Paredes Vivas

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Rosa Mattos

Paredes Vivas

S達o Paulo / 2013


Desde cedo aprendemos que a vida é um eterno retirar grãos de areia dos olhos da ilusão. Aos oito anos perdemos papai para as profundezas misteriosas da Lagoa dos Barros. De acordo com tio Vicente, que havia saído com ele para pescar, um vento muito forte e inesperado fez virar a frágil embarcação, após atirá-los num redemoinho violento. Os dois foram jogados para fora do barco e se perderam de vista. Entre mergulhos e subidas à tona, cada um resistia como podia aos tentáculos das águas, ao mesmo tempo em que lutavam contra os braços do vento. Espantosamente a tempestade foi embora, tão rápida como surgiu. Conforme testemunho de tio Vicente, em questão de minutos a braveza das águas e dos ares cedeu lugar a uma calmaria surpreendente. Meu tio contou-nos também que gritou desesperado ao perceber que papai fora sugado pelo temporal e que mergulhou várias vezes com dificuldade, sem, no entanto, conseguir avistá-lo. Depois, quase sem fôlego, nadou até a margem em busca de ajuda, atordoado com o ocorrido. 9


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A tragédia causou comoção na pequena cidade de Santo Antônio, que se mobilizou numa corrente de orações aguardando ansiosa que o encontrassem com vida. Recordo nitidamente nosso desespero pela falta de notícias e a agonia da espera interminável durante o período em que equipes vasculhavam as águas. Mantínhamos viva a esperança o tempo todo, mas à medida que as horas passavam as chances de ele ser resgatado vivo tornavam-se menores. Ao final de três dias já havíamos secado nossas lágrimas. Só nos restava rezar e esperar. Durante os dias de espera eu pensava no quanto seria terrível se papai jamais fosse encontrado. A ideia de nunca mais vê-lo me soava tão dolorosa quanto a imagem que se formava em minha mente no decorrer das horas sem novidades. Eu imaginava uma série de criaturas medonhas vivendo nas entranhas da lagoa, famintas, despedaçando o corpo dele, destruindo qualquer chance de trazê-lo para uma despedida e enterrá-lo no jazigo da família onde poderíamos levar flores. Creio que mamãe também partilhava comigo este mesmo temor. Expressava algumas vezes num sopro de voz, suplicando que, se a hora dele tivesse chegado, não nos fosse negado o direito de lhe conceder um sepultamento digno. Cresci ouvindo relatos de visões do outro mundo, presenciadas pelos que se atreviam a passar pelas proximidades da lagoa. Quase toda criança teme o bicho-papão... Eu não. Eu temia os fantasmas da lagoa. A mulher de branco que andava pela estrada pedindo carona aos motoristas ou passantes. Os mortos-vivos que saíam durante a noite em busca de alimento. Os espíritos com sede de vingança, vagando à procura de novas vítimas.

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“Mauren, se não me obedecer vou chamar a mulher de branco!” — papai me dizia. Nossa, eu sentia calafrios! E lhe obedecia. Envolta em lendas sombrias, a Lagoa dos Barros, situada entre o litoral gaúcho e a capital, fora palco de mortes trágicas. Alguns dizem que ela é encantada, outros que é mal-assombrada. Diversas histórias surgiam e eram contadas em rodas de amigos. Relatos de figuras que apareciam de repente na beira da estrada, depois entravam lagoa adentro e desapareciam. Reais ou inventadas, as histórias eram passadas adiante, fosse pelo espanto de as pessoas realmente acreditarem nas aparições, fosse para talvez desafiarem a coragem de alguns, ou, quem sabe, para brincarem com o medo que todos temos do desconhecido. O fato é que essas histórias serviram para alimentar o imaginário popular, tornando o local cercado de mistérios. Com o passar dos anos uma importante rodovia foi construída à margem daquele trecho e ele foi se tornando gradativamente frequentado, sem tantos receios. Quando papai me perguntou se eu gostaria de comer peixe no almoço do dia seguinte vibrei, dei pulinhos dizendo que sim, toda contente, pois eu adorava peixe. Só não poderia imaginar que eles iriam justo naquela lagoa. Um fiapo de culpa atravessou minha pele quando eu soube. Havia muito tempo ninguém pescava por lá. Talvez se eu tivesse dito que não queria peixes papai ainda estivesse vivo. Remoí esse arrependimento, preenchendo as horas de espera o suficiente para mantê-lo cravado na mente por alguns anos. Pensativa, prendia os cabelos num rabo de cavalo no exato instante em que vimos o carro do oficial responsável pela operação de busca estacionar em frente à nossa casa.

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Entendemos. Abrimos a porta de mãos dadas, mamãe e eu. E foi com tristeza e uma dose de alívio que recebemos a informação. Haviam resgatado o corpo, na escuridão lodosa do fundo da lagoa, distante uns cem metros do local. Por essa razão e também por conta da baixa visibilidade os mergulhadores praticamente tinham tateado um longo trecho até localizarem papai. Solidário, escolhendo as palavras certas para nos contar os procedimentos adotados e o que deveríamos fazer a seguir, o oficial nos explicou tudo com voz tão calma que ficamos escutando sem esboçar nenhuma reação. Abraçadas, consolamo-nos mutuamente. — Que vamos fazer, mamãe? — perguntei, perdida, confusa, retendo novas lágrimas. — Vamos cuidar do papai, filha. — E depois...? Como viveremos sem ele? — Colocaremos uma atadura no coração e seguiremos vivendo, um dia de cada vez. — Uma atadura? Igual a um machucado? — Sim, filha. Será mais fácil respirar com o coração enfaixado — disse, entre suspiros. — Amo você, mãezinha. — Ah, não me faça chorar. Amo você também, muito! Emocionadas, abraçamo-nos novamente. Fechei os olhos e fiz um pedido: por favor, por favor, por favor, papai do Céu, não me tire mais ninguém. Obrigada! Desejei com tanta força que realmente acreditei que fosse possível meu desejo ser atendido.

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Não foi. Para meu desgosto, outras mortes iriam ocorrer. Aquele sem dúvida foi o pior verão que tive. E também o início de uma série de acontecimentos que iriam mudar minha vida. A morte de papai provocou uma cratera em meu peito, tão imensa que não houve atadura capaz de preenchê-la. Fiquei, para sempre, com uma dor tatuada na alma. Mamãe demorou um pouco a notar, pois o processo é lento e gradual. E quando ela notou não se assustou, ao contrário, estendeu a mão para me ajudar... mas era tarde demais. Eu já estava bem além de seu alcance.

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