrollar métodos de evaluación más centrados en los procesos de aprendizaje que en los resultados. Esta nueva mirada impulsó una transformación educativa en materia de discapacidad sustentada en el concepto de necesidades educativas especiales, la aprobación de la Declaración de los Derechos de los Impedidos de la O.N.U. (1971), La declaración de Salamanca (1.994), El Acuerdo Marco (1998) y la Resolución 2543/03 "Integración de alumnos con necesidades educativas especiales en el contexto de la escuela inclusiva". D.G.C.y E. (2003) entre otros documentos. Los cuales otorgaron una reindivicación del lugar social que ocupa la persona discapacitada, defendiendo sus derechos como ser humano. El marco legislativo bonaerense no quedo afuera de esta nueva conceptualización, reflejándose en la Ley Federal de Educación de 1.993 Capitulo III: Del sistema educativo provincial. Articulo 11° - Los objetivos de la Educación Especial son: a) Garantizar la atención de las personas con necesidades educativas especiales en unidades Educativas de educación especial; b) Brindar una formación individualizada, normalizadora e integradora, orientada al pleno desarrollo de la persona História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


246 y a una capacitación laboral que le permita su incorporación al mundo del trabajo y la producción; c) Favorecer la integración de los alumnos a los Servicios Educativos comunes

Este cambio conceptual en los discursos ideológicos dominantes como, en la legislación, continuó perpetuando las conceptualizaciones heredadas de la racionalidad moderna, siguió produciendo efectos15, porque en definitiva, la educación especial quedó definida como un continuo de prestaciones que tomó como eje central las necesidades educativa de sus alumnos, pero que se encuentra ella misma segmentada según las categorías enunciadas por los saberes médicos y psiquiátricos. Una educación especial que sale de un encierro obligado al lugar que le otorga una legislación escolar, que ha sido elaborada a partir de recoger las conceptualizaciones disciplinarias mas actuales, pero, presentó una contradicción, que se expresa en que (re) produciendo ella misma en su interior pequeños viajes de encierros. Como señala, Foucault (2001) no se trata de atacar tanto a tal o cual institución de poder, grupo, elite, clase, sino más bien a una técnica, a una forma de poder. Esta forma de poder emerge en nuestra vida cotidiana, categoriza al individuo, lo marca por su propia individualidad, lo une a su propia identidad, le impone una ley de verdad que él tiene que reconocer y al mismo tiempo otros deben reconocer en él. Es una forma de poder que construye sujetos individuales, que ignoran quienes somos individualmente como también es un rechazo a la inquisición científica y administrativa que determina quien es uno.

La palabra saber hace referencia a todos los procedimientos y todos los efectos de conocimiento que son aceptables en un momento dado y en un dominio definido. Por su parte, el término poder no hace otra cosa que recubrir toda una serie de mecanismos particulares y definidos, que parecen susceptibles de inducir comportamientos o discursos. Foucault M. (2001) 15

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En otros términos Veiga-Neto (2001) señala que la estrategia de dominación sigue siendo la norma, pero sin utilizar palabras que incomodan como normal-anormal, utilizando un recurso de la protección lingüística dada por algunas de la retorica, en este caso, "necesidades educativas especiales", convirtiéndose en una cuestión puramente técnica cuyo objetivo estaría en naturalizar la relación normales- anormales. Estas políticas de la inclusión abalada por gran parte de los pedagogos progresistas, se ha enfrentado a dos dificultades, por un lado las resistencias de los educadores conservadores. Por otro lado, dificultades de orden epistemológico al pretender tratar de un modo generalizado e indiferenciado a las innumerables identidades. El sujeto se define como sujeto a otro por control y dependencia, y sujeto como constreñido a su propia identidad, instaurando la lucha por la sujeción, subjetivación y sumisión. Esta se instaura como consecuencia de procesos económicos, sociales, de fuerzas de producción, luchas de clases y estructura ideológica que determinan las formas de subjetividad Esta nueva retórica de nombrar al "otro" como, sujeto con "necesidades educativas especiales", no ha sustituido a los conocimientos de corte positivista, que permanecen vigentes de modo paralelo bajo la forma de un discurso social-escolar no explicitado. El proyecto normativo conduce, dentro del ámbito escolar, a cierta práctica que avanza en el sentido de la segregación del alumno integrado sin pagar los costos de expulsarlo hacia afuera.

Surgimiento de la Pedagogía de la diversidad ¿"sujetos diversos"? El discurso de la diversidad aparece en la escena pedagógica vinculado a la reconversión del capitalismo, mediante un nuevo un modelo de acumulación, que en lo socio económico se ha caracterizado como neoliberalismo y que en lo socio cultural História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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esta íntimamente ligado con la globalización, entonces, ¿Cómo se ha construido este concepto de diversidad vinculado con las relaciones de poder? En el aspecto cultural señala Díaz (2000) más que de globalización tendríamos que hablar de mundialización, lo que significa una desterritorialización, rompiendo la unidad nacional y creando una especialidad distinta, a diferencia de construir identidades desde la Nación que construye en detrimento de las identidades locales. Esta desterritorialización no sólo disloca los espacios geográficos sino también disloca la propia subjetivación. La apropiación socio cultural que hace la política neoliberal de la diversidad es altamente cuestionable porque arma un lenguaje para nombrar a los nuevos sujetos, excluidos sociales, y los nombra como, "sujetos diversos" y definidos de alto riesgo. La diversidad desde un análisis crítico se convierte en una categoría explicativa de las diferencias devenidas como desigualdades en el marco de las actuales relaciones de producción capitalista Los usos de "las diferencias" desde el discurso neoliberal, encierra dos nociones: el de "tolerancia" y "diversidad" con la intención de ampliar el campo cultural, el que aparentemente lo considera como neutro. Mc Laren ya en 1994 se oponía a tratar como sinónimos el tema de las diferencias como sinónimo de diversidad, esta última es una noción liberal, habla de la importancia de sociedades plurales, pero administradas por grupos hegemónicos que son los creadores de consenso en quien entran en nosotros y quienes en los otros. Por lo cual, la integración de las diferencias resulta un control de los conflictos sociales, mediante la victimización y asistencia del otro, quien ocupará espacios previstos por el nuevo orden que no pongan en peligro la estabilidad social para el actual modelo de acumulación. Las políticas educativas oficiales, adhieren a esta ideología a través de legitimar el reordenamiento del sistema educativo desde el andamiaje discursivo de la tolerancia, el respeto História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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por el otro, la aceptación de lo diverso, la necesidad de la convivencia entre los distintos, y la necesidad de educación especial para aquellos que poseen las características de la otredad. La nueva Ley de Educación bonaerense del 2007, pone el concepto de inclusión educativa como un eje transversal, pero lo novedoso que introduce es, la Modalidad de Educación Intercultural en su capítulo XIII. El discurso de la interculturalidad entra en escena con la finalidad de poseer el control de lo particular, mediante la conversión de las diferencias en identidades integrables al mundo globalizado neoliberal. Es la centralidad hegemónica de los nuevos modos de acumulación la que posee la capacidad de administrar y dictaminar que de aquello "inter" puedes ser aceptable culturalmente. Es interesante ver cómo se arman algunos de los discursos de la "inclusión" al servicio de la "transformación educativa", con la articulación de desigualdad y diversidad, quedando atrapado en una consideración reproductora de las condiciones de pobreza y exclusión, la cual, genera una nueva clasificación de la población escolar en términos indisciplinados, violentos, desertores, desmotivados, chicos-problema. Al revisar como aparece el discurso de la diversidad en el contexto de las prácticas sociales y educativas, para dar surgimiento a la Pedagogía de la diversidad, se visualiza como sigue operando la lógica de las relaciones de poder que generan ciertas prácticas sociales que ocultan muchas veces, sus verdaderos significados. Como señala Dussel (2004) la posmodernidad nos tendría que invitar a repensar el lugar de la escuela en el mundo, reemplazando el extendido optimismo pedagógico por un optimismo local, puntual, que encuentre márgenes de libertad y oportunidades para desarrollar otro tipo de relaciones pedagógicas, concibiendo a la escuela como una oportunidad de dejar marcas en los sujetos de una sociedad un poco más justa e igualitaria

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Conclusión Esta revisión de las formas del saber pedagógico desplegado históricamente vinculado a lo social y a lo político ha producido ciertos desplazamientos en su forma de denominar al "otro" sin lograr una transformación en su forma de administrar la diferencia. A través de sus discursos, la gramática fue presentando ciertos cambios para anunciarnos que estamos frente a verdaderas cambios culturales y educativos pero, en realidad lo único que permitieron fue el ocultamiento de las relaciones de poder, el racismo y el darwinismo social. Desde las ciencias sociales, las identidades están en una relación compleja, política, con las diferencias que busca fijar, e involucra una violencia constitutiva (una relación de poder) a través de la constitución de esas diferencias. Y que la diferencia puede ser pensada como una identidad distinta que es complementaria, negativa, o amenazante. Estos cambios en la gramática pareciera tener la intención de atemperar la potencia perturbadora de la diferencia, "cuyo efecto fundamental es capturar, desactivar y gobernar la presencia desestabilizadora de la diferencia" (Larrosa, J, 2001 p. 18) Habría que preguntarnos si "los cambios de denominación de alteridad, hoy en día, existe una verdadera preocupación por el otro, por las diferencias o se sigue explicando por la lógica binaria de lo normal- anormal, inclusión-exclusión, ser o no ser, tener o no tener saber o no saber". Skliar, C (2007 p.29) A lo largo de esta periodización del campo pedagógico, "el otro" es configurado, producido desde la norma, desde la racionalidad occidental, para poner en marcha nuestras prácticas y nuestros discursos. Donde el "otro" aparece en escena como objeto de acción, reparación, regulación, integración y conocimiento. Se trata de identificarlo, de hacerlo visible, enunciable para registrar, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 221-255, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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detectar y diagnosticar sus similitudes y diferencias, de legislar sus derechos. Derrida nos invita a la desconstrucción16 de los discursos de la modernidad y señala "en la anulación del otro como alter ego radica la posibilidad de violencia, mientras que contrariamente acceder al otro como alter ego, es el gesto que se aproxima a la no violencia e implica al mismo tiempo saberme que yo soy también el otro del otro, por ello la relación de alteridad comporta una extraña relación: La disimetría, en la cual no puedo conocer al otro como otro más que en la diferencia. Derrida, (2001 p. 87). Dicho de modo metafórico, mantener una relación con el otro a la sombra de las luces.

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la deconstrucción consiste en deshacer, sin destruir, un sistema de pensamiento que se nos revela como único y/o hegemónico

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Ley de educación de 1.951 Ley Federal de Educación de 1.993 Nueva Ley de Educación Provincial de 2007

María Verónica Cheli. Prof. Ciencias de la Educación. Maestría en educación con nueve seminarios aprobados y tesis en curso. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. Universidad Nacional de la Plata. Correo electrónico unlp.veronicacheli@gmail.com.

Recebido em: 14/06/2010 Aceito em: 20/09/2010

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Resenha


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REVISTA CULTURA ESCRITA Y SOCIEDAD Maria Teresa Santos Cunha

Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas/ Márcia Abreu, Nelson Schapochnik (orgs).- Campinas, SP: Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB): São Paulo,SP: FAPESP; 2005.- (Coleção Histórias da Leitura)

De livros e de leituras: páginas plenas de mundo Livros (...) objetos pequenos e, no entanto,cheios de mundo.Ali estão eles, imóveis e silenciosos, mas prontos,a todo momento, a abrir as páginas e a a encetar um diálogo: vigoroso ou terno,cheio de alegria ou de tristeza,narrando o passado, apontando para o futuro ou convocando a eternidade. 1 (Romano Guardini)

Há livros que nos assombram pela força intelectual, que impressionam nossos olhos pela beleza e, por isso guardamos por eles um secreto carinho: são aqueles que nos conquistam pela excelência do seu conteúdo, pela forma estimulante com que tratam o leitor, pelo silencioso poder de sedução perceptível no abrir de suas páginas. Imóveis e silenciosas quando fechadas, estas páginas tornam-se vigorosas quando abertas e deixam visíveis pequenos mundos em que o leitor pode habitar, perambular, viajar. Uma viagem para retomar conversas que não se interrompem, para encetar diálogos, narrar passados, apontar futuros, eis o que me trouxe, como presente, este livro! Apresentado como um objeto nem tão pequeno (afinal, são 518 páginas) mas cheio de mundos, o volume em mãos – Cultura letrada no Brasil: Objetos e Práticas - organizado 1

GUARDINI,R. Elogio do livro.Lisboa: Grifo, 1994. p.14.


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pelos professores e pesquisadores Márcia Abreu (da Universidade Estadual de Campinas) e Nelson Schapochnik (da Universidade de São Paulo) no Brasil, propicia o (re)conhecimento das relações estabelecidas pelos homens com os livros e a leitura ao longo do tempo e em diversas condições sócio-culturais. Composto por 28 artigos que foram originalmente apresentados sob forma de conferências e palestras durante o II Congresso de História da Leitura e do Livro, realizado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)/ São Paulo/Brasil, em julho de 2003, o livro apresenta-se articulado em sete temas/eixos que enfeixam trabalhos reunidos sobre os títulos de " Feito à mão: Os manuscritos e a cultura" "Primeiros passos nos caminhos do romance"; "Periódicos e circulação de idéias"; "Escritos para o povo"; "A cultura letrada e a voz"; Leituras para crianças"e "Leitura e comunicação (virtual)" que se inscrevem no cruzamento de pesquisas que remetem à produção, circulação e recepção de textos no Brasil desde o período colonial até a contemporaneidade. Em um tempo em que a circulação e os modos de produção da cultura letrada, especialmente o livro impresso, vem sendo assolado pelas novas tecnologias e que estas mutações apontam para novas maneiras de ler e novas relações com o escrito são de fundamental importância a publicação de tais estudos que traçam as trajetórias do livro e da leitura, particularmente no Brasil, onde a imprensa aportou tardiamente e o letramento custou a se espalhar pela sociedade, como bem alertam os organizadores. Precedidos de uma Abertura composta por três textos que servem de fio de Ariadne para os outros trabalhos aqui reunidos, é importante ressaltar, neste início, as considerações do professor de literatura João Adolfo Hansen (p. 13-44) sobre a leitura literária, o testemunho de uma leitora chilena no século XIX escrito pela pesquisadora argentina Susana Zanetti (p.45-60) e a história da leitura de um escritor brasileiro (Gonçalves Dias) História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 259-263, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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escrita por Marisa Lajolo (p.61-76), todos autores representativos neste campo de pesquisa. Especialistas nacionais (que escrevem a grande maioria dos textos aqui reunidos) mas, também, alguns estrangeiros (como a portuguesa Rita Marquilhas, por exemplo) explicam as principais tendências na e para a construção de uma cultura letrada no Brasil materializada pela história da leitura e do livro, considerando-a capaz de articular sentidos e criar mundos. Parece consensual, aos articulistas aqui reunidos, que o livro impresso enfrenta nova mutação; na tela dos computadores é criado, transformado e reproduzido de maneira rápida e em vários formatos e que esta tecnologia está a revolucionar a maneira como nossa civilização cria, preserva e transmite saberes. O que se estuda aqui é o que produz tanto outras interações entre autor, texto, leitor e livro como outros modos de usar e fazer os artefatos da cultura letrada em diferentes contextos de recepção (escola, gabinetes de leitura, bibliotecas, teatro). Construído pela multiplicidade de escritos que contemplam o "mapeamento dos contextos de leitura e da formação do leitor; as práticas e modos de apropriação dos textos pelas comunidades de leitores; as convergências e constrangimentos entre a formação do leitor e o multifacetário campo de hierarquias e diferenças (de classe, gênero, etnia, religião, atividade profissional) e na avaliação da pluralidade dos artefatos textuais e como eles repercutem na construção do sentido" (p.10), os textos são apresentados pelo exame de suas particularidades e, assim, favorecem " a compreensão de uma perspectiva histórica em que vigoram, sob a ordem do simultâneo, permanências/resistências e mudanças/rupturas na ordem dos objetos e práticas da cultura letrada"(idem). Neste amplo conjunto de tão belos ensaios, é difícil ao resenhista enumerá-los individualmente. Em razão disso, o destaque a ser dado contempla o eixo onde estão os trabalhos dos próprios organizadores reunidos sob o título – Primeiros Passos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 259-263, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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nos Caminhos do Romance. Aqui, Nelson Schapochnik na esteira de seus estudos sobre os lugares de leitura apresenta os lugares de circulação do livro e da leitura ao longo do século XIX no Brasil; Márcia Abreu vai em busca do leitor, especialmente do século XVIII, através dos registros de leitura dos censores e, neste mesmo eixo Luiz Carlos Villalta (da Universidade Federal de Minas Gerais) mostra as proibições da censura relativas ao romances em circulação entre Portugal e o Brasil no século XVIII. Todos em uma alquimia entre teoria e empiria que nos faz ficar como Alice, correndo maravilhada por este mundo de letras. Ao longo da leitura é possível confrontar-se com um livro cuja unidade não se define apenas pelos objetos ou temas, mas pela figura dos seus autores, todos portadores de autoridade no campo, portanto, de quem deverá valer a pena saber-se a perspectiva por meio da qual os inúmeros fenômenos da cultura letrada estão sendo apreciados. Trata-se de uma obra que exige o empenho da inteligência e a largueza do olhar para encetar um diálogo. E a inteligência se expressa pela diferença de enfoque, alterando a percepção comum, pela agudeza da escrita, pela capacidade de síntese e de deslocamento, pela precisão da imagem que produz, pela maneira de mobilizar a inteligência do leitor, ativada pelo contato com o mecanismo de um pensar estimulante e surpreendente. Não hesito em recomendar entusiasticamente sua leitura pois se trata de uma coletânea que representa uma relevante contribuição ao debate histórico que hoje se instaura nas pesquisas sobre a cultura letrada, via uma história do livro e da leitura, abrindo caminho para novos e ainda pouco explorados rumos nessa área de pesquisa que, a julgar pela excelência desses estudos, veio para ficar.Experiência singular de construção de sentidos, que em meio a história de livros e leituras, a criação de registros de memórias e as experiências preservadas constituem para nós, pesquisadores, historiadores ou leitores comuns a possibilidade de, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 259-263, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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entre uma linha e outra, encontrar outros dizeres, outros fazeres em páginas plenas de mundo.

Maria Teresa Santos Cunha. Departamento de História/Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis/ Santa Catarina /Brasil. E-Mail: mariatsc@brturbo.com.br

Recebida em: 05/05/2010 Aceita em: 10/08/2010

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Documento


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LAICIDADE Dictionnaire de Pédagogie et d'Instruction Primaire publié sous la direction de Ferdinand Buisson (1878-1887, p. 1469-1474) Maria Helena Camara Bastos

Introdução Paris foi definida, por Walter Benjamin, como a capital do século XIX. Esta definição, para Cristophe Charle (1999, p. 455), remete tanto ao seu papel político na eclosão dos movimentos revolucionários europeus como pelo seu esplendor intelectual, mensurável através da presença de intelectuais de distintas procedências geográficas. Para a intelectualidade brasileira, Paris-França exercia uma imensa atração como capital cultural, com um significativo capital simbólico para a elite da época. Na área da educação, sem sombra de dúvida, a influência francesa é extremamente significativa. No campo das idéias e inovações pedagógicas, muitos autores franceses são traduzidos e apropriados pela elite intelectual brasileira - Gréard, Girard, Gérando1, Breal, Bert, Schoeffer, Delon, Defondon, Vesiot, Compayré2, Hippeau3, Renan, Pécaut, Pape-Carpantier4, Cochin, Daligault5, e tantos outros. A necessidade de um embasamento científico para o desenvolvimento da educação, faz com que os Sobre o Barão de Gerando e a implantação do método mútuo no Brasil, ver: BASTOS & FARIA F. (1999). 1

2

Sobre, ver BASTOS (2010)

3

Sobre, ver GONDRA (2002); BASTOS (2001).

4

Sobre, ver BASTOS (2010)

5

Sobre, ver BASTOS (2009)) História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 267-276, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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intelectuais brasileiros se apropriem das idéias de representantes da intelectualidade francesa para dar voz e força às idéias que consideram relevantes e significativas para serem implementadas6. Ferdinand Buisson (1841-1931)7 é um dos intelectuais Para Chapoulie e Briand (1994) "o processo de elaboração de uma forma de escolarização estende-se, freqüentemente, por décadas.(...) A elaboração de uma nova forma de escolarização é um processo do qual participa um conjunto diversificado de atores e coloca também em jogo um certo número de referências: experiências feitas por estabelecimentos que propuseram ensinos originais no plano da organização, dos modos ou das matérias; exemplos estrangeiros, às vezes, mais generosos do que exatamente evocados; a possibilidade de inserir as justificativas da criação em análises globais sobre as evoluções sociais existentes ou desejáveis". 6

7 Ferdinand BUISSON. Nasceu em dezembro de 1841, de uma família protestante de pequenos magistrados. Sua saúde o impede de entrar na École Normale supériere. Recusa-se a prestar juramento ao Império, em consequência renuncia a todos os postos universitários na França, apesar de seu sucesso no concurso para professor universitário de filosofia em 1868. Depois de 1866, ensina filosofia e literatura comparada na Academia de Neuchâtel. Também passa a escrever alguns textos, onde expõe sua concepção de uma Igreja liberal, na extrema esquerda do protestantismo. Defende a liberdade de pensamento, o ensino popular, o ideal pacifista. Faz parte do Primeiro Congresso Internacional da Paz e da Liberdade, presidido por Garibaldi, em 1868, em Genebra. O segundo Congresso ocorre em Lausane em 1869, sob a presidência de Vitor Hugo. Buisson exige a supressão das armas num discurso, o qual será muito reprovado. Depois de 4 de setembro de 1870, ele retorna à Paris. Jules Simon lhe nomeia, em 1871, para um posto de inspetor primário da região do Sena. Esta nomeação provoca a intervenção indignada do Monsenhor Dupanloup. Jules Simon anula a nomeação, mas reserva à Buisson outros serviços, nomeando-o secretário da Comissão da Estatística do Ensino Primário. Com este cargo, representa a França na Exposição de Viena (1873), depois na de Filadélfia (1876). Empreende a publicação do Dictionnaire de Pédagogie. Jules Ferry nomeia-o inspetor geral, depois Diretor do Ensino Primário (1879). Buisson é seu colaborador mais importante, que participa da preparação e do estudo de todas as reformas escolares. Em 1896, ocupa a cadeira de Pedagogia na Sorbonne. Defensor ardoroso de Dreyfus, foi um dos fundadores da Liga de Direitos do Homem. Em 1902, assume uma cadeira no legislativo como deputado, eleito pelos radicais e os socialistas do 13º bairro de Paris. É relator da lei sobre ensino de ordens religiosas, preside a comissão da separação da Igreja e

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e educadores franceses que significativa influência teve nos escritos e nas atividades de figuras da elite intelectual brasileira, podemos citar especialmente Rui Barbosa; Menezes Vieira8. No Brasil, a força e o prestígio de suas idéias reside, em grande parte, na posição política e profissional que ocupa9. Ou seja, o fato de ser Inspetor Geral da Instrução Pública na França (1878), Diretor do Ensino Primário (1879), redator da Revue Pédagogique, Professor da Sorbonne (1887), lhe dá o prestígio e o status quo para que outros o citem, reforçando as idéias de modernidade sobre educação escolar. Entre seus escritos, os mais citados e utilizados são o Rapport sur l'instruction primaire à l'Exposition Universelle de Vienne en 1873; o Rapport sur l'instruction primaire à l'Exposition Universelle de Philadelphie en 1876; e a Conférence sur l'enseignement intuitif, faite aux Instituteurs délégués à L'Exposition Universelle en 1878. Além desses, destaca-se a direção do Dictionnaire de Pédagogie et d'Instruction Primaire (1878- 1887), considerado "A Bíblia da escola republicana, (...) um thesaurus monumental, em língua francesa, do ensino primário e de sua pedagogia" (DUBOIS, 2001, 59). Foi concebido em 1876 e devia, inicialmente, aparecer em 1878, por ocasião da Exposição Universal de Paris, em um único volume de mil páginas. Na do Estado, intervém constantemente à favor dos professores primários. Em 1914, é presidente da Liga dos Direitos do Homem, da Liga do Ensino, da Sociedade pela Instrução Elementar, da Sociedade de Sociologia. A partir de 1927, abandona a vida pública, ano em que recebe o Prêmio Nobel da Paz, que o divide com a pacifista alemã Quidde. (OZOUF, 1982, p.239-241). 8

Sobre a apropriação das idéias de Buisson no Brasil, ver BASTOS (2002).

Martine Brunet (2000, p.1) assim descreve a atuação de Ferdinand Buisson "protestant libéral, directeur de l'enseignement primaire pendant 17 ans (18791896), fut le "génie de la laïcitée", fondateur du dictionnaire de pédagogie, créateur de la chaire des sciences de l'éducation à la Sorbonne, dreyfusard, député radical-socialiste, ardent militante du pacifisme (il obtint le prix Nobel de la paix)". 9

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realidade, nove anos -1878 à 1887 – e 360 autores foram necessários para concluir sua publicação em quatro volumes e 5.600 páginas. A primeira parte, que compreende dois volumes, é denominada "geral" ou "teórica". A segunda parte é considerada uma "verdadeira enciclopédia prática de conhecimentos necessários ou úteis ao professor primário e ao professor da escola normal" (DUBOIS, 2001, p.62). Em 1911, outra edição é realizada e intitulada Nouveau Dictionnaire de Pédagogie et d'Instruction Primaire, com acréscimos de verbetes e novos autores. Por sua monumentalidade, Pierre Nora (1984) o considera a "catedral da escola primária". Como tal, traz inúmeros verbetes que fazem um balanço e análise do sistema educacional e das práticas pedagógicas dos países mais desenvolvidos. Expressam inovações do sistema educacional e escolar, como modelo a ser adotado em um projeto republicano e de modernização da sociedade. A tradução do verbete LAICITÉ/LAICIDADE do Dictionnaire de Pédagogie et d'Instruction Primaire (1878-1887, p. 1469-1474), sem autoria estabelecida, busca remontar as origens, isto é, o momento em que se constitui a instituição escolar republicana laica, obrigatória e gratuita, para melhor compreender o mundo da educação contemporânea. Ou seja, melhor analisar a maneira que a laicidade escolar foi pensada e praticada no século XIX. Santa-Anna Nery, em 1889, fazendo um balanço da instrução pública no Império, afirma que a laicidade era uma « palavra que ainda não constava do nosso vocabulário pedagógico ». Mesmo estando presente em inúmeros discursos, como compreender que na prática tal não acontecia? Para ele, o fato da instrução religiosa ser ministrada em todos os estabelecimentos por leigos, não configurava uma forma de laicidade. E a questão ainda permanece presente: ensino religioso nas escolas, ministrado por religiosos ou por leigos?; qual deve ser a presença das Igrejas na Escola?; laicidade é sinônimo de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 267-276, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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liberdade de ensino?; laicidade é o mesmo que neutralidade?; e o papel do Estado?; defender a laicidade é ser antireligioso?; liberdade do ensino? ação estatal ou privada? ensino público x ensino particular? – e outras tantas questões. Costa-Lascoux (1996) informa que a palavra aparece pela primeira vez em 1871, no jornal La Patrie, a propósito de uma polêmica sobre ensino religioso na escola. A partir desse momento, os dicionários inserem o adjetivo Laico e o substantivo Laicidade, com conotação negativa de não religioso. Esse período corresponde à passagem da separação da Igreja do Estado para a neutralidade e dessa para o respeito da liberdade de expressão religiosa. A laicidade articula o ideal de um espaço cívico comum e o princípio de neutralidade confessional do Estado, que subentende liberdade de consciência e igualdade. Laicidade se refere a toda política de ensino público sem nenhuma influência religiosa e com o objetivo de uma neutralidade escolar. Laicismo, ao contrário, representa um combate contra todos os valores religiosos e mais particularmente aqueles defendidos pela Igreja Católica. Para Ruiz-Pena (1999, p.347), a defesa do ideal laico conduz a dialetizar a justiça social própria da democracia e os sentidos das discussões políticas próprias da República. A laicidade é a cultura da verdade e da justiça e não uma busca de consenso de opiniões. O ideal laico tem um apelo futuro, que poderá um dia reunir todos os povos. O processo de laicização da escola na França tem como marco um conjunto de leis. A Lei de 28 de março de 1882, que celebra a obrigação escolar e a laicidade, colocando no lugar da educação moral e religiosa, instituída pela lei Falloux de 15 de março de 1850, pela educação moral e instrução cívica. As mudanças são mais amplas, a lei determina que o ensino primário deve compreender a instrução moral e cívica, a leitura e a escrita, a língua e os elementos da literatura francesa, a história, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 267-276, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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especialmente a francesa, a geografia, especialmente a francesa, algumas noções usuais de direito e economia política, os elementos de ciências naturais, físicas e matemática, e sua aplicação na agricultura, na higiene, nas artes industriais; trabalhos manuais e uso das ferramentas dos principais ofícios, elementos do desenho, da modelagem e da música; a ginástica. Para os meninos, os exercícios militares; para as meninas, trabalhos de agulha. Esse conjunto de disciplinas escolares revelam de certa maneira as representações que a República fazia de sua obra escolar e permite interrogar o projeto cultural investido na escola pelos republicanos (KAHN, 2002, p. 8). A temática tem sua ressonância ainda hoje, compondo dicionários especializados em educação. Em 2008, Agnes Van Zanten dirige o "Dictionnaire de l'éducation", em que o verbete "Laicité" é escrito por Jean-Paul Delahaye, que afirma que a primeira missão da escola é partilhar os valores da República. Considera que a "laicidade é a pedra angular do pacto republicano, que repousa sobre três valores indissociáveis: liberdade de consciência, igualdade de direitos em opções religiosas e neutralidade do poder político" (2008, p.427).

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Maria Helena Camara Bastos é Doutora em Educação História e Filosofia da Educação; Pós-doutora no Service d'histoire de l'éducation/INRP-França (CAPES – 2000; 2010); Professora do PPGE/PUCRS; Pesquisadora do CNPq, FAPERGS.

Recebido em: 10/06/2010 Aceito em: 10/08/2010 História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 267-276, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


VERBETE LAICITÉ/ LAICIDADE Dictionnaire de Pédagogie et d'Instruction Primaire publié sous la direction de Ferdinand Buisson (18781887, p. 1469-1474) Esta palavra é nova, e mesmo que corretamente formada não é ainda de uso geral. Entretanto, o neologismo é necessário, nenhum outro termo permite exprimir sem perífrase a mesma idéia em sua amplitude. Nós expusemos uma parte da questão do ponto de vista legislativo e estatístico, sobretudo no que concerne aos países estrangeiros, no que se trata de escolas confessionais e não confessionais. Resta-nos aqui esclarecer muito sumariamente o próprio princípio do ensino laico, suas características, suas conseqüências, suas vantagens e seus perigos. Para essa exposição, nos apoiaremos sobre a legislação francesa em vigor: será fácil para o leitor, então, generalizar as doutrinas que vamos apresentar dessa forma. A laicidade ou a neutralidade da escola em todos os graus não é nada senão a aplicação à escola do regime que prevaleceu em todas nossas instituições sociais. Partimos, como a maioria dos povos, de um estado de coisas que consistia essencialmente na confusão de todos os poderes e de todos os domínios, na subordinação de todas as autoridades a uma autoridade única, aquela da religião. É somente através do lento trabalho dos séculos que, pouco a pouco, as diversas funções da vida pública distinguiram-se, separadas uma das outras e livres da tutela estreita da Igreja. A força das coisas trouxe em boa hora a secularização do exército, depois a daquelas funções administrativas e civis, e, por fim, as da justiça. Toda sociedade que não quer permanecer no estado de teocracia pura deve logo constituir como forças distintas, senão independentes e soberanas da Igreja, os três poderes – legislativo, executivo e judiciário. Mas a secularização não é completa, quando sobre cada um desses poderes e sobre todo o conjunto da vida pública e privada, o clero conserva um direito de intervenção, de supervisão, de controle ou


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de veto. Tal era precisamente a situação de nossa sociedade até a Declaração dos Direitos do Homem. A Revolução francesa faz aparecer, pela primeira vez, em toda sua clareza a idéia do Estado laico, do Estado neutro entre todos os cultos, independente de todos os cleros, livre de toda concepção teológica. A igualdade de todos os franceses perante a lei, a liberdade de todos os cultos, a constituição do estado civil e do casamento civil, e o exercício em geral de todos os direitos civis a partir de então assegurados fora de toda condição religiosa, tais foram as medidas decisivas que consumiram a obra da secularização. Apesar das reações, apesar dos retornos diretos ou indiretos ao antigo regime, apesar de quase um século de oscilações e de hesitações políticas, o princípio sobreviveu: a grande idéia, a noção fundamental do Estado laico, isto é, a delimitação profunda entre o temporal e o espiritual, é a entrada em nossos costumes de maneira a não mais sair. As inconseqüências na prática, as concessões de detalhe, as hipocrisias mascaradas sob o nome de respeito às tradições, nada pode impedir a sociedade francesa de se tornar, considerando tudo, a mais secularizada, a mais laica da Europa. Um único domínio havia escapado até os últimos anos dessa transformação: era a instrução pública, ou mais exatamente a instrução primária, pois o ensino superior não estava submetido a nenhuma sujeição há algum tempo, e, quanto ao ensino secundário, só era limitado aos alunos internos, isto é, assim como o Estado que se substitui às famílias deve proteger as crianças, dentro dos muros dos colégios em que elas são encerradas, assim os meios de instrução religiosa devem ficar fora. O ensino primário público, ao contrário, permanecia essencialmente confessional: não somente a escola devia dar um ensino dogmático formal, mas ainda, e por uma conseqüência fácil de prever, tudo na escola, mestres e alunos, programas e métodos, regulamentos, eram colocados sob a inspeção ou a direção das autoridades religiosas. A própria história de nosso ensino primário explicava esse regime. Por motivos diversos, todos os governantes que aqui História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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se sucederam, desde o início do século, repudiaram os projetos da Convenção e colocaram seus esforços em reconstituir ou a manter o sistema antigo da escola confessional. Um sistema que tinha uma existência de muitos séculos, todo um conjunto de escolas formadas e de mestres com autoridade estatal, que tem ainda a aprovação do clero, em todas as partes, com exceção de uma, e que tem enfim em seu favor considerações econômicas muito fortes mesmo em relação às municipalidades teoricamente opostas ao ensino clerical, este sistema não pode ser facilmente abandonado. E para que um governo resolvesse substituir ousadamente o regime da laicidade, era preciso que, de uma parte, a opinião pública voltasse às tradições de 1789 e de 1792 e visse de uma maneira muito clara a necessidade de realizar na instrução pública a mesma revolução que em todas as outras instituições, e, de outra parte, que o governo estivesse em condições de retirar os numerosos obstáculos prévios que impediam de sonhar com essa transformação. Iisto é, que ele se fizesse mestre do ensino público, que tivesse seu orçamento em suas mãos, que o tornasse gratuito e obrigatório, desvencilhá-lo da tutela das comunas e de benfeitores de toda sorte que, sob o pretexto de enriquecê-lo em maior ou menor medida, se reservavam o direito de dirigi-lo de acordo com a sua vontade. Somente muito recentemente é que essas condições ocorreram e que a lei francesa pode estabelecer a laicidade da escola primária. Sabemos que após debates acalorados e ao custo de muitos esforços perseverantes a lei de 28 de março de 1882 pode ser promulgada. Alguns países nos haviam precedido neste caminho. Desde o começo do século, a Holanda adotara o princípio da escola neutra: a lei de 1806 excluía da escola o ensino religioso dogmático, e estipulava que esse ensino só poderia ser dado fora dos horários de classe, por membros do clero de diferentes confissões. A lei de 1857 dizia: "A instrução religiosa é entregue às comunidades religiosas. Os locais escolares poderão, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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fora do horário de classe, ser colocados à disposição dos alunos que freqüentam a escola". A lei de 17 de agosto de 1878 manteve esta disposição. Na Áustria, a lei de 14 de maio de 1869, que coloca a religião entre as disciplinas obrigatórias de ensino na escola primária, diz que o ensino religioso deve ser dado pelos ministros de diferentes cultos. Entretanto, nas localidades onde não há eclesiásticos, o professor primário (instituter) pode ser autorizado a dar lições de religião às crianças de sua confissão. Na Suíça, a Constituição Federal de 1874 dispõe (art.27): "As escolas públicas devem poder ser freqüentadas pelos adeptos de todas as confissões sem que estes sofram de nenhuma maneira restrições à sua liberdade de consciência e de crença". Esta disposição não institui de maneira formal a laicidade da escola primária; também, em quase todos os cantões, a escola permaneceu confessional; o aluno que professa um culto diferente da maioria da classe é simplesmente dispensado de assistir às lições de religião. Os cantões de Berna, de Thurgovie, de Neuchâtel e de Genève, contudo, introduziram a laicidade dos professores, isto é, que as pessoas que pertencem a ordens religiosas não podem ensinar nas escolas públicas. Somente o cantão de Neuchâtel estabeleceu a laicidade do próprio ensino: nos termos da lei de 1872, "o ensino religioso é distinto das outras partes da instrução; ele é facultativo; as escolas estão à disposição de todos os cultos para o ensino religioso, fora do horário escolar". Na Bélgica, como na Holanda, o ensino religioso não faz parte do programa oficial da escola; ele é "deixado ao cuidado das famílias e dos ministros dos diversos cultos; um local na escola é colocado à disposição dos ministros dos cultos para dar, antes ou depois do horário escolar, o ensino religioso às crianças de sua crença que freqüentam a escola" (Lei de 1º de julho de 1879). Nos Estados Unidos, a escola pública ministra, geralmente, um ensino religioso não dogmático, sob a forma de leitura de passagens da Bíblia; mas certas cidades estabeleceram a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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neutralidade absoluta da escola, isto é, suprimiram a oração e a leitura da Bíblia. Na Itália, a lei de 15 de julho de 1877 retirou o catecismo e a história sacra do rol das matérias obrigatórias. Algumas comunas aproveitaram desta disposição para dar às suas escolas primárias um caráter de neutralidade; mas um grande número manteve, como no passado, o ensino religioso, tornado facultativo nos termos da lei, mas seguido, de fato, pela unanimidade dos alunos. A legislação francesa de 1882 é uma das que mais lógica e completamente estabeleceu o regime da laicidade. Após alguns meses de experiência, não podemos pretender apreciar os resultados; mas, colocado o princípio, podemos examinar as diversas dificuldades encontradas na aplicação. Distingamos logo duas questões que são confundidas seguidamente: a laicidade do corpo docente e a laicidade do próprio ensino. I. Laicidade do corpo docente – Que as escolas públicas devem empregar como professores somente laicos não é um axioma e não é mais uma conseqüência rigorosa do próprio princípio do ensino laico. Durante muito tempo, as congregações religiosas, tanto o pessoal auxiliar quanto o corpo docente à discricionariedade da Igreja, tiveram, de fato, o monopólio dessas funções: esse monopólio foi destruído e não nos arrependemos disso. Sem dúvida seria inacreditavelmente injusto não fazer justiça aos serviços prestados durante séculos por essas associações e pela Igreja que os dirigia. Sem dúvida, elas fazem ainda hoje em mais de um ponto na França e sobretudo fora dela, uma obra digna de elogio e de reconhecimento e, seja tomando a instituição com um todo ou de um ponto de vista de exemplos individuais fáceis de multiplicar, alguns pertencem à história, outros, à nossa experiência, tendo como palco as mais obscuras aldeias, não seria difícil escrever um relatório cheio de fatos tocantes e de argumentos irrefutáveis em favor das freiras e padres de todo tipo, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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se tivéssemos de defendê-los contra uma condenação sumária e geral. Mas sem caluniar as ordens religiosas docentes, sem deixar de reconhecer seus méritos no passado e no presente, somos forçados, quando admitimos a laicidade do ensino público, de se perguntar se ela é compatível com a manutenção das escolas das congregações. Por sua instituição, por suas origens, pelos votos de seus membros, pelo espírito de pacto que os constituem, as congregações em geral e as congregações docentes em particular, têm uma razão de ser que é quase a negação da própria idéia de ensino laico. Para elas, a religião é o objetivo, o único objetivo, e a instrução é somente o meio de conduzir à religião. Pedir a uma congregação a neutralidade religiosa seria uma paródia. Tomar as congregações no seu conjunto como instrumentos destinados a laicizar o ensino seria ilusão demais, senão ironia demais; é necessário esperar, não importa o que façamos, que seja enfraquecido o elemento religioso do conjunto do pessoal do ensino público, à medida que a idéia de laicidade penetrará mais nos hábitos nacionais. Pergunta-se, a lei deve excluir de todas as funções no ensino público todo membro de uma congregação? Uma distinção é necessária: podemos defender que é possível excluir uma congregação sem excluir os seus membros. De fato, o que mais universal e justamente repreendemos às comunidades religiosas no exercício de suas funções de ensino? É que elas não provêm do Estado e da Universidade que devem servir; elas lhes obedecem somente na aparência e demonstram uma deferência somente exterior: os únicos verdadeiros chefes cuja congregação segue ferrenhamente os preceitos e reverencia a autoridade, são os chefes espirituais, e nada é tão pouco surpreendente: é o contrário que deveria surpreender da parte de uma reunião de homens ou de mulheres que precisamente se separaram do mundo para pertencer inteiramente a uma certa disciplina; como gostaríamos que esta não seja para eles infinitamente superior a toda influência humana? O legislador compreendeu isso tão bem que em todo o tempo considerou como História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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natural deixar aos chefes espirituais das congregações o direito de dispor de seus membros; a própria nova lei não revogou essa regra; deixa ainda ao superior da congregação a nomeação dos religiosos sob reserva da concordância da autoridade civil. É esse último vestígio do antigo estado de coisas que não poderia subsistir: a lei não pode conceder a uma corporação qualquer o direito de interposição, e esse privilégio de constituir uma espécie de pequeno Estado dentro do Estado. A Universidade deve reconhecer somente professores individualmente nomeados e responsáveis. Não importa o nome que têm ou o hábito que vestem, todos devem ser nomeados, transferidos, pagos, recompensados ou punidos da mesma maneira e pela mesma autoridade. O desaparecimento do regime excepcional a favor das congregações é então a primeira reforma que se impõe hoje para que a reorganização do ensino nacional seja completa e eficaz. Mas essa reforma acarreta a exclusão individual de todo professor de ordem religiosa? Não pensamos assim. O fato de pertencer a uma associação religiosa – salvo no caso de que seja uma sociedade ilícita, não autorizada, em oposição às leis – não deve mais constituir no futuro um caso de indignidade, assim como não deveria no passado traduzir-se por um título ou um privilégio especial. A lei exige daquele que pretende ser professor público ou privado algumas condições e garantias: ela lhe impõe certas obrigações sob o controle das autoridades competentes. Não vemos porque ela iria de encontro a uma categoria qualquer de cidadãos. Assim como ela ignora se são católicos, protestantes ou israelitas, pode ignorar se fizeram votos de celibato, se vestem véu ou hábito monástico. Eles serão regidos pelo direito comum, desde o dia em que forem nomeados da mesma forma e nas mesmas condições que seus colegas laicos: se eles a isso se submetem, porque manter uma distinção entre eles e os outros? Respondemos: "Eles não se submeterão: os religiosos nomeados isoladamente, tornando-se professores a título individual, misturados indistintamente aos laicos, exercendo suas História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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funções diárias docentes e livres de voltar em seguida para a casa comum para se dedicar a exercícios religiosos que lhe aprouverem , tal estado de coisas é a morte das congregações. Elas preferirão não ter um de seus membros no ensino público a vê-los retomar assim sua independência e responsabilidade". É possível, ao menos para algumas dessas congregações: mas que importa? Elas agirão como crêem dever fazê-lo. Tudo o que podemos solicitar ao Estado, é de não nada fazer em relação a isso que seja contrário ao direito comum e, por conseqüência, à eqüidade. O problema a resolver é de não criar nem uma situação excepcional de privilegiar alguma congregação, nem ao contrário uma situação excepcional em detrimento de algum cidadão, religioso ou não. E é precisamente o resultado que esperaríamos ao reconhecer o direito individual do religioso e ao negar o direito coletivo das congregações. Para declarar que nenhum indivíduo pertencente a uma associação religiosa poderá exercer as funções de ensino, ao menos de ensino público, seria preciso invocar ou um caso de indignidade moral, o que não é sustentável, ou um caso de incapacidade profissional, o que não é possível, pois os religiosos têm as mesmas justificações de saber que os laicos, ou enfim uma incompatibilidade; ora, somente pode haver incompatibilidade entre duas funções ou dois empregos, e não entre uma função pública e os atos da vida privada: uma incompatibilidade dessa natureza não é presumível. Estaríamos mal embasados ao dizer: há uma incompatibilidade entre a função de professor público, por exemplo, e o fato de ser israelita, porque o israelita não pode trabalhar aos sábados. É possível que esse israelita se recuse a essa obrigação, e como essa é uma obrigação do cargo, não poderá ser nomeado ou mantido. Mas é possível também que ele se dobre a essa necessidade, e não temos o direito de prever o contrário para eliminá-lo. O mesmo se aplica aos congregacionistas. É possível que algum dentre eles, seja espontaneamente, seja por ordem de seus superiores, se recuse a aceitar as condições de nomeação e de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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exercício que a lei estabeleceu para os professores sem distinção de origem ou de estado civil, e, nesse caso, se exclui a si mesmo; mas também é possível que, com o progresso dos costumes ajudando, um certo número de professores e professoras de real valor decidam-se a exercer nas condições ordinárias, reservando-se o direito retornar todo dia, acabadas as aulas, para as suas comunidades, a fim de lá continuar as práticas religiosas que pertencem ao domínio da vida privada. Não é impossível admitir que certo número de congregações, aquelas que não têm outro objetivo nem outro pensamento senão o de exercer a filantropia, a piedade, a caridade, se acomodariam mais rapidamente do que crê o regime, como elas se restringiram sucessivamente às diversas obrigações profissionais que o Estado lhes impôs; ao passo que outras associações, que desejam antes de tudo que seus membros sejam instrumentos dóceis nas mãos de seus chefes, jamais aceitarão essa nomeação direta, essa dispersão, essa responsabilidade individual, esses direitos individuais à aposentadoria, em uma palavra todas essas medidas que libertam o religioso da congregação. Mas essa não é a questão: não é um ponto de fato, mas um ponto de direito que o Estado terá de regulamentar, e acreditamos ter demonstrado que ele pode ser regulamentado conforme o espírito liberal de nossa legislação, pela ab-rogação pura e simples da cláusula do artigo 31 da lei de 15 de março de 1859 que estipula que "a apresentação é feita pelos superiores para os membros das associações religiosas dedicadas ao ensino e autorizadas pela lei ou reconhecidas como estabelecimentos de utilidade pública". II. Laicidade do ensino propriamente dito ou laicidade do currículo. – O que se deve entender por essas palavras, e de qual grau de rigor são elas suscetíveis? Estimamos que é preciso compreendê-las no sentido que primeiro se apresenta ao espírito, isto é, em sua acepção mais correta e simples: o ensino primário é laico, no que não se confunde com o ensino religioso. A escola, confessional que era, tornou-se laica ou não confessional; ela não História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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é mais somente "mista" quanto ao culto, situação que marcou por muito tempo, por assim dizer, a transição entre dois regimes: ela é "neutra quanto ao culto". Os alunos de todas as comunhões são nela indistintamente admitidos, mas nenhum representante de nenhuma comunhão tem mais autoridade ou acesso a ela. É a separação, por tanto tempo em vão demandada, da igreja e da escola. O professor primário na escola, o prelado na igreja, o prefeito na prefeitura. Ninguém pode se dizer proscrito do domínio em que não tem entrada: é o próprio fato da distinção das atribuições, que não tem nada de maléfico para ninguém nem de prejudicial para nenhum serviço. Reduzido a esses termos, o problema da laicidade não pode dar lugar nem a bem vivas discussões nem a sérias dificuldades, apesar dos certos esforços que se faz para fazê-los nascer. Mas é possível se limitar a essas linhas gerais? O culto da lógica, que professamos mais talvez do que qualquer outro povo, não exige que digamos onde começa e onde termina a laicidade? É suficiente que o padre não entre na escola, que o catecismo não seja ensinado nem as rezas recitadas, para que o ensino seja laico? Se o próprio professor primário tem convicções religiosas, como ele não as comunicará a seus alunos? Se ele não as tiver ou se for capaz de dissimulá-las, estará ele verdadeiramente à altura da missão educadora? Assim encarado, o problema se eleva e se estende, e a questão legislativa e administrativa dá lugar à questão filosófica e pedagógica. Tentemos, senão resolvê-la, ao menos indicar em qual sentido a solução nos parece dever ser buscada. Se por laicidade do ensino primário fosse preciso entender a redução desse ensino ao estudo da leitura e da escrita, da ortografia e da aritmética, às lições de coisas e às lições de palavras, toda ilusão às idéias morais, filosóficas e religiosas sendo proibida como uma infração à estrita neutralidade, não hesitamos a dizer o que seria feito de nosso ensino nacional. Seria conduzir o professor primário ao papel quase maquinal do antigo magister, cujos dois atributos distintivos eram a régua em madeira e a pluma História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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de ganso, uma resumindo todo o seu método e a outra toda a sua arte. Se o professor primário não deve ser um educador, que títulos lhe damos, qual posição lhe conferimos, qual saber ele possui? Sua missão é diminuída e amputada a ponto de não ser mais digno do respeito que hoje o cerca. O filho do povo tem necessidade de outras coisas além do aprendizado técnico do alfabeto e da tábula de Pitágoras; ele tem necessidade, como tão felizmente dissemos, de uma educação liberal, é a dignidade do professor primário e a nobreza da escola dar essa educação sem sair dos modestos quadros do ensino popular. Ora, quem pode pretender que haja uma educação sem um conjunto de influências morais, sem certa cultura geral da alma, sem algumas noções sobre o próprio homem, sobre seus deveres e sobre seu destino? É preciso, então, que o professor possa ser um mestre de moral ao mesmo tempo em que um mestre de língua ou de cálculo, para que sua obra seja completa. É necessário que ele continue a ter uma carga de almas e a penetrá-las profundamente. É preciso que tenha o direito e o dever de falar ao coração tanto quanto ao espírito, de supervisionar em cada criança a educação de sua consciência ao menos em pé de igualdade com todas as outras partes de seu ensino. E tal papel é incompatível com a afetação da neutralidade, ou da indiferença, ou da mudez obrigatória sobre todas as questões de ordem moral, filosófica e religiosa. "Há duas espécies de neutralidade da escola, como bem dizia o ministro da instrução pública ao longo da discussão da lei: há a neutralidade confessional e a neutralidade filosófica. E nessa lei se trata somente da neutralidade confessional". O professor se deve, deve a seus alunos e ao Estado não tomar partido no exercício de suas funções nem a favor nem contra nenhum culto, igreja, doutrina religiosa, sendo que este domínio deve permanecer o domínio sagrado da consciência. Mas levaríamos o sistema ao absurdo se pretendêssemos solicitar ao mestre não tomar partido entre o bem e o mal, entre a moral do dever e a moral do prazer, entre o patriotismo e o egoísmo, se lhe proibíssemos de fazer apelo aos História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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sentimentos gerais, às emoções nobres. A todas essas grandes e altas idéias morais que a humanidade transmite, sob nomes diversos, há alguns milhares de anos como o patrimônio da civilização e do progresso, se lhes contestássemos o direito de falar da alma e da liberdade, porque isso seria condenar o materialismo ou o fatalismo; da tolerância, porque seria condenar implicitamente a doutrina exclusiva de tal ou tal igreja; deveres em relação a si mesmo, em relação aos outros, em relação a Deus, porque seria se inclinar a favor de uma moral cristã que pode desagradar a um ateu. Em relação a isso, nem o texto, nem o espírito da lei, nem os regulamentos deliberados quanto à aplicação da lei pelo Conselho Superior, não permitindo menor dúvida. E o ministro teve razão por tanto tempo quanto durou a discussão desta lei e, apesar de todos os esforços de seus adversários, de se obstinar a conduzi-los sempre da especulação e da lógica em excesso aos fatos e às considerações práticas; ele tinha a seu favor o bom senso e a experiência quando sustentava que, em suma, o ensino moral não é nem uma impossibilidade nem uma contradição com o caráter neutro da escola. – Mas que moral? não cessávamos de perguntar-lhe, e ele respondia sempre: "simplesmente a boa e velha moral de nossos pais, a nossa, a sua, pois temos somente uma. Temos diversas teorias sobre a moral, mas na prática é a mesma moral que recebemos de nossos pais e transmitimos a nossos filhos. Sim, acrescentava ele para terminar, faça você o que fizer para obscurecer essa noção, a sociedade laica pode oferecer um ensinamento moral, sim, os professores podem ensinar a moral sem dedicar-se a pesquisas metafísicas. Não é o princípio da coisa que eles ensinarão, é a coisa em si, é a boa, a velha, a antiga moral humana." A laicidade da escola não exclui, pois, a educação moral. Ao contrário, ela lhe confere um alcance que jamais tivera antes. Também os novos currículos conquistaram um local à parte nesse ensino laico da moral, imprimindo-lhe um caráter distinto de todos os outros ensinamentos. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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"Enquanto que os outros estudos – diz a instrução de 27 de julho de 1882 – desenvolvem uma ordem especial de atitudes e de conhecimentos úteis, esse tende a desenvolver dentro do homem o próprio homem, isto é, coração, inteligência e consciência. Essa educação não tem como objetivo fazer saber, mas fazer querer; ela emociona mais do que aparenta. Devendo agir sobre o ser sensível, procede mais do coração do que do raciocínio; não empreende a análise de todas as razões do ato moral, mas procura antes de tudo produzi-lo, repeti-lo, fazer dele um hábito que governe a vida. Sobretudo na escola primária, não se trata de uma ciência, mas de uma arte, a arte de orientar a vontade livre em direção ao bem. O professor primário é encarregado dessa parte da educação, ao mesmo tempo em que de outras, como representante da sociedade. A sociedade laica e democrática tem, com efeito, interesse direto em que todos os seus membros sejam iniciados desde cedo e através de lições indeléveis ao sentimento de sua dignidade e ao sentimento não menos profundo de seu dever e de sua responsabilidade pessoal. Para atender esse objetivo, o professor primário não precisa ensinar detalhadamente uma moral teórica e depois uma moral prática, como se se dirigisse a crianças desprovidas de qualquer noção prévia de bem e de mal: a imensa maioria, ao contrário, já chega tendo recebido ou estando recebendo um ensino religioso que as familiariza com a idéia de um Deus autor do universo e pai dos homens, com tradições, crenças e práticas do culto cristão ou israelita; por meio desse culto e sob as formas que lhes são específicas, elas já receberam as noções fundamentais da moral eterna e universal. Essas noções, porém, ainda se encontram na criança em forma de germe nascente e frágil, e não penetraram profundamente; são fugidias e confusas, mais percebidas do que apreendidas, mais relacionadas à memória do que à consciência, que mal começou a ser exercida. É preciso aguardar que amadureçam e se desenvolvam mediante uma cultura História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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adequada. É essa cultura que o professor primário público vai lhe fornecer. Sua missão é, pois, bem delimitada: consiste em fortalecer, em enraizar na alma de seus alunos, para toda a vida, levando para a prática quotidiana, essas noções essenciais da moralidade humana, comuns a todas as doutrinas e necessárias a todos os homens civilizados. Ele pode cumprir essa missão sem aderir pessoalmente e sem opor-se a qualquer das diversas crenças confessionais que os alunos associam e confundem com os princípios gerais da moral. Ele recebe essas crianças tais como chegam, com suas idéias e linguagem, com as crenças que trazem de suas famílias, e sua única preocupação deve ser ensinar-lhes a tirar delas o que contêm de mais precioso do ponto de vista social, isto é, os preceitos de uma alta moralidade. O ensino moral laico distingue-se, pois, do ensino religioso, sem contradizê-lo. O professor não substitui o sacerdote, nem o pai de família; ele une seus esforços aos deles para fazer de cada criança um homem honesto. Deve insistir nos deveres que aproximam os homens, e não nos dogmas que os separam. Qualquer discussão teológica e filosófica lhe é manifestamente proibida pelo próprio caráter de suas funções, pela idade de seus alunos, pela confiança nele depositada pelas famílias e pelo Estado. Seus esforços devem estar concentrados em um problema de outra natureza, porém não menos árduo, pelo fato de ser eminentemente prático: o de fazer com que todos os alunos obtenham um aprendizado afetivo da vida moral. Mais adiante, tornados cidadãos, eles talvez estejam separados por opiniões dogmáticas, mas pelo menos na prática estarão de acordo em colocar o objetivo da vida tão alto quanto possível, em rejeitar com horror tudo o que é baixo e vil, em admirar da mesma maneira o que é nobre e generoso, em apreciar o dever com a mesma sutileza, em aspirar ao aperfeiçoamento moral, custe o que custar; em se sentirem unidos no culto geral do bem, do belo e do verdadeiro,

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que é também uma forma, e não a menos pura, de sentimento religioso". Essa descrição oficial da maneira pela qual o governo da República planeja praticar a laicidade na escola é a melhor resposta àqueles que concluem, a partir das disposições da lei de 1882, que a escola é, a partir de então, uma escola do ateísmo. Diziam, com uma metáfora tão grosseiramente inconveniente quanto manifestamente inexata, que a nova lei expulsava Deus da escola; a dar-lhes crédito, deveria ser proibido pronunciar o nome de Deus ou ler um trecho qualquer de prosa ou de poesia que contivesse qualquer palavra manchada de religiosidade. O fato de que alguns espíritos violentos e fanáticos na contra-corrente tenham concebido tais projetos, comprazendo-se em levantar essa bandeira, é algo isolado e absolutamente sem alcance, que podem ocorrer como testemunho da efervescência das paixões nos primeiros momentos de uma reforma qualquer, mas que não podem desviar o princípio de sua natureza ou comprometer sua aplicação, como rapidamente se viu o bom senso do público fazerlhe justiça. Mal havia transcorrido um ano desde que o novo regime entrara em vigor, e todos já se davam conta do imenso progresso no espírito público do próprio princípio da laicidade. Amigos e adversários da lei já podem avaliar a exatidão das afirmações do governo quando ele respondia à crítica de "suprimir o ensino religioso" com "não há nada disso nessa lei. Ela contém algo muito mais simples, pois é o mesmo que se passa ao redor de nós, nos países mais religiosos. Encontra-se aí simplesmente o regramento de uma questão de competências, realizado para o bem de todos, para o bem da fé assim como para o bem da razão, para a liberdade dos professores primários assim como para os sacerdotes; encontra-se aí a separação de dois ensinos, que não se pode deixar nas mesmas mãos, sob pena dos mais graves inconvenientes. No dia em que essa lei for aprovada, não será mais ministrado o ensino religioso às crianças das escolas? É o que parece, se lhes damos ouvidos; mas não, esse ensino acontecerá no domingo, na História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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quinta-feira, nos dias feriados, e mesmo nos dias de aula, em horários extra-classe. Será dado por quem? Pelo ministro do culto e mesmo pelo próprio professor primário, se ele oferecer-se livremente para tal em horários extra-classe. Então, qual será a diferença? Toda a mudança está em que o professor primário deixa de ser forçosa e obrigatoriamente um ministro do catecismo e da História Santa. Eis toda a revolução, eis como a sociedade desmorona e como sustentamos diante do mundo a imagem de uma escola da irreligião". A partir do momento em que a laicidade foi tão sábia e claramente definida, surgiram muitas questões sobre detalhes. A que gerou maior alarde foi a da manutenção dos símbolos religiosos em seus antigos locais nas escolas. A circular de dois de novembro de 1882, regulamentando esse ponto e outros, determinava uma vez mais o espírito no qual deve ser entendida a laicidade da escola pública e o papel de neutralidade não-militante, que deve ser o dos professores primários. Vamos reproduzi-la, terminando por sua passagem essencial, que se transformará na conclusão natural desse artigo: "O principal objeto do ato legislativo que separou a escola da Igreja, seu resultado a um tempo mais eficaz e imediato deve ser não a transformação dos locais escolares, mas sim os currículos, as lições, os exercícios, tudo o que faz parte do espírito do ensino e do valor da educação. A lei de 28 de março não é um acaso, um fato isolado em nossa legislação: ao secularizar a escola, ela apenas estende o direito comum e, de alguma maneira, os próprios princípios de nossa Constituição à organização da instrução nacional, isto é, ao único serviço público que até agora, por estranha contradição, conservou a amarra confessional. Em conseqüência, tudo o que tenderia a reduzir esta lei, apresentandoa ao país como uma espécie de regulamento de vigilância dos locais escolares e inaugurando sua aplicação sob a forma de uma cruzada iconoclasta, pode muito bem servir aos desígnios de seus adversários, mas alteraria a própria noção sobre ela, com risco de História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 14, n. 32, p. 277-293, Set/Dez 2010. Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


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tornar mal conhecida da população seu verdadeiro caráter e sua alta relevância. Há somente uma maneira de aplicá-la bem: é dentro do espírito em que ela foi votada, no espírito das reiteradas declarações do governo, ou seja, não como uma lei que deve ser combatida, mas sim como uma grande lei orgânica, destinada a viver com o país, a entrar em seus costumes, a fazer parte de seu patrimônio". Em conseqüência, o ministro traça uma linha de conduta para os prefeitos que pode ser assim resumida: "Não liberar, sob nenhum pretexto, termo ou concessão que possa atentar contra o princípio dessa lei; porém, quanto a medidas em si mesmas indiferentes, quanto aos prazos que lhes serão demandados, não para iludir a lei, mas para melhor assegurar seu funcionamento, você será o único juiz dos arranjos a serem feitos; e para marcar o limite entre ambas as coisas, lembre-se sempre que o governo, cheio de confiança no bom senso público, tem a pretensão de, ao mesmo tempo em que faz respeitar a lei, torná-la compreendida e amada". - Ver ainda a palavra Neutralidade e aquelas a ela relacionadas.

TRADUÇÃO Júlia G. Martins é aluna do curso de graduação em História – PUCRS. Bolsista de iniciação científica CNPq – PUCRS (2010). Maria Helena Camara Bastos é Doutora em Educação História e Filosofia da Educação; Pós-doutora no Service d'histoire de l'éducation/INRP-França (CAPES – 2000; 2010); Professora do PPGE/PUCRS; Pesquisadora do CNPq, FAPERGS.

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