Revista Zé Pereira # 4

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R$ 2,00


Allah-la-ô! Como todos sabem o ano no Brasil só começa depois do carnaval e a gente teve de dar um perdido até a folia chegar. Por sorte, 2008 começou bem mais cedo e a espera nem foi tão grande assim. O bloco da Zé Pereira está chegando às ruas e o desfile é digno de Grupo Especial: Gerson King Combo, o nosso Rei Black vem de destaque apresentando ao leitor a história da soul music carioca, num passeio pelo Mercadão de Madureira; o mestre Vladimir Carvalho nos honra com um ensaio sobre xilogravura; Marcello Quintanilha manda uma HQ inédita de Barcelona; o Urubucamelô volta a atacar, agora em quadrinhos; Marcelo Moutinho publica o seu primeiro poema; Adriana Lisboa dá continuidade às aventuras do sujeito-macho Zé Pereira; e o drama dos caiçaras da Praia Grande da Cajaíba, em Paraty, por Tadzia Maya.

Mas tem muito mais. Boas leituras.


SUMÁRIO

CONSELHO EDITORIAL

Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima, Mauro Trindade, Olívia Ferreira, Pedro Garavaglia, Roberto Ribeiro. EDITOR

Eduardo Souza Lima PROJETO GRÁFICO

Radiográfico (www.radiografico.com.br)/ Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia, COLUNISTA

Arnaldo Branco (www.gardenal.org/mauhumor) COORDENADOR DO FOLHETIM

Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br) REDATORES

Bruno Porto e Eduardo Souza Lima e Mauro Trindade REVISÃO

Mauro Trindade CAPA

Gerson King Combo por André Vieira COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Adriana Lisboa (www.adrianalisboa.com.br), Ana Paula Conde, André Vieira (http://andrevieira.com), Barbara Copque, Dimmi Amora, Estevão Garcia, Fernando Gerheim, José Aguiar (www.joseaguiar.com.br), Leo Aversa (www.leoaversa.com), Luiz Henriques (http://arsgratiars.blogspot. com), Marcelo Moutinho, Marcello Quintanilha, Silvio Rabaça, Tadzia Maya, Vanesca Soares, Vladimir Carvalho, Xico Carvalho.

SITE

Marcos Gurgel (programação), Radiográfico (design) e Eduardo Souza Lima (edição)

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Os textos assinados também refletem, necessariamente, a opinião da revista. TIRAGEM DESTA EDIÇÃO

2.000 exemplares

ARISTOCRACIA CARIOCA: Gerson King Combo

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POESIA: Banho

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CONTO: O rapto do 464

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Um passeio com o Rei Black pela soul music carioca e pelo Mercadão de Madureira, guiado por Dimmi Amora (texto) e André Vieira (fotos).

Marcelo Moutinho faz sua estréia como poeta.

Quem manda nessa porra é a torcida do Urubu! Por Luiz Henriques.

LIÇÃO DE HISTÓRIA: Foi a imprensa que inventou o Rio de Janeiro

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ESPECIAL: Folheto da viagem (xilográfica) ao reino do primo Xico.

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A TIJUCA GANHA AS TELAS

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“Saens Peña” é coisa de cinema. Por Estevão Garcia.

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SÉRIE: Urubucamelô em

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A revista ‘Zé Pereira’ é uma publicação mensal da Hy Brazil 2001 Filmes e Livros Ltda. (www.hybrazilfilmes.com) número 4/ano 2/ fevereiro de 2008

“A Bronzeada é minha Madeleine do Proust”. Uma história em quadrinhos de Fernando Gerheim (roteiro) e José Aguiar (desenhos)

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QUADRINHOS: Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco.

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FOLHETIM: As aventuras de um Zé Pereira

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ILUSTRE DESCONHECIDO

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BUMBO DO ZÉ

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MAL NECESSÁRIO

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Em “O anel”, Adriana Lisboa deixa nosso herói em maus lençóis. Conseguirá João Ximenes, que escreve o quinto capítulo, tirá-lo dessa fria?

A hora do Febeapá 2007

A PRAIA QUE ERA GRANDE

Tadzia Maya conta como os caiçaras foram expulsos de Paraty.

RIO DE JANEIRO, SEM TÍTULO

O Detalhes tão pequenos de nós dois. Por Marcello Quintanilha.

Um ensaio do cineasta Vladimir Carvalho sobre xilogravuras de Xico Carvalho.

S.O.S. VILA OPERÁRIA

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Pedra, água e areia. Um ensaio fotográfico de Leo Aversa.

Silvio Rabaça entrevista o historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues.

Conjunto de casas construído por Pereira Passos há mais de um século sofre com o descaso da Prefeitura. Por Ana Paula Conde (texto) e Barbara Copque (fotos).

CABARÉ DE FAMÍLIA

A história do Cine Íris tem semelhanças com a de outro centro de diversões: O Moulin Rouge. Uma reportagem de Vanesca Soares.


aristocracia carioca

: Gerson King Combo

Gerson compra arruda para se proteger do mal-olhado na banca de seu Artur Costa

O MERCADÃO

DO REI BLACK texto: DIMMI AMORA fotos: ANDRÉ VIEIRA

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O chapéu com penacho e a capa preta ficam no armário do apartamento simples, no andar térreo, na Rua Carvalho de Souza, área central de Madureira. Para ir às compras, feitas todos os sábados pela manhã no Mercadão de Madureira, Gerson Rodrigues Cortes — 63 anos, carioca, flamenguista, viúvo duas vezes, um filho, uma neta — leva do traje que o tornou Gerson King Combo, o rei da black music no Brasil, um único ornamento: o cordão grosso com pingentes de dente de tigre e microfone de bronze. 5


Diante

de tanta quinquilharia brilhante vinda da China que hoje toma conta das lojas do Mercadão, Gerson não teria vida fácil se quisesse brilhar por ali, como brilhou nos subúrbios do Rio na década de 70. Anônimo, e tranqüilo com esta condição, ele vagueia pelos corredores que abrigam as mais de 600 lojas do mercado inaugurado em 1959 em busca dos produtos indispensáveis, de novas paixões de consumo e do trivial. Enquanto passeia, um galho de arruda, um óculos escuro ou um animal à venda puxam uma lembrança do homem que está presente na música popular desde a era do rádio. Apesar de todos os revezes nestas quatro décadas, Gerson e o Mercadão mantêm-se vivos e ativos. Neste passeio pelo maior shopping popular do país, o rei do black conta à Zé Pereira as histórias do início do rock e da black music por aqui, de racismo, das alegrias, das decepções, do subúrbio e, claro, do Mercadão.

CAPA PRETA Ao lado do presépio de Natal montado pela administração do Mercadão, fica a Orixás em Festa, loja de artigos religiosos. Velas de sete dias finas estão em promoção a R$ 1,45. Já as máscaras de madeira, ornadas com pedras e marfim, importadas da Nigéria, podem valer de R$ 200 a R$ 3.000. Na frente da loja e ao lado do presépio, uma imagem de 1,80 m do exu Tranca Rua das Almas, uma entidade cultuada nas religiões afro-brasileiras, está vestida com uma capa preta que custa R$ 350. A imagem não está mais à venda. Desde que o dono da loja, Pedro Silva, colocou-a na porta, a imagem virou objeto de culto. Mulheres beijam-na. Semanalmente garrafas de cachaça colocadas como oferenda são recolhidas pelos funcionários. Semanas atrás, Latifa, neta de Gerson, foi passear com o avô e vendo a imagem do homem negro, imponente e risonho vestido com a capa preta não hesitou: — Vovô! Gerson é católico, vai à missa todos os domingos na Paróquia do Santo Sepulcro, vizinha à sua casa, respeita as religiões afro, mas não gosta da semelhança. A capa preta, que é a marca de seu visual, tem outra origem. A idéia nem é originalmente black. Quem deu-a foi o instrumentista Cesar Camargo Mariano, branco o suficiente para ser barrado numa boate no Harlem, em

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Nova Iorque. No início da década de 70, Gerson excursionava com a banda de Wilson Simonal pelos Estados Unidos. Cesar era um dos músicos e vendo o visual dos negros deu a idéia ao então Gerson Côrtes. — Estava no Harlem com o Simonal e o Cesar Camargo. Eu era tímido e o Cesar dizia para eu adotar as roupas que os negros usavam lá. Ele dizia: “Vai lá para Madureira com isso que você vai arrebentar. Bota capa, luva, bota esta porra toda”. Eu falava para ele que não ia usar porque os caras eram cafetões. Ele dizia que aqui no Brasil era outra coisa. “Porra Gersão, tá perdendo tempo”, dizia o Cesar. Cheguei aqui e adotei. Quem costurou a primeira capa foi minha segunda esposa, a Angélica. Foi aquele sucesso — conta Gerson. Além das capas dos cafetões nova-iorquinos, colaboraram para o visual de Gerson, King Curtis Combo, de quem ele copiou o nome, e James Brown, ambos adeptos da capa na época.

TROPA DE ELITE A fantasia de Papai Noel está pendurada, na entrada, no canto esquerdo da Loja Fantasias, na Galeria H do Mercadão. Na área mais nobre, um modelo, de preto, com um colete feito em um tecido acolchoado. Na parte de baixo, apenas uma sugestiva lingerie, com uma liga. Uma boina de camurça completa o visual Capitão Nascimento que tem sido o sucesso do momento. Por R$ 59,90 é possível levar a fantasia. A infantil custa menos, R$ 39,90, mas é discreta. Tem o detalhe da caveira do Bope na boina. Gerson tem intimidade com a polícia desde que nasceu. É filho de um policial militar. O pai, Jovelino Cortes, é um dos responsáveis por ele, apesar de ser negro e ter nascido na Rua Andrade Figueira, na subida do Morro São José, ter passado a infância longe do samba. O caveirão, hoje pavor das crianças, na época era Mestre Fuleiro, um dos fundadores do Império Serrano. Na adolescência, o pai mandava ficar longe do samba. E usava da figura do enorme legendário diretor de harmonia da verde-e-branca para assustá-lo. — O sambista era visto como marginal. Meu irmão, Getúlio Cortes, era muito americanizado. Ele foi um dos primeiros DJs. Comprava discos e levava pra gente dançar. Mas não tinha samba. Gerson conta que, com a chegada do rock,

a cisão foi total. Os sambistas viam os roqueiros como homossexuais. Só mais velho Gerson se reconciliou com a turma do samba. Hoje é vizinho de Tia Doca da Portela e presença em seus pagodes. Com a polícia, ele mantém um respeito formal. Seu problema agora é com um dos movimentos que ele ajudou a criar: o funk carioca. Gerson tem pavor de uma parte do movimento que usa a música para fazer apologia ao crime ou fala (e faz) sexo explicitamente: — Juntar o black e este funk dá choque. Temos um problema social, com esta periferia carente, cheia de problemas. Não precisa dessa coisa de chamar mulher de prostituta, cantar que vai comer a mãe. O morro marginal está nesta música e nós, que fizemos letras com cunho social, não temos nada com isso. Não temos nada que bandido é melhor. Nem polícia é melhor nem bandido é melhor. Este funk é um modismo que não vai vencer. A não ser que queiramos que vire uma Sodoma e Gomorra. A idéia é até policiar isso. Já fui a baile que tinha sexo explícito.

MADUREIRA TÊNIS CLUB A Madureira que Gerson nasceu era muito diferente. Mesmo sendo morador do asfalto, para conseguir água ele, o irmão e as duas irmãs tinham que ir com latas para a bica que ficava no fim da Andrade Figueira. Poucas ruas eram urbanizadas e as dificuldades com os bondes eram grandes. Hoje, o bairro praticamente todo urbanizado, é o principal pólo comercial do subúrbio do Rio. Pelo menos 17 linhas de ônibus passam em frente ao Mercadão, além das centenas de vans e kombis que ajudam a tornar o tráfego a verdadeira descrição do inferno. A Madureira de antigamente lembra um pouco a Mercearia Rosa da Conceição. Encravada na Galeria G do Mercadão, ela se diferencia por ainda oferecer grãos em sacos de dez quilos expostos para o público. É possível encontrar o acaçá, uma farinha de milho branco ou vermelho, usada na culinária baiana, a R$ 2,60 o quilo, e a ervilha extramacia a R$ 3,20. Sinal dos tempos, atrás do balcão estão os enlatados como milho e azeite. — A vida não era mole não. Eu tive uma infância muito triste. Nós não podíamos nada. Onde hoje está este Mercadão era um clube elitizado, o Madureira Tênis Club, onde crioulo não

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entrava — conta Gerson. A Madureira de hoje, pode se dizer, tem um pouco da transformação que Gerson ajudou a construir na sociedade brasileira. O clube que não aceitava negros vendeu o terreno para a construção do mercado, que era entreposto de hortigranjeiros e ficou pronto em 1959, e fundiu-se com outros dois, tornando-se o atual Madureira Esporte Club. Gerson entrou lá, anos depois, pela porta da frente. A primeira vez, foi com o grupo Renato e Seus Blue Caps, onde ele conta que aprendeu a cantar. Agora, entrar pela porta dos fundos no Mercadão — que a partir da inauguração da Ceasa de Irajá, em 1976, foi se transformando num centro de compras — é apenas uma opção. — Eu nunca quis sair daqui de Madureira, do subúrbio. Gosto daqui, me sinto em casa, com os amigos. Tinha até vontade de ir morar no Recreio, acho que faria amigos lá também, mas eu acho que não saio daqui mais não — profetiza Gerson.

ESPECIARIAS Gerson é procurado quase que diariamente para entrevistas. São jornalistas de todo o mundo, querendo saber sobre tudo. Simpático, carismático e educado, tendo acompanhado o surgimento do rock no Brasil e sendo hoje um ícone da música negra no país, ele passou a freqüentar os noticiários como nunca o fizera. Na Zona Sul, virou cult. Na década de 70, era raro ele aparecer na imprensa e lá por aquelas bandas. Um dos poucos momentos, lembra ele, foi quando a jornalista Lena Frias, pelo “Jornal do Brasil”, fez a primeira reportagem sobre o movimento black no Rio. — Fomos com ela para alguns bailes e ela fez uma grande reportagem. O título era “O novo ritmo da Zona Norte”. A partir dali, o black estourou. O black deve muito a esta moça — agradece Gerson. — Na Zona Sul, nunca tivemos muita entrada. Só tinha um baile, no Olímpico, em Copacabana. Mas enchia. Vinha todo o pessoal dos morros. Depois da reportagem e de muitos bailes suburbanos que consolidaram o ritmo no Rio, Gerson Gravou dois discos: “Gerson King Combo”, em 1977, e “Gerson King Combo volume II”, em 1978. Depois de anos sem reedições, eles saíram em CD. Apesar de os discos em vinil terem

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virado peça de colecionador, Gerson não ganha nada com isso. Também não ganha praticamente nada em direitos autorais. Vive do salário de funcionário público e dos poucos shows que, na linguagem dele, pingam. Gerson gosta de uma pimenta para temperar suas comidas. Na galeria K, num cantinho meio escondido do labiríntico Mercadão, a Rio Flora Especiarias guarda raridades. Entre um cesto de sal grosso (R$ 1,00 o quilo) e uma lata com erva de bugre (R$ 10,00 o quilo), estão ervas invulgares que temperam os pratos de grandes chefs do Rio. O quilo do estragão, uma erva ao mesmo tempo adocicada e picante, por exemplo, custa R$ 140. Já o cardamomo, uma erva adocicada importada do oriente, não sai por menos de R$ 160. Nem os mais raros temperos da Rio Flora, alcançam o preço já pago por colecionadores por um disco em vinil de Gerson: R$ 250. — Eu preferia um pouco menos de fama e um pouco mais de dinheiro — confessa.

amigos, já que ele era casado com a cantora Elizabete Marques. Em 1962, Gerson perdeu Elizabete e sua primeira filha durante o parto. A depressão foi grande e só foi curada com a ajuda de Angélica. — Ela foi me consolando, me consolando e acabou me consolando quase 30 anos. Foi uma vida com ela — conta Gerson que perdeu a segunda mulher em 1990. Depois da morte de Angélica, só namoros eventuais. Nos relacionamentos, Gerson disse que nunca viveu preconceito. Ao contrário. Ele conta que era e continua sendo mais paquerado por mulheres de pele mais clara. Com as mulheres de pele mais escura, ele se sente mais rejeitado. A agitada vida romântica de Gerson não aparece nos primeiros discos. Ele preferiu caminhar por uma área mais difícil, com letras mais duras que tinham como objetivo a afirmação do negro. Seu clássico, “Mandamentos Black”, diz: “Falar como fala um black/ Andar como anda um black/ Usar sempre o cumprimento black”. — Isso me traz reconhecimento até hoje, mas me criou problemas. Tinha pouco espaço na mídia para divulgar. Hoje, acho o negro já não precisa de tanta afirmação. Já tem ministro negão, presidente de CPI negão. Há 30 anos não tinha isso, não. Agora, minhas letras ficaram mais românticas — conta ele, que tem 12 músicas inéditas para gravar e continua produzindo e ouvindo soul music. — O DVD dos The Temptations não sai do aparelho.

Escadinha era conhecido de Gerson desde a infância. Os dois tinham estudado na mesma escola, a Cristo Rei, NAMORADO Na cozinha, Gerson também em Vaz Lobo. é rei. Adora receitas italianas e não

fica sem macarrão em casa. A maior parte dos alimentos comprados por ele nos sábados é no supermercado Rede Economia, que fica ao lado do Mercadão, ou no açougue Shopping da Carnes, que oferecem melhores preços. No centro comercial, Gerson ainda costuma comprar peixe fresco. O local é a Peixaria Domenico Baroni, que pertence a Carlos Barone, filho de Domenico. Ali, em novembro, o camarão rosa, de bom tamanho, podia ser comprado a R$ 12,99 o quilo. O peixe preferido de Gerson é o namorado (R$ 11,99 o quilo). — Faço o namorado a escabeche, com molho de camarão. Quando eu vou para a cozinha, eu deixo a turma doida — revela, sem modéstia, o rei. Gerson aprendeu muito na cozinha com Angélica, uma exímia cozinheira. Os dois eram dançarinos nos show promovidos pelo radialista Jair Taumaturgo, que em seu programa “Hoje é dia de rock”, na Rádio Mayrink Veiga, criou uma espécie de semente do rock no Brasil. Mas eram

ARRUDA CONTRA O MAL-OLHADO Gerson entra no Mercadão pela Rua Conselheiro Galvão, os fundos. Chega ali entre 9:30h e 10h das manhãs de sábado e vai direto para o segundo andar, onde um muro separa a área de venda de hortaliças do restante das lojas. No box 23, Arthur Costa está a espera do cliente fiel com uma ramo de arruda. Todos os sábados, Gerson leva para casa a planta. Apesar de adorar cozinhar, com ela não é feita nenhuma iguaria: — Coloco com um copo d’água atrás da porta. Ali, se vier qualquer coisa ruim, para o mal, bate e vai embora na hora. Isso me foi ensinado

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pela minha avó, que era rezadeira. A tradição nunca foi esquecida, nem nas épocas de maior fama. Gerson conta que o assédio era tanto que passou a andar menos pelas ruas do bairro. Nesta época, foi morar com Angélica e seu único filho, Gerson Júnior, na Vila da Penha. Num fim de semana, ele notou que estava sendo perseguido e parou o carro em Madureira à tarde, próximo a casa onde morava sua mãe. Ao descer, foi interpelado por dois homens que queriam que ele entrasse em outro veículo. Gerson não estava disposto a entrar, mas os homens disseram que o músico Roberto Ribeiro estava esperando por ele. A arruda deve ter ajudado porque não era Roberto quem esperava: era José Carlos dos Reis Ensina, o Escadinha, um dos maiores traficantes da época. — Foram subindo o morro. Quando cheguei lá em cima, tava o Roberto Ribeiro, o Beto Sem Braço, o Bezerra da Silva, todo mundo num pagode. Era uma festa promovida pelo Escadinha. Ele queria todos os artistas famosos de Madureira lá. Tomei um susto danado e a Angélica quase morreu do coração — lembra. Escadinha era conhecido de Gerson desde a infância. Os dois tinham estudado na mesma escola, a Cristo Rei, em Vaz Lobo. O traficante que deu trabalho à polícia do Rio na década de 80, e acabou assassinado em 2004 após cumprir sua pena de prisão, tinha uma outra imagem para Gerson: — Ele era um bom aluno e um bom menino na escola. Todo mundo gostava dele. Eu chamava ele de Zeca e quando nos vimos naquele dia nos falamos e fiquei contente.

é pelas pipas com estampas de times de futebol, torcidas organizadas e marcas famosas. Fazem sucesso também as com personagens folclóricos ou polêmicos. Um deles é Osama Bin Laden, estampado numa pipa grande na porta de uma delas. Numa loja, o vendedor diz ao jornalista que não está a venda. Em outra, que acabou. Ninguém quer ficar com fama de terrorista. Gerson também não quis levar esta fama na década de 70, durante a ditadura. Quando seu disco foi lançado, ele teve que ir prestar depoimento no Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) da Polícia Federal. O delegado, conta ele, queria saber se ele tinha alguma ideologia: — Queriam saber minha ideologia. Eu disse que era dançar e namorar. Cheguei a dizer que não entendia o que acontecia com os brasileiros que não podiam protestar se no mundo todo protestavam. Acho que ele achou que eu era meio inocente. Nós éramos inocentes mesmo. Não tínhamos esta raiva. Só procurávamos um espaço para o black. Ao carisma de Gerson, nem a ditadura resistiu: o delegado virou amigo e conselheiro do Rei Black. — O delegado ficou meu amigo. Disse para eu não levantar bandeira negra, nem branca. A verdade é que não podia ser tão radical. Era o que conversávamos porque senão iríamos presos. Não tínhamos uma guarida que tinha um Gil, um Gabeira, um cara da Zona Sul. Se a gente fosse preso, a gente ia entrar na porrada, como eu vi muita gente tomar porrada quando eu era páraquedista. Tive que sair em 1965 do Exército por causa da música — relata Gerson que ainda militar viu Gilberto Gil e Caetano Veloso presos em sua unidade.

Quando começou, era no rádio que se consagravam os astros e para onde ele e seu colega, atual colega de majestade, Roberto Carlos, foram.

TERRORISTA As lojas que vendem pipas e assessórios para a diversão tipicamente suburbana continuam resistindo no Mercadão. São três, todas no segundo andar do centro comercial. Os fornecedores não variam muito e, entre elas, as diferenças de modelos, cores e preços é muito pequena. As que ganham mais destaque não são as com cores diversas, como antigamente. A preferência agora

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PAPEL DE ARROZ Não tem para ninguém. A loja mais cheia do Mercadão é a Casa do Papel de Arroz. Um aglomerado de gente com máquinas digital na mão ocupando metade do corredor da Galeria G indica onde funciona a loja que produz papéis comestíveis. Por módicos R$ 5, é possível comprar

um A4 com a cara do filhinho, da filhinha, do netinho ou da netinha e colocar no bolo de aniversário. Por R$ 9, você leva um tamanho A3. A vendedora também oferece foto na camisa e em imã de geladeira. O sucesso da loja mostra o quanto a imagem é importante hoje em dia. Gerson é do tempo em que a imagem estava engatinhando. Quando começou, era no rádio que se consagravam os astros e para onde ele e seu colega atual colega de majestade, Roberto Carlos, foram. — O Roberto foi lá no programa do Jair com o Snakes. Era ele, o Tim Maia, o Erasmo Carlos e o Alírio, já falecido. Eles fizeram um teste e nem foram bem, não. Eles eram esquisitos. O Roberto era manco, o Tim era gorducho, o Erasmo era grandão e o Alírio baixinho — diverte-se o Rei Black. Gerson conta que Tim já implicava com Roberto, a quem acusava de não saber cantar desde aquela época e fez com que ele saísse do grupo. Mas, dos quatro, foi Roberto quem acabou levando a coroa. Na TV, o plano era americano e ninguém percebia a falta da perna do cantor ou sua voz pouco potente. Só seu sorriso simpático e contagiante. — O Roberto sempre foi carismático. E aprendeu muito com a gente. Ele e a Wanderleia andavam no trem da Central, onde o pessoal do subúrbio voltava para casa cantando e dançando rock. Eles até passavam da estação pra ficar com a gente — relembra.

MALUCO BELEZA Nos sábados, a entrada principal do Mercadão, pela Avenida Edgar Romero, está lotada de camelôs. A maioria vende CDs piratas e o ritmo preferido são os funks e hip hops de cantores americanos. Legal ali, somente a banca de jornal que também vai sucumbindo. Revistas e jornais são poucos. Livros, nem mesmo do ex-colega de trabalho de Gerson na Polygram (atual Universal), o agora mago Paulo Coelho. — Eu chamava ele lá de cabeção. A gente dizia que ele era diretor da VEC. Era a diretoria do Vai Enganar Caralho. Ele ficava lá, fazendo criação. Depois que juntou com o Raul aí que eles ficaram doidos de vez — conta. Como bom criador, Paulo também copiava.

Gerson conta que, ao chegar ao Brasil da excursão com Simonal, no início da década de 70, vestiu suas novas roupas e foi divulgar suas músicas na Avenida Rio Branco, Centro do Rio. Lá, ele conta que foi xingado de tudo quanto é nome por quem passava no ônibus. — Mas eu respondia: tudo bem, eu tô com dinheiro e carro com motorista. Você tá duro aí dentro do ônibus. Foi um perrengue. Eu contei isso pro Raul e pro Paulo e ele disse: “Tu fez isso, mesmo?”. Depois, os dois foram para a Rio Branco fazer passeata para divulgar o disco deles. Quebrar violão também já não era novidade para Gerson em 1967, quando Sérgio Ricardo quebrou o dele ao ser vaiado no Festival da Record. Um ano antes, em 1966, Gerson já tinha destruído um, mas na cabeça de um espectador durante um show da banda do Renato: — Foi um show em Cataguazes. Eu estava estreando como cantor. E também o Leno e a Lílian. Estávamos todos muito nervosos e quando

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eu desci do palco, o Leno e ela iam entrar. Vi um cara passando a mão na bunda da Lílian. Eu não conversei. Peguei o violão do Leno e quebrei na cabeça do cara. Depois fiquei só com o cotoco do braço me defendendo contra uns 15.

POMBA DA PAZ Durante muitos anos, o movimento black teve uma cisão. Seus dois principais ícones musicais, Gerson King Combo e Tony Tornado, não podiam ser chamados para dividir o microfone. Talvez nem o palco. Os dois ex-pára-quedistas ficaram inimigos no Festival da Canção de 1969. O motivo: a briga para ver quem cantaria “BR-3”, música de Tibério Gaspar e Antonio Adolfo símbolo daquele concurso. — O Tibério estava me procurando para ensaiar a música e o Tony disse que eu não viria porque eu morava em Cosmos, que era muito longe. Quando eu cheguei, eles já estavam ensaiando. Eu acabei cantando “Ave Gloria Day” com a banda do Dom Salvador, e ficamos em quinto lugar. Eles ficaram em terceiro. Quando me contaram esta história eu fiquei para morrer. Ali criou um iceberg entre a gente. A paz entre os dois é recente e nem precisou que os amigos comuns comprassem uma das pombas brancas (R$ 15 a unidade) vendidas nas lojas de animais vivos que ficam no segundo andar do Mercadão. Também não houve um almoço com as galinhas, coelhos, patos, marrecos, faisão ou cabrito (R$ 80 cada filhote) para comemorar. Gerson também não comprou um espumante na Brumore, na galeria H, sua loja de bebidas preferida no Mercadão. Mas, garante, agora está tudo bem: — Eu perdoei ele. Acho que cada um tem sua hora. Era a hora dele, ele foi feliz. E quando chegou a minha hora, eu também fui feliz.

DANCE Depois das quinquilharias importadas chinesas, os produtos mais vendidos no Mercadão são, sem dúvida, as bijuterias. As lojas com os produtos para enfeitar as mulheres se espalham por todo o primeiro andar. Na Letícia Bijoux, a vendedora conta que a moda agora são os braceletes (que podem custar de até R$ 15). E o que não sai de moda são os apliques de cabelos. Pretos, ruivos, coloridos, louros, as mexas podem custar entre R$ 5 e R$ 45. — Dependendo do tamanho e do tipo do cabelo — alerta a vendedora. O aplique dá ao visual feminina um jeito meio As Panteras (originais). Ou, abrasileirando, meio Chacretes. O Velho Guerreiro deve a Gerson a criação destas personagens: — Eu era um exímio dançarino. Mas na época quem dominava a dança na TV eram umas bichas bailarinas argentinas que ficavam com negócio de “uno, dos, tre” e não dava nada certo. Eu trabalhava na TV Rio e o Chacrinha estava lá. Com ele, só tinham duas mulatas grandonas que não sabiam dançar. Fizemos um teste para escolher mais garotas e fazer um corpo de baile que eu ensaiava. As primeiras chacretes fui eu quem ensinou a dançar. Rita Cadillac, Índia Apache e tantas outras. Quem popularizou a dança na TV fui eu — orgulha-se Gerson. Ser dançarino antes de ser cantor (Gerson só foi aprender a cantar no meio da década de 60) fez dele um showman com uma presença de palco invejada por muitos músicos, entre eles Tim Maia: — Ele ia aos meus shows para aprender. Ele dizia para mim: “Negão, tu não cantas porra nenhuma. Mas eu queria ter nascido no teu corpo com a minha cabeça e a minha voz”. π em www.revistazepereira.com.br: Ouça a música “Mandamentos Black”

BANHO Com as costas envergadas de vergonha Tu entraste no banheiro. O silêncio constrangido a toalha nos ombros cobriam um leão morto.

poesia MARCELO MOUTINHO ilustração: PEDRO GARAVAGLIA

No box apertado Girei os registros Molhei a toalha Pedi que te virasses Plantaste as mãos – imóveis – sobre os azulejos. E a cortina tocou meu rosto. Guiada por mim, a toalha passeou: teu tronco tuas pernas braços pescoço. A toalha úmida, e a cortina que se fechava. No breu dos teus olhos cerrados E no tremelique das mãos (que não podias deter) Lembravas: Um dia Também me deste banho. Girei os registros Troquei de toalha Pedi que te virasses Enquanto te secava E ouvia um obrigado Soube que não há como se sair limpo De um banho desses.

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crônica

O RAPTO DO 464 texto: LUIZ HENRIQUES foto-ilustração: EDUARDO SOUZA LIMA / DI SOUZA

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discussão era se vale realmente a pena deixar o conforto da poltrona de casa e sair correndo para pegar engarrafamentos, dificuldade de estacionar, cadeirinhas desconfortáveis e arrastões só para sentir a emoção de ver o jogo ao vivo no Maracanã. Alguns argumentavam que se perde o replay e o tira-teima, outros ponderavam que em compensação perdia-se também o Casagrande e o Arnaldo César Coelho. Eu já enveredava pela nostalgia, pelo imenso afeto que sentia pelo 464, nos tempos sem metrô e sem carro popular, sempre cheio em seu caminho para o jogo, nos tempos em que qualquer clássico levava sessenta mil pessoas ao Maracanã, nos tempos em que o futebol carioca era o melhor do país, nos tempos em que desde as três da tarde o trânsito já não fluía a partir do Estácio. Isso para não falar nos jogos importantes em meio de semana, em que todo mundo chegava na mesma hora. Ainda me lembro da agonia do 464 se arrastando pelo Flamengo, entupido de vascaínos, na final do campeonato brasileiro de 74, eu e meu pai em pé e o raio do ônibus que não andava, tudo engarrafado. Para a minha adolescência em Botafogo, aquela era a grande linha — ia para as praias de um lado e para o Maracanã do outro. Foi quando o André comentou que já tinha seqüestrado um 464. Como assim, seqüestrado um 464? Ia jogar sobre a embaixada americana ou coisa parecida? Não que o André fosse da AlQaeda, mas quase. Tinha sido da Falange RubroNegra, quando não em sua identidade secreta de estudante de filosofia, ambos em tempos idos. A experiência terrorista de nosso amigo começou no dia em que o Botafogo, após vinte e um longos e invernais anos, conseguiu, escalando em suas linhas Maurício e Mazolinha, vencer o Flamengo de Zico, Bebeto, Renato Gaúcho e Leandro jogando pelo empate. Daí se imagina o bom humor do André quando, junto com vários

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colegas da Falange, tem que entrar num 464 já com alguns botafoguenses batucando e cantando seus empoeirados e bolorentos cantos de vitória. O pessoal da Falange não tinha que agüentar aquilo. Ainda mais estando em maior número. Entraram e puseram para fora à força os adversários e se apossaram completamente do ônibus, inclusive intimidando o motorista para que ele não parasse nos pontos para pegar mais torcedores alvinegros, principalmente no Mourisco, então sede do Botafogo e parte do itinerário da linha. Ainda que saboreando a satisfação primitiva pela conquista daquele exíguo e móvel território, viajar até Copacabana entre todos aqueles carros buzinando e batucadas em ônibus parecia uma grande provação para os falangistas. Os diretores da torcida diziam que eles deveriam levar o hino do Flamengo, mostrar orgulho apesar da derrota, mas ninguém se sentia com espírito para tanto. Foi quando alguém falou que eles deveriam então cantar o hino do Botafogo. E assim foi feito. Os uniformizados tiraram suas camisas e as esconderam e todos começaram a cantar — ainda que docemente constrangidos — Botafogo, Botafogo, campeão de 1910... e logo conseguiram atrair um incauto coroa e torcedor adversário para o carro. O óbvio fato de que ele covardemente sequer se dera ao trabalho de ir ao jogo e ficara em casa vendo pela tevê mais enfureceu os rubro-negros, mas eles continuaram entoando o hino, enquanto, segundo André, o coroa tentava comemorar sem demonstrar o mínimo jeito para a coisa, brandindo o braço e sorrindo, mais parecendo uma caricatura. Ele entrou, pagou a passagem e — imagino a cena — começou a perceber que todos os olhares estavam fixos nele e que o hino alvinegro era cantado sem verdadeira paixão, sem a entonação dos vencedores, enquanto todos aqueles rostos encaravam-no

sem demonstrar alegria e a cadência de marcha de hino de clube começava a tornar-se cada vez mais sinistra aos ouvidos do pobre telespectador, até ele por fim divisar o detalhe final e revelador — saindo de bolsos das bermudas e dos shorts, mal amassadas em mãos fechadas... camisas do Flamengo! O coroa foi posto para fora na base do cascudo — notem bem, cascudos, nada de tacles e pontapés até deixar o cara desacordado na rua, o André nunca foi disso — e foi apenas o primeiro de uma série. Vários outros se seguiram, até que na altura da Corrêa Dutra, entrou um baixinho carregado de faixas do Botafogo campeão. Era tudo que o pessoal da Falange queria para coroar a noite após sentir em suas entranhas aquele gol do Maurício: tacar fogo em um monte de faixas do adversário. No entanto, torcidas organizadas costumam atrair sujeitos chegados em movimentos organizados em geral, inclusive sindicais. Quando o baixinho percebeu que era uma presa num ninho de predadores, começou a gritar implorando por suas faixas, pois que era Fluminense e estava indo para o Mourisco apenas para vendê-las e faturar um troco com aquela paixão pelo esporte da qual ele não compartilhava. Imediatamente os sindicalistas começaram a ponderar que ele era trabalhador e precisava ser respeitado, num país em que o capital leva tanta vantagem e a mão-de-obra não tem vez, e a luta de classes, e os juros a 16% etc etc... Enfim, o baixinho foi poupado. Mas ele não saltaria no Mourisco, quartel-general do inimigo. Teria que saltar no Rio Sul e caminhar até lá.

E eis que o 464 chega no Mourisco e pára, apesar de tudo que fora dito. O baixinho saltou e, mal encostou o pé na segurança do asfalto, começou a gritar, “aí, galera, o ônibus tá cheio de flamenguista”. Pode-se imaginar o que se seguiu, o carro cercado de gente por todos os lados, levando chutes na lataria, pessoas tentando invadilo pelas janelas, enfiando as mãos pelas frestas tentando atingir alguém, outros empurrando as portas para se abrirem e o motorista forçando lentamente passagem, avançando centímetro a centímetro motivado pelos cascudos que ia levando dos flamenguistas, lembrando vagamente a retirada americana do Camboja. Enfim, por dentre um mar de cabeças, pontapés e demonstrações várias de territorialidade de ambas as partes, o 464 irrompeu para a segurança do asfalto vazio de uma da manhã e avançou pelo Túnel Novo, ainda impulsionado por cascudos no motorista, bem merecidos, segundo o André, por ele ter parado no Mourisco. — E agora, meus amigos, me digam... — completou ele após a longa história — Quando é que assistindo ao jogo pela tevê alguém vai se divertir tanto assim?

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lição de história: Antonio Edmilson Martins Rodrigues

“FOI A IMPRENSA QUE INVENTOU O RIO DE JANEIRO” texto: SILVIO RABAÇA

Antonio Edmilson Martins Rodrigues é bem

conhecido dos alunos que freqüentam as aulas de História do Rio de Janeiro e do Brasil e os seminários de História política, tanto na PUC quanto na UERJ, onde leciona. Há 35 anos no magistério, este carioca, nascido nos Açores, transita facilmente pelo passado, traçando painéis tão completos quanto diversos das invasões franceses, da transformação do Rio de Janeiro em capital do império português, da chegada da família real e da Belle Époque carioca. Em comum, esses fatos têm a contribuição para a formação de uma marca nacional e da cidade do Rio de Janeiro.

Para alguns especialistas, a história urbana é mais que a história de uma cidade. O Brasil celebra em 2008 a chegada da família real e a abertura dos portos. Poderíamos dizer que a história urbana do Rio de Janeiro começa somente em 1808?

Acho que não. Certamente isso se intensifica com a chegada de D. João, que vai fazer com que a cidade se transforme na capital política do império português, o que tem grandes implicações, pois a cidade passa a se voltar mais para fora. Mas, ao longo do período que vai até o início do século XIX, o desenvolvimento do Rio de Janeiro se faz como alternativa econômica ao modelo de intervenção do governo português. Surge uma série de circuitos por onde trafegam produtos para o escambo desde o interior da Bahia e que aqui chegam pelo porto de Irajá ou via Baixada. É como se fosse formado um grande cordão verde que se expande, cobrindo a Baía de Guanabara desde São Gonçalo até o que é hoje a Avenida Brasil, incorporando Campo Grande e Santa Cruz. Essa é a periferia, que agüenta a barra da cidade e que também servirá de base para a explo-

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ração do ouro e, depois, para o desenvolvimento da cafeicultura. As rotas dos tropeiros eram mantidas por pequenos núcleos, que vão dar origem a várias cidades. Esses núcleos são fundamentais, porque criam um tipo de riqueza que não é decorrente do pacto colonial. Isso influi sobre as pessoas que aqui vivem de tal maneira que elas acabam tendo uma experiência de liberdade, o que vai se confrontar com qualquer tentativa de intervenção centralizada.

Quem são esses colonos?

São portugueses ou seus descendentes, os mazombas, já nascidos no Brasil.

A transformação da cidade em capital do vice-reinado em 1763 foi uma tentativa de controlar esta aparente independência dos colonos do Rio de Janeiro...

A transformação do Rio de Janeiro em capital por Pombal é uma boa jogada política. Sabedor de sua história de autonomia e compreendendo bem as funções econômicas desenvolvida pela cidade, Pombal elabora um projeto para o seu controle, que resultaria na ampliação de suas tendências produtivas, auxiliando-o na reorganização da colônia. Para as demais cidades, isso representaria um distanciamento muito grande da antiga cidade de colonos que as inspirava, pois agora esta era a capital. Então, de uma cidade igual às outras, o Rio de Janeiro se transformou em algo muito diferente, mas ainda tinha no seu espaço a cidade dos colonos.

Você gosta de recuar à fundação do Rio de Janeiro pelos franceses, comparando as duas visões de mundo que estão em oposição na luta entre franceses e portugueses. O objetivo da expedição de Villegagnon era interferir no comércio marítimo, fixando uma importante base de apoio. Quão estratégica era a posição do Rio de Janeiro para esse objetivo?

A transformação do Rio de Janeiro em capital por Pombal é uma boa jogada política O Rio de Janeiro é uma escala importante nas rotas comerciais que ligam a Europa e a América do Norte até o Rio da Prata. Por aqui passam os mais diferentes tipos, desde chineses a indianos. Para mim, no entanto, o mais relevante são as experiências que marcaram a Baía da Guanabara. A partir deste ponto de vista, importam mais as trocas culturais e os movimentos de ocupação do que os objetivos. É possível que os franceses quisessem controlar o comércio. Entretanto, eles sabiam das dificuldades e dos investimentos necessários; era muito melhor ser franco-atirador. No nosso caso, Henriville (cidade que estava sendo projetada pelos franceses e cujo nome homenageava o rei Henrique III), era mais que uma feitoria, era o desejo de uma cidade ideal fundada na América. Com certeza, essa cidade ocuparia uma função central no processo de exploração dos franceses, mas será que esse era o único objetivo do projeto?

A França Antártica também deveria servir de refúgio para os huguenotes, mas parece que a sina da cidade era ter personalidade própria e logo surgiram desavenças entre católicos e protestantes. Quer dizer que antecipamos as guerras religiosas européias?

Não só antecipamos como mostramos, em miniatura, o que acontece quando a questão é religiosa. O embate na América ia além do religioso, eram espaços a disputar por projetos de utopia. Villegagnon estudou na Universidade de Paris, foi amigo de Calvino. Era um homem capacitado a discutir teologia. Mem de Sá era um fidalgo, irmão de Sá de Miranda, um dos maiores poetas portugueses.

Um dos aspectos mais incríveis da História da América Latina é como Portugal conseguiu manter a integridade do território brasileiro, ao contrário do que ocorreu na América espanhola. A vitória sobre os franceses deve ter sido um feito considerável. Como ela foi recebida pela população local e pelos portugueses?

Nesse período inicial não se pensava em ocupação de terras no sentido de colonização. A função central do mercantilismo era incentivar a circulação. Isso não quer dizer, no entanto, que

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os homens não tivessem autonomia. É o caso do Rio de Janeiro, que vence os franceses, principalmente em 1710, quando a vitória se transforma numa recriação da força dos colonos da cidade. A vitória merece destaque porque mostra, já naquela altura, a constituição de uma marca nacional.

A História ressalta o papel dos intelectuais na busca de uma identidade brasileira. Até que ponto se pode dizer que o Brasil é uma invenção intelectual?

Hoje há um forte apelo por um esquema interpretativo, no qual é possível dividir a história intelectual brasileira em dois grandes momentos. O primeiro é o dos intelectuais de 1870, que foram fundamentais para responder a pergunta “o que é o Brasil?”, não importando se o país imitava a Europa ou não. O objetivo desses intelectuais não era fazer projetos para o país, mas ter um diagnóstico. E a literatura dessa época fez história. Depois veio a geração de 1920, que pega esse patrimônio, e aí sim se começam a esboçar projetos para o Brasil.

de Paula Ney, que, no entanto, têm de subsistir de alguma maneira, e a imprensa vai ser o lugar de subsistência deles. São esses caras que vão fazer da cidade um personagem e do homem da cidade o carioca.

É possível fazer uma genealogia do carioca?

A alma carioca é invenção dos cronistas: Lima Barreto, João do Rio, Stanislaw Ponte Preta, entre tantos outros. Foi a imprensa que inventou o Rio de Janeiro. Quantos jornais havia, na Belle Époque carioca? A malandragem surge da ociosidade e da oposição ao trabalho, mas via jornalismo, basicamente. Os caras diziam: “O Rio de Janeiro não pode ser Paris, porque aqui não há um lugar chamado Chateau Noir. Então vamos fazer um cabaré chamado Chateau Noir”, que ficava ali na Lapa. Depois vem o Alcazar, na Uruguaiana, onde havia meninas francesas mesmo. E essas situações vão se multiplicando. Tem-se, então, uma mimese completamente inventiva. π

O Rio de Janeiro tem contribuído com muitos tipos literários e sociológicos, que são, sobretudo, tipos urbanos. Afinal, há uma fisionomia ou modo de ser próprio do carioca ou o espírito carioca é só mais um mito?

O Rio de Janeiro se torna um grande tema da literatura, principalmente devido aos seus cronistas, mas há vários elementos que se vinculam aí. Primeiro por ser a capital, e a recepção da capital é importante para aquilo que significa a riqueza e o posicionamento social. Além disso, é um lugar onde havia pelo menos três instâncias universitárias importantes: a Politécnica, a Medicina e o Direito. Isso evidentemente atrai as pessoas da província, o que acaba fazendo com que venham para cá pessoas que não estão a fim de fazer absolutamente nada, como Aluízio Azevedo, o irmão Artur de Azevedo, o poeta Francisco

“A alma carioca é invenção dos cronistas” 18

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especial

FOLHETO DA VIAGEM

(XILOGRÁFICA)

AO REINO DO PRIMO XICO texto: VLADIMIR CARVALHO xilogravuras: XICO CARVALHO

Contemplo uma gravura e – estranhamen-

te – é como se ouvisse vozes; e num passe de mágica sou abduzido pela força de seu corte, de sua textura e de sua cor. A imaginação entra pelos sulcos da madeira adentro e, de fato, o que escuto, meio ao longe, são vozes ancestrais, ecos de mitos adormecidos, numa remota cantilena, e o que se segue cada vez mais audível é todo um rumor e burburinho de uma imensa feira nordestina, o grande palco semanal das gentes sertanejas de antigamente. Uma feira (de Itabaiana, de Campina Grande, de Caruaru ou do Juazeiro do Padre Cícero?) que não existe mais, a não ser na lembrança de meu mundo infantil e que era quase como um circo repleto de atrações, embalado numa música forrozeira de sanfona, zabumba e ganzá, no ritmo do triângulo. Esse é um cenário a céu aberto, fervilhante de vida, encharcado de pregões, cantorias de cegos, de repentistas e camelôs, passando pelas barracas onde se vendiam os folhetos de feira (o cordel de hoje), com o chão coberto de bonecos de barro e de montes de mané gostosos feitos de pau; com as árvores enfeitadas de gaiolas de passarinhos. À noite, aqueles que pernoitassem por ali poderiam assistir e até partici-

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muitas vezes beira o grotesco nas pequenas e saborosas obscenidades de que o povo é capaz na sua verve criadora. Tudo isso perpassa essa galeria de tipos e de criaturas estranhas nessas cenas que Xico vai buscar com a maestria de sua goiva no fundo de suas tábuas de umburana e cedro nativos. Basta enumerar os títulos com que batizou algumas dessas criações para se sentir o espírito gaiato das feiras e das ruas. “O Mestre Língua”, “A Mulher Cobra”, “O Homem Cobra Chic”, “O Padre e a Moça”, entre outros. E por falar em “língua”, esse é um elemento que é “trabalhado” e visualizado intensamen-

te nessa coletânea insólita da gravura brasileira. À primeira vista ela, a língua, deixa de ser parte do órgão fonador e ultrapassa em muito aquilo que o vulgo chama de língua ferina, ferramenta do desaforo, e não do diálogo, e toma forma semelhante a um chicote ou flecha que parece servir mais a uma espécie de justa em que cavalheiros se engalfinham como cobras, gritando eloqüências escatológicas ou malcriações que o povo não quer calar. Pinta aqui então um clima de espetáculo do mamulengo/babau – e esse é o ponto máximo revelador das relações dessas xilos com a po-

par de uma espécie de prolongamento do espetáculo da feira, em alguma ponta de rua: era a vez da brincadeira do cavalo marinho, do pastoril na zona de mulheres e do mamulengo também chamado de babau, e a coisa podia avançar até madrugada alta. É justamente na visão das figuras por vezes fesceninas e debochadas desses folguedos que me detenho e volto à tona desse sonho remissivo, dessa viagem a um reino encantado que fiz ao embarcar na contemplação das xilogravuras de Xico Carvalho. E retomo nas mãos sua nova série, onde as suas criaturas emergem do forte colorido do fundo, de amarelos quentes como labaredas de fogo, suavizado em cor de rosa somente vez por outra nas cenas mais “líricas”, e por essa via descubro de novo o profundo parentesco de sua arte com a imaginação popular que domina aqueles folguedos tão meus conhecidos. Tão conhecidos que sonho até hoje com “mateus”, “biricos” e “catirinas” do cavalo marinho, com o palhaço Bedegueba dos pastoris da rua do Carretel. E nesse lance está todo o gosto do povo pelo deboche e a irreverência, com seu tanto de picaresco como estão também a sua doçura e inocência. Aliás, em termos de picaresco, esse

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ética popular – em que surtem as movimentadas arengas e os disparates do negro Benedito e da Catirina, na pequena boca de cena e na cadência do som roufenho da rabeca. Mas pode também não ser nada disso, que o Xico é homem de boa paz: o que se vê talvez seja conversa branda e coloquial, algumas até muito persuasivas e amorosas, com as línguas soltando beijos e se alongando até quase acariciar o interlocutor, como é o caso desses estranhos “Gêmeos” ou desse Padre e dessa Moça, da mesma natureza e talhe do que se vê nas capas de folhetos românticos (vide a história de Coco Verde e Melancia, por exemplo) vendidos até hoje por aí. Enfim, essa remessa do Xico que agora sai da prensa é preciosa e, para nós, sinaliza o auge de um artista que no seu ofício vem produzindo uma arte que se pretende ingênua – no conceito conhecido – de corte propositalmente primitivo, bebido na fonte pura do inconsciente coletivo e sugere pelo estranhamento de alguns temas (bichos, aves, peixes e serpentes dialogando com seres humanos) um tipo de “surrealismo” popular com tudo que essa expressão tenha de impróprio neste caso. Uma arte que não é indiferente ao encantamento com o mundo de sua infância trazido de novo à luz, mas como se o visse pela primeira vez, um mundo coincidente com a visão primal do homem da caverna. Agora, a bem da verdade, devo dizer que jamais fui apresentado a Xico Carvalho, misterioso e invisível personagem que vem maneiro e sutil espalhando seu rastro e seus fluidos pelo bairro de Jaguaribe, em João Pessoa, sem jamais ter sido visto, e que diz pertencer ao clã do velho Martim Caco, meu avô, dos Carvalho de Itabaiana. Isto é o que dizem afiançar Unhandeijara Lisboa, esse, sim, meu primo legítimo na linhagem, inclusi-

ve, de meu tio Floripes Carvalho, ourives e gravador de talhe doce em ouro, estabelecido na Barão do Triunfo com sua joalheria. Mas o primo Nandi, como é conhecido, sempre desconversa toda vez que o interpelo a esse respeito. “O Xico anda pelo meio do mundo”, diz dando de ombros e mudando de assunto. Manuel Clemente, que é seu discípulo e comparsa no ateliê do Clube da Gravura, não arreda o pé de seu proverbial mutismo (a última vez que se fez ouvir foi em sala de aula, assim mesmo por obrigação acadêmica), e da última vez que o intimei a esclarecer o caso, riu um risinho maroto, engasgou-se, correu ao banheiro e não mais voltou. Saiu por alguma porta falsa, talvez a mesma que oculta as fugas convenientes do Xico. Martinho Campos, um dos mentores do Clube e iminência parda do fabuloso movimento da xilogravura na Paraíba, abordado, me fez uma verdadeira conferência, na verdade longa conversa “de cerca Lourenço” para me despistar. Resultado é que me deixou na mesma, nada sabendo do paradeiro do ensombrecido xilógrafo... De minha parte, resta-me o consolo de uma conclusão, talvez apressada, mas conseqüência natural e até certo ponto inconsciente de uma comparação que, aos poucos, venho fazendo entre a lavra visível do Xico com a do primo Nandi. Uma, perdoem-me, é quase um decalque da outra. Principalmente nos últimos anos em que, na medida que Xico se torna mais “presente”, Nandi vem se esquivando cada vez mais de produzir e se retira de cena. É uma coincidência muito grande e ninguém me convence de que esse Xico Carvalho não é uma artimanha, uma “ficção” do neto de Floriano Rodrigues Carvalho. “Uma bolação Unhandeijara”, como ele próprio dizia antigamente. π

“O Xico anda pelo meio do mundo”

no site: Xilogravuras coloridas de Xico Carvalho

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sabemos que a grande maioria dos cineastas que filmam no Rio são moradores da Zona Sul, portanto, quando eles viram a sua câmera para o lado de lá, a tendência é juntar as diversas camadas que compõem o subúrbio e a Zona Norte em uma coisa só. O olhar estrangeiro para determinados pontos de sua própria cidade torna-se difícil de ser evitado. E quando não se conhece o objeto filmado, sempre é mais confortável simplificar através do geral do que penetrar pelo particular. Esse fenômeno de simplificação também acontece com a favela. Nesse caso já não importa se ela está situada na Zona Sul ou na Zona Norte, pois a favela sempre será vista como um sistema à parte, como um núcleo clandestino que está localizado do lado de fora da cidade “oficial”. Favela é favela, ela nunca tem nome e parece ser sempre uma só: “Favela dos meus amores” (de Humberto Mauro, 1935), “Cinco vezes favela” (de vários autores, 1962). Só recentemente que as favelas foram singularizadas: “Cidade de Deus” (de Fernando Meireles, 2002), “Maré, nossa história de amor” (de Lúcia Murat, 2007). A opção por tomar o título dos filmes como nosso ponto de partida não se originou pelo anseio de rastrear

AGANHA TIJUCA AS TELAS

texto: ESTEVÃO GARCIA

“Eles não trocariam a Tijuca por nada”

Realizando

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fotos de divulgação

Se procurarmos nos lembrar quantas vezes uma localidade do Rio de Janeiro, seja uma rua, uma praça ou um bairro, apareceu em um título de filme ao longo da história do cinema brasileiro, constatamos imediatamente uma característica marcante: a Zona Sul domina de forma soberana. um passeio cinematográfico pelo Rio através dos títulos do nosso cinema podemos facilmente cruzar por Copacabana: “Copacabana me engana” (de Antonio Carlos da Fontoura, 1968), “Copacabana mon amour” (de Rogério Sganzerla, 1970), “O vampiro de Copacabana” (de Xavier de Oliveira, 1976). Continuando mais um pouquinho a caminhada podemos entrar em Ipanema: “Garota de Ipanema” (de Leon Hirszman, 1967), “Ipanema toda nua” (de Libero Miguel, 1971), “Os garotos virgens de Ipanema” (de Oswaldo de Oliveira, 1973), “Ipanema, adeus” (de Paulo Roberto Martins, 1975), “O varão de Ipanema” (de Luis Antonio Piá, 1976), “Nos embalos de Ipanema” (de Antônio Calmon, 1978). E finalmente paramos para tomar um chope na Gávea: “Baixo Gávea” (de Haroldo Marinho Barbosa, 1986). Depois desse trajeto a pergunta é a seguinte: onde estão os outros cantos do Rio nessa história, ou melhor, nessa História? Prosseguimos nossa perambulação e percebemos que quando esses “outros cantos” aparecem nos títulos, são quase sempre de forma genérica: “Rio Zona Norte” (de Nelson Pereira dos Santos, 1957) ou “O Ibraim do subúrbio” (de Astolfo Araújo e Cecil Thiré, 1976). Diferentemente da Zona Sul, que pode ser particularizada através do registro de um bairro, a Zona Norte e o subúrbio são freqüentemente percebidos em bloco, como se formassem uma mesma massa homogênea. Isso em parte se explica quando

e enumerar as ocasiões em que as regiões menos favorecidas e menos badaladas serviram de locação para as produções rodadas no Rio de Janeiro. Se pegarmos apenas os títulos como referência, elas praticamente não existiram em nossas telas. Não nos interessa aqui o uso dessas regiões apenas como locação e sim os casos em que elas transcenderam a condição de local de filmagem e se transformaram em elementos fundamentais da narrativa. Logicamente não é necessário colocar o nome de uma localidade no título de um filme para adotar essa estratégia. Porém, os filmes que assim procedem, geralmente enxergam a paisagem urbana escolhida como mais um personagem. Um personagem que respira, que fala, que pulsa. Um personagem que possui a sua própria língua, história e tradição. E é sintomático que esse personagem-paisagem, quando aparece no cinema carioca, independente de estar ou não estampado nos títulos, praticamente não sai dos limites da Zona Sul. Nesse quesito, “Saens Peña”, primeiro longa-metragem de ficção do cineasta Vinícius Reis, parece inaugurar uma ruptura. Vinícius, paulistano de nascença e tijucano de criação, não só é Chico Diaz e Aldir Blanc no Stefanios: os diálogos foram improvisados

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Maria Padilha na Praça Saens Peña: o filme foi rodado nas ruas do bairro

o primeiro cineasta a colocar o nome de um local (no caso, uma praça) da Zona Norte no título de um filme carioca, como também tem como meta transformar esse local em algo maior que um simples cenário. — Eu tinha vontade de escrever alguma coisa sobre a Tijuca e a classe média. A classe média que conheço e da qual faço parte. Eu tinha essa curiosidade porque aqui no Rio de Janeiro se filma muito na Zona Sul. Você tem um cinema que fica muito na cultura da Zona Sul como o da Rosane Svartmann e o da Sandra Werneck. Aí eu pensei: está faltando um recorte classe média tijucana. Isso ainda não tem, isso ainda não surgiu no cinema carioca e tenho vontade de falar disso porque eu conheço, faço parte disso, sou disso, venho disso — diz Vinícius. O filme capta o cotidiano de uma família de classe média que mora em um apartamento alugado na Rua General Roca, bem em frente à Praça Saens Peña num momento crucial pra ela, para o Brasil e o para o mundo. A narrativa se inicia no começo de 2003, momento em que os Estados Unidos invadem o Iraque, Lula chega à presidência da República e um amigo de Paulo (Chico Diaz) o convida para escrever um livro sobre o bairro. O clima da possibilidade de uma ascensão social, motivada por essa nova atividade do personagem, invade o espaço doméstico e se confunde com a euforia e a “esperança” ex-

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perimentada pela classe média brasileira, de um modo geral, no começo do primeiro governo Lula. A oportunidade de pesquisar e escrever sobre a História da Tijuca leva Paulo a realizar um corpo-a-corpo diário com o bairro e seus moradores. Por sua vez Teresa (Maria Padilha) vê reacender o seu velho sonho de comprar um apartamento no bairro e, portanto, aproveita toda a brecha que tem no trabalho para sair com os classificados debaixo do braço à caça de um apartamento. Temos aqui duas perambulações pelas ruas da Tijuca, duas interações com os seus espaços. — Desde os primeiros encontros, o Vinícius colocou seu desejo de ter a Tijuca (e mais especificamente, a praça Saens Peña) como um personagem do filme. O barulho que vem do lado de fora da janela do apartamento, o tradicional calor do verão tijucano. E as constantes citações da História da região por conta das pesquisas para o livro de Paulo, trazem o bairro para dentro do espaço privado dessa família. O cotidiano de todos os personagens da família se insere na localidade: Paulo e Teresa trabalham e Bel, a filha do casal, estuda na Tijuca. E vemos todos transitando por esse espaço naturalmente, compondo essa paisagem — conta a diretora de arte Tainá Xavier. Paulo e Teresa, como sublinha Vinícius, na verdade não são tijucanos e sim emergentes. O casal protagonista representa as pessoas de origem humilde que com muita luta conquistaram

a Tijuca. Paulo é um professor de literatura que se formou em letras pela UERJ com bastante dificuldade porque tinha que conciliar seus estudos com o trabalho e Teresa trabalha como atendente em uma loja de café expresso de um shopping. — Eles vêm do Baixo Estácio, daquele Estácio mais pobre, perto da estação do metrô — explica o diretor. — Morar na General Roca de frente pra Saens Peña é como dizer: “Conquistamos o nosso espaço, somos poderosos, agora só falta comprar”. Eles adoram a Tijuca e o consideram o melhor lugar do Rio. Eles não trocariam a Tijuca por nada. Mas, se o filme retrata o amor que alguns moradores sentem pelo bairro, também faz questão de mostrar o outro lado: os tijucanos que almejam sair de lá e morar na Zona Sul. João (Gustavo Falcão) é um deles. O personagem troca o seu amplo apartamento na Usina por uma quitinete no Leblon, realizando o velho sonho de morar a alguns metros da praia. Porém, ao compararmos a paisagem que ele tinha de sua janela na Usina e a que ele tem agora no Leblon, percebemos que a mudança não foi assim tão boa. Antes ele se deparava com montanhas e uma ampla área verde, hoje ele não vê mais que uma parede ao abrir a janela — nesse sentido, o “Saens Peña” é o anti-Manoel Carlos. Além de propiciar um diálogo visceral com o bairro, o livro de Paulo lhe oferecerá a oportunidade de conhecer os seus heróis, e um deles é o compositor e histórico tijucano Aldir Blanc. — A seqüência em que o Paulo entrevista o Aldir Blanc foi rodada no Stefanios Bar, que é um dos bares freqüentados pelo Aldir, lá na Rua dos Artistas, que é a rua onde ele passou grande parte da adolescência e da juventude. O Aldir Blanc nasceu no Estácio, assim como o Paulo, mas cresceu na Tijuca. Essa cena é descrita em apenas uma linha no roteiro: “Paulo encontra com o Aldir Blank no Stefanios Bar, essa cena vai ser documental, as falas não serão roteirizadas”. Não tinha como você roteirizar ou dirigir Aldir Blanc, ele próprio já é um filme. Com o Aldir é só na base do improviso — conta Vinícius. E improviso foi o que não faltou nas filmagens de “Saens Peña”. Embora tendo um roteiro

bastante detalhado que passou por dez diferentes tratamentos antes de chegar à versão final e de ter ensaiado muito com os atores, ao longo do set Vinícius permitiu que houvesse espaço para a incorporação do acaso e do calor da hora. — No “Saens Peña” tinha diálogo escrito, ensaiado, decorado, mas que na hora da filmagem a gente se liberava dele. Dava para se soltar, mas nós tínhamos um guia ali para nos orientar e para qualquer coisa que houvesse. Segundo o cineasta, essa relação elástica e versátil entre o prédeterminado e o inventado no momento de filmar só foi possível pelo fato dos dois atores principais estarem desde o início envolvidos no projeto. Muita conversa, muita dedicação e muito trabalho de mesa foi o que garantiu essa liberdade. Para o cineasta, filmar “Saens Peña” não poderia ser de outra forma. O ato de filmar lhe revelou uma magia e um mistério que não emanaram com a mesma força durante a escrita do roteiro. A sua memória afetiva e sua relação íntima com o bairro se embaralhavam com o filme que estava criando. Ficção e memória começavam a compor energias de um mesmo fluxo. Fazer “Saens Peña” era como trazer à tona as sensações e a sensorialidade do bairro. Era um instante de descoberta. Diz Vinicíus: — Sempre digo que não fiz um filme sobre a Tijuca e sim sobre a minha Tijuca. Pois há muitas Tijucas (a região vai da Praça da Bandeira ao Alto da Boa Vista) e no “Saens Peña” só mostro a que eu vivi. O roteiro foi pensado assim e isso me dava segurança para filmar. Mas, na filmagem, esse cenário ganhou uma nova dimensão. Quando apontávamos a câmera e o microfone para essas ruas e esquinas, tão conhecidas; quando marcávamos as cenas com o elenco, nesses lugares, essa Tijuca, que é tão familiar se renovava, surpreendia, se atualizava. Acho que o ato da filmagem torna inédito aquilo que já é conhecido. É um enigma. Ver a Rua Uruguai na telinha do vídeo-assist, ouvir a Barão de Mesquita pelo fone do técnico de som, minutos antes de rodar uma cena, potencializavam e transformavam esses lugares. Isso aconteceu em todas as cenas exteriores. Era só gritar um “corta” e a filmagem acabar para esses lugares restituírem a familiaridade escondida. π

“Sempre digo que não fiz um filme sobre a Tijuca e sim sobre a minha Tijuca”

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texto: ANA PAULA CONDE fotos: BARBARA COPQUE

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— Altamiro Nunes de Souza se mudou

para a casa onde mora na Vila Operária em 1929. Ele tinha apenas dois anos e dividia o espaço com os pais e quatro irmãos. Seu pai, Antônio, trabalhava na Prefeitura, como todos os moradores do primeiro conjunto habitacional de baixa renda construído pelo Poder Público. Quase 80 anos depois, como conseqüência do descaso e das transformações urbanísticas pelas quais a cidade passou, e que raramente levavam em conta a história do município e a realidade dos moradores, muita coisa mudou no Catumbi, Zona Central do Rio de Janeiro. A chegada do Metrô e do Sambódromo puseram construções abaixo e mudaram a feição do lugar; muitas casinhas de porta e janela, decoradas com azulejos trazendo a imagem do santo favorito, transformaram-se em oficinas ou cortiços. Fábricas foram desativadas. A violência dos morros que cercam a região alteraram a rotina, mas o clima familiar permanece no dia-a-dia dos moradores. Muitos vizinhos continuam dispostos a ajudar uns aos outros em momentos de dificuldade.

— Os meninos costumam bater na janela e pedir dinheiro para a merenda. Sempre que posso dou um dinheirinho para comprarem biscoito. Não ganho muito, mas como sou sozinho, dá para ajudar — conta seu Altamiro. Ele lembra com saudade da época em que guardas vigiavam o lugar dia e noite e repreendiam os meninos que colocavam os pés para fora da janela, dos antigos carnavais, quando fazia parte da diretoria do Bloco Carnavalesco Jará, rival do Bafo da Onça, das animadas festas de São João de uma avenida (antigo nome dado às vilas de casas) na Rua Senhor de Matosinhos, paralela à Salvador de Sá, onde fica a Vila Operária, e lamenta pela violência, que encrudeleceu nos últimos anos, como em toda a cidade, mas que sempre foi presente nas redondezas. A Vila Operária era vizinha da Zona do Mangue e as histórias de malandros, navalhadas, cafetões e batedores de carteira não nunca estiveram distantes do cotidiano de quem ali morava. Seu Altamiro, 80, conta, inclusive, que algumas tias não gostavam de visitar sua família porque moravam nas proximidades do Mangue. O aposentado também se recorda que costumava parar em botequins na volta de escola para observar os malandros dividindo o dinheiro do roubo de carteiras. — Era preciso ter cabeça para viver aqui — afirma. A declaração não é muito diferente da que se ouve do telefonista Fábio Gonçalves Manso, 25, também criado no local. — Gosto muito dessa casa, acho que a manteria mesmo que ganhasse na Mega-Sena. Tenho bons amigos, mas é preciso saber com quem lidar — conta o rapaz, que vive com a mãe, a manicure Geni, 51. Seu Altamiro ficou 23 anos longe da Vila. Entre 1953 e 1976, morou no Catete com a esposa e teve dois filhos. Quando se separou, voltou a morar com a mãe, Leonor. Ele sentiu diferença na vizinhança, mas jamais pensou em deixar novamente o lugar onde cresceu e passou momentos importantes da vida. A casa de dois quartos — um deles construído pelo pai no pequeno quintal dos fundos —, sala, cozinha e banheiro, mantém a pintura com as mesmas características da original, com três tons de bege, e os móveis da época em que era jovem. O aposentado, que trabalhou no arquivo do Departamento de Obras da Prefeitura do Rio de Janeiro, de 1950 a 2001,

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Seu Altamiro mora na vila desde 1929

adora observar a vida passando nas ruas pela janela de casa, caminhar calmamente até a Praia do Flamengo e freqüentar as missas da Igreja Nossa Senhora de Fátima, na Rua do Riachuelo, e Divino Espírito Santo, no Estácio. — Meus filhos querem que eu me mude. O local está realmente precisando de obras e eles temem que tudo desabe, mas eu gosto muito daqui — explica, enquanto nos serve um copo de mate gelado. Muitas das 120 habitações, construídas em 1906 pelo prefeito Francisco Pereira Passos, logo após a abertura das ruas Salvador de Sá e Mem de Sá, estão com infiltrações e problemas estruturais. As escadas que levam às moradias localizadas nos segundos pavimentos estão quase intransitáveis e em muitos imóveis não há mais o guarda-corpo de madeira das varandas. — Gostaríamos de ver as casas recuperadas, mesmo que tivéssemos de financiar a reforma. Moro aqui desde que nasci, conheço todo o mundo e tenho muito carinho pela área. O clima é familiar e há muitas histórias nessas casas. O Moreira da Silva morou na Vila, em uma parte derrubada para a construção do Sambódromo — conta o simpático e falante William César Machado, 41. Os moradores conservam as casas da maneira que podem, mas não têm recursos para reformá-las por conta própria. A Vila Operária, propriedade da Prefeitura do Rio de Janeiro, é tombada pelo patrimônio municipal desde 1985 e faz parte de uma Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC). Existem estudos e um plano de recuperação para os imóveis desde 2003, mas ainda não há previsão para o início das obras, como explica a Coordenadora de Projetos Especiais da Secretaria de Patrimônio Históricocultural, a arquiteta Cristina Lodi. — Estamos buscando parcerias com outros

órgãos do município para começar o processo de recuperação. A Salvador de Sá está entre as prioridades de revitalização da área — diz. A construção do conjunto de casas cinzachumbo fez parte de um grande e conturbado processo de transformação efetuado por Pereira Passos. Influenciado pela reurbanização de Paris realizada pelo prefeito George Haussmann, entre 1860 e 1868, Passos derrubou centenas de casas que se espalhavam pelas ruas estreitas para abrir a elegante Avenida Central, atual Rio Branco. A obra, conhecida como “bota abaixo”, desalojou milhares de pessoas, que começaram a habitar os subúrbios do Rio. Em uma época ainda marcada pela construção de sobrados, a Vila Operária, com suas linhas retas, representavam o moderno, movimento que viria a influenciar os prédios da cidade. É justamente esse patrimônio que os moradores querem ver preservado. As casas guardam histórias da cidade e de cada um de seus moradores. Alguns imóveis passaram por modificações internas, provocadas pela própria necessidade de conservação e de criar espaço para os filhos, mas não há quem pense em transformar o prédio externamente. — Queria que as casas continuassem a manter o mesmo estilo — diz o vigilante William. Ele mantém bem conservado internamente o imóvel com cômodos amplos divididos em três quartos, sala, cozinha e banheiro. Seu maior problema é a escada de madeira que o leva até sua casa, localizada no segundo pavimento do prédio. Ele está em mau estado e não se sabe quanto tempo vai resistir. A pensionista Iracy Silva, 63, deixou o Bairro de Fátima há 29 anos para viver na Vila Operária. Viúva de um motorista do Estado, ela gostaria que os pedestres e motoristas que passam pela Salvador de Sá pudessem imaginar o que se vê além da porta que separa a rua do lugar onde vive: uma casa tratada com todo o

As casas guardam histórias da cidade e de cada um de seus moradores

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Os moradores conservam as casas da maneira que podem, mas não têm recursos para reformá-las por conta própria.

capricho. A habitação térrea de quarto e sala ganhou uma divisória para criar mais um cômodo, que abrigou o filho até recentemente. Ele cursou marketing e agora mora com a esposa no Méier. Mas dona Iracy já arranjou uma nova função para o cômodo: servir de dormitório para os filhos da vizinha Suely Rodrigues da Silva, 41. — Eles adoram ficar na Iracy — diz Suely. — Os meninos têm até roupas nas gavetas — emenda a pensionista. Suely vive com o marido César, 48, há 23 anos no local. — Meu avô era motorista da Prefeitura e eu costumava passar longas temporadas com eles. Tenho uma ligação emocional com a casa e aqui, apesar dessas histórias de violência nas redondezas, é muito sossegado — diz César. Ele vende cachorro-quente todos os dias na calçada em frente a sua porta. É com a renda da barraquinha que sustenta os três filhos: dois meninos, com 16 e 4 anos, e uma menina, de 9 anos. O espaço é apertado para cinco pessoas, mas o lugar para o computador do mais velho, que estuda na Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro), tem lugar garantido. A Prefeitura já tem a matéria-prima mais importante para iniciar um processo de restauração dos imóveis e de recuperação do entorno: moradores que amam e conhecem a história da região e que desejam preservar os imóveis onde vivem da maneira como foi construído. É hora do poder público fazer sua parte, recuperando a Vila Operária e criando medidas para evitar que o casario típico do Rio de Janeiro que se espalha por aquelas centenárias ruas seja degradado por oficinas mecânicas, cortiços e pequenas favelas. Pereira Passos também agradece. π

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texto e fotos: TADZIA MAYA

A PRAIA QUE ERA

GRANDE Caiçaras são expulsos da Praia Grande da Cajaíba, recanto paradisíaco descoberto há dez anos pelo turismo, e vão morar em favelas em Paraty. Apenas uma família ainda resiste. Mas o histórico de disputa de terras na região literônea da fronteira do Rio com São Paulo remonta dos tempos da ditadura militar.

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“E eu vi uma pessoa de branco na porta da minha casa, que me apontava o mar: ‘Olha lá!’. E quando eu olhei pra água, estava cheia de caiaque, lotado de gente indo embora, os barquinhos iluminados, pintadinhos, saindo daqui, sumindo lá longe...”. Uma visita à Praia Grande da Cajaíba deixa claro: o sonho de seu Altamiro estava mais para uma predição. Em 2002, de fato, seus parentes e amigos, começaram a sair aos montes do lugar onde haviam “nascido e se criado”. Nas suas traineiras, seguiram para a periferia de Paraty. Hoje, seu Altamiro vê chegarem à praia de quase 1,5 km de extensão barcos de amigos e de turistas, mas já não vê mais os dos caiçaras que lá moravam. Em quatro anos, restaram somente oito de 87 habitantes. Só ele e seus cinco filhos ainda vão atrás do peixe. Na terra, ficam apenas duas mulheres: dona Jandira, sua mulher, e dona Dica, com seus “mais ou menos 58 anos”. E entre os barcos que despontam no azul cristalino, há sempre o receio de que chegue o pessoal que vem de outras terras, de outros mares: os supostos donos da terra. O último susto que a família levou foi em dezembro de 2005, quando às vésperas do recesso da Justiça, recebeu uma ordem de reintegração de posse. Contra seu Altamiro e sua família a acusação se baseia em contratos de comodato, papéis assinados a partir da década de 70, quando posseiros como ele se transformaram em inquilinos da terra — ou seja, estariam ali naquelas terras por empréstimo. Os comodatos serviram como peça jurídica para questionar a posse dos moradores não só da Praia Grande, mas de toda a Reserva Ecológica da Juatinga (REJ), área de preservação que compreende desde a Praia do Sono — vizinha do famoso Condomínio Laranjeiras — até o fiorde tropical do Saco do Mamanguá, que faz divisa com Paraty-Mirim. As famílias que já deixaram a Cajaíba hoje se espremem em casas simples, de quintal reduzido, na Ilha das Cobras, na Mangueira e no Pantanal, bairros miseráveis na periferia de Paraty. O crime e o tráfico de drogas rondam o quinto destino turístico do país, e a base desta economia marginal está exatamente nos lugares onde os caiçaras se estabeleceram. O trabalho na construção civil, em casas de família e no comércio é a nova realidade dos homens e mulheres da Praia Grande. A delinqüência e a miséria agora são suas vizinhas ou cônjuges.

— Eu estou arrependido. Se tivesse jeito de voltar a morar na Praia Grande, eu ia — lamenta seu Elisiário. Sem também conseguir precisar a idade — “80 e poucos” — ele perdeu a mulher “de desgosto” depois de se acomodar com filhos e netos na cidade. Pela casa que tinha na roça, o trabalhador rural aposentado ganhou R$ 32 mil para dividir entre os sete filhos. — Deram pra gente uns trocados, o que quiseram, não o que a gente pediu. Uma das filhas, Mariana, hoje babá, não se adaptou: — Aqui é tipo uma favelinha, né? Fui morar lá no fundo do Mamanguá. O marido, “sem serviço certo”, pode bem ganhar R$ 25 por dia de trabalho carregando brita e cimento ou bem pode pegar peixe, o que tanto já fez na vida, mas agora contratado por alguém. Já Laura, a caçula, grávida pela segunda vez de um homem da cidade, de cabelo bem feito e vestido estampado da moda, não reclama: — Preferi a cidade — diz.

O trabalho na construção civil, em casas de família e no comércio é a nova realidade dos homens e mulheres da Praia Grande.

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Mangueira: bairro em Paraty onde hoje vivem caiçaras que saíram da Praia Grande

Iolanda foi a última a deixar a Praia Grande, seduzida pela cidade, e hoje paga R$200 num quarto e sala num bairro rodeado de esgotos a céu aberto

Outra filha, Branca, mãe de 19 anos, mora num puxadinho na laje da casa de seu pai. Seu marido tem nas costas um processo por construir na reserva. Arrumando as compras no armário da cozinha, Branca deixa escapar a nova dieta do caiçara: suco Tang, miojo, pão branco e pacotes e mais pacotes de biscoito maisena. — Tenho só uma geladeira, televisão, chuveiro e um ventilador, mas minha conta de luz vem R$100! — espanta-se. A dificuldade para se adaptar é produto de um estilo de vida ferido, de uma dor da alma. O mundo sem muros, de propriedade coletiva e cultivos sem cercas é bem diferente do dos portões de ferro, colados uns nos outros nas ruas apertadas e sem árvores, num direito de ir e vir que volta e meia esbarra nas roletas dos ônibus. A preocupação de Carmela com os três filhos que correm para a rua se divide com o pensamento na Praia Grande, onde não há carros, nem luz elétrica, mas onde mora a 30 minutos de caminhada de dona Dica, sua mãe. Desde abril passado, quando a irmã caçula Iolanda, deixou a Praia Grande, “lugar sem moço” no seu entendimento de moça de 16 anos, para vir morar na Ilha das Cobras, ela acorda com pesadelos. — Eu sonho que mamãe está passando mal naquele deserto que tá o lugar. Sem gente. Sem parente. Iolanda foi a última a deixar a Praia Grande, seduzida pela cidade, e hoje paga R$200 num quarto e sala num bairro rodeado de esgotos a céu aberto. A menina que sabia pescar de linha, de caniço, e andar de canoa, fala que agora trabalha numa pousada. Carmela diz que não sabe se é verdade, e que os boatos na cidade apontam para outras atividades. — Mas como a gente vai confiar? É muita fofoca.

VIOLÊNCIA NA REGIÃO REMONTA À DITADURA A vontade de desfrutar do mercado consumidor fez sua parte na migração dos caiçaras, mas muitos deles confessam, receosos, que só deixaram a Praia Grande porque foram obrigados. Esperando num bar do Leblon, o homem diz que prefere não ser gravado. Cristiano Tannus Notari nega tudo. — Não, ninguém foi forçado a ir embora, as pessoas pediram pra sair porque tinham filhos doentes ou queriam melhorar de vida. Não há conflito fundiário na área. Cauteloso, Cristiano diz que pensou duas vezes

antes de dar entrevista: “Eu li que o (secretário do Ambiente Carlos) Minc não falou com vocês, por que eu iria falar?”. Informações como profissão, idade ou endereço também não foram reveladas. A entrevista foi guiada pela defesa, como ele mesmo deixou claro: “Porque não quero que aconteça comigo o mesmo que aconteceu com meu avô”. Gibrail Tannus Notari, filho de libaneses, foi quem deixou para sua mãe nove terrenos na Praia Grande quando morreu em 1996. Acusado de grilagem de terras no Atlas Fundiário do Rio de Janeiro, de 1991, Gibrail era figura pública respeitada em Paraty. Trabalhou na empresa alemã Telefunken e acabou sendo enviado à sede para ampliar os estudos. Na volta, foi responsável, já em negócio próprio, pela eletrificação de várias cidades brasileiras e fez fortuna. Para Cristiano, o que sempre esquecem de contar na história de Gibrail é que ele era, na verdade, caiçara: — Como não se dava bem com a madrasta italiana, ele foi criado dos 6 aos 12 anos no Pouso da Cajaíba — afirma. O fato de ele ser conhecido como “o grileiro da caneta vermelha” por correções em documentos da Praia do Sono é minimizado pelo neto: — Tudo naquela época era feito à mão, simplesmente ele consertou alguns dados. Com a abertura da Rio-Santos na década de 70, o caiçara-empresário foi só um dos tantos que cobiçou a Juatinga. Há, inclusive, relatos de violência que remontam aos tempos da ditadura: a revista “Veja” de 24 de dezembro de 1975, a reportagem “A favela de caiçaras” fala da chegada de homens estranhos, armados, ameaçadores nas praias, di-

zendo-se donos das terras. A edição contava que lavradores haviam sido assassinados dois anos antes, a mando da White Martins, que se estabeleceu na Praia de São Gonçalo — nome que acabou batizando uma rua também na Mangueira, em Paraty, pela quantidade de caiçaras que lá se estabeleceu. Na praia vizinha das Laranjeiras, a Adela e a Brascan compraram um pedaço de terra que havia sido retirado no dia anterior da área de proteção do Parque da Bocaina. As duas empresas construíram lá o Condomínio das Laranjeiras onde, por uma diária de R$ 2 mil, pode se desfrutar de campo de golfe, heliporto e outras regalias. A construção das pouco mais de 200 casas — cada uma valendo em média R$ 1 milhão — fechou o acesso por mar para as praias vizinhas. Os caiçaras viraram empregados do condomínio, inclusive guardas que restringem a passagem de primos e amigos a horários marcados com identificação constrangedora e rigorosa. Resta a opção de fazer as trilhas de mais de uma hora, com compras nas costas. Foi também com constrangimento que as relações nas praias requeridas por Gibrail começaram a ser estabelecidas, segundo Lúcia Cavalieri, geógrafa da USP. Freqüentadora da Praia Grande há dez anos, ela dedicou monografia e tese aos conflitos da região:

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— Bem nos moldes coronelistas, Gibrail começou a operar favores em troca de confiança, levando cestas básicas, remédios e emprestando o barco para necessárias viagens à cidade. Depois, mudou a condição deles em relação à terra. Quem conta é seu neto: — Ele queria recuperar os mangues onde era plantada a banana por caiçaras que trabalhavam em arrendamentos, e foi transformando os arrendatários em comodatários. Ingênuos e sem nenhuma intimidade com o dinheiro, os caiçaras acabaram firmando os contratos de comodato. — Eles não tinham entendimento do que estavam fazendo. Quem em sã consciência ia assinar para deixar de ter posse das terras de seus antepassados? — questiona Lúcia. Conta-se que Gibrail também chegou a criar búfalos nas praias do Sono e Grande. A bicharada, que pisoteava roças e nascentes, espalhava doenças e amedrontavam as crianças. Alguns assustados, outros encantados com o início do turismo na cidade foram embora, mas a maioria continuou.

CAIÇARAS CAPITULARAM EM 2003 A partir de 2001, Cristiano Tannus Notari passou a reprimir o camping, uma fonte de renda alternativa para os caiçaras, ameaçando-os com os contratos de comodato: — Eram mais de 300 barracas nos feriados e muito lixo — argumenta. Para sorte dos caiçaras, entre os campistas estava um grupo de recém-formados advogados. — Criamos a ONG Verde Cidadania em 2002 para defender o seu Maneco, da praia vizinha de Martins de Sá, que também tinha a reintegração de posse no pescoço — conta a advogada Flávia Oliveira. Seu Maneco, sua mãe de mais de 100 anos e o resto da família conseguiram permanecer na terra. Em 2002, também às vésperas das festas de fim de ano e do recesso do Judiciário, Bidica e Dedé precisaram se esconder do oficial de Justiça que apontava na praia com a ordem de despejo. Os advogados da Verde Cidadania conseguiram suspender a ação, por meio do procurador Daniel Sarmento, que, em ofício, disse que a juíza de Paraty pode ter agido “desavisadamente ou por coação”. — Esse é um conflito conhecido na cidade

e o Judiciário da cidade já deu duas decisões de reintegração de posse — relata Flávia. Ainda assim, a família caiçara foi embora, em 2003 — mora agora em Mangeira e Bidica trabalha como faxineira. Na sentença suspensa, a juíza Admara Schneider havia grafado caiçaras entre aspas e advertia que já “se deparou com demandas possessórias onde o contratante cede seus direitos (...) e posteriormente busca a tutela jurisdicional, sob alegação de ser analfabeto”. Apostando também nessa idéia, Cristiano exigiu agora uma perícia grafotécnica no contrato de comodato de seu Altamiro — “é a honra de minha família que está em jogo”, diz ele. — Nós acreditamos que seu Altamiro, como ele conta, não tenha assinado porque era analfabeto. Na carteira de identidade dele, que é bem mais recente, não há assinatura e ninguém quer passar de analfabeto, sobretudo, na própria identidade. Mas e se tivesse assinado ou carimbado o dedo como tantos outros, qual é afinal a legitimidade desses comodatos? — questiona Leonardo Alves, advogado da Verde e atual condutor do processo. O comodato de Altamiro, de 1974, não esclarece que ele e sua mulher eram analfabetos e nem que estavam sem documento na hora da audiência. Para Cristiano, isso era comum na época. — A cidade era pequena, todos se conheciam de vista, não teria por que o tabelião citar o fato. Para Flávia Oliveira, é um absurdo uma perícia grafotécnica direcionar um processo onde “é preciso considerar todo o histórico processo de violenta disputa pela terra”. Depois que Bidica e sua família foram embora, os caiçaras capitularam. Afinal, ela era a comadre combativa que enfim entregava os pontos, depois de repetidas vezes bater o pé dizendo que morreria na Praia Grande.

largar a faca. Benedito dos Santos, o Titinho, filho de seu Altamiro, também já foi ameaçado pelo caseiro armado: — Eu e mais dois estávamos no campo de futebol que fica pro lado da praia onde ele mora, e onde sempre havia torneio, até que o homem veio e colocou a arma no nosso peito e foi muito perigoso, porque ele tremia muito e quase disparou — conta. Depois de incidentes como esse a comunidade parou de usar o campinho. Mas o pior episódio, lembra Titinho, foi, sem dúvida, quando seus parentes ligaram à noite, chorando desesperados diante do fogo que destruía seus ranchos na beira da praia. — Eu estava na cidade e gastei R$ 300 pra chegar lá de lancha. Disseram que avisaram, mas chegaram de repente — acusa. O executor da demolição e queima dos ranchos — estruturas caiçaras que guardam redes e objetos de pesca e também se prestam à venda de comida — foi o próprio órgão gestor da área, o Instituto Estadual de Floresta (IEF). O Ministério Público processa o IEF por improbidade admi-

MINISTÉRIO PÚBLICO PROCESSA INSTITUTO ESTADUAL DE FLORESTA Há evidências que contradizem a versão de Cristiano, segundo a qual não existe conflito fundiário na praia. Dona Dica, que resiste até hoje, passava com seu facão pela trilha, abrindo caminho como de costume, quando foi surpreendida pelo caseiro da família Tannus. Uma velhinha corcunda de pouco mais de um metro de altura foi então ameaçada com uma arma e obrigada a Seu Altamiro e sua família são os últimos resistentes

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nistrativa, baseado em fortes indícios de que os seus agentes operaram com “escopo pessoal”. — Não há dúvida de que foi uma ordem — diz Alba Simon, diretora de Conservação da Natureza do IEF, que está no cargo desde que Carlos Minc assumiu a Secretaria do Ambiente no início de 2007. Na época do incidente dos ranchos, Alba estava engajada no recolhimento de assinaturas a serem encaminhadas ao MP. Hoje, do outro lado da mesa, ela sofre com os problemas de quem “virou governo”: — Nós não temos fôlego, o dinheiro é curto e são 27 unidades para gerenciar, contando as que a Feema acabou de nos repassar. E as lambanças do último governo ainda estão sendo corrigidas. A sede do órgão em Paraty-Mirim, que foi construída sobre um sítio arqueológico, já tem ordem judicial para ser demolida. No entanto, efetivamente, pouca coisa mudou nas terras que durante a ditadura chegaram a ser indicadas para o início da reforma agrária. Ainda que Minc, o autor da lei estadual de 1995 que assegura às po-


pulações nativas residentes há mais de 50 anos em unidades de conservação o direito real de uso das áreas ocupadas, seja hoje também o responsável pela política ambiental do estado, a Praia Grande está cada vez mais vazia. A ineficiência e a falta de um diálogo unificado no órgão contribuem para o acirramento de conflitos como o da Reserva da Juatinga. A unidade criada por decreto em 2002 foi uma tentativa de conter a ferocidade do turismo, superpondo-se à Apa Cairuçu, que abrange uma área bem maior, de uso menos restritivo — permite, inclusive, edificações. A superposição com uma área administrada pelo Ibama também traz desentendimentos nos planos de ação. — Num lugar onde nada pode, tudo pode e sem regras ficamos sempre na mão de algum oráculo de plantão — alega Flávia Oliveira.

“ACHO QUE AS PESSOAS ESTÃO ESPERANDO UMA DOROTH STANG” A possibilidade de recategorização da reserva para uma das novas unidades previstas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o SNUC, decreto federal de 2000, parecia dar nova luz à situação, mas por enquanto só tem evidenciado a complexidade de interesses na área. O recente termo de referência feito pelo biólogo Paulo Nogara, que seria usado como base para o início do processo, foi sustado na Câmara de Compensações do Estado. Segundo Alba Simon, o processo foi interrompido porque o IEF recebeu do Instituto de Terras do Rio de Janeiro (Iterj) um “presente de grego”: as terras de Paraty-Mirim, sem a reserva indígena. — Queremos incluir essa área na recategorização, fazer tudo de uma só vez — argumenta. No entanto, a falta de consenso dentro do órgão é evidente. Enquanto na cidade do Rio, Alba fala na possibilidade de um parque ser implementado na área, em Paraty, René Wollmann o chefe da Reserva Ecológica da Juatinga, descarta a idéia: — Como controlar as milhões de entradas por esse mar sem fim — questiona. Alba diz que a questão da Juatinga é prioridade, mas para André Ilha, presidente do IEF ela “deveria ser prioridade”. — Acho que as pessoas estão esperando uma Doroth Stang — diz Flávia Oliveira. —Não é possível que depois de tanto sofrimento e de tan-

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ta criança descascando camarão em Paraty a Juatinga não seja prioridade — indigna-se. Yara Valverde, que presidiu o IEF por apenas oito meses no governo Minc concorda: — Na minha gestão captamos recursos através do banco alemão KFW, não tem mais por que esperar — defende. Há boatos de que sua saída do órgão tenha sido motivada por sua determinação em atuar com mais rapidez no processo da Juatinga. Sérgio Godoy, diretor de Meio Ambiente de Paraty e apontado pelos caiçaras como amigo da família Tannus, ataca os forasteiros: — Enquanto esse pessoal que nunca morou aqui ganha as fotos, nós ganhamos ônus. Serginho, como é mais conhecido, trabalhou para a família montando um empreendimento de maricultura na Praia Grande. — Ele quebrava o gelo com os caiçaras para mim — alega Cristiano. O nome de Sérgio Godoy aparece, inclusive, em contratos de compra e venda na Praia Grande, como quando assinou a rogo de seu Elisiário, analfabeto, e concretizou a sua ida para o Pantanal. — Nós agora estamos estudando com a Uerj a possibilidade da Juatinga ser um parque municipal, o IEF devia agradecer tudo que já fizemos aqui — diz Serginho. Alba desdenha: — A Prefeitura não nos preocupa, eles primeiro precisam sair da prisão. O secretário de Meio Ambiente, Marcos Antônio de Paula, agora em liberdade, foi um dos mais de 30 funcionários públicos presos em Paraty e em Angra dos Reis na Operação Cartas Marcadas da Polícia Federal, que investigou esquemas de lavagem de dinheiro e licitações am-

bientais fraudulentas na Costa Verde. Vítimas dos interesses pessoais de políticos e das idas e vindas de aliados no Iterj, os caiçaras acreditam que a esperança concreta parece vir da esfera federal. O decreto 6040 de fevereiro de 2007 institui a política nacional das populações tradicionais, reafirmando valores não só de caiçaras, mas de outros grupos com forte tradição oral e dependência da natureza, como os ribeirinhos, babaçueiros e quilombolas. A política é mais uma salvaguarda na defesa de seus territórios. Já para os caiçaras da Juatinga, um laudo do Ibama de Paraty realizado recentemente e ainda não divulgado aparece como uma arma específica de pressão política e judicial. Duas funcionárias do órgão esmiuçaram o processo de êxodo rural dos caiçaras da Praia Grande da Cajaíba, fotografando e contando a história de cada uma das casas derrubadas. O resultado é uma bomba: além da volta imediata das famílias de caiçaras para a praia, o laudo indica que a casa dos Tannus está construída a menos de dez metros do leito do rio, em discordância com o código florestal de 1965, e, por isso, deve ser demolida. O destino dos caiçaras vai sendo, enquan-

to isso, discutido longe deles. A opção do turismo como fonte de renda principal ganhou status de consenso. — Na Europa privilegiam o camping — conta Flávia. — Não sei por que aqui acham que o caiçara fica menos caiçara ao explorar esse turismo de baixo impacto, o que não polui deve ser bangalô né? — provoca. Cristiano, que é contra o camping, vê no aproveitamento das atividades dos caiçaras a solução financeira dos pescadores: — Quando eles forem ao mar podem se organizar e levar gente pra ver — sugere. Luís Perequê, músico e poeta, dono do Silo Cultural — entidade escolhida agora em novembro como intermediária oficial entre município e Ministério do Turismo — critica a proposta. — O que querem é a prostituição do caiçara — detona. — Querem transformar todas as manifestações culturais em produto cultural. Não dá pro caiçara ir à pesca com mais cinco turistas na canoa. Quem propõe isso devia oferecer a mesa de jantar pra um bando de turistas desconhecidos, isso sim. Aliado a grupos de extensão universitários e à Verde Cidadania, Perequê alerta que as manifestações culturais têm diminuído de forma vertiginosa na Juatinga. No encontro de cultura caiçara realizado em outubro pela Secretaria de Turismo, não havia na programação nenhum grupo da Juatinga. — O acesso a eles é muito difícil — justificou o prefeito. O Dia do Caiçara, agora lei municipal, não dobrou ainda a curva do centro histórico. Importantes mesmo, como lembraram os ex-moradores da Praia Grande, eram os dias das festas do Divino, com pandeiros, cavaquinhos e tambor, numa comemoração que chegava a uma semana. Muita dança era feita com os tamancos de caixeta batendo nas tábuas, onde se cantava e se comia em volta das fogueiras. Reunidos no Silo para assistir ao filme “Lá e cá”, que conta um pouco de suas vidas, eles ouviram seu Altamiro reclamar: — A gente sente falta de vocês na praia, está muito triste não ter mais com quem conversar, estamos de braços abertos esperando vocês. π

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série: URUBUCAMELÔ

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história: FERNANDO GERHEIM arte: JOSÉ AGUIAR

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CABARÉ DE FAMÍLIA texto: VANESCA SOARES ilustrações: RADIOGRÁFICO texto: DENISE LOPES

A história do Cine Íris tem semelhanças com a de outro centro de diversões: o Moulin Rouge

Em

6 de outubro de 1889 nascia na França um recanto de diversão e prazer total. Foi durante o período da História conhecido como Belle Époque, quando o país fervilhava em novidades tecnológicas e artísticas. A força da classe trabalhadora também começava a emergir e era comum ver a aristocracia se misturar a ela nos cafés, prostíbulos e casas de shows. Paris exportava cultura e ditava moda. Neste momento especial, Joseph Oller e Charles Zidler abriram as portas do seu Moulin Rouge. Em pouco tempo, o cabaré se tornou referência em diversão, liberdade de expressão e da vontade de viver plenamente. Ele funciona até hoje em Montmartre, bairro conhecido na época pela prostituição e boemia.

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O Brasil também era um grande consumidor da produção cultural de Paris. Tinha acabado de abolir a escravidão e já não era mais um monarquia. O clima parisiense reinava no país. As construções seguiam o estilo art nouveau, com curvas sinuosas, uso de vidro e metal e o “exagero” nas formas ao invés da simplicidade. No auge da Belle Epoque, em 1909, João da Cruz Júnior, empresário ligado ao ramo de cinema, inaugurou o Cinematógrapho Soberano, atual CineTeatro Íris. O empreendimento foi o segundo construído no Brasil para abrigar exibições de filmes e é o mais velho em funcionamento no Rio de Janeiro. O que o senhor João da Cruz não imaginava é que o seu Cine Soberano se tornaria anos depois um templo do hedonismo, como fora o Moulin Rouge do pintor Toulouse-Lautrec. O Cine Íris fica no Centro do Rio, na Carioca, 51. Quase centenário, presenciou as mudanças ocorridas no coração de um dos grandes centros comerciais e empresariais da cidade e a correria do seu dia-a-dia. Como vizinha, está a Praça Tiradentes, endereço de teatros célebres — o João Caetano, por exemplo —, e conhecida pela vida boêmia e pela prostituição. O Cine Íris é um negócio de família. Em um país onde as salas de exibição de rua estão sendo fechadas ou simplesmente vendidas, os descendentes do empresário João da Cruz Júnior ainda são os sócios do empreendimento. À frente da administração desde 2001 está o engenheiro Raul Pimenta, seu bisneto. Este trabalha na casa há 30 anos e por experiência conhece todos os seus mecanismos e meandros. A falta de uma formação acadêmica em administração não o preocupa. — Dizem que está no sangue, né?

O fato é que mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, o negócio continua. O Cine Íris é conhecido no Rio de Janeiro por abrigar eventos diversos. Durante o dia, é um cinema pornô. Nos fins de semana, seu prédio histórico, tombado pelo patrimônio cultural, vira casa de festas. O público é bem eclético, composto desde peões de obra até executivos, estudantes universitários, músicos e apreciadores de arte em geral. Assim como acontecia no Moulin Rouge, uma mistura democrática une classe trabalhadora, artistas e aristocracia. Durante muitos anos, o Cine Íris foi conhecido apenas como um local de exibição de filmes pornô. Raul conta que esta atividade ainda hoje é a mais lucrativa. — Se o cinema hoje em dia está funcionando, e está bem conservado como está, na medida do possível, é por causa do pornô. Senão a gente já estaria fechado. Os filmes são exibidos em sessões que vão das 10h às 21:30h. Para entrar, o visitante precisa pagar R$ 8 — são 300 espectadores por dia. Nos intervalos entre um filme e outro, há o esperado

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show de strip-tease. Ele é feito por sete moças que trabalham há algum tempo na casa. Mas de acordo com Raul, elas apenas fazem o seu show e acabou. Não existe contato algum com o público. O servidor público Tom*, de 25 anos, freqüenta o local há muito tempo. — A primeira vez que fui, foi por curiosidade. Achei legal e peguei o costume de às vezes ir — conta. Ele confessa que o que o leva até o Cine Íris durante as sessões pornôs é o strip-tease: — Ver mulheres bonitas dançando vários tipos de música é o que me faz ainda ir. Tem sessões de filme pornô lá também, mas não me interesso por isso. O cine pornô é freqüentado, em geral, por quem está andando no Centro da cidade, tem um tempinho e acaba entrando para momentos de diversão. São advogados, estudantes, militares, aposentados, garçons etc. Não tem preconceito. E há heterossexuais, homossexuais, bissexuais... Quem, enfim, estiver por ali. Mas o cinema também serve de base para uma galera que quer explorar ao máximo o clima erótico do local. Muitos marcam encontros mais ousados ou experimentam se deixar levar pelo prazer puro e sem compromisso. Rondam por aí várias histórias sobre o que acontece por lá nestes momentos. Quem sabe tudo não passa de um exagero, uma lenda urbana? Mas a verdade é que existem até comunidades em sites de relacionamento que mencionam o Cine Íris como um local onde aqueles que procuram, encontram prazer sexual sem li-

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mites e a realização de fetiches. A mesma liberdade e erotismo que influenciava o cabaré francês. David 2*, de 25 anos, é um desses freqüentadores que buscam realizar suas fantasias nas sessões de filmes pornô. O programador vai a casa há quatro anos e diz que o que ainda o leva até lá é a “pegação”: — Antigamente eram os homens. Hoje curto assistir os outros se pegando. Vou pelo prazer de olhar. Gosto de ver as pessoas transando. Do strip-tease não gosta tanto. David sugere inclusive que sejam exibidos também filmes gays e que haja strippers homens. Mas Raul diz que, embora viva do cine pornô, não é isso que a família quer do espaço para sempre. Se houvesse algum tipo de parceria para transformá-lo num centro cultural ou numa casa de shows, a família toparia sem demora: — A gente não quer ficar no cinema pornô. A gente está no cinema pornô porque não tem outra opção. O prédio já foi utilizado, por exemplo, por produções do cinema nacional e por telenovelas da TV Globo — como “Madame Satã” e “Senhora do destino”, respectivamente. Tudo por causa do estado de conservação. — A família tem muito carinho pelo prédio — diz Raul Pimenta. E ela quer conservá-lo como idealizado por João da Cruz Júnior. Assim como outros cinemas de rua do Rio de Janeiro, o Cine Íris também foi cobiçado por evangélicos que queriam comprá-lo para transformá-lo em templo. Seria até irônico se isso acontecesse. A oferta para a compra, segundo Raul, era muito boa. Mas a família preferiu não vender. — Não para igreja, né? Colocar um patrimônio desses na mão de uma igreja? — afirma, categórico. A família Cruz entende que, se for assim, é melhor continuar como cinema pornô. Ela quer que o Íris permaneça no ramo da diversão. E toca o barco com a renda das sessões. Em 1998, houve uma grande mudança na direção da casa. Além

da exibição de filmes pornô, o prédio começou a ser alugado para festas. O primeiro a ter esta visão da utilização do espaço foi o Grupo Matriz, que começou a realizar a festa Loud! no cinema. A idéia de atingir assim o público jovem, universitário em sua maioria, veio do irmão de Raul, Luís Roberto Cruz Pimenta, já falecido. Raul lembra que no começo eles ficaram receosos de abrir o espaço para esse tipo de evento. Temiam que a fama do cinema pornô espantasse aqueles que usariam o espaço durante a noite. Mas não foi o que aconteceu. A Loud! trouxe um grande público. Universitários, músicos, malucos, patricinhas, artistas, hippies, rappers, eletrônicos, bandas nacionais e estrangeiras etc. É verdade que logo no princípio havia uma certa estranheza ao se dizer que estava indo para uma festa num cinema pornô. Mas o público-alvo do evento não estava nem aí e este foi até mais um atrativo da mítica da festa. A Loud! chegou a receber 1.400 pessoas por noite. As filas davam voltas no quarteirão. O evento foi crescendo, crescendo, e a freqüência no calendário chegou a se modificar diversas vezes, com Louds acontecendo em curtos espaços de tempo. Com o sucesso, outras festas começaram a ser feitas no Cine Íris, como a DDK, a Biolorgia e a Festa do Baco. A Loud! já não é realizada no Cine Íris há tempos. E, provavelmente, as outras também deixarão o espaço em breve. Isso acontece porque as festas crescem e precisam de locais maiores para abrigar o seu público. A Loud!, no entanto, não aparece há tempos na agenda da noite carioca. Mas ainda é lembrada pelos seus fãs. Segundo eles, as melhores edições aconteceram no Cine Íris. Citando novamente os sites de relacionamento, também há comunidades da festa onde o público comenta o assunto. Bernardo Poças, 24 anos, historiador e técnico de operações, é um deles.

— Tentou-se fazer as festas em outros locais, a maioria pertencentes ao Grupo Matriz, só que por não ter a mesma estrutura do Cine Iris, a festa não era igual. Muitos destes locais tinham um ambiente só, não tinha nada a ver — analisa. Sobre o Cine Íris em si, ele ressalta: — Era possível ter festas e shows ao mesmo tempo, se deslocar entre vários ambientes e, se por um acaso você se cansasse, sentava na poltrona do cinema ou assistia o sol nascer no terraço. Raul acredita que o Cine Íris serviu como uma espécie de pioneiro na revitalização da noite do Centro do Rio de Janeiro. Desde que se começou a utilizar o prédio para festas, outros espaços foram sendo inaugurados, graças ao aumento de pessoas circulando na região em busca de diversão. A Lapa, inclusive, começou a mostrar sua força novamente. E todos os tipos de público estão sendo beneficiados com esta mudança. Hoje, o Cine Íris não possui perspectivas de crescimento e espera apoio para novas festas e o que mais aparecer. Desde que a Loud! deixou de ser realizada ali, a freqüência vem caindo. Menos a do cine pornô. Esta pode ser apenas uma fase, como o próprio Moulin Rouge já passou algumas vezes. Hoje, ele é uma das atrações turísticas da França. Para o Cine Íris, só o futuro dirá. Obviamente que os dois espaços têm diferenças. O Cine Íris não tem o glamour do cabaré francês. Também não tem projetos e festas próprias. Mas este momento de queda na freqüência pode ser o impulso para novos tempos. Depende apenas de investimentos para manter um patrimônio destes em pé. É o que a família Cruz mais deseja. π

“A gente não quer ficar no cinema pornô. A gente está no cinema pornô porque não tem outra opção”

*Os nomes dos personagens foram trocados.

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RIO DE JANEIRO,

SEM TÍTULO

fotos e texto: LEO AVERSA

Em Ipanema, ali no Posto 9, existe uma das praias mais famosas do Brasil. É simbolo de muita coisa, para muita gente, tanta que perdi a conta. Está nos livros, nos jornais, nas revistas, nos filmes. Freqüentada por gente também famosa, feliz, descolada. Lá só vejo areia. Na praia do Pepê estão as pessoas bonitas, dizem. Todos são lindos. A praia, então, também é linda. Passo lá e, para mim, areia. A de Copacabana é um cartão postal. Milhares de turistas só para visitá-la, pisar nela. No fim do ano são milhões. Areia. O Corcovado também é maravilha do mundo. As pessoas, no avião, suspiram ao vê-lo. Ficam cantarolando músicas do Tom Jobim. O alto-falante também. Para mim, é uma pedra. O Pão de Açúcar é lindo nas fotografias, nos cartazes, nos folhetos. Tem bondinho e, do alto, tudo é deslumbrante. Se vê a praia de Copacabana. E o Corcovado. E eu, míope, continuo vendo somente pedra. O morro Dois Irmãos. Dá pra ver de dia e de noite, iluminado. Aos meus olhos é muito parecido com o Pão de Açúcar, tudo pedra. Morar perto da Lagoa custa caro, todos querem a vista, que não é mais que água. No Leblon tem um canal, famoso, aparece em novela. O canal, mesmo pela televisão, é de água. A Baía de Guanabara tem mais de meio milhão de citações no Google. Todas têm algo a dizer. Eu queria ouvir, mas, quase cego, só vejo. Água. Rio de Janeiro. Pedra, água e areia. É só.

Aversa 1 Praia de Copacabana, em frente ao Copacabana Palace

fotos e texto: LEO AVERSA*

* Leo Aversa é representado pela Galeria Tempo

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Aversa 2 Praia de Ipanema, no Posto 9

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Aversa 3 Praia da Barra, em frente ao Pepê

Aversa 5 Corcovado

Aversa 4 Pão de Açúcar

Aversa 6 Morro dois irmãos

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quadrinhos: MARCELLO QUINTANILHA

Aversa 7 Lagoa Rodrigo de Freitas

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Aversa 8 Baia de Guanabara

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folhetim

As aventuras de um Zé Pereira texto: ADRIANA LISBOA ilustração: OLIVIA FERREIRA

—A

mão esquerda de Cláudia, a aliança de ouro no dedo anular, o forte que era aquele Zé baixando, fraco, na cadeira. Pipa avoada no ar parado, descendo, descendo, sem outro remédio que não fosse, como sempre, grudar-se ao chão daquela mulher. Se durante tanto tempo havia sido assim, por que seria diferente agora? Questão de leis da física. Gravidade. Atração dos corpos. Desde a noite dos tempos era assim, e nas noites do apartamento em Copacabana também. Antes, sobre a mesa, ele tinha notado um copo só: o dela. Em todos os dicionários de sinônimos visuais do mundo, aquela unidade equivalia a uma outra, muito óbvia, muito lógica. Cláudia estava sozinha. Mas apenas circunstancialmente sozinha, como ele agora via, com a chegada do Marcelinho e seu beijinho no cantinho do lábio dela. Mulheres como Cláudia sempre têm alguém, essa é a verdade, com ou sem aliança de ouro, e mesmo quando estão no Capela numa noite de sexta-feira, bebendo, sozinhas. De longe, Cícero o decretou, com o olhar, perdido. Marcelinho não se sentou. Saiu pelo Capela cumprimentando os garçons, parou na mesa de alguém a caminho do banheiro. O homem no diminutivo era a popularidade encarnada. Não precisava sequer sentir ciúmes de sua morena-loura bebendo em companhia de outro homem. Provavelmente era impensável que qualquer outro tivesse condições de substituí-lo no coração de Cláudia, pensou Zé. — Você está bem, Zé — ela disse, e ele chegou a abrir a boca para responder, mas percebeu a tempo que ela não tinha perguntado nada. Não havia uma interrogação na frase, ela não queria saber se ele estava bem, ela apenas decretava, afirmava, informava que ele estava bem. Essa era a Cláudia. — Você também — ele disse, e no conjunto das verdades e meias-verdades que compartilhara com ela ao longo de dois anos, nenhuma tinha sido tão verdadeira. Ela estava ainda mais merecedora do aperto no peito do sujeito-homem Zé do que naquele dia já distante (no tempo, não tanto na memória) em que trocava beijos dentro do Fiat Uno vermelho. O salva-vidas era só mais um daqueles garotos da praia, com mare-

cap. 4:

O ANEL

sia dentro da cabeça, como é que Cláudia pôde descer tão baixo, ele se perguntou mais uma vez, em silêncio. Olhava para ela, para a santíssima trindade de seu queixo e seus seios no decote, e no meio do caminho o pescoço liso e sempre fresco, sempre. Olhava para a aliança no dedo, aliança de casamento, olhava para o chope diante do seu, no copo suado. Será que a aliança era a prova da capitulação definitiva de Cláudia ao Marcelinho? Será que o Marcelinho era salva-vidas? Zé Pereira disfarçou um olhar na direção do sujeitinho-homem. Bem vestido. Talvez tivesse dinheiro. Será que era jornalista? E daria à Cláudia apartamento grande, empregada, filhos, cartões de crédito? As fantasias passavam pela cabeça de Zé em flashes carnavalescos, em alas da Portela. Enredo: Os ciúmes do sujeito-homem Antônio José Pereira da Silva. Enquanto Marcelinho passeava sua popularidade pelo Capela, Cláudia e Zé trocaram umas frases simpáticas. Peguntaram um pela vida do outro. O que andavam fazendo. Trabalho. Irmãos de uma, sobrinhas do outro. Mais uma vez, Zé percebeu que tinha chegado ao último gole do chope. No silêncio do copo vazio, ele tomou coragem, pigarreou. E disse, olhando para Cláudia em cheio: — Percebi a aliança no seu dedo. Ela sorriu com todos os seus dentes, todos eles, abaixando os olhos para a mesa. — Presta atenção na minha aliança, Zé. Ela aproximou a mão. Humilhação, ele pensou. Como se não bastasse o salva-vidas, agora ela precisava exibir aquele naco de ouro amarelo diante dos olhos dele, a prova de que Zé Pereira era um sujeito-homem do passado. — Presta bem atenção, Zé. Não está se lembrando? Aí, então, com a autorização dela, ele se lembrou. Abriu a boca sem palavras, nem o número 33 veio em seu socorro – nada. Ele procurou o copo sem bebida. — Você não tem mesmo jeito — Cláudia disse. - Já tinha esquecido, não é? - e ela girou a mão esquerda no ar, para um lado, para o outro. - Este anel foi você quem me deu, Zé.

CONTINUA

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ilustre desconhecida*

o bumbo do zé

por EDUARDO SOUZA LIMA

Maria Madeira é bonequeira e pesquisadora de cultura popular, nasceu em Petrópolis e foi criada em Niterói, mora em Barcelona, é formada em um monte de coisas e não queria crescer.

FEBEAPÁ 2007 O ano de 2007 terminou com a notícia de que Glória Maria vai dar um tempo. A jornalista que ensinou aos espectadores do “Fantástico” que os legionários romanos usavam sapatos de bronze vai ficar de fora do Festival de Besteiras que Assolam o País (© Sérgio Porto) nos próximos dois anos. Por isso, decidimos que ela, a reportagem da “Veja” que chamou o Che Guevara de bobo, feio e fedorento e o Cesar Maia são hors concours — se o prefeito estivesse na parada não tinha pra ninguém. Com isso, o maior destaque de 2007 é o novelista da Globo Aguinaldo Silva que, em sua ânsia em arrumar um bode expiatório para o fracasso de “Duas caras”, abusou de escrever bobagens em seu blog — tipo chamar os cubanos de vagabundos. Segue a nossa lista, feita com a ajuda dos leitores do site da Zé Pereira:

O QUE QUERIA SER QUANDO CRESCER?

E NO QUE ISSO DEU? Eu fiz História na UERJ e Teatro na Faculdade da Cidade. Depois fiz pós-graduação em Antropologia Cultural e mestrado de Antropologia e Comunicação Audiovisual na Universidade de Barcelona. Mas eu me considero uma pesquisadora de cultura popular. COMO VIROU BONEQUEIRA? Foi por acaso. Quando ainda estudava História pintou uma bolsa para pesquisa com mulheres idosas em asilos do Rio e o meu trabalho com ela foi com teatro de bonecos, o mamulengo. Só que eu não entendia nada sobre isso naquela época. Quando a minha orientadora viu os primeiros bonecos que confeccionei ela me disse: “Maria, você não entende nada de mamulengo”. Eu fui desmascarada, mas hoje melhorei muito.

FOI O MAMULENGO TE LEVOU A PERNAMBUCO? Ninguém me queria como professora de História, só como arte-educadora. Eu me enchi disso, e em 1996, fui para Pernambuco pra mudar de ares. Deixei o meu currículo no Museu do Mamulengo de Olinda e acabou que me contrataram como arte-educadora. Até que durante o Festival de Évora, em Portugal a diretora do museu teve uma trombose e eu tive que assumir no lugar dela. Fui diretora por menos de um mês. Eu era uma perdida, só fui me achar em Pernambuco. Depois, o MST me chamou para dar uma oficina para os educadores do movimento. Fui morar no sertão, acabei virando assistente social do assentamento Catalunia. Foi a primeira Catalunha da minha vida. E A SEGUNDA? Fui me apresentar num festival em Belo Horizonte e conheci o Jordi Bertran, que é considerado um dos maiores marioneteiros do mundo. Fui trabalhar na companhia dele, em Barcelona. Em 2005, fundei lá a minha própria companhia, a Bonecos de Madeira, e este ano estréio o meu sexto espetáculo.

* inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.

Acho que nada. Quando era criança eu gostava de brincar de boneca de papel. Não achava que nada que eu gostava de fazer podia virar uma profissão. Mas, na verdade, eu acho que nunca quis crescer.

“McCarthy estava certo”, Diogo Mainardi, fazendo apologia da deduragem. Passaram a mão na bunda desse cara no recreio. Só pode ser. “Fico quase repugnado, irritado mesmo, quando vejo alguém consumindo maconha, porque o cara está bancando o tráfico, não adianta dizer que não está”, Fernando Meirelles. O diretor de “Cidade de Deus” e de “Cegueira” é dono de agência de publicidade desde os anos 80 e trabalha em cinema e TV. Ou ele só trabalha irritado ou é hipócrita — ou acha que cocaína, tudo bem. “Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade”, Luciano Huck. O apresentador da Globo também doou 60 exemplares de seu primeiro livro, “Na terra no céu no mar – Viagens de aventura no ‘Caldeirão do Huck’”, para o AfroReggae. Ah, e fez campanha para poder entrar na Majórica de havaianas. “Mas por mais sangrenta que fosse a ditadura, as aflições que então sofríamos por causa disso não tinham tanto peso quanto têm as aflições de hoje, quando somos supostamente livres. É que na época os militares até podiam impor arbitrariamente sua vontade. Mas pelo menos não eram fundamentalistas, não achavam que tinham a missão divina de reorganizar e assim salvar o mundo”, Aguinaldo Silva. Para o novelista, por sadismo ou por dinheiro pode baixar o cassete à vontade. “Sim, Luciano Huck faz parte da ‘elite branca’, e sob nenhuma hipótese deve se envergonhar disso. Ele faz parte dela porque trabalha de sol a sol, e paga altíssimos impostos, sem os quais a ‘elite preta’, não

muito chegada ao trabalho, não estaria recebendo as benesses do bolsa família”, Aguinaldo Silva. Para ele o Brasil é o país das oportunidades. “Trabalhar que é bom, nem se pode dizer que os cubanos trabalham, já que nada produzem. (...) Pois muito bem: ao longo de suas vidas vocês já compraram tênis ‘made in Malasya’, coisas produzidas nas Filipinas, em Singapura, no Ceilão, etc., etc., etc.. Alguém aí, alguma vez na vida, conseguiu achar em alguma vitrine sequer um grampo de cabelo que fosse ‘made in Cuba’?”, Aguinaldo Silva, neoliberal que acredita que o sistema econômico ideal para o Brasil é o chinês e que desconhece que o Ceilão se chama Sri Lanka desde 1972. “O Brasil tem uma dívida histórica com os militares”, Lula. É verdade, presidente. A rapaziada caia árvore que é uma beleza. “Um tiro em Copacabana é uma coisa, na Coréia é outra coisa”, José Mariano Beltrame, secretário cuja política de Segurança Pública é inspirada no filme “Tropa de elite”. “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”, Sergio Cabral Filho lembrando, num ato falho, os tempos de PSDB. “Quanto mais variadas forem as fontes de recursos que sustentam um jornal, uma revista, um portal de internet ou uma emissora de rádio e televisão, mais livres e independentes serão esses veículos”, Ali Kamel. Para o diretor de jornalismo da Globo, liberdade de expressão é defender os interesses da clientela. “Do ponto de vista de quem está recebendo o Bolsa Família, a questão da moralidade política vem em segundo lugar. Para quem vive em um mundo de necessidades, moralidade é luxo”, José Murilo de Carvalho, historiador. Como diria o colunista Ancelmo Góis, que aplaudiu a frase, um sujeito desses lá na minha terra é chamado de... deixa pra lá. “Se o Piauí não existisse, ninguém ficaria chateado”, Paulo Zolotto, presidente de inclinação bôer da Philips no Brasil e na América Latina. “Cansei”, um bando de babacas. “Pobre quando chega lá em cima pensa que é outra coisa”. Fernando Henrique Cardoso, deixando a máscara cair.

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humor

“LOVE OF GOLD”

ARNALDO BRANCO

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Em

tese são a inércia e a gravidade que fazem o mundo girar, mas vocês sabem o que é na verdade: o amor. “O amor pelo ouro”, completa o Gene Hackman naquele filme do David Mamet. Hoje compreendo isso, mas nem sempre foi assim. Lembro que quando era adolescente duvidava que alguém realmente casasse por dinheiro. Talvez fossem só os hormônios trabalhando em excesso, mas acreditava que dinheiro e tudo mais que havia no mundo eram só pretextos e estrategemas para chegar até a recompensa por todas aulas de trigonometria que fui obrigado a assistir: SEXO. Que alguém abrisse mão da satisfação sexual por grana não fazia o menor sentido pra mim, que era um ingênuo e, claro, virgem, mas a verdade é que ainda acho difícil de acreditar. O que diz muito a respeito da minha escala de valores e explica porque ainda sou pobre. Também fui metaleiro quando adolescente, e naquela época essa história de não se vender era um caso sério; um dos slogans do — ahn — movimento era “morte aos falsos”, embora não me lembre muito bem como era mesmo um metaleiro de verdade. Imaginava que esse papo de vendido estava tão velho como a defesa do celibato enquanto método contraceptivo, mas a internet está aí para mostrar que velhos hábitos não morrem de resfriado. Conheço, e só de ouvir falar, poucas pessoas que podem se declarar realmente independentes (por hierarquia, financeiramente, etc), sendo que contra algumas delas existem processos penais que questionam a retidão de suas trajetórias até a independência. E duvido que elas sejam as mesmas que escrevem em blogs ou comentários de blogs que tal fulano “se vendeu”. Essa patrulha da pureza um tanto incoerente e tardia lembra a minha adolescência. Ou seja, quando vier alguém pro seu lado com esse discurso, pode ter certeza: o carinha ainda não amadureceu sexualmente.


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