Patifaria e Chumbregâncias

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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS

Ano V - Número 16 - Revista trimestral ISSN 2318-3632

Porto Alegre - dezembro de 2016

Travessa em Três Tempos

Ano V - Número 16


TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano V - Número 16 Periodicidade trimestral ISSN 2318-3632 Editores: André Luiz Costa Davi Boaventura Taiane Maria Bonita Revisão: Leonardo Wittmann Taiane Maria Bonita Projeto gráfico e diagramação: Caroline Joanello

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Índice

Apresentação 4 Documento 5 Ata que estabeleceu os procedimentos para castração de Manoel Duda - Gustavo Czekster

6

Malefício - André Luiz Costa

14

Um causo de três causas - Annie Piagetti Müller

23

Arquivos, cartas e chumbregâncias - Taiane Maria Bonita 30 Impotencial - Celso Alves 39 Sobre golpes e cabritos - Alexandra Lopes da Cunha 45

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E nada mais foi dito - Alexandre Rodrigues

48

Yo soy Francisco Marchante - María Elena Morán

56

Depois que aquilo aconteceu - Camila Maccari

63

Moça da limpeza - Ciro Nogueira de Oliveira

70

Looping - Ana Cláudia Martins

78

Contrato de Serviço - Davi Boaventura

87

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Apresentação

Aquela rua de mão única do andarilho de Benjamin dobrou a esquina e caiu na travessa onde a possibilidade da experiência se alarga na linguagem e os sentidos se confundem no tempo e por vezes fogem dele. A revista Travessa em Três Tempos já foi muitas coisas nos seus cinco anos de existência, de brincadeira entre amigos, projeto independente, a projeto de extensão vinculado à Universidade. Agora é tempo de recomeço. Das chumbregâncias cometidas pelo cabra Manoel Duda nasceu, em 2010, uma revista histórico-literária que tinha como objetivo discutir o estatuto de verdade conferido a documentos a serem usados como fonte pelos historiadores em formação. Literatura e História postas num diálogo no qual a narrativa ficcional seria o fio condutor. Passados seis anos daquele primeiro número retornamos às patifarias & chumbregâncias que levaram à capadura do sergipano para nos repensar enquanto revista. Este número é, portanto, uma releitura de nossa primeira edição. A Travessa em Três Tempos se tornou um espaço para estimular a produção literária de jovens escritores, ou amantes da Escrita Criativa. Do projeto original ficou apenas a escolha de um tema que sirva como guia para cada edição. Cada autor aqui publicado teve e tem total liberdade para deixar fluir sua criatividade e mostrar seu olhar sobre o tema. Alguns dos contos desta edição se aproximam da sentença emitida pelo Juiz Manoel Fernandes dos Santos e outros se afastam; alguns nos remetem a 1833, outros são tão contemporâneos quanto eu ou você. A única coisa unânime é o desafio que fica ao leitor de chegar ao final destas páginas sem sentir um arrepio em suas encomendas. Porto Alegre, 30 de dezembro de 2016. A Comissão Editorial Porto Alegre - dezembro de 2016

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Província de Sergipe SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias. O adjunto de promotor público representa contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de mato, saiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova. Considero: Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana; Que o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; Que Manoel Duda é um sujetio perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhã está metendo medo até nos homens. Condeno: O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro. Cumpra-se e apreguem-se editais nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca Manoel Fernandes dos Santos. Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe, 15 de Outubro de 1833. Fonte [até onde se tem conhecimento]: Instituto Histórico Geográfico de Alagoas.

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Gustavo Czekster

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Ata que estabeleceu os procedimentos para castração de Manoel Duda Gustavo Czekster Tendo em vista os recentes fatos ocorridos nesta Comarca, envolvendo condutas libidinosas e violentas praticadas por homens que não conseguem controlar as suas vontades dentro das calças, submetendo-as diante de moças inocentes e enfiando-as em carnes alheias, o Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito Manoel Fernandes dos Santos, em conjunto com o carcereiro, senhor Olismar, com o representante da Igreja, padre Antônio Moraes, com o Excelentíssimo Prefeito da cidade, senhor Santo Horácio, com a representante das mulheres, dona Maria Cândida, e tendo a mim, Florêncio Soares, como escriba responsável pela presente ata, assim disciplinou a forma através da qual doravante ocorrerá a punição de tais casos lamentáveis que andam chocando a pacata comunidade de Vila de Porto da Folha Sergipe. Para efeitos dessa reunião, o MM. Juiz definiu que o único castigo justo para quem abusa das boas moças de nossa comunidade é a castração, assim entendida como “o ato através do qual se arranca à força o membro do dito cujo que tentou usá-lo”. Afirmou a sabedoria da Lei de Talião, que estabelece que o homem que ferir alguém com uma parte do seu corpo, deverá ser alijado da mesma. O senhor Prefeito sugeriu castração como “o ato através do qual se arranca à força o membro, as bolas e as lateralidades do dito cujo que tentou usá-lo”. Discutiu-se se a palavra “membro” inclui “bolas e lateralidades” ou é só “membro”. A seguir, discutiu-se se a palavra “membro” é correta para designar dito órgão, ou se não existe alguma mais específica. O senhor Olismar, perito na arte de castrar animais e homens, disse que arranca tudo, membro, Porto Alegre - dezembro de 2016

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bolas, lateralidades, pele, sangue, e nunca ninguém voltou a usar a mencionada área para agredir mulheres, então, o nome seria irrelevante. Dona Maria Cândida perguntou se o correto não seria “esmagar” ou “triturar” o membro, pois “arrancar” pressupõe um puxão forte, e nem sempre seria eficaz. O senhor padre afirmou que “tentou usá-lo” era uma expressão duvidosa, pois não se usa o membro somente para conjunção carnal, também para outras finalidades. Longa discussão entre os presentes. Dúvidas gramaticais sobre o tema. A discussão foi adiada até que se possa consultar o senhor Alfredo, mestre escola da comunidade, a fim de que ele conceda a melhor redação da frase. Até então, valerá como castração “o ato através do qual se arranca, esmaga ou tritura o membro ou nome do órgão que fica entre as coxas, acrescido de bolas, lateralidades, pele e sangue do homem, garoto ou ancião que tentou usá-lo com propósitos outros que não os divinamente concebidos para tanto”. Dona Maria Cândida levantou uma questão de ordem: quais são os limites para que um homem possa usar seu membro de forma impune. Indagada sobre a relevância da dúvida, esclareceu que era costume na cidade os homens exporem seus membros, seja urinando em locais públicos, seja balançando-os na frente das janelas de moças pudicas, seja usando calças muito apertadas, e que tais atos também mereceriam castração pelo uso abusivo do membro. Levado o assunto à votação, foi indeferido pela maioria dos votos, ressalva feita à denúncia de homens que balançariam seus membros na frente das janelas de moças pudicas, o que seria mandado para o delegado investigar. O padre Antônio Moraes levantou uma outra questão de ordem: a castração só poderia ser definida como penalidade quando o intercurso carnal acontecesse entre homem e mulher, não entre homem e homem. Indagado sobre a relevância da questão, afirmou que a relação entre homem e mulher é natural, enquanto que a estabelecida entre homem e homem seria anti-natural, não caPorto Alegre - dezembro de 2016

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bendo à Justiça humana e nem divina estabelecer punições anti-naturais. Indagado sobre o motivo de tal preocupação, o padre Antônio Moraes alegou questões de foro íntimo. Levado o assunto à votação, a questão de ordem proposta pelo padre foi vencedora por maioria, com as abstenções de Dona Maria Cândida e do senhor Olismar. Assim, foi definida que a castração só seria definida como pena máxima quando o intercurso carnal acontecesse entre homem e mulher, não entre homem e homem. Como item seguinte da pauta, passou-se à discussão do local mais indicado para aplicar a punição. O senhor Juiz sugeriu a cadeia da Vila, por ser um lugar longe do alarido do povo, além do saudável efeito pedagógico que criaria para os demais presos, ver um colega ser amputado do bem que lhe era mais precioso. O senhor Prefeito apresentou objeção, dizendo que o ideal era que dita punição ocorresse em praça pública, pois eventuais homens dispostos a usar o seu membro com propósitos não ortodoxos ou não previstos pela moral e bons costumes pensariam duas vezes se visse o que lhes aguarda. Também disse que o comércio local sairia lucrando, pois uma castração ao céu aberto atrairia multidões que precisariam se alimentar e beber. Existiria ainda a possibilidade de trazer divisas para a localidade, fazendo produtos como pães, bolos ou biscoitos no formato de membros masculinos, além da realização de peças teatrais que transformariam a castração de Manoel Duda no ápice de uma quermesse popular que, inclusive, poderia ser ampliada nos anos seguintes. O senhor padre afirmou que, se fosse uma cerimônia pública, o melhor dia era domingo após a primeira missa, pois poderia fazer um sermão sobre os riscos de fornicar. Perguntado sobre o assunto, o senhor Olismar disse que pouco importa o lugar, na cela ou na praça, pois ia mandar o membro do condenado direto para o Inferno. Discutiu-se se membros amputados ou dilacerados de pessoas podem ir para o céu ou para o inferno sem seu proprietário. O padre prometeu consultar o bispo sobre assunto tão relevante. Dona Maria Cândida disse que, se a castração for realizada às vistas da Porto Alegre - dezembro de 2016

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cidade, todos veriam o tamanho da “estrovenga” do condenado, e isso poderia assanhar as moças ou despertar discussões conjugais. Momento de reflexão. Por maioria, vencida Dona Maria Cândida que desejava um evento público, decidiu-se que a castração ocorrerá em ambiente privativo, se possível na cela do condenado, e sem testemunhas outras que não o carrasco. Ultrapassada a questão do lugar, passou-se a discutir o modo através do qual se realizaria dita castração. Convidado a se manifestar sobre o tema, o senhor Olismar afirmou existirem muitas maneiras de castrar um homem, que vão desde meios tradicionais – macete, clava, porrete, faca, chute – até os mais modernos – espingarda e revólver. Com veemência, desaconselhou métodos inovadores, tais como arco e flecha, óleo fervente, amarrar o membro em um porco jovem e despejar-lhe água quente em cima ou competição de pedradas, pois nem sempre chegam ao resultado pretendido e, às vezes, a única coisa intacta que sobra é justamente o membro cuja destruição se almejava. Também havia a possibilidade de se usar o burdizzo, instrumento semelhante a um alicate, que esmaga as bolas do homem até que elas se tornem inúteis, mas o senhor Olismar disse que isso não impediria o preso de realizar novas conjunções carnais, o que foi vetado. Dona Maria Cândida perguntou qual seria o meio mais humano. O senhor Olismar respondeu que era também o método mais antigo: duas pedras. Com os olhos vendados, o condenado fica nu, permanecendo amarrado em uma parede de pernas abertas; então, o carrasco bate as duas pedras tendo o membro no meio delas. Dona Maria Cândida perguntou como ele sabia que era o método mais humano. O senhor Olismar respondeu que nenhum humano nunca reclamou. O senhor Juiz perguntou ao senhor padre se a Bíblia indicava uma forma ideal de castração. O senhor padre citou Levítico 22:24, “não podereis oferecer ao Senhor um animal que tenha os testículos feridos, esmagados, despedaçados ou cortados”, Deuteronômio 23, “nenhum homem castrado, que tenha esmagado os testículos ou amputado o órgão Porto Alegre - dezembro de 2016

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genital, poderá fazer parte do povo de Javé”, e Mateus 19:12, “porque há eunucos que nasceram assim; e há eunucos que pelos homens foram feitos tais; e outros há que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem pode aceitar isso, aceite-o”, para dizer que a Bíblia não é manual de castração, e que tal assunto foi deixado nas mãos dos homens para resolver. O senhor Prefeito achou interessante a sugestão do arco e flecha, pois poderia incentivar a formação de talentos nas escolas, e pediu mais detalhes. O senhor Juiz disse que era melhor apelar para meios tradicionais, e sugeriu o macete, no que todos concordaram. Dona Maria Cândida pediu para que a execução fosse um modelo de piedade, devendo a macetada ser única, forte e o menos dolorosa possível. Para garantir tal fato, o senhor Olismar disse que serviria duas garrafas de vinho para o preso, e só executaria a sentença quando ele estivesse suficientemente embriagado, pegando-o desprevenido. Indagado sobre os meios materiais que seriam necessários para executar a ordem de castração, o senhor Olismar disse que emprestaria o seu macete para a execução da tarefa que foi confiada, considerando-se que o instrumento disponibilizado pela cadeia era desbalanceado e necessitaria de dois ou três golpes para realizar dita castração, o que seria cruel. Discutiu-se o pagamento de um aluguel ao senhor Olismar pelo empréstimo do seu macete pessoal. A seguir, o carcereiro perguntou quem iria lhe auxiliar a preparar o condenado. Inquirido sobre as características de tal preparação, o senhor Olismar explicou que o membro do preso precisa ter uma dimensão mínima aceitável para que a macetada seja satisfatória e, para tanto, Manoel Duda necessitaria ser atiçado. O senhor Juiz disse que a ele cabia aplicar a lei, não ajudar na fase da execução da pena, sob risco de nulidade processual. O senhor padre disse que cuidava das questões divinas, não nos laivos da carne humana. O senhor prefeito afirmou que não era uma questão que dizia interesse aos cidadãos da Vila de Porto da Folha Sergipe, sendo algo que extrapoPorto Alegre - dezembro de 2016

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laria os limites da sua função. Dona Maria Cândida saiu da sala. Foi acertado um pagamento generoso, fora dos registros contábeis, para o senhor Olismar realizar tanto a tarefa de macetar o membro do preso quanto de prepará-lo. Após o retorno de dona Maria Cândida, passou-se a discutir os detalhes finais para os procedimentos de extração do membro de Manoel Duda. Foi decidido que o senhor Olismar providenciaria nos primeiros cuidados pós-castração, tais como o uso de bandagens, a costura de cortes e a higienização das feridas, tudo obedecendo aos mais sagrados princípios da pessoa humana. Os restos do membro espalhados pela cela deveriam ser juntados e devolvidos ao seu proprietário. O padre ofereceu-se para acolher o preso Manoel Duda na casa paroquial por uma semana após dito procedimento, assumindo o compromisso de lhe explicar sobre a possibilidade de seguir carreira como castrato e das benesses de encontrar Deus agora que não tinha mais seu desejo sexual a lhe atormentar. Por divergências sobre quem pagaria o vinho a ser tomado pelo preso, decidiu-se eliminá-lo, devendo a boca de Manoel Duda ser amarrada para evitar eventuais gritos de dor, o que era a atitude mais humana a ser seguida. No encerramento da reunião, o senhor Juiz agradeceu a todos os presentes pelas judiciosas sugestões, que ajudariam a melhorar a qualidade de vida do município. O senhor prefeito elogiou a condução dos trabalhos e disse que a cidade estava protegida dos fornicadores enquanto contasse com cidadãos de tamanho valor. Dona Maria Cândida agradeceu pelas decisões piedosas tomadas com relação ao preso Manoel Duda que, mesmo merecendo todos os sofrimentos, seria castrado da forma mais humanamente digna. Instado a se manifestar, o senhor Olismar falou que estava acostumado a castrar animais nas lides no campo, mas que não era tão diferente assim castrar um animal ou um homem, ambos gritam igual, a única diferença é que os animais não precisam lidar com tantas burocracias. O padre abençoou a todos os participantes da reunião e pediu para rezarmos um Pai Nosso em honra ao futuro Porto Alegre - dezembro de 2016

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membro dilacerado de Manoel Duda, que logo encontraria o seu Criador. Foi lida a ata e, antes de ser encerrada a reunião, o senhor Juiz pediu para destacar a humanidade e circunspecção com que se tratou de assunto tão delicado, e que o membro de Manoel Duda, mais do que uma vara de pecado, era também um perigo para toda a sociedade, devendo ser tratado com todo o rigor da lei para que tais eventos não se repetissem na boa e pacata Villa de Porto da Folha Sergipe. Presentes intimados, foi a ata assinada, passando a fazer parte integrante do processo judicial de Manoel Duda.

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André Luiz Costa

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Malefício

André Luiz Costa Tenho certeza de que, se ela tivesse me visto, fugiria. Segurando a bacia cheia de roupas, o rosto crispado por causa do sol, passou tão perto de mim que pude sentir o cheiro de suor, de quem já trabalhou desde o amanhecer e espera resignada o arrastar do meio da tarde. Nada nos movimentos era desconhecido. Eu já tinha observado tanto aquele corpo, mas era a primeira vez que estávamos longe dos outros. Deixei que ela passasse em direção à fonte, fiquei imóvel, momento em que as minhas pernas endureceram e senti uma ausência de calor, mas logo tudo voltou, o ar parado, a predominância verde da paisagem, os ruídos do mato que até então eram apreciados por mim. Eu precisava ficar sozinho, não queria enxergar qualquer criatura bípede e racional por algum tempo. A distância às vezes era necessária para que recuperasse o sentido dos acontecimentos brutais que se acumularam e me trouxeram para o meio dessa gente. Ninguém aqui poderia supor o meu passado, e por isso fiz amigos com facilidade, pessoas com quem fingi conversar, tão bêbados que me obrigaram a suprimir a náusea e deixar que contassem histórias sobre os moradores, os mitos locais, acontecimentos de uma Vila desgraçada e morta. Eu queria distância, mas ela apareceu. Me escondi atrás de um arbusto e não tenho orgulho disso. Com os joelhos flexionados, busquei entre a folhagem o melhor ponto de observação. Ela deixou a bacia sobre uma pedra achatada ao lado da fonte, colocou as mãos na cintura e parecia recuperar o fôlego enquanto fixava os olhos na água ondulando. O perfil dela era triste. A superfície da água refletia uma luz vítrea naquele rosto abatido. Eu tentava não fazer barulho, estava contido em Porto Alegre - dezembro de 2016

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mim, sem acreditar que a oportunidade surgia de forma tão fácil, quando menos queria, abandonando aos poucos a serenidade que me esforcei em buscar. Ela arregaçou um pouco mais as mangas do vestido, mantendo a atenção na água, sentiu com os dedos o cabelo preso e desceu a palma da mão esquerda pela nuca. Então, com a boca se contorcendo ela cobriu os olhos. Os ombros começaram a balançar no mesmo ritmo dos soluços inaudíveis. De repente, estava chorando, e eu, perplexo com a cena, passei o antebraço pelo suor da testa, mantendo uma calma que não era minha. Tentei me distrair pensando no que poderia ter causado o choro, essa atitude passiva em relação ao que tivesse acontecido. Ela se encolhia. O choro ficou mais forte e chegou até mim. Olhei para trás e para os lados no instinto de procurar mais alguém que estivesse observando a cena. Estávamos sozinhos. Quando ela sentou na pedra achatada, deixando o rosto descoberto por um instante, senti o velho arrepio que sobe do meio da minha coluna até o início do cabelo. A barra do vestido descobriu as canelas e quase os joelhos. A pele molhada do rosto, os lábios um pouco inchados, provocou uma taquicardia desregulada. Tive o ímpeto de levantar, mas ainda mantive uma frieza. Percebi que eu estava sorrindo e, de forma estranha, que não conseguia parar de sorrir. Ela continuou chorando por um tempo que não pude determinar. Então, quando já estava se acalmando, puxou a barra do vestido para secar o rosto. As coxas fortes e expostas. Levantei sem perceber meu corpo, sem raciocinar a saída de trás do arbusto. Caminhei em um ritmo lento até a fonte, a camisa suada grudando no peito. Parei na frente dela, a uns cinco ou seis passos, que me encarava sem se mover. O barulho da fonte recobria minha respiração acelerada, e ela, como se tivesse acabado de perceber, baixou a barra do vestido até onde era possível. Perguntei o que aconteceu e minha voz saiu mais inquisitiva do que era a intenção. Ela estava perplexa. Não me respondeu e perguntei de novo, dessa vez forçando Porto Alegre - dezembro de 2016

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tranquilidade. Então, ela disse que aquilo não era assunto para mim, que fosse procurar o que fazer na Vila. Meu sorriso se alargou. Deixei que essa fosse a única resposta e permaneci em silêncio, observando ela de repente dar atenção para as roupas na bacia, mexendo ali como se procurasse alguma em especial, mas logo deixou as roupas e voltou a me olhar com uma irritação crescente. O que é, perguntou, já disse para ir embora. O medo começava a se tornar visível. Eu estava lúcido, embora me parecesse que nada acontecia de fato e que o calor provocasse imagens. Talvez ela soubesse o que aconteceria, talvez os moradores da Vila tivessem comentado. Desviei o rosto para a fonte. Agora, a superfície da água também refletia a luminosidade em mim, eu era o centro de um cenário incompleto, uma presença ridícula. A ideia de que deveria ir embora passou pela minha cabeça e desapareceu. Olhei de novo para ela, o suor descendo pelo pescoço e pelo peito, a pele reluzindo à temperatura dessa região. Avancei os passos que nos separavam e afastei a bacia, sentando também na pedra achatada. Apertei as mãos entre os joelhos, para que ela não me visse tremendo, e olhei o seu perfil, tão próximo quanto nunca estive. É fácil imaginar o desejo se concretizando, mas difícil que a realidade o absorva. Naquele momento, parecia que o real me dava uma oportunidade, insistia que eu atravessasse o limiar do que desejava. Ela continuava ali, parecia aceitar minha presença, e eu, apenas me dando conta quando já havia feito, segurei a mão dela com força. Ela olhou para as nossas mãos juntas e então olhou para mim, antes de cruelmente falar que eu era um sujo, um vadio, soltando em seguida a sua mão da minha e levantando da pedra. Não tive reação imediata. Cuidei ela se inclinando e quase deixando a roupa cair no movimento de pegar a bacia, saiu como se estivesse tonta, vacilando os passos, com o quadril na linha do meu rosto. Eu levantei, alisei para trás os cabelos molhados, tentando respirar com mais calma. Os raios de sol atravessavam as árvores e invadiam a sombra da fonte, ela foi caminhando como se cruzasse Porto Alegre - dezembro de 2016

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linhas. Sem conseguir me conter mais, corri a pequena distância que nos separava. Ela olhou para trás no exato momento em que a abracei pela cintura, os dois braços pressionando aquele corpo contra o meu, e então, sem saber o que fazia, a ergui no ar, mas isso me fez perder o equilíbrio e, cambaleando, tropecei no meu próprio pé e fomos nós dois ao chão. As roupas que caíram da bacia se embolaram na grama. No instante seguinte, segurando os braços dela, fui para cima do corpo. Ela se debatia, e só percebi que estava gritando pouco depois, quando ouvi um barulho no mato e dois homens da Vila surgindo. Tentei ficar em pé e correr, mas cambaleei de novo e, enquanto caía, um deles pateou com força a minha barriga. Perdi o fôlego, me encolhi. Quis não ter feito nada e gritava isso, que nada tinha acontecido, mas o outro me levantou, segurou meus braços para que o primeiro me acertasse com o punho no rosto quatro vezes. Eu já não escutava mais nada, não sabia se ela tinha ido embora ou se presenciava aquilo. Como se fosse inocente, seguia balbuciando que nada tinha acontecido, que nada tinha acontecido.

Agora, estou trancado em uma cela. Não me escutaram, ainda não houve um julgamento. A dor que sinto vai passar, na mesma velocidade em que me acostumo ao espaço limitado, a uma cama pouco mais desconfortável do que a minha, a uma refeição que parece escarro. Vi os últimos quatro dias através desse quadrado na parede. Só conversei com o guarda que me trouxe o que comer, mas ele mal me responde. Passo a maior parte do tempo deitado, às vezes durmo, às vezes troco a posição e fico olhando qualquer canto da cela. Na verdade, se é o que eles pensam, não me importo em ficar sozinho aqui. Lido bem com a solidão e com o silêncio. Tudo o que tive ficou pelo caminho, não é difícil me acomodar sem mais nada a perder. Os dias passaram com uma lentidão nova, e, às vezes, quando escuto alguma voz lá fora, rumino a raiva por aqueles que me atacaram, surgidos de lugar nenhum, e me puseram aqui, denunciando minha pulsão como um crime. Porto Alegre - dezembro de 2016

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O guarda vem de novo, interrompe a tranquilidade. Traz a janta em um prato sujo. Dessa vez, no entanto, ele entra na cela. Me entrega a comida e se encosta na parede, tira do bolso um cigarro e o acende. A pouca luz do dia que está acabando ainda ilumina a expressão satisfeita dele, enquanto, fechando os olhos de prazer, dá a primeira tragada. Com a colher de madeira, eu começo a ingerir a mistura que foi servida, finjo não estranhar a presença do guarda, que me encara com uma alegria óbvia, mal disfarçando o contentamento nos gestos. Ele traga mais duas vezes, segurando o cigarro com o indicador e o polegar, e, expelindo a fumaça da segunda tragada, pergunta se a janta está boa. Eu termino de mastigar uma porção daquilo e só respondo que sim. Ele ri, sabe que é mentira. Solto a colher no prato e fico olhando para o guarda, que pergunta, então, com descaso, se não estou arrependido. Sem hesitar, digo que não. Erguendo as sobrancelhas, dando a entender que está surpreso com a minha resposta, ele traga mais uma vez. Depois, apaga o cigarro na parede. Diz que então eu vou ter a chance de falar isso para o juiz que está vindo da Cidade.

Quatro guardas vieram me buscar, isso aconteceu ontem, e a minha sensação ao olhar para eles foi de pena. Pararam em frente à cela, alinhados, como se representassem alguma autoridade, e informaram que o juiz me aguardava. Eu acenei a cabeça. Eles abriram a cela e me guiaram por um corredor estreito em que mal reparei na chegada. As outras celas estavam vazias, descobri que era o único preso aqui. Fiz questão de manter a coluna ereta, cuidei os movimentos para que eles não desconfiassem de algum nervosismo inexistente. Chegamos, à esquerda, saindo do corredor estreito, a uma porta que estava fechada. Um dos guardas bateu. A voz que pedia para entrarmos foi severa. O juiz ocupava a mesa que preenchia quase toda a sala. A janela atrás dele dava para uma das ruas da Vila. Além do juiz e de um guarda, o mesmo que havia me inPorto Alegre - dezembro de 2016

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formado do encontro, meus dois agressores também estavam lá e não tiveram qualquer reação quando entrei. Meu corpo ficou tenso por um instante, a raiva que eu sentia daqueles homens surgiu novamente, mas consegui relaxar quando um guarda pediu que eu sentasse na cadeira entre os dois, na frente do juiz. Estava acostumado com o procedimento de intimidação, a tentativa de tortura psicológica no isolamento e depois perguntas que forçavam o interrogado a se contradizer. Não esperava a presença dos agressores ali, no entanto, e quis acreditar que era apenas costume sem importância na Vila o testemunho de quem não estava ligado de forma direta ao que havia acontecido. O juiz pigarreou e disse meu nome. Perguntou se eu sabia o motivo de estar ali. Respondi que sim. Então, com os braços apoiados em cima da mesa, pediu a minha versão dos eventos daquela tarde. Sempre honesto, contei em detalhes desde o momento em que ela passou por mim até quando caímos no chão. Falei sobre o que havia sentido, sobre não querer magoar ninguém. Nesse momento, um dos homens riu de forma disfarçada. Eu olhei para ele, nos encaramos por um momento, e então o juiz se recostou na cadeira, apoiando a cabeça com as mãos, mostrando curiosidade em um sorriso discreto. E as outras moças, ele perguntou, também não tinha intenção de magoar? Passei a mão pela minha testa encharcada. Senti que todos na sala me olhavam e, ainda assim, estava imune à expectativa deles. O juiz, é claro, não esperou que eu respondesse. Logo perguntou, também de forma retórica, se eu sabia que o marido da moça em questão havia tentado invadir o prédio, queria me matar a qualquer custo. Os guardas precisaram imobilizar ele, bater inclusive, até que se acalmasse em uma prostração muda da qual ainda não tinha saído. A moça em questão relatou o acontecido no dia anterior. Traumatizada, chorou durante toda a conversa, disse que o marido havia ameaçado ela, que não acreditava na inocência dela, que nada teria acontecido se não existisse abertura. Percebe a desgraça, o juiz perguntou, Porto Alegre - dezembro de 2016

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consegue ver o resultado dessa tal pulsão. Ao dizer isso, ele ficou em pé, espalmou as mãos na mesa e me encarou sem ironia ou condescendência. Soube ali que nenhum argumento meu serviria. O juiz queria me ouvir apenas para manter um protocolo e não para levar a sério qualquer palavra do que eu dissesse. Então, deixei que o silêncio dominasse a sala, permaneci impassível retribuindo o olhar dele, em um desafio que só poderia terminar com a minha derrota. Um dos meus agressores levantou também, pediu permissão para falar. Disse que era óbvio que eu não pensava naquilo que fazia, que era egoísta, um animal querendo satisfazer o próprio instinto, eu deveria ser banido daquele lugar ou acabaria morto em menos de vinte e quatro horas. O juiz pareceu levar em consideração o que ele disse. Ficou pensando por alguns segundos, consultando os guardas com o olhar, como se eles pudessem decidir. Não, ele respondeu, as pessoas daqui não me perdoariam se não houvesse castigo. Deve existir exemplo, o juiz prosseguiu, para que essas coisas não se tornem corriqueiras, para que se respeite o casamento, que é união sagrada. O maior castigo para esse sujeito é a capação, para que não volte mais a empreender tal malefício. Meu olhar se arregalou. Um frio desceu pela minha garganta, enquanto os guardas comemoravam a decisão e os dois homens mantinham uma indiferença estranha. Tem algo mais para dizer, o juiz perguntou. Eu tinha, mas só consegui mover a cabeça em negação. Que se cumpra, ele disse.

O que vim fazer nessa Vila, afinal, no meio de gente porca e ignorante. Deveria ter passado ao largo na noite em que cheguei aqui, escutado a intuição de que nada bom surgiria nesse lugar. Dois guardas trouxeram uma mesa para a minha cela. É meio-dia, e o calor, hoje, parece pior do que no último mês. O juiz entra seguido por mais Porto Alegre - dezembro de 2016

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dois guardas, a cela fica cheia. Um deles, o que me trouxe a janta naquela noite, carrega um macete. Não consigo controlar o tremor nas mãos, a camisa empapada de suor. Busco alguma correspondência nos olhares dos guardas, piedade talvez, mas não imploro, me proíbo da humilhação na frente deles. Meu único pensamento desde a conversa com o juiz é que a justiça é fácil, a imparcialidade sempre maleável. Em que ponto, eu me pergunto, esses homens podem se considerar superiores a mim. Eles obedecem à moral envelhecida que consta na sentença que agora o juiz lê, me colocam como o mal, aquele que deve ser castigado para servir como exemplo. A justiça deles, essa apoteose, é a minha ruína. Ao terminar de ler a sentença, o juiz acena. Dois guardas me posicionam na frente da mesa, que é pouco mais baixa do que a minha cintura. Sinto calor, medo, ao ver o guarda que segura o macete me olhar.

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Annie Piagetti Müller

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Um causo de três causas Annie Piagetti Müller Escute com atenção e verás fatos. Escute com opinião e terás versões. Juiz Manoel Fernandes dos Santos

Tal qual um juiz deve ser, sou um narrador capaz de ver todos os fragmentos de um causo (ou narrativa). O célebre narrador onisciente, se você, caro leitor, fores estudante de literatura e entendedor do conceito. Está certo: sou tão neutro quanto a minha maturidade literária no momento. Escutei atentamente todas as versões das pessoas (ou personagens) envolvidos para ajudar Juiz Manoel Fernandes nas avaliações finais. O causo tem muitas causas, pelo menos três, as que contei, mas são as novas interpretações o mais puro prazer da leitura. Por isso, ofereço-o breves retratos sobre cada acontecimento, mas deixo-o com a responsabilidade do julgamento. Sinto muito se não puderes concordar ou ter segurança com a sentença. Não lhe peço que acredite no veredicto, mas que o receba. A vida, meu leitor, seja a real ou a inventada, é somente aceitação.

A trova de Manoel Duda

E, na verdade, tudo não passou da invenção de gente corrompida. Povo frouxo, povo sabe nada, nadica de nada, sabe só sobre si e vem falar dos outros. Manoel Duda insistia na conversa com Jaciro, o oficial da prisão que não deixava a guarda da cela, parado feito sombra de poste em horário de sol a pino. Mas, entre as grades enferrujadas, Porto Alegre - dezembro de 2016

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não entrava claridade alguma. Há trinta dias o tempo era sombra sem sol, pretume, umidade e sujeira. Senta aí e vou te contar não só a minha versão da história, mas a única história que existiu. Sem mais o que fazer, Jaciro escutava com apreço o fato novo. Vivia o tédio de quase três meses sem crime que valesse causos de corredor. E, quando aparecia um envolvendo mulher, marido e amante, era certeza de manchete curiosa e de quebra-pau na cadeia – muito embora todos terminassem sem surpresas, seus desfechos quase sempre iguais. Um preso e torturado, o outro, corno, e uma mulher pobre e desquitada. Jaciro era perito nos assaltos do sexo, conhecimento que o destacava entre os companheiros desde a época da delegacia, e que exibia no peitoral inflado de orgulho. O oficial acendeu um cigarro, atravessou outro a Manoel Duda e os dois continuaram a trova naquela manhã preguiçosa, mais uma manhã gêmea da noite.

O segredo de Maria Augusta

O golpe foi direto na face. Com o olho de um roxo quase negro, e assustada, Maria Augusta esforçava-se para enxergar. Foi assim, andando cambaleante até a fonte, que se colocou ao choro e à reza. Encarou a estátua milagrosa acima da cascata de água: minha Santa Rita de Cássia, ajuda-me a escapar da tristeza e da tortura, a não mais calar-me, a abandonar o imbecil do meu esposo, ajuda-me, rogo-te, traga-me qualquer resposta que não o perigo de um casamento em trevas. E deixai-me livre para amar sem medo os outros que me convém. Senhora, por favor, imploro-te! Depois de pronunciar os pedidos para a Santa, silenciou, grudou o pescoço ao peito, em conexão espiritual. Tampouco respirou profundamente, sentiu um arrepio da espinha até as partes baixas, e um vulto surgiu pelas suas costas. Amém, sussurrou a tempo.

O diálogo entre Nocreto Correio e Norberto Porto Alegre - dezembro de 2016

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Barbosa

Claro que precisava de ajuda. Ajuda dos demônios para que a salvassem do pecado!, contestou Norberto. E que corpo, lembrou Nocreto. Curvas que já não se encontram nas mulheres modernas. Curvas assim! (ele desenhou as formas no ar, silhueta fina e quadris exuberantes). Xico Bento nem merecia gostosura daquelas. Muito tanso para dar conta. Concordo plenamente, jovem. E vi com os meus próprios olhos que Maria Augusta o desejou, a cadelinha vestida de donzela, sentada de quatro na posição do animal, a culpada em disfarce de vítima. Minha Gutinha ardeu em sua carne por Manoel Duda, eu assino embaixo! Quer dizer que a senhorita ensaiou uma peça quando nos avistou? E, ainda assim, tu mandaste prendê-lo, como se estuprador fosse, só para proteger a sua amante? Norberto girou a pupila em acordo. Continuou: caro colega, não se sabe o que se passa no matrimônio com Xico Bento. Talvez precise ela daquele outro, de todos os outros, para manter-se casada e, principalmente, manter-se sã. Mulher bonita merece a sanidade. Mulheres, quaisquer delas, a mais santa ou a mais safada, merece um destino bom. E a nós, homens, cabe respeitarmos o dever com a Nossa Senhora: garantir a elas, suas filhas, a sobrevivência na Terra, lugar cada vez mais difícil, vou te dizer.

A dor de Xico Bento

Sem aceitar mais os cornos que a mulher lhe impunha, ano após ano, perdão após perdão, Xico Bento cansou. Já era hora de descontar na infeliz a sua própria infelicidade. Nunca havia tocado em Maria Augusta mão que não fosse de carinho. É certo que foi bastante passional: acertou-lhe a cara reto, esbofeteou-a sem dar desconto. Pudera, depois dos anos arrastados de sem-vergonhice. Bateu-lhe com vontade, mas sem antes lembrar do casamento, das promessas concedidas no altar e pePorto Alegre - dezembro de 2016

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rante ao Deus único; das suas três meninas, Ana, Amélia e Anastácia, fruto de tal sacramento. Sem antes esquecer do quanto uma agressão transformaria o matrimônio em pesadelo ou, do outro lado, o futuro em solidão. Escutou o estralar do osso com osso, dos dedos do punho fechado em encontro com a maçã do rosto de Gutinha. Só ele a chamava assim. Segurou as lágrimas porque homem não chora, em hipótese alguma, mesmo quando dá adeus ao amor. Homem é cabra macho.

A decisão de Juiz Manoel Fernandes dos Santos

No Tribunal de Justiça da Vila de Porto da Folha Sergipe, em uma sala de cor marrom escura e com odor de madeira, estavam todos reunidos, cada qual munido com suas teorias e convicções. Senhorita Maria Augusta manteve o segredo. Nada diferente falou ao juiz, apenas detalhou o abuso que sofrera. Era Manoel Duda no xilindró ou o desquite. Homens, seres podres. Num mundo mais à frente haveriam de estar todos enjaulados. E sobraria às mulheres que se bastassem, se desejassem, se casassem. Relatou: então, depois de chegar pelas minhas costas, enquanto eu rezava ao pé da fonte pelos irmãos acometidos pela doença e pela miséria, ele fez aquilo em mim, sem piedade!, aferiu Srta. Maria Augusta, as prantos. Na plateia, cochichava um: mas já vi a mulher com outro homem por aí. Eu também! E Eu!, nos bancos se podia escutar as maledicências. Manuel Duda atreveu-se a falar sem vez, e foi bloqueado pelo juiz. Acalme-se e aguarde pela hora do réu, por favor. Cochichou mais um: veja a cara de Xico Bento! O pobretão ainda há de levar a mulher de volta pra casa. Vive na sua cegueira construída. Vive sem querer ver tudo que ela lhe apronta. O relato da dupla de oficiais foi combinado e, portanto, parecido. Disse Norberto, confiante de si: claramente senhorita Maria Augusta não conseguiu se defender, tamanha a fúria de Manuel Duda. Nem deu tempo: agressividade às claras, sem dúvida alguma foi-lhe imposto tal Porto Alegre - dezembro de 2016

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escândalo. Uma pena, nos dias atuais, ocorrer vergonhosa postura do sexo masculino. Eu gostaria de ser mulher para sequer me assimilar a um tipo assim. Enquanto ouvia a acusação da testemunha, Manuel Duda esbravejava. Dito o seu nome, pronunciou-se em fé. É fato que todos reconhecem a safadeza da donzela que me apronta tamanho problema. É fato que ela deseja poupar-se de coisa pior: o desquite!, porque mulher desquitada não consegue cabra que lhe pague as contas. Eu os peço: libertem-me da sentença e seremos todos companheiros de lembranças passadas, sem outros problemas. Sejamos honestos, oficiais: vocês viram, enxergaram com seus próprios olhos, e agora não admitem outra opinião para não ferir sua imagem de bons moços da lei. Não os chamarei de cretinos para evitar que aumentem a minha pena. Nem cuspirei em suas caras pelo mesmo motivo. Mas, saibam todos os aqui presentes: a liberdade eu carregarei comigo, mesmo dentro do cárcere, e a culpa vocês o farão, pelo resto dos dias. A voz grave de Juiz Manoel Fernandes dos Santos foi-se finalmente respeitada: completados os relatos dos senhores envolvidos, não resta dúvida e jaz uma certeza. Converto a prisão em flagrante de Manuel Duda em prisão preventiva, na forma do art. 310, II, do código de Processo Penal. O réu desabou em gritos e xingamentos e prontamente foi imobilizado pelos guardas. As testemunhas, Nocreto e Norberto, empinaram o peito, agigantadas. Da primeira fileira do tribunal, viu-se Xico Bento, sempre sério, soltar os ombros em alívio. Já Maria Augusta segurava o sorriso como quem prometia, em segredo, visitar Manuel Duda na cadeia.

Bem, leitor, cá estamos, sobreviventes, se ainda estiveres comigo. Como se pode ver, acompanhei feito cão fiel o meu protagonista, Juiz Manoel Fernandes. Claro que o leitor atento poderá dizer: espere aí, a protagonista é Maria Augusta, aquela sacana! Mas, seja o que for, eu o escolhi e você tem a liberdade para discordar de mim. FunPorto Alegre - dezembro de 2016

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cionamos, narrador e leitor, como as duas pontas de uma corda, cada qual puxando o lado em seu próprio benefício. No entanto, você sabe, a brincadeira só acontece porque ambos existimos. E, sendo sombra que sou do protagonista, é a minha hora de finalizar. Decreto encerrado o causo (ou conto). Afinal, se a realidade não há de ser justa porque a ficção seria?

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Taiane Maria Bonita

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Arquivos, cartas e chumbregâncias Taiane Maria Bonita O que me confere hombridade nunca foram os bagos entre minhas pernas, o cheiro azedo embaixo de meu braço no final de um dia de trabalho, as patifarias com raparigas soltas na vida, ou donzelas respeitáveis. O que me confere hombridade juiz de comarca nenhuma sentencia, carrasco nenhum arranca a macete. Comete pecado mortal aquele que munido de provas opta pelas vias tortas de uma justiça paga para fechar os olhos. Era o que dizia o final de uma carta assinada por Manoel Duda e datada de novembro de 1833, num papel amarelado e cheirando a mofo que Carlos Eduardo segurava com a ponta dos dedos. Aquele trecho de documento encontrado entre as caixas enfileiradas nas prateleiras do Instituto Histórico Geográfico de Alagoas dera partida a uma busca que culminou no projeto de trabalho de conclusão de curso em História do rapaz. Carlos Eduardo tivera que disputar uma vaga entre dez concorrentes para conseguir o estágio e passar o último ano de sua graduação enfiado em meio à pilhas de papéis velhos que só não atacavam sua rinite por conta da máscara hospitalar e das luvas de silicone que usava. O documento não estava completo, parte da carta havia sido queimada, não se sabe ao certo se intencionalmente ou num acidente que acontecera no depósito do Instituto por volta da década de 1970. O trecho da carta destacado e reproduzido pelo futuro historiador, na reunião que teve com seu orientador na semana seguinte, apontava para significativas falhas e confabulações políticas que influenciavam no judiciário da vila de Porto da Folha, na província de Sergipe, nas primeiras décadas de 1800. Para o orientador do projeto, Porto Alegre - dezembro de 2016

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Carlos Eduardo dissera que seu objetivo era investigar o judiciário da Província de Sergipe e entender as relações políticas da época. Como objetivo pessoal decidiu resgatar a inocência, mesmo que póstuma, do sujeito Manoel Duda. Como estudante Carlos Eduardo ainda punha fé na capacidade de desvendar a verdade escondida na História. Como se ela, a verdade, fosse uma joia esperando para ser garimpada nestes cento e oitenta anos que os afastavam. Se no fado de Manoel Duda a justiça não era cega, mas hipócrita, Carlos Eduardo lhe escreveria um futuro novo e faria de sua história uma narrativa de redenção.

Por quatro semanas trocou os cinco minutos de atraso por chegar ao Instituto Histórico Geográfico cinco minutos antes do horário de sua abertura e lá ficar até que a moça da faxina o expulsasse com cara de quem daria um uso diferente para a vassoura que segurava. Quando estava prestes a desistir do projeto, que tivera tanta dificuldade de sustentar frente ao seu orientador, encontrou a sentença redigida pelo juiz Manoel Fernandes dos Santos acusando o Manoel Duda de conxambrar com a mulher alheia. Acabara de descobrir o crime, faltavam-lhe as motivações e os fatos. Na redação do documento pairava a dúvida se o crime maior do acusado foi as chumbregâncias, a agressão à mulher do Xico Bento, o desafio às leis da Santa Igreja Católica Romana, ou ainda o de representar perigo aos machos daquela comarca. Já ao destino do cabra Manoel Duda não restava dúvida: tão pouco ambiguidade, seria capado à golpes de macete pelo carcereiro da prisão. Ao imaginar infame ventura Carlos Eduardo sentiu uma vertigem lhe subir por entre as coxas e se alojar no membro do qual, num futuro, do pretérito, seria privado o pobre Manoel Duda. Agora era o seu próprio órgão que clamava pela busca da inocência do capado em questão. Tirou uma cópia da sentença para adicionar aos seus arPorto Alegre - dezembro de 2016

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quivos pessoais, dali conseguiu indicações de quem seria a vítima, o nome das testemunhas, do juiz que decretou a sentença e daquele que a cumpriu. Material suficiente para continuar as pesquisas, que agora requereriam maiores esforços. Se já não havia sido fácil chegar ao documento central desta história, a sentença judicial, dentro dos próprios arquivos do Instituto Histórico Geográfico de Alagoas, seria ainda mais difícil encontrar as demais evidências da inocência de Manoel Duda. O sujeito era sergipano e fora acusado de seu crime em terras sergipanas, Maceió estava a duzentos e setenta quilômetros do atual município de Porto da Folha. Os documentos referentes ao processo de capadura do cabra foram parar em Alagoas por um erro na folha da transportadora que levaria a papelada para Aracaju quando da reforma da sede dos arquivos estaduais na década de 1960. O último documento que Carlos Eduardo conseguira encontrar em solo alagoano foi uma carta escrita por Maria Augusta dos Santos Neves, endereçada a Norberto Barbosa. Maria era a mulher do Xico Bento.

Norberto, Não sei quanto tempo ainda conseguirei manter esta situação, Xico Bento me faz queixas e desde a última viagem me mira como se soubesse de tudo. Tem estado agressivo e ontem a noite ralhou com a Quitéria, a filha da vizinha, por estar de trova com o Manoel Duda, já passado o horário de Nossa Senhora. Quando perguntei o motivo dos ânimos alterados me falou de sem vergonhices e do sagrado matrimônio, achei melhor não prosseguir com o assunto. Notei que desde o ocorrido na semana passada o Manoel Duda tem rondado nossa casa, passa a tarde a trovar com as raparigas, hora com Quitéria, hora com Clarinha, penso que o sujeito deva estar desconfiado de algo. Não tenho inclinação para com o ele, na missa de Pentecostes estava a falar de chumbregâncias com aquela rapariga que costumava encontrar atrás da fonte. Porto Alegre - dezembro de 2016

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Estou cercada, por todos os lados vejo inimigos, e temo que minha segurança esteja ameaçada. Meu querido, rogo que interceda em meu favor. De sua mais fiel amiga, Maria Augusta. Porto da Folha, dia 2 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana. A carta pertencia à coleção de uma das professoras do departamento de História, da Universidade Federal do Alagoas, que se dedicava ao estudo da vida cotidiana das mulheres no século XIX, através da análise de cartas, diários e documentos pessoais. E chegara às mãos de Carlos Eduardo depois de o rapaz ter comentado com metade do corpo docente da universidade que estava perdendo os nervos na busca por documentos para sua pesquisa. A professora, que conhecia sua coleção de cor e salteado, reconheceu o nome de Norberto Barbosa e da vila de Porto da Folha e entregou uma cópia do documento para o estudante. Apesar da inesperada aquisição a carta deixava a Carlos Eduardo mais dúvidas do que respostas, pois se por um lado apresentava uma Maria Augusta devedora de pecados e insinuava que Xico Bento poderia agredir a mulher, por outro deixava o Manoel Duda em maus lençóis. Além disso, nenhum dos documentos encontrados continha material suficiente para sustentar a hipótese de análise da situação política e judiciária da Província de Sergipe nos anos de 1830. Não tardaria para que o orientador de Carlos Eduardo lhe fizesse mudar de projeto. Numa atitude desesperada o estudante comprou uma passagem e embarcou, ao meio dia de uma quinta-feira, num ônibus, na rodoviária de Maceió, com destino a cidade de Porto da Folha.

Nos meses em que estava recolhendo material para a pesquisa, Carlos Eduardo descobriu que o juiz de direito que decretou a sentença contra o membro de Manoel Duda se tornara um dos grandes nomes da Província Porto Alegre - dezembro de 2016

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de Sergipe após o ano de 1833. A tal ponto que uma das principais avenidas de passagem da época fora batizada como Av. Manoel Fernandes dos Santos, rebatizada, apenas no ano de 1940, como Av. Tobias Barreto. De acordo com os registros, Manoel Fernandes dos Santos acumulara fortuna no decorrer da década de 1830 mantendo boas relações com os figurões da cana de açúcar. No início dos anos 40 já era responsável também pelas comarcas de Monte Alegre de Sergipe e Nossa Senhora da Glória e nos tribunais da província sua voz era a que falava mais alto. O súbito enriquecimento do juiz avivava na memória de Carlos Eduardo a acusação do pobre Manoel Duda, e a vertigem em seus bagos indicava que a verdade estava próxima.

Tinha marcado um encontro com Sérgio Barbosa, descendente direto de Norberto Barbosa, e especialista no caso, para vê-lo assim que saísse da rodoviária de Porto da Folha. Ansioso para sua primeira entrevista, Carlos Eduardo repassava mentalmente as técnicas que havia aprendido na disciplina de História Oral que fizera no semestre anterior. Não tivera tempo para imprimir termos de autorização, mas isto não o impediria. Há semanas aquilo já não se tratava mais de uma pesquisa para a graduação, inocentar Manoel Duda tornara-se questão de honra e de manter suas partes na paz dos justos. O encontro se deu num café perto da estação rodoviária mesmo. Sérgio Barbosa chegou com sua versão da história e Carlos Eduardo com os ouvidos preparados para moldar a narrativa que ouviria e confirmar sua hipótese. Manoel Duda era culpado, foi a primeira frase que ouviu da boca do entrevistado. Sentiu uma dor se alastrar virilha acima. - O causo de Manoel Duda se tornou uma das lendas urbanas de Porto da Folha, existem até alguns cidadãos que juram, de pé junto e embaixo da cruz se assim for preciso, que a cidade é assombrada pelo fantasPorto Alegre - dezembro de 2016

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ma do cabra. As histórias contam que Manoel Duda até hoje perambula atrás de suas bolas. Você pode imaginar se numa cidade que agora possui pouco mais de vinte oito mil habitantes o falatório já é grande, naquela época o assunto vigente era o do cabra que tinha se engraçado com a mulher do Xico Bento e perdera os bagos, e sabe-se lá mais o que, à golpes de marreta. - De macete, foram a golpes de macete. – a dor era mais aguda agora. - Que seja! Tem gente que afirma que o Manoel Duda desfaleceu durante o procedimento e nunca mais viu a luz de outro dia, mas o cabra era resistente. Sobreviveu, e jurou vingança. Por alguns anos ainda tentou incriminar o juiz Manoel Fernandes por capadura indevida, não obteve nenhum resultado. Ele e o Manoel Fernandes tinham uma desavença antiga por conta de umas terras. Manoel Duda acusava o outro de ter se apropriado de quatro hectares nos fundos do seu ranchinho, como Manoel Fernandes era amigo do coronel ficou o dito pelo não dito e o Duda além das bolas perdeu as terras. - Mas se eram inimigos faz sentido que o juiz Manoel mandasse capar o Duda como represália das acusações, uma tentativa de manter as terras e silenciar o outro... – os bagos pulsavam. - Faria. Faria. Se alguém desse ouvidos ao Manoel Duda. O cabra era um fanfarrão, as autoridades contavam com mais de cinco queixas por perturbar a paz da vila e conxambrar com as donzelas e as da vida. A verdade é que o sujeito vivia embriagado e não podia ver um rabo de saia. As tais da Quitéria e da Clarinha estavam confabulando para dar um flagrante no infeliz, mas não conseguiram. - Então houve mesmo uma emboscada! Maria Augusta poderia estar a par dos planos. – enfim, as evidências que suas bolas esperavam. - A situação com Maria Augusta era diferente. Manoel Duda tinha ganas pela mulher do Xico Bento, o ataque foi de caso pensado. Segundo o meu ancestral, Porto Alegre - dezembro de 2016

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Norberto Barbosa, nem o terço a mulher podia rezar sem que o Duda lhe sugerisse patifarias. Nas semanas antes do famigerado dia 11 ela andava com tanto medo que até o marido desconfiou. - E por que não se queixou ao Xico Bento? - Porque o marido não podia saber de suas andanças pela vila. Você é historiador, deve saber que mulher naquela época não andava sozinha. Alguns séculos antes Maria Augusta teria sido queimada na fogueira. - Ela e Norberto Barbosa... ¬ - Eram amantes. - E como você sabe disso tudo? - Haviam provas... - Que provas? - Documentos, cartas, diários, processos guardados no arquivo da cidade. - Eu posso ter acesso a essa documentação? – Carlos Eduardo mal continha a animação entre suas pernas. Sérgio Barbosa estava lendo as evidências de maneira errada, seu parente morto – há muito tempo morto – estava envolvido, logo o julgamento do sujeito deveria ser relativizado. Manoel Duda era inocente, tudo indicava, os documentos lhe provariam isso. - Pegaram fogo. Um adolescente engraçadinho incendiou o arquivo da cidade há alguns anos.

A perda dos documentos, e das esperanças, caiu como golpe de macete entre as pernas de Carlos Eduardo. A vertigem, antes localizada em suas encomendas, agora chegava até a nuca e silenciava a voz de Sérgio Barbosa que continuava o relato sem perceber que seu ouvinte já não ouvia mais nada. O futuro historiador viu o título escapar por entre os dedos. Viu a verdade lhe fazer pirraça, pretendente melindrosa aquela, não aguentou os cento e oitenta anos de espera, não resistiu às chamas do tempo, não se escondeu em meio a linhas de papéis amarelados. Fingiu ser uma, enquanto se vestia de várias e conxamPorto Alegre - dezembro de 2016

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brava com qualquer um que a quisesse procurar. Parceira infiel se prostrava aos olhos de quem a via, Carlos Eduardo escolheu sua versão da verdade. Aquele que não tem provas que as fabrique por si mesmo. – pensou. Não seria a primeira vez ao longo da história de nossas sociedades que documentos seriam falsificados. A História às vezes tem seu custo, Carlos Eduardo teria sua narrativa de redenção.

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Celso Alves

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Impotencial

Celso Alves

Cacete se encolhia de vergonha pela situação em que Manoel Duda o havia metido: estirado ali, na frente de toda a vila, num espetáculo da justiça sergipana. O carcereiro olhando-o de lado a outro com o macete nas mãos, olhar misto de doçura e empatia, franzindo os lábios por causar dor a alguém. Pior de tudo, logo ao Cacete, que nunca fez nada a ninguém, usado sem sabedoria pelo cabra Duda. Atrás do membro, com a ligação de uma vida, estava um choroso e arrependido e bêbado feito uma mula Manoel Duda, que tinha fama de cabra macho, topa tudo, traça todas, mas nem era tanto assim - Cacete diria se o perguntassem. E foi de tanto querer se provar menino-homem que estava ali, vergonha pública, pronto pra ver o próprio sangue; nosso sangue, aliás, chorava o Cacete com lágrimas douradas. Por que o djanho tinha que se meter com a mulher do Xico Bento? Que fizesse suas chumbregâncias com outras. Cacete até tinha umas sugestões, e se levantava pra apontar Quitéria e Clarinha, quando essas passavam. As duas solteiras, disponíveis, mas o que o infeliz faz? Quer levar tudo no papo, não consegue, e tenta à força. Culpa dos Braços e Mãos, de quem Cacete nunca gostou, aliás - e da Boca, tímida e desdentada, sem qualquer charme. Tinha que ter feito com jeitinho, chamado pra passear, feito a corte, caminhando na praça e, quem sabe, dia mais, dia menos, de mão dadas. Manoel fez isso? Claro que não. Tinha pressa, tinha fome, queria todas e acabava com nenhuma, chorando bêbado, surrando o poPorto Alegre - dezembro de 2016

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bre Cacete como se dele fosse a culpa. Acabou de olho na mulher do Xico - péssima ideia, péssima, horrível. Bem que Cacete alertou, esmorecendo perto da casada, mas Duda achava que era nervosismo, pressão, sem entender a indireta. Fazer o que se o cabra só pensa com a de cima? Pego e sentenciado: capado, capadura que deverá ser feita a macete, dizia o documento. Cacete num sabia o que esperar, nunca ouviu falar de falo sacado fora. Talvez fosse bom, seu lado otimista dizia. Era um recomeço, oportunidade. Que sobrevivesse ao golpe, pularia fora, se arrastando se preciso, pra liberdade, pra viver a vida sem as péssimas decisões que o acompanhavam. Duda que lamuriasse a perda da pica longe dele, que se lascasse quando eunuco. Aliás, pior pra ele, motivo de chacota. Descobriria que, sozinho, não é ninguém, o tesão transformado em nada. Nada. Impotente de tudo. Talvez ficasse mais violento, mas não era problema do Cacete, e sim da sociedade. Da sociedade, veja, como se ele não fizesse mais parte dela. E não seria, logo mais. Só de pensar nisso, sentiu um frio, estaria livre da humanidade. Seria algo novo em si, a raça de um só, o primeiro dos Falos - ou algo assim. Poderia escolher seu sobrenome? Pois Cacete Duda seria feio pra danar, e não queria o sobrenome daquela pessoa horrível. Qual escolheria, então? Piroca era muito chulo; Pistola muito agressivo; Bimba seria simpático; Membro e Pênis eram muito formais, prepotentes; Pipi, muito infantil, quem o levaria a sério? A escolha do nome o levou a uma pergunta essencial: quem caralhos era Cacete? Até então conhecia a si mesmo apenas perante Manoel Duda, na função da consciência que o sergipano não possuía. Via a si como alguém equilibrado, virtuoso até, que respeita o espaço dos outros, especialmente pelos abusos que sofria desde a adolescênPorto Alegre - dezembro de 2016

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cia. No fim, os maus tratos haviam feito algum bem: era um pau maduro e crítico. Poderia se tornar o aventureiro que sempre sonhou em ser, pegar a estrada e sentir o vento nos pentelhos. Veria o mar, finalmente não coberto por calças, calções ou cuecas - essas últimas, apenas quando Duda se dignava a usá-las. Viveria longe dos homens, de seus problemas e preconceitos, pra que ninguém o tomasse por cobra ou lacraia, podendo levar uma enchadada a qualquer momento. Estudaria questões filosóficas, sobre o eu, buscaria saber mais sobre si: quem era?, por que estava ali? - a cabeça tão pequena para tantas questões. E se ao descobrir a si mesmo, não descobriria alguém mais? Um amor e o mar, ambos infinitos, tudo o que precisava. Imagine só: finalmente transar sem aguentar o choro pós gozo de Manuel Duda. Se excitava com a expectativa da vida simples. Poderia viver assim pra sempre. Bem, talvez não pra sempre, mas por um bom tempo com certeza, balançando conforme o ritmo da vida. Alguma hora teria de voltar aos seus, não aos Falos, mas aos homens, e retribuir a gentileza de o terem feito livre. Não apenas pra pagar pelo que Manoel Duda fez, mas mostrando que a maldade não era intrínseca ao corpo - era coisa do cérebro. Sem ele, aliás, tudo seria mais fácil e justo. Que tirassem a Cabeça ao invés do Cacete, aí sim poderia fazer o que queria, tomando pra si o controle do corpo todo. E quem chamaria isso de injusto, que culpa tinha o Cacete das atitudes criminosas? Não era o próprio Duda que tomava suas escolhas? Com pernas e braços e tronco e tudo o mais, a vida seria muito melhor. Poderia folhear livros mais facilmente, sem os devaneios que o cérebro impunha. Estudaria, até, tomando para si um título que não apenas fosse Porto Alegre - dezembro de 2016

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útil à sociedade, mas trouxesse respeito: Doutor Cacete soaria bem. Quem sabe, assim, faltando-lhe apenas a cabeça, e não o corpo todo, seria aceito pela população. Tomaria um lugar entre os seus: os seres humanos. Não apenas um falo, como no vislumbre anterior, mas uma pessoa, com responsabilidades e direitos. Seria um advogado, defendendo demais mulheres e crianças e homens fracos daqueles mais agressivos, fazendo da decapitação de Duda um exemplo. Assim que tivesse influência o bastante na sociedade sergipana, aliás, colocaria a Cabeça na praça da cidade. Uma homenagem não apenas ao Doutor Cacete, homem de renome, mas também um exemplo a todos os maus elementos. A Cabeça reclamaria, cuspiria, profanaria e choraria, mas e que mal poderia fazer? Talvez até atraísse alguns turistas de regiões próximas: a cabeça sem corpo. O inverso exato do corpo sem cabeça, regido pelo Cacete, importante e ético. Mas por que advogado e não médico? Poderia usar a si mesmo de cobaia pra seus estudos, entendendo o funcionamento do corpo sem cabeça e produzindo experiências nessa área. Estaria a maldade no cérebro, afinal? Pois, sem este para tomar decisões malignas, o corpo se veria livre de todo o mal. Não seria difícil comprovar a hipótese, mas precisaria do corpo pra isso, do corpo pra si, não pra Manoel Duda. Quiçá aprimorando seu método, não precisaria do macete pros próximos, criando um procedimento quase indolor, liberando as pessoas de suas cabeças, entregando-as ao controle de suas genitálias, ou do que mais ético tivessem. Seria ele o exemplo, ele a salvação, e em breve a comunidade seria divida entre corpos e cabeças, os primeiros regendo a vida, os segundos presos no Museu do Passado Pensante, gralhando uns com os outros até o fim. Porto Alegre - dezembro de 2016

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Quanto uma cabeça viveria? Não seria o caso de acabar com o sofrimento de uma vez? Seria um debate ético, claro, e Doutor Cacete chamaria todos os Acéfalos pra conversa, decidindo o que seria feito com as cabeças. Alguns gostariam de mantê-las, saudosistas de sua época má. Mas a maioria, assim como Cacete Membro, optaria pela destruição total delas. Viveriam em uma democracia e seria acatado o que a maioria decidisse, que seria o extermínio - ele se certificaria disso. Cacete sorriu: que belo futuro havia desenhado. Buscou o carrasco pra gritar que parasse, que tinha uma ideia, e assim defender seu ponto até o fim de Manoel Duda. Mas não o encontrou, apenas uma superfície de metal, suja e enferrujada, que crescia e crescia e crescia.

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Alexandra Lopes da Cunha

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Sobre golpes e cabritos Alexandra Lopes da Cunha Sentia o coração a pulsar dentro dos ouvidos, muito alto, impedindo-o de escutar outros sons. Ele, o som do seu coração latindo furioso, ele, preso num desvario e necessitando concentrar na tarefa que nunca antes havia cumprido. Tinha medo, ou achava ter. Por isso, a dor de estômago, o suor a brotar nas mãos. Secou-as no pano encardido das calças. Piscou vezes seguidas os olhos e tentou respirar com mais vagar, mas era como se corresse, corresse de perigo imenso, perigo de morte. Tomou nas mãos o macete, abraçou com os dedos o cabo nodoso, sentiu-lhe o peso: mais leve que uma enxada, mais pesado que um malho. Bateu com ele contra o chão. O som surdo ecoou em seus ouvidos ocupados e o som surdo e seco fez com que gemesse do outro lado da parede uma voz: gemido de desespero. Gemia igual a um cabrito antes da esfola, bichinho miúdo que chora de desamparo e chora mais por pressentir a morte. Dá mesmo um misto de pena e ódio antes de matar, antes de esfolar, até desejo. Quando a faca desliza rente à pele e o sangue do bichinho brota, é quase um gozo. Chega a dar vontade de lamber as mãos, o sangue deve ser doce, pensava, mas nunca, nunca mesmo, provou. Tinha de morder os lábios para manter a língua sossegada. Hoje era diferente, não iria matar. Era outra coisa, algo que nunca fizera e, por isso, o nervoso. Experimentava o peso do macete, para ver como seria. Para sentir o peso e a força que precisaria empregar, repetiu o gesto de batê-lo contra o chão, e o som surdo e seco ecoou Porto Alegre - dezembro de 2016

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uma vez mais e, mais uma vez, escutou o gemido. E, sim, aquele som, quase um choro de criança, despertou nele a ânsia, a mesma que tinha em fazer correr o fio da faca pelo pescoço dos cabritinhos e fazê-los morrer, um desejo de ferir, de matar, e sempre que fazia isso, que matava, era como se estivesse dentro de uma mulher, sentia a mesma contração dos músculos nas costas, um calor a se espalhar pelas ilhargas, o tesão que faz gritar quando escapa do corpo. E sua cabeça girava, girava, precisou se apoiar contra a parede, tão tonto ficara. Mas desejou mais, mais daquela sensação, então bateu e bateu com o macete contra o chão e escutou o outro, aquele que seria depois o alvo da força de seus golpes, aquele sem- vergonha que desejava toda e qualquer mulher: feia, bonita, as mulheres dos outros, as meninas filhas dos outros, até as velhas viúvas, aquele cabra desgraçado que não conseguia ver passar mulher sem querer violá-la, escutou-o a gemer mais e mais alto, como louco, como se ele também estivesse a se acabar dentro de alguma mulher, e continuou batendo contra o chão, a terra cedia, nuvens de pós subiam até os seus olhos e ele, alucinado, a ouvir o outro a gemer, a gritar, imaginava, ele mesmo alucinado, como seria quando estivesse a cumprir a sentença de verdade, quando despissem o homem de suas calças e lhe segurassem os braços, amarrassem-lhes as pernas e ele teria então de bater o macete, de forma precisa entre as pernas do outro, e veria a dor tomá-lo por completo, e os gritos que lhe escapariam da boca, o corpo todo contraído, e sua masculinidade extirpada, o outro nunca mais precisaria de mulher, e pensar nisso o fez continuar batendo, enquanto o outro se desfazia aos gritos. Bateu e bateu enquanto teve forças. Depois, o silêncio de ambos os lados da parede. Deixou-se cair no chão, exausto, o corpo coberto de suor e poeira, as calças também úmidas, esperando que a tonteira pas

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Alexandre Rodrigues

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E nada mais foi dito Alexandre rodrigues Que desde o fim de seu último relacionamento, o depoente, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, residente à Avenida Coronel Lucas de Oliveira, número mil seiscentos e vinte e sete, apartamento quatrocentos e onze, bairro Petrópolis, cometeu uma série de atos equivocados e que um deles foi passar a observar as pessoas na rua, se perguntando se elas eram felizes. Que depois de um tempo entregue a este passatempo, observando os mais variados tipos humanos, chegou à conclusão de que todos, homens e mulheres, conhecidos e desconhecidos, sim, eram felizes, menos o depoente. Que esta conclusão, transmitida a um amigo com voz lamentosa, depois de beber muito, em meio a seis tulipas vazias de chope, em meio a um prato semi vazio de pimentas e azeitonas, em meio a guardanapos sujos, fez o amigo, debochado, dizer: “Está soando como um profeta”. Que o depoente não sabia a relação, mas que um segundo amigo, que estava presente e também ouviu a história, considerou tudo preocupante, procurou sua ex-esposa e por isso o depoente decidiu fazer terapia. Que aceitou a sugestão, dada por sua ex-esposa, de maneira ingênua, posto ter imaginado que a atitude fazia parte de um projeto de reconciliação, que não se mostrou verdadeiro. Que o depoente conheceu sua ex-esposa oito anos atrás, quando foi resolver um problema nos correios e ela, que havia acabado de passar no concurso para o cargo, o atendeu. Que daquele dia em diante o depoente e sua futura, atual ex, esposa passaram a se ver regularmente, o que levou ao projeto de união, mas que depois da decisão de morar juntos, nunca mais conseguiram se entender. Que mesmo assim o relacionamento durou oito anos, o que o depoente considera um exemplo da resiliência dos apaixoPorto Alegre - dezembro de 2016

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nados. Que, quanto à separação, esta é uma constante em sua vida, a questão de desistir das coisas, já tendo abandonado, além de relacionamentos, dois empregos, uma possibilidade de negócios, a chance de realizar viagens, eternamente, o projeto de cursar mestrado, projetos pessoais e algumas amizades. Recentemente, também da maioria dos parentes e, em última instância, da própria higiene pessoal. Que o depoente considera o defeito muito grave em sua personalidade e emprega um esforço diário para lidar com a situação. Que, apesar destas atenuantes, sua ex-esposa não aceitou bem a decisão do depoente de se separar e, muito nervosa, quebrou móveis e objetos, assim como o depoente, ao se arrepender, não aceitou bem a decisão da esposa de não aceitá-lo de volta, tendo ido para casa e chutado um ventilador até quebrar as pás. Que este é um outro problema do depoente, nunca saber bem o que quer. Que de qualquer maneira os dois não mais se falaram até o dia em que sua ex-esposa telefonou e propôs: “E se você fosse ao analista tal?”. Que o dito profissional possui um consultório situado à Rua Tobias da Silva, no Bairro Moinhos de Vento, em um dos mais conceituados endereços da cidade. Que por isso a consulta custou meio salário mínimo. Que quando disse ao analista o preço da consulta, este nem piscou e falou da sua vontade, do depoente, de controlar. Que o depoente admite a vontade de ter tudo sob controle e também de dar ordens. Que esta não foi a única ocorrência, enquanto frequentou o analista, verificou que sempre que chegava deprimido ou irritado e queria desabafar, acabava indo embora cheio de bom humor e que o contrário se verificava se por acaso estava se sentindo bem ao chegar. Que ainda assim não foram os valores e nem suas flutuações de humor a causa do abandono do tratamento após apenas cinco sessões, mas a constatação pelo depoente de que seus problemas são muitos e vários, fazendo com que o depoente fosse derrotado pela preguiça de resolvê-los. Que, com tantos problemas, no momento, sua resposta foi entregar-se à bebida, ao sexo irresponsável e às visitas a prostitutas e que este comportamento, naturalmente, conduziu o depoente às drogas até que, em Porto Alegre - dezembro de 2016

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decorrência, duas noites atrás, acordou no apartamento de um indivíduo desconhecido na Cidade Baixa. Que o depoente deixa claro que, mesmo no decurso de sua acidentada vida recente não foi uma prática despertar na casa de estranhos. Que além de contratar garotas de programa havia se tornado um hábito do depoente frequentar páginas com anúncios delas, ler os relatos em blogs escritos por elas, além de até mesmo acompanhar o que era dito em um site de resenhas de usuários de prostitutas que, além de publicar suas histórias davam notas a elas usando critérios como se praticavam ou não sexo anal e que, mesmo não aliviando seu próprio comportamento, pois lia aqueles relatos, concordava que alguns daqueles homens que publicavam resenhas sobre mulheres estavam entre os piores seres humanos vivos. Que no que tange ao desconhecido, de cor parda, aparentando entre cinquenta e cinco e sessenta e cinco anos, afirmou que o depoente fora levado até ali por uma garota de programa de suas relações, que já havia ido embora. Que também era um pouco parecido com um antigo ator chamado Paulo Gracindo quando este pintava o cabelo. Que homem vestia robe azul, mantido aberto de maneira desagradável, deixando entrever a aparência de uma cueca vermelha por baixo. Que o depoente não tem a menor ideia do porquê do homem se encontrar vestido assim, mas que, ao abrir os olhos, ouviu dele que havia ficado naquele estado “por causa de uma maconha muito forte”. Que o depoente, após, recordou-se de ter ingerido a fumaça da droga maconha e depois desmaiado. Que, depois de ajudá-lo a se levantar, o homem perguntou ao depoente: “E então vai querer?” Que, diante da resposta do depoente, foi até um armário e voltou com um saquinho de plástico transparente contendo um pó branco-cinzento. Que o depoente até aquele momento imaginou que a conversa tratava de maconha, jamais do conteúdo do saquinho, posto que jamais fora usuário de cocaína nem de qualquer outra droga aspirável ou injetável, mas que, um pouco para sua própria surpresa, aceitou a oferta. Que logo depois foi informado do preço – um valor de que não dispunha nem mesmo na conta bancária, segundo os últiPorto Alegre - dezembro de 2016

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mos cálculos. Que comunicou isso ao traficante de robe. Que este se mostrou contrariado e praticamente o expulsou do apartamento, mas quando já se encontrava do lado de fora mudou de ideia e chamou-o de volta. Que após mudar de ideia, o homem disse que o depoente poderia ficar com a droga em troca de “fazer um serviço”. Que o depoente perguntou: “que serviço?” e que o homem respondeu: “Um serviço”. Que o depoente não se conformou: “Mas que serviço, porra?” e que o homem, diante do palavrão, ficou meio pálido e fez o depoente entrar em um outro ambiente, mais parecido com uma biblioteca, onde, numa estante, observou a presença de um vidro imenso com algo, parecido com um pedaço de carne maturada, boiando em um líquido amarelado. Que a estante era toda preenchida por animais empalhados, globos antigos, um metrônomo e outros objetos, mas que por certo a coisa mais inexplicável era o conteúdo do garrafão. Conteúdo que era um pênis humano banhado em um líquido levemente rosado. Que, ao notar sua curiosidade pelo conteúdo no garrafão, o homem disse se tratar “do caralho de alguém” e que, ato contínuo, apanhou na estante um papel amarelado, onde o cabeçalho dizia ”SÚMULA”. Que, se era verdade, o pênis fora extirpado de um homem em mil, oitocentos e trinta e três pela tentativa de violar uma mulher na beira de um rio numa cidade chamada Porto da Folha, no estado de Sergipe. Que decretava a sentença: “CONDENO o cabra Manoel Duda, pelo malefício que fez à mulher do Xico Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita com um macete”. A este respeito, que o depoente perguntou: “o que é um macete?” e que o homem de roupão respondeu: “um tipo de facão” e que o depoente completou, “ah”, o que fez o homem de roupão acrescentou: “mas também um martelo. Já pensou ser castrado a marteladas?” Que o depoente desconhece que na história do Brasil não apenas foi aplicada a pena da castração como do espancamento da mutilação e da morte, mas que, nas suas palavras, “isso explica muita coisa”. Que após lhe exibir o vidro, o homem disse ao depoente que sua missão seria levar o garrafão até o outro lado da cidade, onde um homem Porto Alegre - dezembro de 2016

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estaria à sua espera. Que o dito homem é um colecionador e pagou um bom preço pelo pênis na salmoura. : Que entre os problemas de caminhar na rua com um pênis na salmoura, um dos piores é o cheiro exalado. Que a certa altura, por causa do formol, o depoente teve medo de desmaiar, por isso entrou logo em um táxi, mas, devido ao garrafão, que o motorista o expulsou de maneira brusca. Que durante todos os acontecimentos levava no bolso o saco com o pozinho branco, dado pelo homem como “prova de confiança”. Que depois, com o vidro nos braços, o mesmo se deu com outros dois táxis que pararam. Que o depoente não é um usuário dos aplicativos de transporte, pois não possui mais celular. Que a ausência do aparelho lhe fornece a ilusão de que alguém sente sua falta. Que, diante da falta de transporte, se viu na obrigação de levar de ônibus o garrafão contendo o pênis decepado, mas antes, por sorte, passou uma lotação, permitindo ao depoente ao menos viajar com ar condicionado. Que, abraçado ao garrafão, entrou no ônibus, escolhendo um dos últimos bancos para não chamar atenção, mas que mesmo assim um casal não tirou os olhos dele. Que várias vezes o homem do casal olhou para trás, parecendo interessado no depoente e que logo depois, quando o ônibus chegava ao Parcão, ele, o homem do casal, se levantou e, com um revólver na mão, anunciou: “Assalto!” Que em meio à confusão, o homem se aproximou e, ao pegar a carteira, questionou do que se tratava o objeto no garrafão. Que quando contou a respeito, este chamou sua companheira e os dois debocharam do depoente. Que neste momento estavam os três situados na parte traseira do ônibus e que por isso os dois criminosos só notaram mais tarde que o motorista havia aberto a porta e fugido. Que o depoente, por esse gesto, considera o motorista tão covarde quanto um capitão que abandona o navio, mas que também o compreende e teria feito igual. Que assim que o motorista chegou ao lado de fora e deu o alarme, um carro da polícia que passava parou e começou um cerco. Que o depoente e os demais passageiros se viram na condição de reféns. Que o depoente se arrepende de todos os atos irresponsáveis que veio a cometer em Porto Alegre - dezembro de 2016

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seguida, mas gostaria de ressaltar que o depoente negociava a rendição dos criminosos, muito nervosos, e que tudo se encaminhava para uma boa solução, mas que quanto a mulher do casal de assaltantes comentou “quero ver como tu vai explicar isso aí”, apontando para o garrafão, o depoente se deu conta da própria dificuldade. Que o depoente, em um gesto inesperado, tomou quase sem pensar o revólver do assaltante, que não ofereceu resistência, assumindo o controle. Que se arrepende dos gritos de “porco” e das ofensas dirigidas a partir de então aos policiais militares e também, conforme atestam outros depoimentos, à multidão que cercava o lotação. Que, por isso, o depoente se confessa culpado do cerco ter durado mais de dez horas, posto que quando o casal de assaltantes parecia amolecer, era ele, o depoente, que os convencia a continuar. Que o tempo todo o depoente não se moveu por qualquer outra necessidade senão a de impedir que sua ex-esposa viesse a tomar conhecimento de sua presente complicação e, assim, mais uma vez condená-lo. Que sua atitude de se apoderar do revólver é mais um gesto extravagante recente que o depoente não sabe explicar, que de qualquer maneira não se sente responsável pela confusão ocorrida a partir do momento em que multidão descontrolada rompeu o cerco, já que é escolha de cada um comparecer a um incidente com reféns. Que compreende que tanto a polícia como a imprensa, que já estava presente no local, o tenham identificado como o líder dos assaltantes, mas que tal conclusão não tem qualquer nexo com a realidade. Que sua atitude de em todo o decurso dos acontecimentos o depoente não se afastou mais do que um metro e meio do garrafão com o pênis na salmoura, ainda preocupado com a entrega, mas que teve de deixá-lo para trás quando a polícia, para conter a invasão, passou a atirar bombas de gás lacrimogêneo. Que tudo decorre da decisão do depoente, no meio da madrugada, de deixar o ônibus de maneira furtiva. Que o depoente aproveitou que já era madrugada, então abriu a porta e saiu, esperando que não fosse visto. Mas que um grupo, ainda desperto, logo o percebeu. Que na confusão a seguir, alertados, os demais populares correram na direPorto Alegre - dezembro de 2016

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ção do depoente, causando a pronta intervenção policial. Que sua fuga também foi facilitada pela presença dos helicópteros da imprensa, espalhando a fumaça, e pelo caos que se formou. Que não viu mais nada até que de repente se deu conta de estar do outro lado do parque e daí em diante fugiu a pé. Mas que carros da polícia continuaram a passar e em dado momento a polícia apareceu várias vezes junto ao depoente, que iria capturá-lo, que era o fim, o que fez o depoente tremer de medo, mas, apesar disso o depoente seguiu para seu endereço sem ser incomodado. Que em momento algum o depoente se deu conta de ter deixado cair a carteira, com sua identidade e endereço completo até a invasão do apartamento pelos agentes desta. Que não tem ideia do que aconteceu ao casal, exceto a explicação que devem ter aproveitado a confusão. Que o depoente mais uma vez pede desculpas diante dos fatos narrados e espera compreensão quanto a seu presente estado. E que, se possível, gostaria de receber de volta o garrafão e seu conteúdo. E nada mais foi dito e nem lhe foi perguntado.

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María Elena Morán

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Yo soy Francisco Marchante María Elena Morán

Yo tenía catorce años cuando arrasaron con nosotros la primera vez. Desde el faro sin luz yo lo vi todo. Eran apenas unos diez, pero sus armas los multiplicaban. Algunas familias aceptaron irse de inmediato con sus cachivaches y sólo por eso les perdonaron la vida. De nuestra familia, los que podían decidir, que eran el tío Venancio y el abuelo Pepe, estaban pescando en altamar. Cuando regresaron, les dieron bienvenida las ametralladoras y no nosotros, porque algunos estábamos escondidos y otros ya estaban ahogados en un charco de sangre. Yo lo vi todo. Dejaron los cuerpos encima de las redes llenas de pargos. Apenas un día después, cuando tuvimos completa seguridad de que la amenaza había desaparecido, nos atrevimos a buscar los cuerpos. Estaban tan ensopados en sangre que aún había peces moviéndose. Mal habíamos terminado de enterrarlos cuando ya venían de nuevo los desgraciados. Esta vez eran menos, pero venían listos para no dejar ni resto de nosotros y armar su campamento. Los veinte que habíamos restado, ya estábamos golpe y cuida en la cueva que mi hermana María Chiquinquirá sugirió usar como escondite mientras terminábamos la lancha que faltaba para poder irnos todos juntos. Pero ellos de bobos no tenían un pelo y, cuando no nos encontraron, colgaron las cabezas de dos de nuestros perros de la mata más alta del morro y un cartel escrito con sangre: Propiedad Privada. Por precaución, suspendimos la construcción de la lancha. Pasamos cuatro días susurrando, silenciando con paños mojados los llantos de los niños, comiendo yuca Porto Alegre - dezembro de 2016

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cocida y un pescado cuyo sabor se iba volviendo más y más dudoso. Fue durante esos silencios que comenzamos a escuchar a los helicópteros sobrevolando la isla. La abuela María lloraba aterrada y decía que faltaba poco para el fin, pero Juvenal nos explicó que no, que seguramente era la policía y que pronto estaríamos a salvo. Claro que nadie le creyó. A las lágrimas de la abuela, no había dios que les hubiera quitado jamás la razón. Jamás. Dos lloraditas más tarde, los bandidos volvieron. Nos agarraron a mitad de noche. No tuvimos cómo callar a mi perro Manolo, que se me escapó e iba a largar la garganta ladrando enfurecido al cielo donde un helicóptero pasaba como un agujero negro apagando estrellas. Flaquito y chiquito como un indio pasmado, yo logré escabullirme dentro de la cueva hacia el lugar donde los murciélagos tienen sus casas. Hedía tanto que al ratico me vomité encima. Los bichos volaban como a lo loco, pero menos mal que ni me miraban. Pasé la noche ahí y cuando amaneció el sol me descubrió un camino que daba al mar. Intenté rezar pero lo que me salió fue un popurrí de salves, padrenuestros y avemarías de tan cagado que iba de camino al faro, uno de los pocos lugares que parecía no interesar a los invasores. No tenían idea de que lo usábamos de depósito para proteger los alimentos porque las casitas de palma no estaban aguantando tanta lluvia. Era tan deliciosa la vinagreta de cangrejos de mi difunta madre, que por momentos olvidaba mi situación y ni cuenta me daba de que tenía tres días bebiendo agua de lluvia. Pero luego encontré unas botellitas de cocuy y digamos que ahí empezó a sufrir este hígado que hoy me condena. Noche tras noche, subía al tope del faro y me quedaba simplemente mirando la negritud. Un día vi que llegaban todos los míos en un barco cortejado por sirenas negras vestidas con conchitas de chipi-chipi. Las diez Marías cantando y tejiendo sus chinchorros; las crías barrigoncitas dizque por los parásitos, el abuelo con su nariz Porto Alegre - dezembro de 2016

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que ni muerto debe haber parado de crecer. Tenían una celebración a bordo y yo creí que me llamaban. Sin querer me rasqué la frente y me toqué el ojo con la mano llena de cocuy y ahí se me acabó la fiesta, ¡qué ardor del carajo! Entonces caí en cuenta de que el mar estaba vacío, pero no la orilla. Vi unas siluetas y escuché sus voces bien cerquita. Me persigné y pensé que, si me hubieran dejado viva a la abuela, en ese momento ella estaría hipando. Cuando me pasó un poco el culillo, me asomé de nuevo y vi que era simple algarabía de borrachos, porque los asesinos también beben y juegan dominó y echan chistes y, de repente, un sonido me heló la sangre: el ladrido de Manolo. Venía de lejos y tenía mucho de llanto pero era él. Con certeza era él. Sabrá Dios por qué lo habían dejado vivo. Quise correr a rescatarlo, pero ni el mucho cocuy que tenía en la tripa me dio los cojones necesarios para salir del faro. Pasé la noche en blanco. Claro que debía salvar a Manolo, pero no a lo loco. Necesitaba un plan. Primero debía recuperar la lanchita que quedaba en la cueva para huir definitivamente con él. ¿Pero cómo distraerlos para llegar hasta allá? Yo estaba dentro de la respuesta. Ni cerca ni al lado. Dentro. Durante años yo quise encender el faro, pero todos los mayores del pueblo temían atraer de nuevo a los navegantes indeseados que en el pasado habían hecho estragos en nuestra isla, y de eso ni se hablaba. No sabían que ahora esos piratas no necesitaban más que oscuridad. Apenas vieron el haz de luz cortando la noche, estallaron. Fueron un poco de locos al faro a ver qué ocurría, a ver quién se atrevía a clarear sus canalladas. No sé cómo lograban correr con tanta arma encima. Yo, que sólo cargaba un frasco de vinagreta, un destornillador y una lámina de serrucho oxidada, quedé sin aliento de correr hasta el manglar, donde esperé por Manolo hasta la mañana. Siempre que Manolo se me perdía, lo encontraba cazando cangrejos entre los zancos. O revolcándose en las Porto Alegre - dezembro de 2016

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dunas. Coño. Recordé que a veces él se aventuraba a ir hasta allá. En aquel desierto no había cómo esconderse. Pero tampoco debía estar muy vigilado y, en realidad, desde ahí yo podría llegar hasta la cueva sin necesitar atravesar el caserío. Respiré profundo y apreté el culo. Allá lo encontré. Sentí una alegría que pensé que nunca más sentiría. Pero estaba flacucho. Medio pelón. No movía el rabo. Casi ni respiraba. Coño, muchacho. Me miró como miran los ciegos, pero se me acercó como si creyera que yo podría socorrerlo. Creo que ahí perdió la última lucidez. Yo hasta me olvidé del peligro que nos rodeaba. Intenté cargarlo para llevarlo a una sombra, pero él se puso pesado. Como si comiera hierro. Y pasó una cosa que no sé repetir pero que fue como si el sol del mediodía sobre su cráneo casi desnudo le evaporara la sangre. Una nube roja, maloliente, que no engañaba; mi perro, mi viejo Manolo, estaba pasando a la eternidad o algo así. El polvillo escarlata se mezclaba con los granos de arena, se me pegaba en el pelo, en el pecho, me ensuciaba la boca de muerte. Vaya usted a saber si era de Dios o del Diablo, pero era un espectáculo. Yo lo vi todo. Perplejo. Y le dije adiós. Cuando pasó el polvorín, de Manolo sólo quedaron los dientes, vueltos astillas. Malditos. Malditos mil veces ellos y sus suciedades. Después de que me le envenenaran los ojos con tanto horror visto, mi buen Manolo ya no supo más vivir. Y yo no supe más de mí. Todo plan se me volvió humo en la cabeza. Sin pensarlo, ya iba andando hacia las que fueron nuestras casas, ahora profanadas por la Bestia, y en cuestión de segundos ellos me rodearon. Mi lengua se soltó sin pedirme permiso. –Mi nombre es Francisco Marchante. Y yo quiero trabajar para ustedes–. Me miraron como gallina que mira sal. Dijeron que yo tendría que hablar con “El Duda”. Fui escoltado hasta la tienda en la orilla del mar. Me acerqué esperando encontrar un grandulón y lo que vi fue un hombre bajito y con pocas carnes. Ni necesité lePorto Alegre - dezembro de 2016

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vantar la mirada para hablar. Mejor así, porque con tanto odio que yo tenía en las pupilas, debía doler mirar para arriba. Me sorprendió el acento extranjero con el que me saludó . Como si un criminal de su talla necesitara dar explicaciones y como si eso atenuara en algo su currículo, dijo que era un brasileño que nunca quiso dejar Brasil pero que quería bien a su islita venezolana. Dijo eso rápido y lo dijo con orgullo y, él no sabía, pero lo dijo con inocencia también. Se acercó ya queriendo ser un mentor. Cuando lo tuve en frente y le dije que yo era el hijo de una de las María, la tejedora, y él sonrió una sonrisa que olía a café con leche y mandó a los matones a dejarnos a solas y me dijo que, siendo así, estaba orgulloso de que lo buscara y me abrazó, yo le clavé el destornillador en aquella pupila tan llena de paz, por ¡María!, y en el otro, ¡por otra María!, y en la barriga, ¡por otra María más!, y en el pecho, por todas las Marías y los Josés y los Franciscos y los Venancios y los Jacintos y los carajitos y todos aquellos cuyos cuerpos acabaron hinchados flotando en la playa. Ahora era su cuerpo el que caía en el agua. Pero ese cuerpo no flotó. No. Ese cuerpo se hundió rápido, como ancla de barco carguero. Y en la ola que levantó, una legión de jaibas salió a la arena y avanzó en dirección a los macarras que ya venían por mí y que dispararon desnortados contra ellos sin que las balas consiguieran quebrar sus envergaduras azules, más azules que el mar donde yo ya nadaba por los siglos de los siglos, amén. Ahora me llamo Eugenio Gamboa y soy cartero. Nunca le conté a nadie que yo sobreviví a aquella isla que los mapas ya ni nombran, por miedo a que el mal se esparza por el archipiélago. Tal vez un día, cuando me dé por hablar y entonces me internen en el manicomio, o en la cárcel porque uno no sabe cuál será la suerte del pobre, le contaré a algún viejo demente que mi nombre no es Eugenio ni mi apellido Gamboa, tal vez le diga que yo fui Francisco Marchante, que fui reparador autodidacta de faPorto Alegre - dezembro de 2016

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ros; que vi a mi querido Manolo enfermo de asco entrar en la eternidad; que cometí un crimen que luego supe que se llamaba parricidio pero que para mí se llama justicia; que decapité, sin saber, a ese narco-imperio de las Américas que se antojó de existir justo en mi isla perdida; que no sé cómo vine a dar a esta ciudad, pero que siempre sueño con sirenas negras que me guían. Tal vez un día yo conozca una María y me enamore de ella y juntos reinventemos gente. Por ahora, me escribo cartas pidiéndome perdón por la valentía tardía y me respondo aún más tarde, rechazando la oferta de olvidar.

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Camila Maccari

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Depois que aquilo aconteceu Camila Maccari Ele tinha dito que ligaria, então eu esperava o telefone tocar porque, se tinha dito, ligaria. Provavelmente. Com certeza. Ligaria e me diria que tudo estava certo e que tinha chegado bem e que, por mais que me amasse, era Lá Longe que queria ficar. E eu entendi e ainda entenderia quando ele ligasse e dissesse isso, que era Lá Longe que tinha que estar para ficar bem. Porque eu também o amo, mas, se dependesse de mim, se a escolha fosse minha, ele ficaria aqui por perto mesmo e a gente tentaria muito fazer as coisas se ajeitarem. Mas também sei que as escolhas geralmente não são minhas. Não tinha escolhido ele para me amar, mas me amou e eu não vi saída que não amar de volta. E então estou aqui, amando de volta e sentada em uma poltrona, em frente ao telefone, esperando ele ligar e segurando o recipiente de quando Aquilo aconteceu. E o telefone está aqui, em frente à poltrona, me olhando enquanto espero e as coisas geralmente são assim, eu espero que elas aconteçam à minha volta e já está no horário em que ele disse que chegaria e que, portanto, ligaria, mas o telefone ainda não tocou. Ou, se tocou, tocou um som abafado, para dentro, imperceptível demais aos meus ouvidos. Pode ser isso. Quando era criança, tive uma infecção muito forte no ouvido que deixou sinais de surdez. Minha mãe diz que isso é coisa da minha cabeça e que não tenho sinal nenhum de surdez, mas acho que ela diz isso porque deve ter alguma culpa em relação à minha infecção. Ela não tem cara de ter sido uma boa mãe quando precisei que fosse, ou seja, quando eu era bebê e criança pequena e depositava no colo materno todas as minhas necessidades. Acho que elas, minhas necessidades, foram frustradas, em sua maioria. Eu sinto tanta fome agora que Porto Alegre - dezembro de 2016

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acredito mesmo que isso seja um resultado de não ter sido bem alimentada quando era bebê. Minha mãe diz que também isso é coisa da minha cabeça, mas acho que estou certa e também sei que quando Aquilo aconteceu ela lidou com toda a situação de forma muito rápida e esperta porque, na verdade, ela se sente em dívida comigo. Me pergunto se aconteceu alguma coisa para ele não ter ligado ainda, mas acho que não aconteceu nada. Se bem que minha mãe diz também que eu sou o tipo de adolescente que acha que nunca vai acontecer nada com ele e, por culpa disso, Aquilo aconteceu aquela vez. Mas eu não acredito na minha mãe e acho que o que aconteceu foi um fato isolado que eu já resolvi e, no caso, ela resolveu junto, mas isso porque ela era a adulta responsável mais próxima e, de forma geral, tudo ficou bem, eu resolvi, minha mãe resolveu e e ele também resolveu e, depois de tudo, do descontrole e todo o resto, foi tão legal comigo que só de lembrar me dá um nó no coração e uma vontade de chorar que vem como uma ânsia de vômito e eu não vomito mais desde que Aquilo aconteceu porque quando aconteceu, quando eu percebi que tinha acontecido, eu vomitei um monte. Que triste que ele me ame tanto mas que precise ficar Lá tão Longe. Eu acho até que preferiria que ele me amasse um pouquinho menos e ficasse por perto e não ficasse tão bem e poderíamos ficar assim não tão bem juntos, mas com algo de amor e a gente faria diferente. Ninguém precisa de tanto amor, com um pouco a gente já dá jeito. Minha mãe diz que todo mundo precisa de amor, mas eu acho que ela mesma não acredita nisso e diz esse tipo de coisa só porque acha que é função de mãe fazer com que eu acredite nessas coisas. Assim como ela acha que desempenha o papel dela quando me manda comer salada ou dormir cedo. Mas sei que ela geralmente está nem aí para o que eu como e para a hora que eu durmo. Então acho que é mentira mesmo isso, as pessoas realmente não precisam de tanto amor, e eu vejo isso por ela, minha mãe, que parece se virar tão bem na vida, no trabalho e não tem nenhuma pessoa que a ame. Quem sabe minha avó amasse, mas minha avó morreu faz tempo e daí não sobrou ninguém. EnPorto Alegre - dezembro de 2016

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tão estou aqui ficando irritada porque por mais que eu possa esperar, na verdade tenho todo o tempo do mundo, não gosto muito de me sentir esperando. Me dá agonia e desde que Aquilo aconteceu, eu fico ansiosa e começa a doer embaixo das unhas. Acho que essa foi a única coisa ruim que Aquilo deixou, uma ansiedade que antes eu não tinha ou quem sabe tivesse e não percebia. Tem um pó brilhante que eu nem sei daonde brilha, que luz reflete nem o que, mas que fica dançando em volta do telefone e eu sei que é de sujeira, mas mesmo assim fico ofendida porque esse ar brilhante pode dar a impressão de festa e alegria e não quero passar essa mensagem para ninguém agora porque não me sinto nem em festa nem alegre, mas sim um poço de tristeza por ele ter que ficar bem só Lá Longe e, além disso, tenho que cuidar para que o pó e a sujeira não entrem no recipiente porque eu gosto de mantê-lo limpo quase intacto muito mais limpo que estaria se seguisse no lugar de origem, disso eu tenho certeza. Mas não tem ninguém aqui, nem ele, que não liga, mesmo depois de dizer que ligaria. Estou começando a ficar preocupada, mas não preocupada de verdade, só o tipo de preocupada que sei que tenho que estar numa situação dessas. Minha mãe vive dizendo que queria ser como eu, porque nunca me preocupo com nada. Mas ela está errada porque me preocupo em estar e ficar e parecer preocupada e isso já dá um trabalhão porque tem vezes que eu nem precisaria ficar, mas não sei disso na hora e acabo me esforçando por nada e sempre que eu tenho esse gasto inútil de energia fico muito irritada. Mas agora eu sei que é hora mesmo de me sentir alarmada porque ele está indo Lá Longe para ficar bem e sempre é perigoso andar de carro em dias chuvosos e chove tanto ultimamente e também chovia quando Aquilo aconteceu. Agora mesmo, enquanto eu encaro aqui o telefone, está chovendo muito lá fora, mas nem é reconfortante porque tem uma goteira aqui dentro da sala que fica fazendo um barulho repetitivo que me deixa incomodada. Minha mãe falou que pediria para alguém arrumar isso, mas é uma das tantas coisas que ela só fala e nunca faz e eu já nem presto mais atenção nela. E também, Porto Alegre - dezembro de 2016

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depois que Aquilo aconteceu eu não acho mais que a chuva seja algo calmo porque eu sinto que eu meio que apaguei enquanto ouvia a chuva ao mesmo tempo em que fazia aquilo que eu nem queria exatamente fazer porque eu, na verdade, nunca queria fazer nada, sempre era ele quem queria e então eu fazia porque é a isso que chamam de amor e tinha chuva e chuva e chuva e de repente já tinha sangue e um pedaço de uma coisa na minha boca e ele me deu uma pancada que deixou uma cicatriz na bochecha por causa do relógio e o próprio relógio aqui na minha frente afirma que ele claramente já chegou e deveria ter ligado faz uns cinco minutos. Não sei como ele espera que eu acredite que ele está bem se não liga para dizer e nem como ele espera que eu acredite que está tudo bem entre a gente se ele não deixa isso claro o tempo todo todo todo. Ele sabe como eu gosto de saber das coisas, como são as coisas e como elas estão. Foi assim no começo, quando ele decidiu me amar e eu não vi saída que não amar de volta até porque eu mesma nunca teria me amado. Acontece que ele me amava e amava outras e eu não sabia o que isso queria dizer e ele também não dizia. Até que um dia ele disse, eu te amo, mas amo elas também e eu disse que assim não, que eu bastava e ele deveria amar só a mim então acho que, na verdade, eu me amo também. E então ficou amando só a mim e era muito amor, embora ache que tenha me amado um pouco menos depois que Aquilo aconteceu, mas também eu realmente acho que Aquilo aconteceu por culpa dele. De qualquer forma isso era passado e eu sabia que o amor dele continuava a ser gigante porque ele tinha tanto para dar e todo o seu sentimento estava voltado para mim e, talvez, agora, existam outras formas de a gente mostrar amor porque do outro jeito eu nunca queria e era muito amor. Às vezes chegava a ser difícil lidar com tanto e eu me sentia sufocada e ficava irritada, mais irritada do que eu estou agora que ele não liga e que tem essa gota insistente caindo num ritmo enlouquecedor no chão da sala enquanto os pós dançam felizes. Mas acho que agora será mais fácil para nós dois, porque ele está Lá Longe e por mais que ele morra de Porto Alegre - dezembro de 2016

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amores por mim, esse amor vai se dispersar um pouco no universo antes de me encontrar e, enfim, eu tenho esse pedaço dele comigo que ele nem imagina que eu mantenha e isso é a segunda outra coisa que ficou depois que Aquilo aconteceu e eu cuido como cuido de mim. Acho que, quem sabe, se eu tivesse aceitado antes que ele me amasse e amasse as outras, teria sido melhor. Mas, na verdade, se tivesse sido assim, agora ele iria ficar bem Lá Longe e quanto amor chegaria até mim, não sei. Creio que muito pouco. Amor fracionado funciona de perto, bem perto. Perto do jeito que estava quando o amor todo dele era meu perto do jeito que a gente estava quando Aquilo aconteceu porque era assim que o amor funcionava. E agora ele está Lá fora indo Longe para ficar bem - e na chuva! - e disse que ligaria e ainda não ligou, então tenho certeza que aconteceu alguma coisa. Porque ele é assim, se diz que vai fazer, faz. Se prometia, eu poderia ficar tranquila que cumpriria e sempre foi assim, mesmo quando Aquilo aconteceu. Minha mãe dizia que ele só fingia e que na verdade não se importava, mas eu sei que ela estava errada porque ela geralmente está. Já faz dez minutos que estou sentada aqui e já faz dez minutos que ele está atrasado e já faz dez minutos que estou ficando irritada. Eu sei que o telefone não gosta de mim, nenhum telefone gosta porque quando eu era criança adorava cortar os fios com um alicate e minha mãe dizia que isso era mau e que assim as pessoas não podiam falar com o telefone e ele ficava sozinho, e acho que ele está aproveitando e se vingando de mim, vingando toda a solidão que eu destinei aos outros telefones e me dizendo algo debochado do tipo, vai, me deixa sozinho agora, me deixa, quero ver você conseguir se afastar de mim, eu estou ficando cada vez mais irritada e parece que até a gota de água percebeu isso porque começou a cair num ritmo mais frenético e a cada sete não oito espera a cada seis pingos em um mesmo ritmo, ela surpreende o momento do próximo, agora foi a cada cinco, agora, eu juro, a água tá pingando no som de uma risada malvada e eu olho pras faíscas de pó que também perceberam que eu tô infeliz aqui e começaram a brilhar ainda mais como se Porto Alegre - dezembro de 2016

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não se importassem comigo como se eu não fosse nada aqui como se nem estivesse parada esperando que ele me ligasse e dissesse que tinha chegado bem no lugar Lá Longe onde ele foi pra ficar bem e o telefone fica rindo junto com a água e eu vejo seus fios brilhando junto ao pó e eu tô ficando cada vez mais irritada mas tenho que manter a calma porque toda vez que eu perco a calma alguma coisa acontece e foi isso que causou Aquilo aquela vez eu sei que perdi a calma, embora, para mim, apenas chuva e escuridão e ele vai ligar eu sei que já se passaram doze minutos mas pode ser que ele tenha parado porque era necessário trocar o pneu na estrada ele vai ligar é só manter o telefone parado no lugar só continuar olhando para o aparelho mas aí eu percebo que definitivamente não sou eu quem estou olhando para o telefone e sim é ele quem está me encarando como se eu fosse uma vítima coitada pronta para ser devorada e isso é mau, que o telefone me olhe assim, e eu não consigo fugir desse olhar que diz que ele não vai ligar embora eu saiba que vai e o telefone começa a gritar comigo e grita uma duas três quatro cinco seis vezes grita tanto que eu começo a gritar de volta e chega uma hora em que o telefone para de gritar e fica só o meu grito na sala e de repente eu sinto meu corpo todo contraído num espasmo e eu tô com tanta tanta tanta raiva que se eu pudesse eu faria tudo Aquilo de novo outra vez e para sempre.

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Ciro Nogueira de Oliveira

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Moça da limpeza Ciro Nogueira de Oliveira Todo o relato foi possibilitado pelas paredes finas, olhos mágicos e fofocas do Edifício Alabastro: Porto Alegre, 2015.

Um estrondo de madeira contra madeira ecoou nas escadarias do prédio às oito da manhã. Era uma porta golpeada, pouco depois aberta num puxão pelo morador de seus cinquenta e tantos anos, alto, branco, pijamas, que de dentro do apartamento viu a moça da empresa de conservação. Ela estava de olhos bem abertos, talvez um pouco sem jeito pela pancada acidental ao varrer o corredor, vestia um uniforme alinhado, combinando na cor com acessórios de inverno: luvas, gorrinho e cachecol. O homem deu um rápido golpe de vista no vassourão de piaçava que a menina segurava e, voltando a olhar para ela, mostrou a voz rouca: – Me acordando a essa hora deve estar querendo dar pra mim. A moça não respondeu de imediato. Baixou os olhos reparando nos chinelos Rider do homem, em tempo suficiente para calcular as frieiras que deviam haver ali embaixo e, finalmente, encarou seu queixo esverdeado dizendo “desculpe senhor, não foi minha intenção”. Pelo que se sabe, não comentou a situação com ninguém. Fazia pouco que estava no emprego e, a julgar pela concentração com que naquele mesmo dia varreu todos os quatro andares do prédio, começando pelo último – onde vivia o homem rouco – e em seguida passou pano com sabão e água sanitária e por fim um rodo com desinfetante eucalipto, coisa que teria que fazer três vezes por Porto Alegre - dezembro de 2016

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semana, parecia não ter se abalado com o diálogo. Fosse como fosse, também não havia sido vista conversando com mais ninguém do lugar, o mais que se via era sua chegada sempre pontual e, como fazia frio de inverno, seu figurino aconchegante que deixava a camisa polo com o emblema da empresa parecer um acessório dispensável, porém não dissonante.

As pancadinhas de vassoura nos rodapés das portas eram inevitáveis se quem varria pretendesse cobrir todo o bloco de poeira do chão nas áreas comuns do prédio. Outros moradores nunca se incomodavam, muito possivelmente porque não estivessem em casa à hora da limpeza do condomínio. A porta do homem do último andar, no entanto, seguia sendo cutucada em sua presença e em resposta a uma dessas pequenas provocações – que assim ele devia entender – coisa de uma semana depois de haver apresentado suas maneiras, ele abriu mais uma vez sua porta de um puxão: só que menos estabanado que da vez anterior. Encarou a moça desconfiado. Ao receber um olhar calmo de volta, virou para o chão, relaxou a fisionomia, e, apoiando o corpo em uma das pernas, disse “moça, bom dia. Acabei de passar um café. Você aceita?”. Do andar de baixo, a síndica, que fazia força para ouvir o que se passava através das portas corta-incêndio, supôs que a oferta fora aceita, pois, após o clique da fechadura do vizinho, não pôde mais ouvir a movimentação da varredura como instantes antes. Desistiu da bisbilhotagem e voltou para suas coisas. Apenas na hora estipulada para o fim do expediente da limpeza, lembrou-se de interceptar a moça na escadaria, sem nem se preocupar em fazer perguntas introdutórias sobre o andamento do trabalho: – Fabiana, olha, te cuida que esse homem aí em cima é um porco. Outro dia ele mexeu contigo, não foi? – Preocupa não, dona Lúcia. Isso daí passa.

Trabalhou mais alguns meses no prédio. Em gePorto Alegre - dezembro de 2016

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ral, os moradores apenas davam pela presença da moça quando cruzavam-na pelas escadarias e corredores. Como não havia colegas de trabalho no edifício, não tinha com quem comentar onde vivia, o que fazia nos outros dias de trabalho pela empresa e se teria família e coisas do tipo. Apenas o homem do 405, barba verde, voz rouca, parecia se lembrar das datas de sua ida ao prédio, pois quase sempre nessas ocasiões abria a porta dizendo que havia acabado de fazer café (às vezes substituído por chá) e até acompanhado por biscoitinhos de nata no dia em que ele estreava um pijama novo, cor de vinho, 100% algodão. Durante os cafés o homem lhe fazia perguntas de sua vida, onde morava, o que mais fazia e, embora suas respostas fossem evasivas, inspiravam confiança. Mesmo que aparentemente ninguém visse ou se queixasse dessas breves conversas, lá pela quarta vez a moça advertiu ao homem que seria melhor que parassem, pois não pegava bem que fizesse pausas para comer e tomar café durante o horário de serviço, mas que se um dia ele precisasse de algo era só chamar. – Se quiser anotar meu telefone, tá aí.

O homem, que até então tinha como uma das poucas atividades rotineiras a ida diária ao bar da rua no fim da tarde, passou a ser visto com maior frequência entrando e saindo do prédio com embrulhos grandes, pacotes com cortinados, abajures e um dia até apareceu com carregadores de móveis. Seus assuntos com os convivas, que se resumiam a abordagens ressentidas da política local e ironias futebolísticas, passaram a compreender temas como filmes e músicas do passado. Notando novidades em seu humor, os colegas perguntavam se andava de namorada e quem seria a santa caridosa. – Que caridade. Sou aposentado, não morto!

A razão para essa nova movimentação no quarto andar e na vida do sr. Fernando (alto, rouco, ap. 405), Porto Alegre - dezembro de 2016

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a síndica soube por boca de Fabiana, a moça da faxina. Ou pelo menos atribuiu à notícia que esta lhe deu no dia em que bateu à sua porta para perguntar se havia algum tipo de restrição do condomínio a que ela, funcionária terceirizada da limpeza, mantivesse vínculo de trabalho com algum condômino. – Ele me ofereceu carteira assinada e como não tá tendo demanda pra mais que meio horário na firma, pra mim vai ser bom. – Problema nenhum, minha filha. Mas vai vendo, que esse homem... – Nada, dona Lúcia. Essas coisas...

Surpresa mesmo foi o dia em que o interfone de d. Lúcia, a síndica, tocou, e perguntaram “oi, é do apartamento do Fernando?”, “não, é outro”, “qual é mesmo?”, “quem gostaria?”, “é a irmã dele”. Em seus doze anos de condomínio não havia nunca testemunhado uma visita sequer à casa do homem, também não tinha notícias de que tivesse parentes vivos. Pelo olho mágico de seu apartamento pôde ver a suposta irmã enquanto passava por seu andar e pôde também escutar o silêncio que se seguiu à abertura da porta no andar de cima quando a visitante bateu a campainha. Não parecia uma visita casual. No entanto, dessa época em diante, outros parentes apareceram e mesmo dois filhos de quem os vizinhos nunca tiveram notícias foram visitar o pai no 405. O homem saía de casa seguidas vezes. Dava bom dia na escadaria. Cheirava a loção pós-barba. Uma vez chegou a anunciar no bar que aquela noite beberia suco, pois não estava com boca de cerveja. À gozação generalizada que se impôs, respondeu com um convite que seria impensável para quem não o visse há mais de um ano: – Vou dar um jantar em casa. Queria que todos vocês fossem.

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Dona Lúcia e todos os vizinhos que tiveram ocasião de cruzar com o homem nas escadas ou garagem por aquela época também foram convidados. Quem entrou em sua casa na noite marcada conheceu um apartamento limpo e organizado, apesar de velho e cheio de infiltrações. O mobiliário era pouco e dava a impressão de ser quase totalmente composto por peças carregadas pelas escadas do prédio nos últimos tempos. Havia um cheiro forte (de homem?) no ar, na sala disfarçado pelo odor de lavanda da cera amarela, no banheiro pelo eucalipto do desinfetante e em geral pelo lombo assado que vinha da cozinha. Contavam-se coisa de cinco parentes – incluindo a filha e o filho na casa dos trinta –, dois amigos do bar e três vizinhos, dentre os quais Lúcia, além do próprio Fernando e Fabiana. Essa, ao servir o jantar, cumprimentou a todos com tanta simpatia, vestido bonito e ares de anfitriã que nem pareceu novidade quando o “a gente vai casar no começo do ano” saiu da boca do homem no momento de breve cerimônia que antecedeu a refeição.

As transformações que se seguiram à notícia foram da ordem do que se pode chamar de esperado, exceto pelo fato de que a moça seguia trabalhando na empresa de conservação e faxinando três vezes por semana o prédio em que passou a morar no mesmo 405 com seu noivo. Este, por sua vez, seguia demonstrando suas aquisições de simpatia, deixando cada vez mais para trás a aura de vizinho carrancudo e indesejável para ser considerado até um velho sereno e solícito. Seus filhos passaram a visitá-lo com frequência e o menino às vezes guardava o carro na garagem. Nessas ocasiões, o senhor Fernando descia para conferir se estava bem estacionado e, se achasse que não, ele mesmo refazia a manobra. Quando soube certa vez que dona Lúcia precisaria viajar às pressas para um enterro e que pretendia ficar fora por uma semana, ofereceu por iniciativa própria à síndica para cuidar de suas plantas (pois ele também tinha plantas e entendia do assunto) e prontificou-se até a resolver em nome do condomínio duas Porto Alegre - dezembro de 2016

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ou três burocracias daqueles dias. Dona Lúcia aceitou a oferta agradecida e como não notou a menor ponta de falsidade na presteza do homem, resolveu comentar com Fabiana quando subia com os vasos para o andar de cima e ficou a sós com a moça: – Olha, Fabi, não sei se te peço desculpas pelo que falei uma vez do Fernando, ou se te pergunto qual teu segredo, porque vou te falar, só vendo pra acreditar. A moça riu: - Nada não, Dona Lúcia, nada não...

A reta final desta história tem início quando o homem adoece, não se sabe se um forte resfriado que virou gripe e pneumonia, ou se outra coisa mais rara, o caso é que não chamaram médico, ficaram trancados os noivos em casa tratando por conta própria da situação e, por via das dúvidas, resolveram adiar a data do casório. Os filhos passavam, o pai dava sinais de melhoria, conversava bem, depois piorava de novo. Foi um processo longo. Até que um dia se levantou, sentindo-se apto, e foi na rua até a padaria, onde cruzou com um amigo do bar que não havia dado por sua doença, já que o homem havia algum tempo não saía para beber. – Fernando, mas tá tudo bem? Você envelheceu uns dez anos!

Embora o amigo do bar não estivesse de todo errado, Fernando seguia parecendo feliz, apesar de ter adquirido, desde a doença, uma aura de fragilidade de todo contrastante com sua antiga figura encarapuçada. Fabiana passou a assumir toda a administração da casa. Fazia compras, dava informações para os filhos do noivo e quando Lúcia não estava, era ela a quem os vizinhos procuravam para resolver pequenas questões do condomínio. Fernando adoeceu mais uma vez, e depois outra vez, ao ponto de adiarem o casamento sem fixar nova data, o que era comunicado pela própria moça aos poucos convidados. Cada vez mais ela era vista entrando e saindo do prédio Porto Alegre - dezembro de 2016

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acompanhada pelos filhos e irmã do noivo. Um dia, teve a impressão de estar sendo escutada pelo vizinho de porta enquanto varria o corredor e conversava com a futura enteada. – Seu pai propôs que nos casássemos no civil por agora. Acho que ele tá com medo de não melhorar mais.

Fernando morreu na cama em uma tarde de agosto em que recebeu sua única visita de médico, já para atestar oficialmente o óbito. Até onde se sabe, não houve casamento. Os vizinhos ficaram chocados. Dona Lúcia chegou a chorar. No enterro, que teve a presença de pelo menos o triplo de pessoas em relação ao jantar no apartamento, os comparecentes viram Fabiana em luto completo, do véu à ponta do vestido longo, e talvez tenham pensado que dali saíra a serenidade contagiante que foi capaz de tocar o homem grosseiro do 405. Descido o caixão, a filha aproximou-se da moça e, num tom afetado, não se importando em ser escutada por quem estivesse presente, disse que havia passado muito tempo sem falar com o pai, mas que tinha certeza de não se lembrar de vê-lo tão feliz. – Obrigada, Fabiana. Espero que a lembrança dessa época não se torne um marco triste em sua vida. Fabiana respirou algumas vezes, baixou os olhos, e, só quando começou a responder, voltou a encarar a ex-futura-enteada: – Nada não, minha filha. Essas coisas passam.

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Ana Cláudia Martins

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Looping

Ana Cláudia Martins Duda e Nico, recém-casados, entraram na casa dos seus sonhos num ex-bairro decadente. A janela da cozinha era ampla e permitia a visão de todo o quintal, onde Nico, tomando água com um dos pés apoiado na panturrilha, imaginava uma ou duas crianças correndo, ou até mesmo dentro da piscina. Antes de voltar a retirar o resto dos utensílios da caixa, ele olha para o lado e vê na cozinha do vizinho uma moça limpando as janelas. Lembra de que quando foram olhar a casa pela primeira vez, não havia percebido que era possível ver a cozinha dos vizinhos. Chama Duda e faz a pergunta que tanto estava o perturbando. Ela também se espanta com a novidade, mas logo se recorda de que havia cortinas em sua primeira visita. Os dois se olham e sem nenhuma palavra decidem que devem comprar uma cortina logo. No último dia da mudança os dois se sentaram no sofá e, exaustos, se abraçaram. Duda olhou para Nico e disse: – Lembra que comentamos qual seria a primeira coisa que faríamos quando tudo estivesse pronto? Antes que diga que não, combinamos de abrir aquele vinho que compramos naquele vinhedo na Argentina, nas férias improvisadas de natal. Lembra? – Ahh, mas eu lembro sim! Na segunda eu coloquei na adega. – Vou lá buscar e deixa que eu abro! Sem ligar a luz, Duda entrou na cozinha e abriu a adega. Leu o rótulo que dizia a temperatura ideal e percebeu que estava um pouco acima do recomendado. Resolveu alterar a temperatura e deixar lá por mais um tempo. Porto Alegre - dezembro de 2016

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Enquanto fechava a porta, olhou para cozinha do vizinho e viu uma mulher encostada na pia olhando para um horizonte ainda mais imaginário que verdadeiro, com um copo na mão e um dos braços cruzados. Parecia sozinha. Ficou com o olhar preso na mulher até ouvir o chamado que vinha da sala. Nico perguntou pelo vinho e ela disse que estava na temperatura errada. Voltaram a se abraçar por um longo período. – Temos que comprar uma cortina. – disse em meio ao abraço. Nico a apertou mais forte como resposta e deu um beijo na sua testa. Ficaram ali até o vinho estar como Duda queria. Duda voltou à cozinha e viu que a mulher continuava ali, parada na mesma posição. Abriu a gaveta, ainda olhando em direção à casa vizinha, procurou o abridor de vinho e o abridor do lacre, abriu a adega que ficava embutida na bancada, pegou o vinho e descascou o lacre. Ainda olhando para a outra, levantou um dos braços para alcançar as taças de vinho, pegou uma de cada vez e colocou na bancada. A vizinha se virou e olhou fixamente para Duda, como se já soubesse que estava sendo vigiada e que agora fosse a sua vez de retribuir a gentileza. Duda estava com vergonha de ter sido descoberta, mas não parava de olhá-la. As duas não se cumprimentaram, apenas se olharam fixamente. Quase sem tirar os olhos da vizinha, Duda enfia o saca-rolhas na ponta da garrafa girando até fim. A mulher fica mais próxima da janela no momento em que o abridor chega no seu limite, e Duda puxa levemente a rolha para fora, sente o cheiro do vinho. É quando percebe que estava demorando tempo demais. E delicadamente coloca líquido nas duas taças e ergue uma à altura dos olhos, saudando a amiga e se vira. De volta à sala, Nico sorria com a sua boca escondida na barba. Ele disse que ela estava linda só de camisa e ela disse que ele também. Os dois riram e ele perguntou se um desses copos era para ele e ela disse que não tinha pensado em dividir, mas que agora ia prestar mais a atenção nele. Riram outra vez. Porto Alegre - dezembro de 2016

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Quando Duda voltou à cozinha para buscar mais vinho, olhou pela janela e não encontrou ninguém, nenhum olhar retribuindo o seu. Resolveu levar a garrafa para sala. Naquela noite estavam sem cama, pois houve um atraso na entrega. Acampados na sala como crianças no seu forte de lençóis unidos, eles adormeceram no meio de uma conversa sobre calças de linho e camisas de seda. Acordaram um pouco mais tarde, afinal era domingo. Tinham feito a mudança no sábado de folga de Nico. Segunda-feira os dois teriam que voltar ao trabalho. Nico levantou primeiro, foi até a cozinha e picou algumas frutas que foram compradas emergencialmente na ida para casa no dia anterior. Acordou Duda sem café e um tanto triste ela sorriu. Perto do meio-dia, a campainha tocou e o casal achou, naquele momento tão corriqueiro, algo de extrema importância. Duda colocou um lembrete no seu celular com a data e a hora da primeira vez que a campainha tocou. Abriu a porta esperando algum dos familiares que sabiam a data da mudança e talvez pudessem passar para ajudar com qualquer coisa. Era a mulher, muito bem arrumada, um tanto diferente de como se lembrava de ter visto na janela da cozinha. Se aproximou do portão com um sorriso mais contido e perguntou em que poderia ajudar. Lembrou da sua avó no portão da casa fazendo essa mesma pergunta com luvas de jardinagem e um chapéu em baixo do braço. A recordação fez com que se distraísse por alguns segundos e teve de refazer a pergunta como quem não se fez entender. – Oi, moro na casa ao lado. Vi um caminhão de mudança ontem e pensei em vir aqui dar boas-vindas. Duda permaneceu em silêncio. – Não sei se vocês são da cidade ou de alguma outra aqui perto, mas tenho alguns telefones que posso indicar. A nossa mudança foi difícil e queria muito ter tido algum suporte, por isso meu interesse. – Claro, desculpa. Não estou acostumada a receber visitas assim. É realmente bem raro esse tipo de gentiPorto Alegre - dezembro de 2016

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leza. Muito obrigada. – Eu falei vocês. Presumo que sejam um casal. – Sim, somos. Gostaria de entrar? – Não, muito obrigada. Só vim para me apresentar, o que esqueci de fazer. Roberta, meu marido está viajando. – Prazer. Eduarda. Meu marido se chama Nicolas. Está lá dentro, curioso com a possibilidade de termos uma primeira visita. – Já ia esquecendo, trouxe esse vinho. E o meu número de celular. – Obrigada. Preferes que te dê o meu número ou posso simplesmente te mandar uma mensagem para teres o meu. – Prefiro a mensagem. Aí já teremos uma pequena obrigação de mantermos contato e não nos tornarmos apenas vizinhas. – Certo, mais uma vez obrigada. –Até logo. Eduarda, como se apresentava, Duda, como se sentia. Levou a garrafa de vinho para dentro e chamou Nico. Contou brevemente a conversa que teve com a vizinha e notou que o vinho que ganhou numa embalagem de couro era o mesmo vinho que estavam tomando na noite anterior. Pensou que aquilo era uma grande coincidência. Ao mesmo tempo não esquecia a voz dela, nem a forma como parecia tão confortável tocando na campainha de uma vizinha desconhecida num domingo. Olhou o número escrito em caneta preta com uma caligrafia digna de cartas bicentenárias, assinado como Roberta. Decidiu colocar o número na sua agenda no celular e guardar o cartão no meio do seu livro preferido. Antes de dormir, Duda vai até a cozinha buscar água. Procura por Roberta na janela. A luz da cozinha está ligada, mas não consegue ver ninguém. Fica parada com o copo na mão, até que vê um homem grisalho, com uma garrafa de alguma bebida destilada. Ele bebe no bico sem Porto Alegre - dezembro de 2016

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Ano V - Número 16


nenhuma cerimônia. Roberta o acompanha em seguida na cozinha. Ela tira a garrafa da mão do homem e bebe com ainda mais displicência. Ele a segura pelos cabelos e rouba a garrafa. Sai da cozinha e a deixa parada no meio do recinto, com os cabelos levemente bagunçados. Abre uma garrafa de um single Malt escocês de 14 anos, da região de Terras Altas. A luz se apaga e a mulher continua lá. O homem volta e a leva da cozinha. Duda os acompanha até a porta com o olhar. Não sabe o que aconteceu, talvez isso a deixe mais preocupada. Duda sobe as escadas assustada, com os passos pesados. Entra no quarto encontrando Nico em sono profundo. Pensa em acordá-lo, mas recua. Se deita na cama e fica encolhida até a hora que o marido acorda. Nessa hora ela o abraça e pede para ele não ir trabalhar, como uma criança assustada, um pássaro ferido. Já ele, sem entender o que aconteceu, abraça Duda, mas depois vai trabalhar. Sozinha, ela toma café tentando não pensar no que pode ter acontecido. Toma um banho e já se sente melhor. Decide ir ao shopping ver se encontra uma cortina. Tira as medidas necessárias, faz fotos no celular e então sai de casa. Quando entra no carro, olha em direção à janela de Roberta. Não vê ninguém. Liga o carro, coloca uma música e se distrai. Na volta para casa, ao passar pela casa de Roberta, vê o mesmo homem saindo com uma mala pequena da porta da casa. Entra na garagem e percebe que o homem está olhando na sua direção. Ela sai do carro e olha para ele intrigada. Eles se cumprimentam e ela entra em casa. Escuta o barulho da porta do carro se fechando e da partida do motor. Sabe que se Roberta está em casa, deve estar sozinha. Vai na cozinha, pega o vinho que ganhou dela, o abridor de lacres e o de vinho. Sai de casa, toca a campainha. Espera que ela esteja em casa. Quando já pensava que não tinha ninguém, ela abre a porta, de camisola e diz: – Não gostou do presente? Porto Alegre - dezembro de 2016

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Roberta abre o portão. E faz sinal para que Eduarda entre. Duda entrou explicando que gostou do presente, mas que acha melhor que as duas aproveitem essa oportunidade para se conhecerem melhor. Roberta responde que só estava brincando e Duda, um pouco constrangida, diz que sabe disso, mas queria explicar as suas intenções. Duda pergunta se ela já pode abrir o vinho. Roberta diz que sim e comenta que a amiga já veio preparada, com todos os utensílios. Brinca perguntando onde estão as taças e se direciona até a cozinha para buscá-las, seguida por Duda. Roberta para na frente de um armário e diz: – Não vais acreditar, mas quebrei ontem minha última taça de vinho. Sou muito desastrada. Duda, sem entender; convida Roberta para irem até a sua casa. Roberta aceita e as duas vão. Roberta senta no sofá e espera Duda voltar. Fica pensando se o marido de Duda não está em casa ou que horas volta, já que saiu de camisola e então vai até a cozinha. Olha para Eduarda e não esconde o fascínio pela atitude da moça abrindo a garrafa de vinho. Percebe que o cabelo está caindo no rosto e se aproxima devagar. Pergunta se precisa de ajuda. – Não. Tudo sobre controle, menos o meu cabelo. Não achei uma borrachinha para prender ele. – Deixa eu te ensinar um coque sem borrachinhas. – Nunca consegui fazer isso. – Diz com um pouco de vergonha. Roberta se posiciona atrás de Duda, elas têm a mesma estatura. Roberta passa a mão nos cabelos da vizinha com muita intimidade, o que não parece atrapalhá-la, ainda que Duda pare de fazer o que estava fazendo. Sente um arrepio na nuca quando as unhas de Roberta raspam o seu couro cabeludo e o ar quente que sai da boca de Roberta aquece as suas costas. O coque se desfaz em segundos e as duas riem. – Quem sabe não é melhor fazer de frente? Pergunta Duda. Porto Alegre - dezembro de 2016

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– Talvez. Posso tentar? Ela concorda e as duas ficam frente a frente. Duda olha nos olhos de Roberta e percorre com o olhar os detalhes do rosto até chegar nos lábios, que intrigam pela aparente suavidade. Uma marca separa o lábio em duas metades perfeitas. Pequenas ranhuras simétricas. Roberta percebe os olhares e se arrepende por já estar terminando o coque. Segura o rosto de Duda e diz que ficou perfeito. Pisca o olho direito e sorri. No outro lado da janela, o marido de Roberta observa as duas pela janela. Está com uma expressão de raiva e desapontamento. Sai em direção à casa da vizinha, toca a campainha. As duas são pegas de surpresa, como acordadas de um coma que durava anos. Duda sai para abrir a porta. Ela chega no portão, ele se apresenta rapidamente e pergunta por Roberta. Diz que precisa falar com ela com urgência. Duda não tem tempo de responder, abre o portão e ele entra apressado na casa, sem um convite. Duda o segue com a mesma avidez. Os dois chegam na cozinha com segundos de separação. Ele grita com Roberta. – Outra vez isso? Eu não aguento mais. Avançando em Roberta. Duda tenta fazer algo, mas ele é mais forte e a empurra contra a bancada, deixando a garrafa de vinho quebrar na pia. Duda, assustada, pega o que restou da garrafa e segue em direção ao homem. O vidro está muito afiado e ela, com toda a força que tem, tenta ferir o homem, numa tentativa de livrar Roberta das agressões. Ela mira no estômago, mas com a movimentação intensa dos dois, ela acerta a região pélvica, ferindo gravemente o seu órgão genital. Ele larga Roberta imediatamente, mas, uma vez livre dele, Roberta pega o objeto que está na sua frente, o abridor de vinho e o penetra no pênis já ferido de seu marido com fúria. Com uma raiva que estava guardada há muito tempo, ela o fere múltiplas vezes. Duda fica imóvel vendo a cena. Ele grita e como a dor é muita, não consegue se defender dos ataques. Até que Roberta, exausta se joga para o lado e os dois ficam estirados no chão. Duda os olha incrédula por um longo período. Porto Alegre - dezembro de 2016

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Eduarda, chegando de um encontro do trabalho, vai até a cozinha, abre a geladeira, pega um copo, coloca água bem gelada e uns cubos de gelo e toma um gole. Quando vai descansar o copo na bancada, olha para a janela e vê uma mulher um pouco mais nova arrumando uns armários. Lembra da primeira vez que viu Roberta. Lembra também da última vez que se viram na sua cozinha. Ainda não consegue entender tudo o que aconteceu. Não sabe de onde veio o impulso para fazer aquilo, não sabe o que desencadeou a fúria do marido de Roberta. Durante os dias relembra a frase que disse antes de atacá-la: “Outra vez isso”. Duda tenta entender o que é “isso” e o que é que está sendo repetido. Do outro lado da janela a vizinha percebe que está sendo observada e Duda abana para ela em meio aos seus devaneios. A vizinha abana sem muita vontade e em seguida fecha a cortina.

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Davi Boaventura


Contrato de Serviço Eu, Davi Oliveira Boaventura, aqui denominado CONTRATANTE, CPF Tal, RG Tal e Tal, residente na Rua Y, no bairro do Bom Fim, em Porto Alegre, declaro para todos os fins jurídicos e prerrogativas legais que, sem ônus financeiro para o CONTRATANTE, adquiro todo o trabalho criativo a ser publicado na revista Travessa em Três Tempos – em sua edição de número 16, ano V –, por Alexandre Lopes da Cunha, Alexandre Rodrigues, Ana Cláudia Martins, André Luiz Ribeiro Costa, Annie Muller, Camila Maccari, Celso Alves, Ciro Nogueira, Gustavo Melo Czekster, María Elena Morán Atencio e Taiane Maria Bonita, entre outros não citados, mas também sob a égide deste documento, aqui denominados CONTRATADOS, que, sob pena de ostracismo literário, deverão subscrever o nome do CONTRATANTE em todos os textos apresentados, publicados e/ou impressos no supracitado periódico, seja em suporte físico, seja em suporte virtual, com a ressalva que, não havendo disposição contrária em lei específica, os CONTRATADOS se eximem da obrigação para com o CONTRATANTE se, e somente se: § Alexandra Lopes da Cunha escrever poemas bífidos em duas línguas, fotografando a si mesma enquanto fotografa a sua própria imitação de Jon Bon Jovi diante do espelho; § Alexandre Rodrigues eternizar o Esmagassauro em uma gravação do YouTube, revelando ao mundo a música infantil mais maravilhosamente maravilhosa desde o advento da Revolução Industrial, de repente humilhando não só a Galinha Pintadinha como até mesmo suplantando Patati Patatá; § Ana Cláudia Martins doar para os coleguinhas sua polaroid hipermoderna capaz de provocar inveja em todos os fotógrafos de Instagram; § André Luiz Costa continuar sendo esse colosso sensual que só ele consegue ser, esse homem pós-moderno cuja liquidez o mundo inteiro deseja beber; § Annie Müller imediatamente interromper o envio de fotos humilhantes dos amigos em grupos de Whatsapp, subsequentemente pagando rodadas de Hambúrgueres do Mandi para toda a intrépida comunidade da Escrita Criativa; § Camila Maccari tomar vergonha na cara e assistir todos-todos-absolutamente-todos os filmes de terror de sua lista porque é filme só filme não machuca ou quer dizer às vezes sim machuca sim mas é filme só filme e Camila não precisa ficar com medo de

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quarto escuro mesmo que Marilda pire até porque a gente sabe que, né, Marilda Pira; § Celso Alves enfim reconhecer que pastel de yakissoba é uma péssima terrível ideia até mesmo se for a única comida injustamente disponível em uma distopia pós-apocalíptica ambientada em Curitiba-IX, uma terra de ninguém onde os publicitários escrevem piadas de stand-up comedy para sobreviver; § Ciro Nogueira se mudar de volta para Porto Alegre, evitando assim a falência do Clube Silêncio e do 512, embora ninguém se importe com a derrocada do Margot; § Gustavo Melo Czekster reconstruir juridicamente todo o seu homem despedaçado por uma cachorra chamada Alemoa, que, sendo ela um belíssimo espécime selvagem, anda conquistando corações no Parque da Redenção para ciúme incontornável de seu dono, que planeja se vingar forçando a doguinha a se vestir de Guerra nas Estrelas; § María Elena Morán Atencio retomar o contrabando de cocuy venezuelano, furiosamente transformando todas as festas do Programa de Pós-Graduação em Letras em uma fiesta digna de Sodoma & Gomorra; § Taiane Maria Bonita defender o seu doutorado fantasiada de Arlequina, citando autores marfinenses enquanto dobra dois mil pássaros em origami javanês e incorpora rituais ultraxamânicos típicos da religiosidade florianopolitana em sua literatura escrita no verso das mãos durante as aulas. Qualquer dúvida posterior será dirimida em foro público a ser estipulado pelas partes. Sendo assim, este contrato entra em vigor no momento de sua publicação e, portanto, subscrevo.

Davi Boaventura Membro da Comissão para Baianização da Literatura Mundial

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TRAVESSA EM TRÊS TEMPOS Ano V - Número 16 Periodicidade trimestral ISSN 2318-3632 revistatravessa@gmail.com https://revistatravessa.wordpress.com/ Facebook: /travessa.emtrestempos

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