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ARTE, CRIATIVIDADE, VER-O-PESO EM QUADRINHOS POR GIDALTI JR

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to o poeta do vilão por salomão habib

A FLEXA PASSA E POEMAS DIVERSoS DE JOÃOZINHO GOMES

IDENTIDADE QUILOMBOLA NO PARÁ POR ISMAEL MACHADO


ECONOMIA CRIATIVA COMPREENDE A GESTÃO DA CRIATIVIDADE PARA GERAR RIQUEZAS CULTURAIS, SOCIAIS E ECONÔMICAS

RESPONSÁVEL POR 10% DA ECONOMIA MUNDIAL, A ECONOMIA CRIATIVA MOVIMENTA US$ 3 TRILHÕES AO ANO. ATÉ 2020 A ÁREA MOVIMENTARÁ US$ 6 TRILHÕES NO MUNDO.

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NO BRASIL, A ECONOMIA CRIATIVA É RESPONSÁVEL POR 2,84% DO PIB, MOVIMENTANDO US$ 104,43 BILHÕES. CRESCE 6,13% AO ANO

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sumário

literatura

teatro

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08 literatura

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POESIA

O Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará, agora em sua segunda edição,. configura-se no processo de escolha das obras premiadas, o crescimento da participação efetiva de poetas inscritos tanto da cidade de Belém quanto, dos municípios do interior do Estado, dando-nos uma visão mais elucidadroa dos meandres que envolvem o prêmio e seu processo.

DOCUMENTÁRIO

A Identidade Quilombola no Pará é representada por 240 comunidades e acredita-se que muitas outras ainda serão identificadas. Embora o emprego da mão-de-obra negra na Amazônia não tenha alcançado as mesmas cifras que em outras regiões do país, essas comunidades desmistificam que Amazônia a escravidão não teve tanta importância. Por Ismael Machado.

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cinema

expedições

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Expedição Multicultural na Amazônia. Uma viagem de muitas histórias e um olhar sobre a Amazônia, por Viviane Menna Barreto.

TEATRO

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POPULAR

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MÚSICA

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Festival Estadual de Teatro, 24hs no ar.

INTERCÂMBIO

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SÃO PAULO

Estúdio Lâmina, Maria Bitten - Experimentando o Corpo Legítimo.

CINEMA PARAENSE

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npd pARá

O cinema paraense apresenta sua produção, por todos os canto deste imenso estado, mais de 300 títulos.

Do Marajó para o mundo, Helly Pamplo, em seu eco-jornalismo, revela a Amazônia viva.

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EXPERIÊNCIA

A música do The Secret Story of the UltraNva é rock progressivo, feito em Belém, com experimentalismo e originalidade.

chorinho

O novo projeto musical, O Choro de Ontem, Hoje - é mais um dvd do o Charme do Choro.

tô texeira

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especial

A obra e a história deste singular violonista e encadernador é apresentada nesta edição como pas-

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fotoensaio

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42 HUMOR

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especial

O 6 º Salão internacional de Humor da Amazônia contou com a participação de cartunistas, caricaturistas, ilustradores, desenhistas e chargistas de 36 países,

artes plásticas

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PAVEL MÚLTIPLO

Filósofo, poeta, pintor, escritor, ator, ofício natural, em paixão, fria arte de metal.

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itinerário Foto: Jordy Burch

sagens da vida do compositor e através de um passeio pela musicalidade de um homem que retratava sua cidade e seus costumes, seu bairro, seus amores, sua saudade e sua gente. Tó Teixeira, O poeta do Violão, por Salomão Habib

artes plásticas

humor

O grande violista, professor e pesquisador da musicalidade amazônica, Salomão Habib nos apresenta sua pesquisa “Tó Teixeira - O Poeta do Violão” que resultou num estojo. A obra e a história deste singular violonista e encadernador é apresentada nesta edição como passagens da vida do compositor e através de um passeio pela musicalidade de um homem que retratava sua cidade e seus costumes, seu bairro, seus amores, sua saudade e sua gente. Tó Teixeira nasceu em meio à música. Além da natural musicalidade do bairro do Umarizal, seu pai era flautista, regente de grupo de pau e corda, além de operário naval, profissão a que muitos davam a denominação de “ferreiro”. O violão em sua época era um instrumento da “ralé”. Considerado um instrumento de seresteiros, boêmios, fanfarrões, o violão adquiriu a pecha de instrumento de vagabundo. No caso de Tó, negro, pobre e ainda violonista! Tudo conspirava para sua discriminação e insucesso. Mas sua história e sua obra superou todos os pré-conceitos e canones estabelecidos para entrar na história

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Redação

Tradição x Modernidade. Muito além do Mainstream A PZZ, guiada pela utopia de uma arte acessível a todos, de elevada qualidade, e não por modismos circunstanciais, traz uma linha editorial intuitiva, nutrida pela sensibilidade artística e de conhecimento, movida pelo sentimento de que a arte e a cultura resignificam o mundo. É nessas ações que encontramos a forma de criar, fazer mundos a partir dos mundos que temos dentro de nós. Nosso processo de difusão é emergir a qualidade do que se denomina de temporalidade transversal, que atravessa as linhas horizontal e vertical da temporalidade histórica. Alinhavar a memória da nossa identidade cultural e do inconsciente coletivo é costurar um mosaico critico contemporâneo. Assim, como a música contém uma luz capaz de reacender a sua claridade a cada vez que é executada, a PZZ reacende a luz do que estava extinto ou esquecido, ofuscado ou sombreado pelo Mainstream. Dentro do novo contexto, propomos criar novos sistemas de circulação, informação, formação, produção, distribuição. Incorporar considerações sobre sustentabilidade nas estratégias de pessoais, de grupos e instituições que estão à margem do processo econômico e das política sociais, como forma de avançar na democratização do acesso à cultura, à informação e ao empreendedorismo. A cultura é componente central dos processos de desenvolvimento econômico e social. O reconhecimento desta realidade, a percepção sobre o valor econômico das atividades culturais e sua importância no processo de globalização têm levado a cultura ao centro da agenda de desenvolvimento mundial e das políticas a ele direcionadas nos mais diversos países. Agora no Brasil estamos vivendo o fomento da economia criativa, e o aumento do interesse nestas atividades advém do reconhecimento de seu potencial gerador de emprego e renda, dos efeitos indutores sobre diversas outras atividades econômicas e de seu papel em uma economia e sociedade na qual a informação, a inovação, a inclusão social, a diversidade cultural e o conhecimento são cada vez mais relevantes. Nossa tendência, como veículo de comunicação, projeto cultural, ator social, pretende ir além de divulgar, difundir ações e projetos nas áreas de arte e cultura, e sim, realizar mapeamentos e cartografias de artistas e produtores culturais, palestras, videoconferências, debates, cursos, intervenções, exposições, mostras de filmes, fórum de economia criativa, redes sociais, estimulando a Qualificação e Fomento à Criação/Produção, Difusão / Distribuição /Comercialização e Consumo/ Fruição de Bens e Serviços Criativos. Esse foi um dos mecanismos que encontramos para resistir com organização e planejamento estratégico criativo para fazer frente ao modelo tradicionais. Nesta edição, temos a honra de divulgar a pesquisa de Salomão Habib, compositor, músico e pesquisador da musicalidade amazônica que organizou e publicou a obra surpreendente: “TÓ TEIXEIRA O Poeta do Violão”. Uma coletânea de partituras, passagens biográficas de Tó pela história política, boêmia e musical de Belém. O poeta e crítico João de Jesus Paes Loureiro que prefacia a obra também considera que a arte de Tó Teixeira foi uma forma elevada e digna de romper o círculo da pobreza, do preconceito, da exclusão, da morte e do esquecimento. Além do belo documentário realizado por Salomão Habib veio enriquecer a nossa edição, as fotografias do cineasta e documentarista Chico Carneiro, que de Moçambique nos enviou imagens cotidianas de Tó Teixeira realizadas na década de 70. Na edição especial desçamos no Fotoensaio as lindas fotografias da natureza de Helly Pamplona, a literatura de Carlos Emílio Corrêa Lima, o documentário sobre os Quilombos no Pará, por Ismael Machado, a expedição cultural de Viviane Menna Barreto, o HQ sobre o ver-o-peso de Gidalti Jr., e de São Paulo, na continuidade do intercâmbio Norte-Sudeste, com o Coletivo Estúdio Lâmina, divulgamos o Ensaio da ativista e fotógrafa Marina Bitten. A PZZ atravessa na noite escura com poucas estrelas numa expedição Multicultural na Amazônia, avança solitária com seus tripulantes embalados em redes armadas por todas as direções e compõe um mosaico multicolorido de estampas que se embalam num espaço infinito de muitas histórias... Boa Leitura

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Edição 17 | maio/junho de 2013

Diretoria Executiva Carlos Pará e Fábio Santos Editor Responsável Carlos Pará 2165 - DRT/PA Editor de arte/Projeto Gráfico Rilke Penafort Pinheiro Produção Executiva Almir Trindade Neto, Narjara Oliveira Fotógrafo Janduari Simões Computer to Plate Hélio Alcântara Impressão: Gráfica Sagrada Família Distribuição Belém, Pará, Brasil. Assessoria Jurídica: Alfredo Nazareth Melo Santana 11341 OAB-PA Contatos (91) 3351-5188 - 9616-4992 - 9616-3400 email revistapzz@gmail.com Twitter @revistapzz Facebook @revistapzz cartas A Revista PZZ é uma publicação bimensal da Editora Resistência Ltda - Av. Duque de Caxias, 160, Loja 14, Belém, Pará, Amazônia, Brasil Cep 66093-400 Cnpj : 10.243.776/0001-96 Issn: 2176-8528 site revistapzz.com

parceiros


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POESOFIA

Vasco Cavalcante

Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará Uma ação voluntária em prol da poesia e da cultura no Estado

F

ui indicado para fazer uma entrevista com o poeta Pedro Vianna, que além de escritor, é produtor cultural em A Senda, tradutor, e um dos criadores e responsáveis pelo Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará, agora em sua segunda edição. Com seus depoimentos Pedro elucida alguns pontos fundamentais sobre o prêmio, envolvendo sua origem, o processo de escolha das obras premiadas, o crescimento da participação efetiva de poetas inscritos tanto da cidade de Belém quanto, dos municípios do interior do Estado, dando-nos uma visão mais elucidadroa dos meandres que envolvem o prêmio e seu processo, assim como da importância que é para a poesia e a cultura paraense, termos um prêmio com essas características em nossa região. De onde veio a idéia e o desafio de criar um prêmio literário de forma independente e para uma área específica da literatura tão difícil de ser entendida e consumida como a poesia e o que mais te motivou à isso? Depois de publicar meu primeiro livro, “Itinerário Interno”, de forma indepen-

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dente, vivenciei de perto os gargalos de produzir poesia, e principalmente, querer publicar poesia no Norte do país: falta de editoras, a falta de interesse das editoras do eixo sul/sudeste e a falta de interesse das livrarias locais no livro de poesia enquanto produto. Em 2008 meu segundo livro, “Sementes da Revolta”, foi o vencedor do Prêmio Ipiranga de Poesia, e de certa forma isso me permitiu respirar um pouco e ter a minha obra publicada e divulgada. Vejo que o prêmio pra mim tem muito dessa coisa de dar de graça o que recebi de

vam próximos de mim e vivenciando as mesmas dificuldades que eu.

Joãozinho Gomes passou a compor com o cantor-compositor Nilson Chaves, parceiro com o qual escreveu várias canções importantes..

Quanto ao interesse do poeta na região, já ocorre um bom número de inscritos mesmo levando-se em conta que ainda está no segundo ano de lançamento do prêmio? Ficamos muito felizes com a inscrição de vários poetas que já tem uma certa expressividade na cena, incluindo os três finalistas: Dand M, Clei de Souza e Harley Dolzane. Além deles outros nomes participaram da edição passada como Rodrigo Barata, Josette Lassance e Benilton Cruz, com pontuações muito próximas dos vencedores. Agora é

graça. Penso que o que me motivou foi simplesmente a vontade de contribuir com a cena da forma mais contundente possível: colaborando para publicar e divulgara a obra dos autores que esta-

A demanda nas inscrições naturalmente ainda provém em maior número da capital paraense, mas já existe um foco trazendo autores residentes no interior do Estado? Claro que a grande maioria das inscrições são de Belém, porém tivemos um número significante de inscrições do interior. Creio que no ano passado perto de 15% das inscrições foram de outras cidades do estado que não da capital.


PRIMEIRO FESTIVAL DE MÚSICA Em 1975 conheceu o compositor Lôbel, que viria a ser o seu primeiro parceiro musical, no mesmo ano, ao lado de Lôbel, venceu o primeiro festival da canção da FCAP.

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POESOFIA um barato também ver as pessoas que sem qualquer tipo de pretensão literária participando do projeto, desde adolescentes até idosos. Tivemos até uma inscrição de um jovem que se inscreveu ainda cumprindo medida corretiva. Existe na história da poesia mundial um menor número de poetas mulheres, sabemos que isso tem a ver com uma questão machista e preconceituosa advinda de gerações passadas. Esse quadro tende a mudar? Ou seja, nas inscrições para o prêmio já existe um certo crescimento ou equilíbrio quanto a isso? Apesar de não ter quantificado esse dado, é fato que o número de mulheres inscritas foi bem inferior. Mas tivemos sim poetas mulheres inscritas, inclusive com livros que passaram da primeira triagem e foram para a avaliação final com boas pontuações.

Em 1995 em parceria com Val Milhomem e Zé Miguel compôs e editou o cd Planeta Amapari, indicado ao Prêmio Sharp da Música Brasileira. A curadoria para a escolha dos premiados é fixa ou varia a cada ano? Existem alguns critérios via organização do prêmio junto a curadoria para a escolha dos livros ou ela é inteiramente livre e de acordo com a opinião de quem está analisando os trabalhos? A ideia é que a curadoria mude todo ano. No ano passado fomos eu, Antonio Moura e Ramiro Quaresma. Os critérios de avaliação foram basicamente a consistência do texto, seu grau de inventividade e experimentalismo e a unidade do texto enquanto livro. Claro que esses quesitos foi algo que nós da curadoria discutimos antes de atribuir notas de 5 a 10 a todos os inscritos. Os autores escolhidos são realmente os melhores concorrentes ao prêmio ou é critério, preferência e identificação pelo trabalho destes poetas, pela curadoria? É complicado qualificar como melhor ou pior. Claro que em 10 www.revistapzz.com.br

PARCERIAS Joãzinho viajou para São Paulo, onde pode ampliar a sua parceria com o cantor-compositor Rafael Lima, e conhecer outros artistas que viriam a serem seus parceiros no futuro como Jean Garfunkel e Celso Viáfora.


qualquer curadoria a subjetividade dos curadores estará envolvida, mas posso dizer que os vencedores naquele momento trouxeram algo a mais para nós da curadoria. É muito relativo isso, talvez uma releitura dos textos hoje mudasse o resultado, é difícil medir isso. Há uma tendência nos editais, não apenas no que diz respeito a literatura em geral, mas em todos os segmentos artísticos, de os inscritos não selecionados, desqualificarem o resultado final acusando a curadoria de protecionismo, o dito “efeito panelinha”. O que me dizes quanto a isso? Que palavras poderias dizer aos que não são premiados? Isso é natural. Vivemos numa sociedade competitiva onde somos educados para a vitória. Além do mais há todo esse lance do ego envolvido pelo fato de estar-

Em 2009, em parceria com o cantor-compositor Enrico Di Miceli, gravou o cd Amazônica Elegância fruto de um projeto aprovado pela Funart. mos mexendo com a obra das pessoas. Nesse tipo de edital as pessoas tem que entender que o grande vencedor não é o cara que tem seu livro publicado, mas a literatura. Há muito mais envolvido do que prêmios: trata-se de uma ação de resistência cultural e artística. Por que a exigência do ineditismo quanto aos poemas que concorrem ao prêmio? A poesia como forma de expressão literária já não trás para o poeta grandes dificuldades no que diz respeito as vias de mostrar sua produção? Precisávamos adotar um critério que nos salvaguardasse de cair na armadilha de premiar um livro já publicado, apenas isso. Após a premiação e lançamento dos livros, como é feita a distribuição das edições nas livrarias e locações para que as pessoas possam adquirir as obras? É responsabilidade única do premiado? Eis aí a grande questão. Pensamos bastante nisso e resolvemos

dar os livros para o autor, porém assumimos o compromisso de auxiliá-lo na distribuição para lojas e pontos de venda da cidade, caso seja da vontade dele. Também reservamos exemplares para distribuição para bibliotecas, centros culturais e para críticos literários de outros estados. A que atribuis a dificuldade de absorção do grande público quanto a poesia contemporânea? Perguntinha complicada! Pra começo de coversa as pessoas lêem pouco. A poesia parece de certa forma também ter caminhado para um hermetismo que assusta os leitores, e muitas vezes inviabiliza a leitura do leitor mediano (se é que isso existe!). Agora bem sinceramente eu não vejo problema nenhum nisso! Não acho que a poesia deva se aproximar do leitor, principalmente não acho que os autores devam tornar seus poemas degustáveis para o leitor. O leitor que se vire! Após um grande legado poético que temos na região, com poetas grandiosos como Max Martins, Paulo Plínio Abreu, Ruy Barata, etc. Existe uma real produção contemporânea com qualidade à se perpetuar futuramente na escrita poética paraense? A qualidade é idiscutível! Agora se isso irá se perpetuar, só o tempo dirá. Estamos no meio de uma revolução, onde a tecnologia vem reconstruindo as relações entre o homem e a arte, sabe Deus o que ainda virá pela frente. Sabe Deus se a poesia sequer sobreviverá. Será que nós sobreviveremos?

do Pará - IAP. Achei demais gratificante o resultado e a participação do público, e do quanto é importante essa aproximação do leitor junto ao poeta para uma compreensão maior de sua obra. Essa iniciativa continuará ao longo das próximas edições do prêmio? O que vocês pensam sobre isso? Esse ciclo de conversas é importantíssimo. É o momento de deixar os poetas falarem sobre aquilo que mais amam. Aquilo que move seu espírito, suas vidas. Acho o máximo que os leitores e demais interessados possam ter essa oportunidade de conviver um pouco com a figura do poeta. Isso humaniza a coisa. Além disso é uma forma de colaborarmos com o tão reduzido calendário de atividades literárias da cidade. Há uma meta à ser alcançada quanto ao prêmio, um plano fechado, ou as ideias vão sendo criadas de acordo com a experiencia de vivenciá-lo em cada instância? Por princípio queremos manter a mente aberta. Nossa meta é sobreviver enquanto iniciativa, e colaborar para a produção poética contemporânea no Estado, através da publicação, dos prêmios e das atividades paralelas como conversas, debates e etc. Queremos dar nossa humilde colaboração para que a poesia sobreviva. Pedro Vianna é Idealizador do Prêmio de Poesia do Grão Pará e Gerente de Projetos de A SENDA PRODUÇÕES. ______________________________

De que maneira as redes virtuais contribuem para uma melhor percepção do momento atual da poesia produzida hoje, aqui em nosso estado, no resto do Brasil e no mundo? O acesso foi violentamente democratizado com a internet. Porém a rede é uma biblioteca de Babel. O grande problema é a dificuldade de separar o joio do trigo diante do infinito mar de informações existente. Participei agora no mês de maio de um ciclo de conversas com os premiados na edição 2013: Dand M., Harley Davidson e Clei de Souza, sob tua mediação, no Instituto de Artes www.revistapzz.com.br 11


DOCUMENTÁRIO

Ismael Machado

IDENTIDADE QUILOMBOLA NO PARa’ 12 www.revistapzz.com.br


FOTOs: Ismael Machado

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a comunidade África, entre Moju e Abaetetuba, no nordeste do Pará, crianças enfermas costumam ser tratadas com ervas naturais, cujo conhecimento a respeito das propriedades medicinais de cada erva, folha ou raiz é passada de mãe para filha. São cerca de 20 famílias. Em Laranjituba, comunidade próxima, Francisca Moraes Cardoso também conhece os segredos das plantas, das rezas, das benzeções. “Meu avô era pajé, minha avó era pajé. Eu só uso os saberes quando é necessário. Não abuso muito não”, diz. O dom de Jorge Trindade, o Mestre Jorge é benzer. É como ele cura o que chama de ‘espinhela caída’, quando o “sujeito está meio descompensado”, meio que explica o processo complicado para um leigo. “Mas olha, tem que respeitar o que a mata dá. Não pode brincar com as coisas

da natureza”, ensina. Conhecimentos simples como esses são preservados porque há um espaço adequado para que essas tradições se mantenham. São as comunidades quilombolas, locais onde os remanescentes de negros escravizados encontraram a possibilidade de possuir uma terra em conjunto. Nela, antigos valores são ensinados, ao mesmo tempo em que se buscam inserções na sociedade tecnológica atual. Mas, assim como existem ameaças cada vez maiores às florestas com a aprovação no Novo Código Florestal, comunidades tradicionais como ribeirinhos, indígenas e quilombolas também correm risco, mesmo com o Tribunal Regional Federal garantindo a constitucionalidade da extensão do direito constitucional de acesso ao território para comunidades quilombolas.

Até hoje esse tem sido o principal instrumento de garantia para os descendentes negros da época da escravidão no Brasil de terem assegurado direito à posse da terra onde vivem. Mas as garantias estão ameaçadas. Capitaneada pelo DEM, a bancada ruralista do Congresso Nacional entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003, que é responsável por regulamentar a titulação de terras quilombolas no Brasil. A derrota do DEM, mesmo assim, pode não ser suficiente para barrar o olhar de cobiça às terras quilombolas. No Pará já foram identificadas mais de 400 comunidades quilombolas. Mais de 120 são tituladas e possuem território delimitado. Em todo o Brasil, existem comunidades quilombolas em 24 estados. O processo de titularidade chega a levar um ano. O Pará é quem mais titulou ter-

COMUNIDADE NEGRA No estado do Pará existem 240 comunidades quilombolas e acredita-se que muitas outras ainda serão identificadas. Embora o emprego da mão-de-obra negra na Amazônia não tenha alcançado as mesmas cifras que em outras regiões do país, essas comunidades desmistificam que na Amazônia a escravidão não teve tanta importância.

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DOCUMENTÁRIO ras quilombolas no Brasil. Na comunidade do Poacê, uma das 15 comunidades do Jambuaçu, pertencentes ao município de Moju, parte dos moradores buscou resgatar a tradição do artesanato, como uma atividade de resistência e resgate, porque o artesanato para a fabricação de utensílios domésticos fazia parte da vida comunitária, mas aos poucos foi sendo esquecido pelas gerações mais novas. Em Santana, comunidade quilombola distante cerca de 30 minutos de barco de Abaetetuba, às margens do rio Taverá-Açu, há muita vontade de fazer com que a história vivida não seja apagada entre as mais de 130 famílias que vivem na comunidade, reconhecida como terra quilombola há apenas uma década. A pobreza, as dificuldades educacionais e a ameaça de os descendentes de escravos perderem as matas próximas para atividades madeireiras estão entre os maiores desafios. O surgimento de cooperativas de artesanato e mel são formas de resistência. A bisavó de Sebastiana Carvalho, 71 anos, foi escrava. A avó por parte de mãe foi índia. Ambas passaram pelos braços do “sinhô”, como eram chamados os brancos, os que mandavam, os que tinham o poder. Sebastiana teve dez filhos. Só não sabe contar quantos netos. “É muito neto e bisneto”, resume. A lua-de-mel do casamento foi no meio do mato mesmo. “A minha primeira vez foi no roçado”, ri a bisneta de escravos que hoje está aposentada como lavradora. Borges dos Santos costuma ser o sobrenome de quase todos os moradores da comunidade de Macapazinho, em Santa Izabel. São 40 famílias e aproximadamente 200 moradores. “Conseguimos o título coletivo da terra em maio de 2008”, lembra Nerci de Aguiar dos Santos, 50 anos, considerado uma espécie de líder da comunidade. São quase 70 hectares de terra já titulados. Em Santa Rita da Barreira, uma comunidade quilombola incrustada no município de São Miguel do Guamá, no nordeste paraense, os moradores decidiram investir no artesanato a partir de sementes. É nessa atividade que pretendem buscar alternativa de renda além do roçado de subsistência e da produção de farinha. Para ser colhida a semente, é preciso que os homens da comunidade sigam o igarapé Açu, que desemboca no rio Guamá, 14 www.revistapzz.com.br

atravessem o rio em canoas e na outra margem encontrem a matéria-prima. No Moju, a comunidade de São Sebastião do Traquateua, com 39 famílias e área de 1.129 hectares; Santa Luzia do Tracuateua, 32 famílias, em 268 hectares e na comunidade Santana do Baixo, com 34 famílias e 2.123 hectares de terra, obtiveram há menos de quatro anos o reconhecimento como território quilombola. “Se não tivéssemos nos organizado não teríamos nada, estaríamos na periferia da cidade”, diz Nélis Rodrigues Fagundes, a dona Jane, 55 anos, moradora de Santa Luzia do Tracuateua. Em São Sebastião, Conceição de Souza Silva, 47 anos, diz que sente a titulação de terras como vitória pessoal. “Logo no começo algumas famílias não aceitaram isso de terra comunitária, de um documento só para todos. Queriam permanecer com seu titulo individual. Mas dessa forma, a gente fica mais protegido. Ninguém pode vender mais. A área é coletiva”, diz ela. Nessa historia de luta contada no feminino, o povo quilombola finca raízes em terras que parecia um dia que seriam retiradas dos próprios pés. “Dá um alívio. Agora teremos mais forças para resistir. E resistiremos”, diz. Resistência foi a palavra de ordem em Burajuba, comunidade do município de Barcarena. Burajuba é o nome de uma árvore que os mais antigos utilizavam para construir canoas. Árvore forte, que resistia ao fogo sem rachar, a espécie quase não é mais encontrada nas matas por uma comunidade que adotou ser batizada com o nome dessa árvore no município de Barcarena. Como a árvore que lhe deu o nome, a comunidade de São Sebastião de Burajuba resistiu ao ‘fogo’ das ameaças de perda das terras. No dia 1º de janeiro de 2014 as famílias da comunidade passaram a ser oficialmente autodefinidas como quilombolas. A certidão de autodefinição, publicada pela Fundação Cultural Palmares no final de 2013, foi entregue às famílias em cerimônia promovida pela prefeitura local com a participação da Superintendência do Patrimônio da União no Pará. Para a comunidade, foi uma grande vitória. A certidão atesta às instituições e órgãos públicos que a comunidade se enxerga como quilombola. É um reconhecimento das origens e dos direitos das famílias. Além de possibilitar que a

VÁRIAS CONQUISTAS Apresentar alternativas políticas, definir novos rumos, é uma obrigação básica para salvaguardar os interesses desses povos na lutar por melhorias.


FOTOs: Ismael Machado

comunidade tenha acesso mais amplo a políticas públicas, o reconhecimento é o primeiro e mais importante passo para a obtenção da titulação das terras quilombolas, fornecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “É uma verdadeira carta de alforria. É o reconhecimento de que eu não sou invasora, sou quilombola”, disse a líder comunitária Maria do Socorro Costa da Silva. O processo teve início no ano passado. Em 2013, a comunidade entrou em contato com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e solicitou à professora Rosa Acevedo Marin, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), apoio na produção de estudo que registrasse a história das famílias de Burajuba. A pesquisa histórico-antropológica foi realizada em Belém e

A pobreza, as dificuldades educacionais e a ameaça de os descendentes de escravos perderem as matas próximas para atividades madeireiras estão entre os maiores desafios. em Barcarena. Na capital a pesquisa de fontes documentais foi realizada na Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, na Comissão Demarcadora de Limites, no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e na biblioteca do Naea. Em Barcarena foram feitas entrevistas gravadas e trabalhos de georreferenciamento, registra relatório da pesquisa enviada à Fundação Cultural Palmares. A pesquisadora Rosane Maia, que participou da elaboração dos estudos, também esteve presente na cerimônia do último sábado. O reconhecimento como quilombolas pode ser também um passo gigantesco em relação a uma luta que dura quatro décadas contra a empresa Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), que reivindica as terras. Em 2008 o Ministério Público Federal no Pará chegou a entrar com um pedido de medida cautelar à Justiça Federal para que fosse impedida a venda das terras dos ribeirinhos da comunidade de Burajuba pela www.revistapzz.com.br 15


DOCUMENTÁRIO Codebar. A venda das terras ameaçava a integridade territorial de uma população que o MPF entendia ser protegida pela Constituição, incluída nos critérios da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. A disputa com a empresa começou por volta de 1984, quando a Codebar entrou no local, tomando posse das terras para formar o Distrito Industrial. É uma história tipicamente amazônica, no que tem de simbólico em relação à posse, ocupação de terras e poder econômico sobrepujando comunidades tradicionais. O relato feito pelos moradores em ofício encaminhado à Justiça Paraense em agosto de 2008 é revelador dessa situação. Diz o texto: “Em 1980 recebemos uma comissão do Iterpa, para que fizéssemos um novo cadastro no órgão, a fim de recebermos o título definitivo de posse de nossas áreas. Passaram-se três meses, como combinado, uma comissão foi até o Iterpa. Lá fomos recebidos pelo dr. Cezar Bentes, que nos deu a notícia de que nossas terras tinham sido vendidas para o Distrito Industrial. Ele mandou que esperássemos para que fôssemos indenizados. Neste mesmo período chegaram as empresas abrindo as ruas e destruindo tudo o que estava na frente. Os funcionários da Codebar diziam que tínhamos de colaborar com o governo doando nossas terras, que seriam propriedade da União, para o Projeto Industrial e que só teríamos o direito de receber a indenização de nossas benfeitorias. Deram um prazo de uma semana para que 44 famílias fizessem o levantamento das plantações e benfeitorias”. “Já morávamos aqui. Temos certidões desde 1964. Essas terras eram dos nossos bisavós, que deixaram para os nossos avós, que deixaram para nossos pais e que pretendemos deixar para nossos filhos”, dizia Raimundo Amorim de Barros, atualmente com 60 anos. Cerca de 50 famílias- das 500 originaisvivem no local. É uma área ainda extensa, mas que já foi muito mais. O rio Murucupi, que passa aos fundos, foi contaminado por diversas empresas. “A gente vivia do camarão, do peixe, do que plantávamos. Não precisávamos de nada. Agora não se pode mais pegar nada desse rio”, diz Clarivaldo do Amorim Brandão, 50 anos, irmão de Raimundo Amorim. No meio da mata, há restos do que era 16 www.revistapzz.com.br

o centro da comunidade. Uma escola e uma igreja centralizavam a vida da comunidade. Na igreja, quatro santos eram venerados em quatro festas anuais. A de Santa Ana, São Sebastião, Nossa Senhora das Graças e São Tomé, a maior de todas. Cada santo tinha uma imagem que ficava com uma família da comunidade. Em 1984, a professora Judite de Souza Lemos teve que correr com os alunos quando dava aula porque as máquinas da empresa vieram para derrubar tudo. Da escola, Judite foi para a igreja. Não adiantou. Hoje só há ruínas lembrando o episódio. Judite Lemos tem hoje 60 anos e nove filhos. É uma mulher pequena, de passos miúdos e rápidos. Conhece como poucos as histórias da comunidade. Guarda papéis que comprovam a existência das famílias de Bujaruba. São certidões de nascimento, batizado, casamentos, com

Como a árvore que lhe deu o nome, a comunidade de São Sebastião de Burajuba resistiu ao ‘fogo’ das ameaças de perda das terras. datas dos anos 60, 70, 80. Um exemplo é a certidão de um dos filhos, Renato Júnior de Souza Lemos, registrado no dia 30 de março de 1977. O local do nascimento é a comunidade de Bujaruba, registra o documento. Segundo o MPF, na área central da Vila dos Cabanos, região nobre do município, parte da comunidade foi removida para casas de madeira em um bairro de periferia chamado Laranjal, a troco de indenizações que muitos sustentam não terem sido pagas. Como o dinheiro era insuficiente e as cerca de 50 famílias estavam habituadas a viver de roça, pesca e coleta, muitos moradores de Burajuba não conseguiram se adaptar ao ambiente urbano e retornaram às terras, o que gerou conflito com a extinta Codebar. “Burajuba é um caso emblemático de como os grandes projetos implantados na Amazônia simplesmente negaram a realidade do povo que vive aqui”, diz o procurador da República Felício Pontes Jr. Por essas e inúmeras outras dificuldades, o reconhecimento da comunidade como quilombola foi comemorado como uma

HISTÓRIA ESCRAVA Nas várias regiões do atual Estado do Pará, os escravos negros foram utilizados como mão-de-obra nas atividades agrícolas e extrativistas, nos trabalhos domésticos e nas construções urbanas.


FOTOs: Ismael Machado

grande vitória. “É a justiça começando a ser feita”, disse o morador de Burajuba Eduardo Cravo. A comunidade ainda enfrenta litígios com outras empresas, também de olho nas terras quilombolas. O quinto filho de Kátia Cilene Moraes Cardoso, 35 anos, tem só três meses de vida, mas aparenta pelo menos uns dois a mais. Pelo menos uma vez a cada 15 dias toma um banho caprichado que mistura ervas como favaquinho, cascas de paus diversos, folha de alho e manjericão. “É bom para evitar tosse, catarro e para proteger o corpo”, diz ela. Emanuel, o menino, raramente fica doente, garante a mãe. É assim que a comunidade África, de remanescentes quilombolas, costuma tratar seus moradores quando o assunto é saúde. O que der para ser curado pelas ervas plantadas no quintal evita uma ida

“Já morávamos aqui. Temos certidões desde 1964. Essas terras eram dos nossos bisavós, que deixaram para os nossos avós, que deixaram para nossos pais e que pretendemos deixar para nossos filhos” a algum posto médico de Moju ou Abaetetuba. As 18 famílias que moram na comunidade sempre se consideraram de Moju, mas agora oficialmente são munícipes de Abaetetuba, o que gera revolta e indefinição. A ambulância de Abaetetuba não os transporta porque não pode levar os doentes da comunidade para Moju, município mais próximo. O que sobra então é a sabedoria popular. Catarina Macedo Nascimento, 51 anos, é um exemplo. Aprendeu com a mãe que, por sua vez aprendeu com a avó de Catarina, que as ervas curam. E como. Catarina caminha pelo terreiro da casa e vai apontando: “esse aqui é gergelim preto, a gente faz fricção para os casos de derrame. Ajuda a recuperar os movimentos. Aquele ali é o manjericão, mas é outro, não é o de por na comida não. esse manjericão aqui a gente faz chá para controlar pressão. Esse cipó de alho é bom para dar banho em criança e é cicatrizante também”. www.revistapzz.com.br 17


DOCUMENTÁRIO Na comunidade de Laranjituba, próximo à África, Francisca Moraes Cardoso também conhece os segredos das plantas, das rezas, das benzeções. “Meu avô era pajé, minha avó era pajé. Eu só uso os saberes quando é necessário. Não abuso muito não”, diz. Francisca é uma mulher pequena, mas ligeira. Fala rápido e mais rápido ainda vai dizendo para que serve cada cipó, folha ou garrafada. “Coisa simples, como baques, feridas, tosses, a gente cura por aqui mesmo e só usando o que a terra dá”, diz ela. “Até para arrumar namorado eu tenho a planta certa”, ri. Pariri, cabi, carucaá, mucurará...os nomes são complicados, vindos da mistura entre índios e negros. Mas os resultados são simples. Curam anemia, tosse, dores de barriga. É o que garante Domingas da Conceição Moraes, do alto de seus

A ambulância de Abaetetuba não os transporta porque não pode levar os doentes da comunidade para Moju, município mais próximo. cabelos brancos cultivados ao longo de 83 anos. Domingas é considerada a mais sábia, a melhor entre as que conhecem os segredos das ervas. “Da comunidade África para cá só eu mesmo”, diz sem pitada alguma de modéstia. “Aprendi com os meus pais. Isso é coisa que a gente vai passando de geração a geração. Mas tem de ter o dom”, diz ela. Em Oriximiná, oeste do Pará, quinze comunidades quilombolas aguardam pela regularização das terras. As terras estão sendo ocupadas aos poucos por mineradoras, hidrelétricas, madeireiras e pela soja. Os processos de titulação dos territórios Alto Trombetas, Jamari, Moura e Ariramba foram abertos pelo Incra e pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa) em 2004 e 2005. É uma área de mais de 330 mil hectares, o equivalente a mais de 300 mil campos de futebol. Seis anos depois, os processos pouco andaram. “Nem mesmo a fase inicial dos estudos de identificação foi executada”, diz Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio, de São Paulo (CPI-SP), uma das organizações responsáveis por um amplo estudo chamado ‘Terras Quilombolas em Oriximi18 www.revistapzz.com.br

TERRAS QUILOMBOLA Foi no Pará, no município de Oriximiná, que pela primeira vez uma comunidade quilombola recebeu o título coletivo de suas terras, no ano de 1995.


FOTOs: Ismael Machado

ná: pressões e ameaças’. O documento esmiúça a situação de índios e quilombolas no município, principalmente dos segundos. Os quilombolas vivem em nove territórios nas margens dos rios Trombetas, Erepecuru, Acapu e Cuminã. São 35 comunidades em Oriximiná. O município se espalha na chamada Calha Norte do Pará, onde está a maior concentração de áreas protegidas do mundo, com quase 13 milhões de hectares de unidades de conservação estaduais, 1,3 milhão de hectares de unidades de conservação federal e pouco mais de 7 milhões de Terras Indígenas. Apenas sete terras quilombolas estão tituladas na área de influência da Calha Norte. “A pressão tem sido grande”, diz o líder comunitário Domingos Printes, 42 anos, morador do Abuí, no Rio Trombetas.

As terras estão sendo ocupadas aos poucos por mineradoras, hidrelétricas, madeireiras e pela soja. “Durante décadas, o isolamento ajudou os quilombolas a manter suas terras protegidas. Seus territórios apresentam grandes extensões de florestas com quase 100% de suas áreas preservadas. Mas o avanço da ocupação dessa região torna os quilombolas cada vez mais vulneráveis a uma série de ameaças, como a exploração madeireira e mineral, planos de exploração do potencial hidrelétrico dos rios que cortam suas terras e ações de pescadores e garimpeiros”, afirma Lúcia Andrade. Tomando como base imagens de satélite, a CPI-SP constatou que o desmatamento na área do entorno das terras quilombolas totalizou quase 300 quilômetros quadrados até 2009. “Isso representa 19% de toda área desmatada de Oriximiná, diz Andrade. É uma situação que pode se agravar ainda mais. Segundo o documento da CPI-SP, nos últimos cinco anos, as comunidades quilombolas em Oriximiná receberam diversas ofertas de parceria por parte de empresas madeireiras para exploração florestal. Isso porque os territórios quilombolas já titulados nessa região apresentam-se como opção bastante atraente para as empresas. Há dois motivos para essa cobiça. O primeiro são as extensas

áreas de floresta. O segundo, a situação regularizada. Em fevereiro de 2011 duas associações ligadas a comunidades quilombolas firmaram acordos para exploração de madeira em seus territórios, com a Construtora Medeiros Ambiental, com sede em Tocantins. A parceria é questionada. “Os contratos não fazem referência nem anexam documentos que demonstrem que os membros das associações quilombolas tenham ciência e aprovaram em assembleia os termos do contrato”, questiona Lúcia Andrade. “Isso aconteceu porque não existiu depois da titulação uma política pública do governo. Titularam e pronto. As associações não tiveram outra opção”, defende Domingos Printes. Como não contam com meios para fazer um monitoramento adequado e garantir que a exploração florestal seja realizada por meio de manejo de baixo impacto, as comunidades terão de correr o risco de ver o território ameaçado. É um risco real. Um estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) já mostrou que 73% dos hectares explorados no Pará entre 2008 e 2009, por exemplo, não haviam sido autorizados pela Secretaria de Meio Ambiente. A exploração mineral é outra fonte de preocupação dos quilombolas em Oriximiná. Dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) indicam a existência de 94 processos minerários que incidem em terras quilombolas. Bauxita, fosfato e ouro encabeçam os processos. A única empresa que já desenvolve atividades de exploração em Oriximiná é a Mineração Rio do Norte, que afirma estar cumprindo todos os requisitos legais para a atividade e com respeito às comunidades quilombolas, sem invasão de terras dessas comunidades. A Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (Arqmo) discorda e diz que o diálogo com a MRN se iniciou após a denúncia dos quilombolas ao Ministério Público Federal (MPF) que funcionários da empresa já estavam realizando atividades nas terras, sem uma conversa prévia com as comunidades e que em nenhum momento, nem as comunidades nem a Arqmo deram autorização ou anuência para a realização de pesquisa ou extração de minérios na área. www.revistapzz.com.br 19


literatura expedição

Viviane Menna Barreto

Expedição multicultural na Amazônia Na noite escuracom poucas estrelasa nau de passageirosavança solitária. Éa única luz em meioao rio ea floresta. Dentro do barco centenas de redes preenchemtodoo espaço armadas emtodasas direções. Instaladas por uma noitecompõem umatrama multicolorida de estampasque embalam em um único espaço muitas histórias.

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FOTOs: anibal pacha

“ESSE RIO É MINHA RUA” Um grupo de jovens universitários sentados em suas redes aproveitam os últimos minutos de internet. Iluminados pela tela de seus notebooks fazem os últimos posts e downloads antes de experimentarem pela primeira vez a chance de participar de uma expedição destinada a fotografar, desenhar, filmar, escrever e viver experiências Amazônicas.

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literatura expedição Um grupo de jovens universitários sentados em suas redes aproveitam os últimos minutos de internet. Iluminados pela tela de seus notebooks fazem os últimos posts e downloads antes de experimentarem pela primeira vez a chance de participar de uma expedição destinada a fotografar, desenhar, filmar, escrever e viver experiências Amazônicas. Trabalhando em uma espécie de Agência Colaborativa os estudantes unem seus conhecimentos, fragilidades e talentos para criar em múltiplas plataformas novas narrativas sobre a cultura tradicional Paraense. A proposta destes artistas e comunicólogos viajantes é conseguir criar um canal de comunicação entre os saberes e fazeres dos homens amazônicos e o ciberespaço buscando possibilitar novas conexões entre estes mundos e temporalidades. A ideia inspirada no projeto Rondon, com viés antropológico, já aconteceu ao longo dos rios Tocantins, Amazonas, Pará, Canaticu, entre outros. Trata-se de um trabalho de Extensão Universitária, denominado Cartografias Amazônicas, que está sendo desenvolvido pela faculdade Estácio FAP sob minha coordenação e que já resultou em 55 produções desde seu inicio em 2013. As ‘Cartografias’ nasceram com intensão de apresentar a Amazônia aos estudantes que desconhecem as realidades do interior, das ilhas, das florestas e manifestam apenas preconceitos com relação as manifestações culturais caboclas, indígenas e quilombolas. Observamos que muitos jovens vivem apenas o Pará urbano o que nos soou como algo alarmante, uma vez que o melhor de Belém é ser uma capital onde ainda é possível conviver com a cultura e visualidade amazônica. Muito próximo a capital, podemos nos surpreender com a riqueza de pequenas festas sagradas e profanas ainda desconhecidas. No entanto por haver poucas narrativas sobre essa realidade no ciberespaço resolvemos facilitar aos estudantes estas experiências. Enfatizando a responsabilidade social da comunicação já viajamos para Cametá para produzir reportagens sobre os mestres do carnaval das ilhas do rio Tocantins que se apresentam mascarados sobre barcos encenando comédias carnavalescas que revelam verdadeiras crônicas sobre o cotidiano local. Fomos as serras de Monte Alegre e construímos com base em pesquisas sobre imaginários locais Histórias 22 www.revistapzz.com.br

em Quadrinhos para promover preservação de inscrições rupestres deixadas nas rochas por nossos antepassados há mais de 11 mil anos. Em Santarém Novo produzimos charges narrando parte do ciclo de Festivais de Carimbó que vem reunindo tocadores de todo estado em um processo de reconhecimento do carimbo como Patrimônio Cultural nacional e no Marajó produzimos ensaios fotográficos nos municípios com menor IDH (Indice de Desenvolvimento Humano) do Brasil para registrar as realidades sociais, naturais, patrimoniais e fazer um contraponto com o paradigma eurocêntrico, urbanocêntrico, cartesiano e dual acerca dos significados do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Apaixonados por rios e audiovisuais já filmamos em furos e igarapés alguns cí-

Um grupo de jovens universitários sentados em suas redes aproveitam os últimos minutos de internet. Iluminados pela tela de seus notebooks fazem os últimos posts e downloads antes de experimentarem pela primeira vez a chance de participar de uma expedição destinada a fotografar, desenhar, filmar, escrever e viver experiências Amazônicas. rios fluviais. O mais belo ainda acontece a bordo de barcos a remo em Macapazinho, uma agrovila situada em Castanhal. Filmamos também uma meia-maratona realizada nas terras indígenas dos Parkatejê quando ocorriam as comemorações referentes ao lançamento do livro de memórias idealizado pelo cacique Krôhôkrenhum denominado “Meikwy tekjê ri” e dedicado a seu povo em resposta ao temor de perder sua cultura e suas raízes. Em outros momentos visitamos comunidades da Amazônia para realizar em parceria com estudantes de engenharia pesquisas em furos para entender por meio

MAPA CULTURAL As ‘Cartografias’ nasceram com intensão de apresentar a Amazônia aos estudantes que desconhecem as realidades do interior, das ilhas, das florestas e manifestam apenas preconceitos com relação as manifestações culturais caboclas, indígenas e quilombolas..


FOTOs: anibal pacha

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literatura expedição de pesquisa participante as dificuldades e demandas dos ribeirinhos que vivem sem água encanada e sem luz. Muitos projetos renderam frutos, outros estão em processo em uma ciranda que envolve mais e mais alunos que simultaneamente trabalham em diferentes projetos de comunicação. Sob o por do sol laranja a bordo de uma voadeira, em um trapiche ou do alto de catamarã desenha-se nas telas da filmadora o skyline da floresta, o trânsito de barcos. Neste cenário captamos as vozes da Amazônia. Orientados pelas demandas da comunidade, seguindo princípios da interculturalidade e interdisciplinaridade, reunimos conhecimentos diversos para produzir conteúdos de forma colaborativa que são compartilhados nas redes sociais, mídias livres e veículos de comunicação de massa locais e nacionais. Nesse sentido, tentamos utilizar

Trabalhando em uma espécie de Agência Colaborativa os estudantes unem seus conhecimentos, fragilidades e talentos para criar em múltiplas plataformas novas narrativas sobre a cultura tradicional Paraense. símbolos partilhados para desenvolver uma espécie de cidadania multicultural e inclusiva que leve um pouco destas histórias para o resto do Brasil. Assim este projeto Cartografias Amazônicas vem confluindo infinitamente através de uma grande viagem pelas comunidades Amazônicas. E a ideia de cartografia vem se cumprindo não apenas nos resultados obtidos, mas, realmente na tensão que se forma no ponto de encontro e reencontro entre objeto visado e a subjetividade do fotografo, do artista visual, do comunicólogo na apreensão, configuração e geração de mecanismos transmissivos. Nessa vivência incluímos erros, acertos, buscas por metodologias que respondam as demandas que sempre nos surpreendem e também retornos para compartilharmos e validarmos resultados em um ir e vir infinito onde deixamos amigos, conhecemos sabores, desfrutamos intimidades numa troca em que o grupo todo a cada viagem revê e atualiza valores. 24 www.revistapzz.com.br

VIVÊNCIA Nessa vivência incluímos erros, acertos, buscas por metodologias que respondam as demandas que sempre nos surpreendem e também retornos para compartilharmos e validarmos resultados


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TEATRO PARAENSE HOLOFOTTE VIRTUAL

Luciana Medeiros

transophia, drag hi-tec e “yellowcake” P

elo segundo ano consecutivo, o Estúdio Reator realiza o seu “Yellowcake”, programação cultural que vem sendo realizada sempre no mês de julho, com objetivo de trazer à cidade uma opção a mais para quem nem sempre viaja para as praias nos finais de semana. Na abertura do evento, foi quinta-feira, 03, às 21h. “Transophia”, de Pedro Olaia traz direção e visualidade de Nando Lima e pesquisa musical e operação de som de Dudu Lobato. Nesta nova criação, Olaia traz à tona a personagem Sophia, uma drag criada por ele, muito antes de pensar a se envolver com o universo da performance. Sophia nasce nas ruas - Aos 36 anos, Pedro Olaia, formado em engenharia elétrica, hoje, exerce o ofício de artista multimídia, realizando trabalhos independentes construídos coletivamente. Em 1999, ainda com 21 anos, andava a noite pelos guetos GLBT’s de Belém e sem ter conhecimento de teatro construiu sua primeira personagem, Sophia Mezzo, uma drag mezzo uomo mezzo Donna, que vem protagonizan-

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do várias de suas performances, sempre realizadas na rua. Sophia ficou “esquecida” durante alguns anos até ressurgir, dentro de uma linguagem mais específica da performance. Desta forma, sua primeira aparição nas ruas como a drag performática de Olaia, foi em 2010, quando o artista completava 33 anos. Contando com a ajuda de amigos artistas, no dia de seu aniversário, Olaia realiza uma ação que iniciou na Escadinha, atravessou a Estação das Docas, culminando no Ver-o-Peso. Sophia é uma personagem andrógena. Ao misturar uma série de referencias em sua concepção, Olaia traz para o corpo da drag a tecnologia desconstruída. No cenário, um tablado em forma quadrada que pode lembrar um quarto ou um camarim, a drag se vê rodeada de fragmentos de HDs e outras peças de computador, que vão sendo gradativamente agregadas em seu corpo, proporcionando ao público, uma visão cada vez mais onírica. Da rua ao Reator - As incursões de Sophia, até então, vinham sendo feitas nas ruas. É a primeira vez que a perso-

nagem é trazida para dentro de espaço para vivenciar uma forma mais elaborada do ponto de vista técnico. ‘Há uma diferença sim em fazer a Sophia dentro do Reator. Personagem de rua é outra coisa, você tem que fazer tudo grande e exagerado, aqui dentro tem algo mais intimista, próximo das pessoas, a atenção está toda nela, não tem nada externo. Então, muda a ambientação, a plasticidade. É como se fosse um quadro sendo pintado, com a luz e a maquiagem desenhando este corpo. Na rua é tudo mais cru”, comenta o artista. “Transophia” mantém a discussão mais presente no trabalho de Olaia, que é a crítica ao consumo e o olhar voltado para a reutilização de materiais diversos, e desta vez mais enfaticamente, o lixo tecnológico que consumimos. “Reencontrei o Nando Lima, ano passado, e disse a ele que eu queria fazer algo agregando a tecnologia na performance. Já vinha desmontando computadores, impressoras velhos e descobrindo objetos para construir um novo corpo. Este ano nos unimos para


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HOLOFOTTE VIRTUAL realizar isso”, explica Olaia. Parceria - A parceria com Nando Lima surge em 2006, no espetáculo Frozen. Em 2008 e 2010, trabalha com ele em duas edições do Festival Territórios de Teatro e atualmente desenvolve mais uma parceria, que segue firme, trazendo à público a Transophia. O espetáculo desnuda ou veste o universo drag, ao mesmo tempo em que relaciona este processo à questão do lixo tecnológico, o consumo excessivo de tecnologia. “Transophia” coloca em cheque uma Amazônia que não tem acesso à mesma tecnologia disponível na Europa. “Aqui já consumimos a sucata deles. Por isso no espetáculo há muito da truquenologia, da gambiarra, do reuso de equipamentos e da tecnologia

“Personagem de rua é outra coisa, você tem que fazer tudo grande e exagerado, aqui dentro tem algo mais intimista, próximo das pessoas...” do possível. Tudo isso está conceituado no me trabalho”, finaliza o artista, que possui performances, videoperformances e outros vídeos e ações imersivas na rua e que normalmente discutem as relações humanas com o consumismo, o corpo e o meio ambiente. O primeiro trabalho em teatro, no ano de 2006, foi realizado com o Usina Contemporânea de Teatro, mas foi ao conhecer o artista Nando Lima, em 2006, que Olaia deu início a uma nova etapa desta trajetória. Naquele ano monta com ele o espetáculo Frozen. Em 2008 e 2010, também com Nando Lima, Olaia trabalha em duas edições do Festival Territórios de Teatro. Atualmente, a parceria, que segue firme, traz à público a Transophia. Mais sobre Pedro Olaia - Depois de concluir Engenharia Elétrica, em 2001, Pedro Olaia entra para a Escola de teatro e Dança da UFPA, e já em 2002 participou de seu primeiro espetáculo de teatro: A-MOR-TE-MOR. Mas ainda não era o caminho que ele dois anos 28 www.revistapzz.com.br


LIXO TECNOLÓGICO A diferença abissal dos consumidores modernos, entre países pobres e ricos, conduz o diálogo antropofágico do espetáculo.

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HOLOFOTTE VIRTUAL

TÁTICAS DE GUERRILHA Discutir as relações humanas com o consumismo, o corpo e o meio ambiente, é a tônica conceitual das ações perfomática do artísta Pedro Olaia.

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depois encontraria para trilhar. Em 2004, depois de participar do I Encontro de Performance e Performers do Pará, organizado pela professora Karine Jansen, ele apresentou na rua, a sua primeira performance: Barato é aqui! O trabalho em 2006 foi levado para Virória-ES em um encontro independente de intervenção urbana organizado pelo coletivo Entretantos. No ano seguinte (2007), juntamente com amigos, ele forma o coletivo arRUAssa e organiza o primeiro evento deste coletivo na praça do Carmo, onde novamente apresenta a performance Barato é Aqui! Já em 2009, junto com a rede [aparelho], Pedro Olaia registra, edita e publica vídeos do Carnaval de Belém, e soma com coletivo em outras ações na rua, utilizando a

“Aqui já consumimos a sucata deles. Por isso no espetáculo há muito da truquenologia, da gambiarra, do reuso de equipamentos e da tecnologia do possível.” performance como táticas de guerrilha contra o sistema dominante. Não parou mais. Entre seus trabalhos em performance, indo da atualidade ao início de sua trajetória, Pedro Olaia destaca, em 2013: “Depilei-te”, “Sophia Christi: Louvores em Tons de Rosa”, O Segunda Égua: Sarau do Corpo Poelytico, “Cuidado C’an-dor que o santo é de lixo: O Nascimento da Nossa Senhora do Bom Lixo”. Em 2012, ele fez “Trava Carne: O Pato do Cirio”, dentro da programação do Segunda Égua, “Primeira Égua: O Enforcamento”, “Índio Vai A Brasília Pra Fechar Negócios”, “O Canto”, videoperformance no Sitio Brilho “Verde Colares”. Em 2010, realizou De-leite, onde ressurgiu com a drag Sophia e O Canto da Vaca (Café com Direitos - SDDH). Em 2009, fez “Ele Fal(h)ou” (Forum Social Mundial, Belém, 2009) e em 2006, “Barato é Aqui”(multipliCIDADE, Vitória). www.revistapzz.com.br 31


ESTÚDIO LÂMINA

Marina Bitten

experimenta o corpo legít

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ando ítimo CORPO NÚ Marina apresenta imagens exclusivas, nas quais discute a temática do “corpo experimentado e corpo legítimo”. Em suas obras vemos corpos reprimidos e vulneráveis, solitários e usáveis, coloridos e construídos, poderosos e fetichistas.

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ESTÚDIO LÂMINA

M

arina Bitten nasceu em Tubarão, SC, e fotografa profissionalmente há 08 anos. É graduada em Publicidade e Propaganda e pós-graduada em Moda. Estudou fotografia Instituto Internacional de Fotografia e no Museu de Arte Moderna em 2012. A fotografia autoral possibilitou questionar as ideologias a respeito do ser feminino, as quais ela vem se aprofundando durante os anos. Marina apresenta imagens exclusivas, nas quais discute a temática do “corpo experimentado e corpo legítimo”. Em suas obras vemos corpos reprimidos e vulneráveis, solitários e usáveis, coloridos e construídos, poderosos e fetichistas. Marina une o verdadeiro ao fantástico, a carne ao objetos de decoração e o uso comum, entre luzes e cores cinematográficas. Alterna a primazia técnica e a fatura despreocupada. Sua poética interroga o mundo em que vivemos, criando a impessoalidade das figuras sem rostos. Há um estado onírico nas obras da artista que revelam os pensamentos mais profundos: sexo, sonhos, realidades inflexíveis e fetiche.

Sua poética interroga o mundo em que vivemos, criando a impessoalidade das figuras sem rostos. Combinações perturbadoras de efeito estranhamente sensual. A obra de Marina nos instiga ao ver que: não podemos acreditar e sim questiona. Questionar a realidade vivida, o papel feminino e o papel de seu observador. Ou apenas se envolver nos sonhos que essa realidade desperta.

A OBRA Marina nos instiga ao ver que: não podemos acreditar e sim questiona. Questionar a realidade vivida, o papel feminino e o papel de seu observador. Ou apenas se envolver nos sonhos que essa realidade desperta..

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Marina Bitten


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ESTÚDIO LÂMINA

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Marina Bitten


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CINEMA / NPD

Danielle Franco

NPD Pará oferece mais de 300 filmes O cinema paraense apresenta sua produção, por todos os canto deste imenso estado, mais de 300 títulos, só no Pará, estão reunidos e catalogados e prontos para serem acessados pelos amantes da sétima arte.

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foto: Simone Jares

arcevo do npd Filmagem do documentário “Mestre Damasceno - O Resplendor da Resistência Marajoara”, de Guto Nunes.

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CINEMA / NPD 1

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IMAGEM E DOCUMENTOS 1 - Filmagem do documentário “Mestre Damasceno - O Resplendor da Resistência Marajoara”, de Guto Nunes; 2 - Projeto Por que A Gente é Assim, da Matizar Filmes; 3 - Catálogo do NPD; 4 - Curta Espelho e Silêncio, de Vince Souza; 5 - Afonso Gallindo, gerente do Núcleo de Produção Digital; 6 Doc Rádio 2000, de Eric Lopes; 7 - Histórias do Mar, filme de Luiz Arnaldo Campos.

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Não são poucos os que torcem o nariz ao ouvir a frase “cinema paraense”; afinal, dizer que se faz cinema no Pará durante muito tempo soou como ilusão e a visibilidade para estas produções sempre foi escassa. Por conta disto se tornou urgente não apenas reunir estas produções, mas disponibilizá-las para quem quiser ver comprovar. Assim, nasceu a ideia de compilação dessas produções, num projeto que o Núcleo de Produção do Pará – NPD, localizado no Instituto de Artes do Pará, disponibiliza a partir de agora. Com mais de 300 títulos apenas do Pará e outros 100 de produções internacionais, o catálogo do NPD engloba as mostras “Parazinho” e “Pirilampo”, com animações infantis, sendo esta última uma parceria com a Fundação Curro Velho. Lançado em junho deste ano, o catálogo do NPD iniciou seu processo de compilação em 2012. Em quase dois anos, foram catalogados mais de 290 títulos, entre animações, ficções, documentários e curta metragens, que deram origem à Mostra Pará, uma seleção que circula todo o Estado em apresentações ao ar livre e que já foi apresentada para mais de 10 mil espectadores, em cerca de 80 cidades paraenses. A visibilidade que a Mostra Pará tem recebido levou o NPD a criar o catálogo virtual, onde o público consegue encontrar todos os filmes disponibilizados, incluindo fotos, sinopses e contatos dos realizadores. O catálogo recebeu um endereço próprio na internet onde estão os títulos das Mostras Pará e Parazinho. Além das produções do estado, o catálogo disponibiliza ainda o acervo nacional e internacional do NPD, com mais de 330 filmes de várias regiões do Brasil e de países latino-americanos como Cuba. De acordo com Afonso Gallindo, gerente do NPD, a necessidade do catálogo veio a partir do aumento das produções na região e por consequência o aumento dos filmes no acervo. “O catálogo comprova que existe produção em todo o território paraense e o esforço do realizador em fazer, surpreendendo pela diversidade de gêneros e abordagens de temas. Isso rompe definitivamente com o paradigma de que não existe demanda para a produção audiovisual no Pará.”, referenda o gerente. Dentre os mais de 300 títulos das Mostras Pará e Parazinho, são encontradas

produções das cidades de Santarém, Santarém Novo, Canaã dos Carajás, Castanhal, Vigia, Marabá, Bragança, Anajás, Santa Isabel, Parauapebas, Capanema, Marapanim, Gurupá, Ponta de Pedras, Monte Alegre, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Óbidos e Mosqueiro. Sobre o NPD Criado em 2006 no Instituto de Artes do Pará - IAP, o NPD – Núcleo de Produção Digital, surgiu através de iniciativa da Associação Brasileira de Documentaristas – ABD Nacional que propôs o formato para a Secretaria de Audiovisual – SAV do Ministério da Cultura, que o viabilizou em edital, direcionado a todas as capitais brasileiras. No Pará, o Núcleo foi implementado através da parceria como Governo do Estado, sendo gerido pelo IAP em cogestão com a Fundação

“A intenção com os editais e cursos do Núcleo é que mais pessoas produzam o audiovisual. A verba é pública e deve ser direcionada ao público.” Paraense de Radiodifusão – Funtelpa, Instituto de Ciências da Arte – ICA/ UFPa, Associação Fotoativa e Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas (ABDeC/PA). No Pará, o Núcleo de Produção Digital surgiu como programa da Rede Olhar Brasil, com a finalidade de incentivar à produção, e o desenvolvimento de estudos e pesquisas na área do audiovisual em suas diversas linguagens, suportes, formatos e plataformas. O incentivo a produções locais se desenvolve por dois caminhos: O primeiro de fomento à criação com cessão de equipamentos de captação/edição de imagem e som para produtores independentes de todo o Estado, gratuitamente. O segundo proporcionando o aperfeiçoamento técnico e artístico de profissionais na área de audiovisual com realização de cursos, oficinas e outras atividades de qualificação e conta com parcerias importantes, como a do Centro Audiovi-

sual Norte-Nordeste (CANNE-FUDAJ) de Pernambuco. Hoje o NPD Pará é um dos principais responsáveis pela difusão das produções realizadas e busca construir outras parcerias. Com estrutura completa de equipamentos para captação e edição de som e imagem, o NPD disponibiliza ao público seu Edital de Pauta para utilização dos equipamentos. O edital fica disponibilizado no endereço virtual do IAP: iap.pa.gov. br. e permite inscrições entre os meses de fevereiro e dezembro de cada ano. Para utilização dos equipamentos podem candidatar-se obras audiovisuais autorais e artísticas que não tenham finalidade publicitária, institucional ou político-partidária e que se enquadrem nos seguintes gêneros: documentário, ficção, clipe, videoarte, experimental e animação. As inscrições para uso dos equipamentos são gratuitas e devem ser realizadas com no mínimo 15 (quinze) dias antes do período solicitado. O edital fica aberto a pessoas físicas residentes no Pará há pelo menos dois anos. As oficinas propostas pelo NPD também são gratuitas, direcionadas ao aperfeiçoamento dos profissionais do cinema e audiovisual. Alguns dos títulos presentes da Mostra Pará são resultado direto da parceria de seus diretores com o NPD, seja em caso de utilização de equipamentos, seja através das equipes que se formaram durante os cursos oferecidos pelo Núcleo no IAP. Filmes de cineastas como Luiz Arnaldo Campos e Bruno Assis foram produzidos com os equipamentos e as ilhas de edição do Núcleo; assim como o de coletivos de novos produtores de cidades como Ponta de Pedras, no Marajó e Santa Isabel. Para Afonso Gallindo “a intenção com os editais e cursos do Núcleo é que mais pessoas produzam o audiovisual. A verba é pública e deve ser direcionada ao público.”, finaliza. Para conhecer o acervo do Catálogo Virtual, basta acessar o link: http://issuu. com/catalogonpdpara/docs/catalog2014 Toda a produção também pode ser solicitada para exibição através da Mostra Pará. Para quem torceu o nariz, talvez esta seja a hora de rever não apenas uma ideia pré concebida, mas, principalmente, ver as nossas produções e dizer o Pará também é lugar de cinema. www.revistapzz.com.br 41


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eco-jornalista fotógrafo Hely Pamplona nasceu na Ilha do Marajó, na Fazenda Perseverança em Cachoeira do Arari, em meio à exuberância e a diversidade vegetal, animal dessa região. Não poderia haver melhor lugar no mundo para despertar a sua vocação de artista, capaz de captar, através de suas lentes, os movimentos mais sutis da vida e da realidade amazônica

Nasci no Marajó no dia 13 de outubro de 1958, em uma fazenda chamada Perseverança, às margens do Rio Arari, em Santa Cruz do Arari. Minha juventude e boa parte da vida adulta foi no meio da natureza, convivendo com os animais em ambientes privilegiados da paisagem rural. Minha avó paterna fazia, sem ter bem o sentido do que é isso hoje, um trabalho de preservação. Na fazenda não se podia matar, não se podia usar baladeira para maltratar animais. Uma das brincadeiras de infância era fazer bichinhos com tabatinga, também molhava a ponta do dedo na água da cuia e desenhava no assoalho da casa. Assim, criado nesse clima de muita preservação, meu trabalho, anos depois, teve esse reflexo. Para mim foi, também, muito importante ter convivido na fazenda com uma tia que era fotógrafa e tinha um laboratório. E claro que no interior, principalmente, naquele tempo, tudo era muito mais primitivo, feito com equipamentos bem rústicos, mesmo! 0 certo é que ela revelava lá as fotos. Assim, desde menino fui criado brincando com os negativos, olhando ela revelar, envolvido com todo aquele processo artesanal, o qual me deixava fascinado. Esse fato me possibilitou um contato mais próximo do que era fotografar uma situação, e, depois, ver surgir toda aquela surpresa da imagem. A fotografia é assim, uma coisa que sempre tive amor, sempre 42 www.revistapzz.com.br

tive paixão. Eu comecei a fazer fotos muito pela vontade de ser fotógrafo, pois, nada naquele ambiente era favorável, em termos práticos, ao trabalho que dá ser um bom profissional da fotografia. Aprendi alguma coisa lendo revistas, comprava ummontão delas. Agora, fotografar é uma coisa que você aprende mesmo praticando. Àlm.il, a sensibilidade é algo que não se aprende na teoria. Gastei muito dinheiro e Hipo lendo as revistas e sonhando com aqueles equipamentos que via lá. Aquilo tudo

era muito distante para mim. No entanto, olhando com bastante curiosidade para aquelas páginas, fui criando coragem para enfrentar tudo que era crise, por causa da obsessão pelo ofício do fotografar. Há uns vinte anos, meus colegas de profissão faziam eventos sociais, casamentos, batizados, essas coisas que todo mundo faz, em cobertura fotográfica no interior. Foi nesse tempo, que resolvi focar meu trabalho para a questão ambiental, principalmente, a questão ecológica... A natureza era registrada por mim, pela máquina INSTAMATIC 177 X. A primeira câmera semi-profissional foi uma YASHICA MINISTER D, queixo duro, aquela que não tem como você tirar a lente, pois, ela é fixa. Sabe o que é você não ter opção de lente?! Existe uma lente específica para cada tipo de trabalho. Não dá para você fazer foto de inseto com a lente que você faz foto de paisagem... Para fazer boas fotos é preciso ter um bom equipamento. Trabalhar com fotografia é um investimento muito alto. Eu ia para o “interior do interior” fazer foto de pôr-do-sol só por gosto. Não vendia. Nas fotos de família sempre procurava criar alguma coisa... Soprava na lente da câmera para ficar embaçada, quando a câmera ia perdendo aquele embaçamento da lente, eu fazia a foto e a pessoa ficava envolta naquela atmosfera de sonho. Parece engraçado, mas, dava certo mesmo. A fotografia é isso, uma coisa para você


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aprender praticando. Assim, fui desenvolvendo o meu próprio estilo. Pegando a minha própria técnica. Acredito que cada fotógrafo tem que ter seu estilo, eu procuro ter o meu. E bom quando a gente ouve alguém falar que reconheceu uma foto nossa. Ainda que os créditos não estejam lá. Infelizmente, nem todo mundo reconhece que é preciso colocar o nome do fotógrafo. Esse problema, ainda hoje é muito comum. 0 meu acervo fotográfico começou a ser montado quando fui morar nas margens do Rio Gurupi. Eu saía para fazer tocaia de folhas, nas fontes de água aonde os bichos vinham se saciar. No mato, escondido, ficava vendo nambu beber água, pavãozinho-do-pará, pipira, sabiá-vermelho, sabiá branco, suí, suí-fogo, tém-tém rei, paca, veado, caititu. Tudo que é bicho vinha beber água ali. Naquela única fonte, que ás vezes, era apenas uma poça de água. Então, eu fazia fotos maravilhosas, só que não vendia, não via que aquilo tinha valor comercial, ainda mais, valor patrimonial. Minhas fotos, sempre foram vistas como curiosidades, não eram entendidas com a importância que eu dava para a vida rural. Hoje?! Não!! Eu sei que o trabalho que faço na Amazónia é parte de “Eu fazia fotos maravilhosas, só que não vendia, não via que aquilo tinha valor comercial, ainda mais, valor patrimonial.” um patrimônio muito nosso, do Pará, até mesmo da Humanidade. Mas, me dá tanta tristeza saber que, daqui a algum tempo, muitos desses animais fotografados estarão extintos. Foi esse pensamento que me levou a publicar esse material, para ajudar as pessoas a perceberem o que se destrói quando se agride a floresta. E muita beleza, é muita riqueza. Há países onde isso não tem mais. Essa preocupação me levou à falência muitas vezes. www.revistapzz.com.br 47


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Muitos foram os problemas, que enfrentei, pois, todo dinheiro que eu conseguia era para fotografar. Essa aventura, de estar todos os dias em contato com o meio ambiente, ainda preservado, ainda cheio de vida e perigos, era o que mais me levava a achar que compensava os conflitos e a incompreensão de muitos. 0 tempo foi se esticando e fui me tornando uma referência, dentro da cidade em que vivia. Os fotógrafos que iam de Belém para lá, tinham meu endereço. Aí, eu vendia fotos para eles. Fotos que eles nunca bateriam, porque é preciso um tempo diferente da pessoa que vai de passagem. Além do mais, a pessoa que vive no interior tem uma outra noção de tempo. 0 nativo conhece até pelo cheiro as manhas do mato. Eu tenho toda essa habilidade por ser um nativo. Tenho muito orgulho de ter conseguido o espaço que consegui, fazendo o que faço. Mas, justiça seja feita, esses profissionais que visitavam o interior onde eu morava, eles é que me incentivaram a procurar em Belém, aquilo que não encontrei nos lugares por onde passei. Há uns seis anos vim para Belém, com um monte de fotos debaixo do braço. Fotos de paisagens, da vida ribeirinha, de borboletas, de sucuri. Uma variedade de animais e cenas amazônicas, que mais pareciam imagens do paraíso, pois, quando eu faço uma foto assim, por exemplo, vejo um animal, “clicko”, ali no momento do click não é só aquela foto. Há toda uma atmosfera em volta daquilo. Existe todo aquele cli“A pessoa que vive no interior tem uma outra noção de tempo. 0 nativo conhece até pelo cheiro as manhas do mato. Eu tenho toda essa habilidade por ser um nativo.” ma, o cheiro da floresta... Tudo isso fascina a gente. Você vê uma foto aqui, você não sabe o que eu vivi ali. Pôxa! Isso aqui é só uma foto?!?Não!! Foi muito mais do que isso... Agora, veja só!! Não tenho como trazer esse clima para cá, mas, eu gostaria de repartir com as pessoas isso. As coisas que vi, as coisas que eu vivi dentro do mato... E assim, fascinante, sabe?!, 0 mundo da fotografia de selva é uma coisa maravilhosa. A própria cultura, a nossa cultura é uma coisa muito forte, muito rica. A medicina www.revistapzz.com.br 49


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FOTO ENSAIO natural é algo fora do comum. Tinha um camarada que pescava comigo, o João Curica. Aí disseram: - Égua, o João Curica teve derrame na maré, deu derrame lá no meio do rio. Aí o cara veio trazendo ele. 0 João Curica estava jogado no fundo da canoa, desmaiado, em coma! Aí, uns três dias depois eu encontro o João Curica jogando futebol. A mãe dele, descendente de índios, fez um remédio com banha de jacuram, misturada com banha de capivara, misturada com a raiz da sapequara, misturada com o suco da japecanga, cortado em cruz com três cibalenas... Aí, lá está o cara jogando bola, entendeu?! Agora, poucos se interessam de pesquisar. Nas comunidades da Amazónia convivendo com essa riqueza, há também, situações de muita pobreza. Uma contradição que não dá para entender num país tão rico de recursos naturais. Sentir-se impotente diante dessas realidades é muito desalentador. A fotografia é minha maneira de responder a isso tudo. Ela é prazerosa quando se trata da arte, mas, registrar certos fatos, como atender a um pai que me pediu para fazer uma foto de seu filho, morto por desnutrição. E demais! Há casas, onde você encontra pessoas, que tratam o ser humano com muita hospitalidade, dividindo o que tem naquele dia, do chibe ao refogado de mucura. Essa sinceridade emociona pela verdade do gesto... Bom, então é assim... As crianças no interior, na vida rural e ribeirinha, são muito criativas, a maioria de seus brinquedos são feitos por eles mes-

“Nas comunidades da Amazónia convivendo com essa riqueza, há também, situações de muita pobreza. Uma contradição que não dá para entender num país tão rico de recursos naturais.”

mos. Naquela vida que levam, acompanhando os pais, na lida diária. E um barquinho de papel, um banho de igarapé na boneca de plástico e assim, eles vão aprendendo o que é importante, para sobreviver na floresta. Uma criança de seis, sete anos sabe fazer peçonha, para apanhar açaí; sabe armar arapuca, para pegar animais; sabe pescar com soco, que é um puçá de talas; sabe tanta coisa, que a gente até se 52 www.revistapzz.com.br


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assusta. Eles aprendem a nadar com dois anos de idade; pulam na água com bóia feita de mututi, uma raiz levezinha que eles também usam para apoiar as malhas de pesca. No mato, a responsabilidade dos velhos e das crianças não tem diferença. Na hora de colocar um curral para pegar peixes, vai quem tem saúde, quem tem força para ajudar, seja velho, seja novo. E novo no interior, às vezes, é criança de três anos, que sai para trabalhar com adulto de setenta. Sempre me instigou essa maneira como os caboclos se relacionam e resolvem os seus problemas, com muita imaginação e com uma tecnologia, que só acha o jeito certo, quando está na frente do problema muitas vezes. Fico pensando que, é por isso que os velhos se misturam com os novos. E para sobreviver, para enfrentar tanta agrura. Essa coisa toda, ajuda a entender a fotografia como uma forma de educação, que não é só para estar nas escolas, mas, que também é. Ensinar as crianças a respeitar e amar a natureza, é uma esperança, né? Porque, infelizmente, a Amazónia está esquecida por nós. Ela parece tão grande, tão forte, que a gente pensa que ela nunca vai acabar. E sim! Não está sendo realmente valorizada como deveria. Eu penso nisso. Penso todo dia quando fotografo. Até por que, cada árvore, uma árvore só, se você for observar, e, a lente da máquina me permite fazer muitas vezes isso, é habitada por milhões de vidas. Então, Quando ela é queimada, ninhos de pássaros são destruídos, abrigos de muitos insetos e um montão de vidas microscópicas, importantes para o equilíbrio do meio ambiente. Tudo isso aí é destruído, também!!! Em Bragança, fui para um lugar que ficava a 8 km da beira da estrada, para dentro ia mata. Andava de manhã procurando animais para fotografar. A noite subia no mutá”, um gradeado que a gente faz como se fosse uma escada de varas amarradas :om cipó titica, em duas árvores finas, para não dar acesso a animais perigosos como a onça. Assim, eu dormia. Quando descia de manhã, onde eu havia pisado, tinha pegada de onça. Tive muito medo de virar comida de onça, né? E lá era o www.revistapzz.com.br 55


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que mais se ria. Eu passei uns três dias nessa aflição. Depois, fui embora com medo. Alguns meses depois, voltei lá e não consegui mais encontrar o lugar. Tinham derrubado tudo para fazer pasto de gado. Eles queimaram tudo, os animais que não conseguiram escapar morreram, os que conseguiram fugir ficaram desgarrados de seu meio ambiente. Eu vejo a Amazónia assim, como uma coisa preciosíssima, maravilhosa e fascinante, mas, que infelizmente, não é dado o devido valor por nós. A Amazónia era para se ter assim, fazendo um trabalho permanente de preservação. Sério mesmo!! Que não fosse responsabilidade só de governo, que cada um levasse esse interesse como uma coisa sua. Um trabalho de preservação sério, com punição rigorosa para quem ferisse a lei... Tem lei para o meio ambiente; tem lei para a preservação dos animais; tem lei para preservar os direitos do cidadão, lei tem!! Mas, se não tem a informação, se não tem a consciência, como é que vai funcionar?! Futuramente, vamos sofrer muito, as consequências desse desrespeito todo. A natureza já está respondendo. Com o superaquecimento do Planeta, que é consequência do desmatamento incontrolável. ma coisa muito real, nessa questão de depredação do patrimônio da Amazônia é a biopirataria, a gente não tem “Eu vejo a Amazônia assim, como uma coisa preciosíssima, maravilhosa e fascinante, mas, que infelizmente, não é dado o devido valor por nós..” como esconder isso aí. Estão levando ovos de pássaros raríssimos, através de portos e aeroportos da Região. Houve uma apreensão recente de ovos de arara azul, galo da serra, uirapuru, pássaros raríssimos!! Já pensou?! Levam os ovos para países que nem têm a mesma condição ambiental do lugar onde esses animais vivem; chegam lá colocam em chocadeira... Fora àqueles que morrem nos bagageiros, pelas péssimas condições de transporte. Tudo isso é coisa que ninguém www.revistapzz.com.br 57


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consegue entender!! E no noticiário vira apenas uma informação entre as outras. O que fica?... Essa é uma questão que deveria ser de todos nós que vivemos aqui. Nós tínhamos que ter esse compromisso com a Amazónia, de respeitá-la, amá-la e preservá-la. Acredito que meu trabalho, daqui há uns 10, 20 anos, vai ter muito valor por causa disso, pois, os pássaros, alguns ou“A fotografia, além de ser uma opção de sobrevivência para mim - hoje vivo exclusivamente dela - é, também, uma terapia e um compromisso de vida. Desenvolvi muitos saberes observando os animais. tros animais que fotografei, e mesmo, o modo como vivem as pessoas, só irão conhecer através da fotografia. Eu digo isso com muito pesar. Olha, só!! 0 jucuruxi, um réptil da família do camaleão, é todo vermelho. Uma época o couro dele valeu fortuna. Mataram muito jucuruxi. Meu pai, atualmente com 76 anos, só viu um na vida dele, e eu tinha o sonho de fotografar esse animal. As vezes achava que nem existia mais, fazia tocaia, fazia isca, e nada. Um dia desses, na floresta, vinha lá o caboclo saindo com um jucuruxi, pendurado na cartucheira. Aí eu segui com dele, fiz as fotos do jucuruxi, morto... E! Existe isso, o camarada mata por matar. Só pelo prazer de caçar mesmo... Se hoje eu ficasse milionário, não deixava a fotografia! Até problemas de saúde ela me ajudou a curar. Tive por quatro anos síndrome do pânico. Então! A fotografia, além de ser uma opção de sobrevivência para mim - hoje vivo exclusivamente dela - é, também, uma terapia e um compromisso de vida. Desenvolvi muitos saberes observando os animais. Por exemplo, a paca, a cutia, o veado emitem um som, dentro da floresta, batendo com as patas num ritmo bem particular, fazem isso quando encontram uma árvore, que está soltando flores e frutos. Esse som ecoa ao longe na floresta. Isso atrai outros animais que vem comer os frutos. Assim, copiando esse código, já fiz muitas fotos boas. Só chamando no batuque. E impressionante! E muito legal mesmo! A natureza é uma coisa maravilhosa. Por isso, todo dia eu fotografo... Todo dia... www.revistapzz.com.br 59


música pop

Thiago Albuquerque

secret Story do UltraNova nascidos na cidade de Belém, o músicos e primos daniel leite e thiago albuquerque, e mais henrique penna e príamo brandão começaram a trilhar seus passos no mundo da música experimental.

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udo começou em 2012 ao som de Pat Metheny. Os primos Daniel Leite (guitarra) e Thiago Albuquerque (sintetizador/piano) escutavam o álbum Secret Story quando o guitarrista sugeriu montar uma banda para tocar as composições de Thiago. Apaixonado por rock e com suas raízes em bandas como Genesis, King Crimson e Yes, Daniel foi além: sugeriu incorporar às variadas melodias, temas e trilhas de Thiago, uma roupagem inspirada no rock progressivo, e juntos começaram a executar aquelas composições somente com guitarra e sintetizador/piano, acompanhados de bateria e baixo eletrônicos. Após direcionarem as composições para uma atmosfera de rock progressivo, acharam que era o

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momento de incorporar à banda dois novos integrantes para que a mistura se fizesse completa, e o quarteto finalmente foi forma-

Com uma sonoridade predominante do rock, em sua vertente mais progressiva, a banda se destaca pela originalidade de suas composições provenientes da fusão das influências musicais integrantes. do por Henrique Penna (bateria) e Príamo Brandão (contrabaixo), que substituiu o baixista das primeiras gravações Mário Neto.

Com uma sonoridade predominante do rock em sua vertente mais progressiva, a banda se destaca pela originalidade de suas composições provenientes da fusão das influências musicais de cada um dos integrantes. O resultado são músicas instrumentais com uma atmosfera futurista/espacial, o que acabou culminando em batizar o quarteto com o nome UltraNova.

ULTRANOVÍSSIMA “Uma roupagem multfacetada, com ousadia e muito Rock, são os ingredientes desta banda que vai invadir o cenário musical e da terrinha.


www.revistapzz.com.br 61 fotos: Smith Barreto Campos


mĂşsicachoro

Regiane Ribeiro

O cHORO DE O

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foto: Sergio Malcher

ONTEM, HOJE

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músicachoro

U

m grupo de choro formado somente por mulheres é algo que surpreende logo de cara. Isso porque durante muito tempo o choro foi considerado um gênero musical predominantemente masculino e, principalmente, pouco ligado aos jovens. Mas O Charme do Choro mostra que essa história pode ser bem diferente e tem conquistado o público em suas apresentações. Originado a partir do projeto Choro do Pará, iniciada no ano de 2006, o sexteto é constituído por Jade Moraes, Bandolim e Violino, Dulci Cunha na Flauta; Juçara Dantas, Violão; Camila Alves no Violão 7 cordas; Carla Cabral no Cavaco e Rafaela Bittencourt no Pandeiro, O Charme do Choro tem nome sugerido pelo violonista

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e um dos idealizadores do projeto, o músico e arquiteto Paulinho Moura. Destaca-se na trajetória do grupo: os espetáculos De Bem Com a Vida, realizado em Abril/2007, com reapresentação no I Festival de Choro da Casa do Gilson, como atração convidada do evento; De tirar o Chapéu (março/2010/2012), show com repertório de composições femininas e interpretações masculinas: Arthur Nogueira; Hélio Rubens; Olivar Barreto; Pedrinho Cavalléro e Renato Torres. Atração convidada do concerto Noites Brasileiras do violonista Salomão Habib em 2010 e do projeto Terruá Pará II (2011) que reuniu mais de 20 atrações e apresentou-se nas cidades de São Paulo, Belém, Marabá e Santarém.

Ao lado das sopranos Carmen Monarcha, Patrícia Oliveira e da pianista Ana Maria Adade, o espetáculo O Choro e a Lírica homenageiam Da Paz e Waldemar, em homenagem ao 134 anos do Theatro da Paz e o 107º aniversário do maestro Waldemar Henrique (Fevereiro/2012). Em março de 2012 o show Especial dia da Mulher com o violonista Sebastião Tapajós. E em, abril de 2012, participação no show Essas Mulheres de Carmem Monarcha. O repertório passeia pela música brasileira, em especial o Choro, claro. Comprometido com a continuidade do gênero, o grupo interpreta compositores como Jacob do Bandolim, Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, porém, dando ênfase aos


fotos: Sergio Malcher

VIDEOCLIPE O lançamento do primeiro viodeoclipe oficial d´O Charme foi algo inovador se tratando de música instrumental e de Choro, gêneros que pouco lançam esse tipo de mídia de divulgação..

compositores da Região Amazônica, tais como Adamor do Bandolim, Luiz Pardal e Biratan Porto. Deste último, gravou a música Se por Acaso, no CD comemorativo dos 20 anos da Casa do Gilson (2008). Em 2013, O Charme do Choro participou do projeto SESC Amazônia das Artes, e excursionou nos meses de maio e agosto por diversos estados brasileiros que compõem a Amazônia Legal, mais o Piauí. Em outubro deste mesmo ano, o grupo enfim lançou seu primeiro e tão esperado álbum, no Teatro da Paz, em noite de casa cheia. O cd contou com a direção musical de Luiz Pardal e Emílio Meninéa, produzido a convite da Secretaria de Estado de Cultura – SECULT. Com 14 faixas, o CD contempla compositores paraenses de ge-

rações diversas e mostrará ao público uma importante seleção da produção contemporânea da música da região. No dia 25 de maio, em Belém do Pará, foi palco do lançamento do novo vídeo clipe do grupo O Charme do Choro, atração que homenageou a iconografia das vertentes da arte. A apresentação da micrometragem, realizada pela Macieira Filmes, narrou de maneira simbólica o encontro de cada integrante com o seu instrumento e com o Choro, e apresentou em seu roteiro cenários de grande influência para a inspiração artística, como a Capela do São José Liberto, IAP, Casa da Anne Dias, Mercado de São Brás, Biblioteca do Grêmio Literário Português, Bar do Parque

e Casa do Gilson, que ainda refletem contextos históricos em suas linhas arquitetônicas Firmando o grupo, com 7 anos de existência, em uma trajetória de feitos significativos e de muita importância para a cena da musica instrumental. O lançamento do primeiro viodeoclipe oficial d´O Charme foi algo inovador se tratando de música instrumental e de Choro, gêneros que pouco lançam esse tipo de mídia de divulgação. A realização do evento, apresentado pelo radialista Santino Soares, teve sua primeira apresentação no Cinema Olympia, dia 25 de maio, e contou com um pocket show do grupo que tem como marca o comprometimento com a continuidade do choro.

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ESPECIAL MÚSICA

Salomão Habib

tó teixeira A obra e a história deste singular violonista e encadernador é apresentada nesta edição como passagens da vida do compositor e através de um passeio pela musicalidade do homem que retratava sua cidade e seus costumes, seu bairro, seus amores, sua saudade e sua gente.

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ó Teixeira nasceu em meio à música. Além da natural musicalidade do bairro do Umarizal, seu pai era flautista, regente de grupo de pau e corda, além de operário naval, profissão a que muitos davam a denominação de “ferreiro”. O “Pau e Corda” era uma formação comum entre os músicos brasileiros, que começavam a praticar o que mais tarde se transformaria em um dos mais representativos gêneros instrumentais do Brasil: o Choro. A formação do “pau e corda” era composta de violino, contrabaixo, violão, cavaquinho e por vezes, bandolim; a denominação evidentemente, se deu pelo fato dos instrumentos serem feitos à base de madeira e serem de cordas dedilhadas. Ainda garoto, Tó Teixeira, recebeu do pai as primeiras lições de teoria da música. Em entrevista ao jornal A Província do Pará, no dia 10 de maio de 1977, afirmou: “no início não queria aprender música. Não por ela em si, mas pela preguiça de estudar”.

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Porém, logo o violão veio tocar seu coração e arrebatar seus sentimentos. Foi seu vizinho Raimundo Trindade, quem ministrou ao garoto Tó as primeiras notas

O violão era um instrumento da “ralé”. Considerado um instrumento de seresteiros, boêmios, fanfarrões, o violão adquiriu a pecha de instrumento de vagabundo. No caso de Tó, negro, pobre e ainda violonista! Tudo conspirava para sua discriminação e insucesso. e acordes ao violão. Com temperamento determinado, uma vez na cabeça a ideia de algum projeto, nada fazia Tó Teixeira desistir. Não demorou muito então, para

que o grande professor e violonista Aluísio Santos, um renomado concertista de Belém, orientasse Tó nas interpretações e técnicas violonísticas; vibrou ao conhecer Fernando Sor, Aguado, Carcassi, Giuliani, entre outros grandes didatas do período clássico. Se nos dias atuais não é fácil enveredar pelos caminhos da música, em 1905 era infinitamente mais difícil. Vivia-se em uma sociedade em que o instrumento de prestígio era o piano; considerado o instrumento da sociedade aristocrática, o piano era uma peça encontrada em praticamente todas as casas da classe média e alta de Belém; conservatórios e escolas de música na capital paraense, entupiam-se de alunos de piano, canto, violino e acordeão, formando anualmente centenas de jovens oriundos de diversas cidades do Pará e até do Maranhão. O violão era um instrumento da “ralé”. Considerado um instrumento de seresteiros, boêmios, fanfarrões, o violão adquiriu a pecha de instrumento de va-


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ESPECIAL MÚSICA gabundo. No caso de Tó, negro, pobre e ainda violonista! Tudo conspirava para sua discriminação e insucesso. O que torna fascinante a história de Antonio Teixeira do Nascimento Filho é a envergadura de seu caráter e a lisura de sua dignidade. A paixão pelo violão gradativamente tomou conta de sua alma. Após o aprendizado das primeiras lições, o menino Tó já com 15 anos de idade, fez parte dos “Pretinhos de Moçambique”, um grupo de batuqueiros que se apresentava pelas ruas da cidade de Belém, entre os anos de 1908 e 1916. O violão sempre foi veículo direto e indireto da expressão da alma, através da magia das sonoridades das seis cordas, nos salões, festas, palcos de teatros da Europa ou mesmo nas ruas de cidades seresteiras que com a sensibilidade brasileira enterneceu tantos corações. O poeta paraense Avelino do Rêgo dedicou o belíssimo soneto “A um Violão Clássico” à Tó Teixeira. O soneto traz no recurso figurado da personificação, um rico e belo “diálogo” estabelecido entre ele e o violão, entre metáforas românticas do texto. Indiretamente para o poeta, o violão assume o papel da figura humana de Tó, corroborando a verdadeira ideia de que o instrumento é parte do corpo; o instrumento é o corpo, com vida, coração, olhos e ouvidos, braços, pernas, mãos e alma. Antes de alcançar o patamar de instrumento de concerto, o violão era subserviente ao canto. Instrumento das serestas e seresteiros, ao violão desfazia-se a mágoa dos injustiçados de amor e da saudade, tendo sempre ao seu lado um terno e apaixonado cantor acalentando a alma entristecida e buscando em seu colo o suplicante esquecimento da desilusão. Curiosamente, era bem mais o homem que sofria a dor dos desamores, sendo estes em maior número a tecer no canto sua redenção. Dentre inúmeros artistas de sua época existia um que chamava a atenção do Mestre Tó; era o talentoso Juvenal Gomes de Abreu, sobre o artista foi publicado um artigo que Tó Teixeira recortou e conservou: 1932 – Nota sobre Juvenal Gomes de Abreu (Publicada no Jornal “A Folha do Norte em 02 de janeiro de 1932). Ele disse: “Já dois annos se passaram sobre esse 68 www.revistapzz.com.br

dia em que a um sol de ouro, enchendo a manhã de toda graça e ternura, entre lágrimas de seus entes queridos e o adeus de seus amigos, baixou ao túmulo Juvenal Gomes de Abreu, o cantor que era a patativa das serenatas bohêmias, de cuja garganta subiam em noites de lua cheia, o amor, a saudade, a dor e a alegria como um (trecho ilegível) para os corações atormentados e um perfume de harmonia a embalar o sonno das estrellas. Há dois anos que se finou Juvenal Gomes e insubstituível no privilégio de sua voz que era um encantamento, elle continua a viver na saudade de quantos lhe quizeram bem. Juvenal se vivesse, faria annos a 26 de mez findo e o seu retrato aqui, lembrando-lhe o nome é uma homenagem ao artista querido que ele foi”. Este artigo é mais uma constatação da atmosfera de beleza que pairava sobre os mais diversos aspectos da sociedade paraense. Percebe-se que hodiernamente a forma escrita, além da narrativa, evoca um caráter metafórico da mais pura poesia em um comentário simples mais que enobrece a leitura em face da pureza e singeleza notada na honestidade do sentimento do escritor do artigo. Nem perto chegaria da forma atual de escrita jornalística; constata-se que perdeu-se e muito a ternura e a sensibilidade nos comentários que hoje em dia resumem-se aos fatos ocorridos, em uma linguagem tão fria e descritiva que a arte da escrita se perde ou se transforma em meros apontamentos. Os violonistas que acompanhavam os cantores seresteiros eram chamados por vezes de “violeiros”, termo empregado erroneamente haja vista violeiro ser a designação para aquele que toca viola e não violão. É pertinente entender a diferença entre ambos os instrumentos para que dúvidas sejam dirimidas. O que se lerá a seguir é uma das mais fecundas provas de amor boêmio, traduzido na paixão pelo violão: 1932 – POEMA “A UM VIOLÃO CLÁSSICO” – HOMENAGEM DE AVELINO RÊGO À TÓ TEIXEIRA (PUBLICADO NO JORNAL “O ESPIÃO” EM JANEIRO DE 1932 E NO JORNAL “ILUSTRADO” MAIS DE 10 ANOS DEPOIS, EM 26 DE SETEMBRO DE 1942). NOTA: AVELINO DO RÊGO: “Foi um

PRIVILÉGIO DE POUCOS “Nunca toquei para atrair multidões. Quando môço, dos vinte aos cincoenta anos, meu prazer era tocar para quantos me quizessem ouvir!”


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ESPECIAL MÚSICA poeta humilde que, com a melodia de seus versos magistrais encantou a alma emotiva e boêmia da cidade. Elemento dos mais valiosos que foi da classe gráfica de Belém, Avelino do Rêgo ainda hoje é lembrado por quantos lhe admiravam a blandiciosidade com que convivia com as músicas do parnaso”. Cercado de cantores seresteiros, Tó Teixeira sempre amou a música em todas as

PRIVILÉGIO DE POUCOS “Nunca toquei para atrair multidões. Quando môço, dos vinte aos cincoenta anos, meu prazer era tocar para quantos me quizessem ouvir!”

Foi em 1906 que Tó Teixeira ingressou nas oficinas gráficas da Livraria do Povo, filial da Livraria Clássica, de propriedade do Sr. J. B. dos Santos, dando início a sua carreira de encadernador, que lhe rendeu pela perfeição de suas encadernações, a alcunha de “ressuscitador de livros”. Era considerado um verdadeiro artista do ofício da encadernação, não distante da perfeição de suas obras musicais. suas formas. A maneira de compor suas valsas, choros, chulas, ladainhas, prelúdios e mais uma infinidade de gêneros musicais, não lhe tirava o fôlego para compor canções abarrotadas de saudades e algumas em tons jocosos. Belém era berço de cantores de primeiríssima linha. A seguir alguns dos nomes recolhidos de violeiros, violonistas, poetas e cantores do Pará, bem como daqueles que desse Estado fizeram seu lar: POETAS: BRUNO SEABRA –SEVERIANO BEZERRA DE ALBUQUERQUE – NLUIZ DEMÉTRIO JUVENAL TAVARES – JOÃO NILSON – FREDERICO RHOSSARD – JOÃO DE DEUS DO REGO – NATIVIDADE LIMA ­– EUSTÁCHIO DE AZEVEDO – BERNARDINO BELÉM DE SOUSA – ELMANO QUEIROZ – BRUNO DE MENEZES – DE CAMPOS RIBEIRO COMPOSITORES: GENTIL PUGET – JAYME 70 www.revistapzz.com.br

OVALLE – CIRILO SILVA – WALDEMAR HENRIQUE – VIOLONISTAS: ARTEMIRO DA PONTE SOUSA (BEM-BEM) – PEDRO MATA-FOME – ALUÍSIO SANTOS – TÓ TEIXEIRA –“PAPAPÁ” – Nome real desconhecido, citado no “Livro de Nugas” (1924) de Eustáchio Azevedo. “MESTRE CHICO” – “CABOCLO DE SOLA” – FRANCISCO DAMASCENO – RAIMUNDO NONATO TRIN-

DADE (RAIMUNDO CANELA) – RAIMUNDO NONATO TRINDADE – CASEMIRO BORGES GODINHO DE ASSIS (????–1882) – JOÃO PINTO MOREIRA – JOÃO BATISTA MUNIZ MOREIRA (1885–1916) – HOMERO ALVARES – CLEMENTINO LISBOA. Antes de alcançar o patamar de instrumento de concerto, o violão era subserviente ao canto. Instrumento das serestas e seresteiros, ao violão desfazia-se


Matafome, Belém, Raimundo Canellas, Vicente Teixeira, e Raimundinho do Pinheiro - despertou em Tó Teixeira arroubos de sublime inspiração, sendo Canellas o que mais orientou a primitiva técnica do artista. Na atualidade, o competente violeiro não é apenas um impecável dedilhador de seu instrumento, mas num fulgurante relevo, o compositor que sabe colorir as suas belas e ins-

“Em noites escuras e em noites de luar, com o céu recamado de estrelas, para pobres ou ricos, das barraquinhas de chão, aos mais altos edifícios, em aniversários, reuniões íntimas, rádio etc... executei com desembaraço melodias que faziam a alma da gente sonhar...”. Falou Tó Teixeira.

a mágoa dos injustiçados de amor e da saudade, tendo sempre ao seu lado um terno e apaixonado cantor acalentando a alma entristecida e buscando em seu colo o suplicante esquecimento da desilusão. Foi supostamente a convivência de Tó Teixeira, com grandes mestres do violão que deu a ele a maturidade precoce no campo musical. Ainda garoto, Tó conviveu com um grupo de seresteiros

e boêmios da cidade, os quais faz justiça citar: Pedro Matafome, Belém, Aluisio Santos, Raimundinho Pinheiro, Vicente Teixeira, Raimundo Canella, sendo este último o suposto responsável pelo aperfeiçoamento técnico do artista. Mecenas Rocha, jornalista da Folha Vespertina, escreveu na edição do dia 11 de fevereiro de 1946, um artigo que falava de Raimundo Canella: “Um escolhido grupo de alegres boêmios – Pedro

piradas partituras com a tonalidade de um lirismo arrebatador. Do seu precioso instrumento, ao livre vôo de suas formosas e arrebatadoras inspirações, arranca todas as cromáticas gomas (sic) do som, notando-se nas suas melodias essa maravilhosa beleza de ritmos das valsas de Debussy e Berget, que parece revelar às almas uma musical confissão de amor.” A partir do relato de Mecenas Rocha, pode-se imaginar toda a beleza musical interpretativa de Mestre Canela. É bom ressaltar que a técnica sempre esteve a serviço da música e não ao contrário, portanto, mais que a destreza de saber trabalhar bem o instrumento, o que Canella deve ter passado ao jovem Tó, foi a percepção da delicadeza, o exercício pleno do sentimento e da observação constante da vida e de suas nuances cotidianas, fato que o jovem Tó demonstra com clareza. Apesar de modestas as composições por ele concebidas, mostram o perfil de um aprendiz do sentimento de ternura e amor que somente aqueles que são tocados pelo espírito da música podem ter. Canella foi um mestre da delicadeza e um mestre da celebração da vida pela qual Tó Teixeira www.revistapzz.com.br 71


ESPECIAL MÚSICA tanto amor nutriu. Como bom observador e com a perspicácia característica dos autênticos autodidatas, Tó percebeu a importância do conhecimento dos grandes mestres do violão. Matteo Carcassi, Fernando Sor, Mauro Giuliani, Francisco Tárrega, entre outros, foram estudados pelo jovem violonista, que adquiriu não somente, o conhecimento técnico, mas, sobretudo,

Foi em 1906 que Tó Teixeira ingressou nas oficinas gráficas da Livraria do Povo, filial da Livraria Clássica, de propriedade do Sr. J. B. dos Santos, dando início a sua carreira de encadernador, que lhe rendeu pela perfeição de suas encadernações, a alcunha de “ressuscitador de livros”. Era considerado um verdadeiro artista do ofício da encadernação, não distante da perfeição de suas obras musicais. ideias para compor suas próprias peças musicais. Um exemplo dessa influência foi a “Ária em Lá Menor”, escrita quase na forma de um estudo. A peça tem como característica principal uma melodia crescente, que acompanhada pelos arpejos em duas seções muitos distintas, tem como propósito, conforme orientação do próprio compositor, não ferir a segunda nem a primeira corda. Todas as melodias, da primeira e da segunda seção, são tocadas na terceira corda. Este fato orienta o violonista a executar a melodia da peça obedecendo a coerência do chamado discurso musical, uma vez que ao executar uma melodia, deve ser observado o timbre que a melodia deve ter do início ao fim da frase musical. Certas trocas de cordas na execução da peça, provocam uma mudança no referido timbre do instrumento que se torna desagradável na interpretação. Este é um dos problemas que o violão 72 www.revistapzz.com.br

possui, que os demais instrumentos não têm, em virtude da nota no violão necessitar ser “fabricada”, ao contrário do piano, por exemplo, onde a nota está previamente preparada. Foi o conhecimento desses compositores, que fez o jovem violonista começar a entender os segredos do instrumento que tanto o apaixonava. Foi em 1906 que Tó Teixeira ingressou nas oficinas gráficas da Livraria do Povo, filial da Livraria Clássica, de propriedade do Sr. J. B. dos Santos, dando início a sua carreira de encadernador, que lhe rendeu pela perfeição de suas encadernações, a alcunha de “ressuscitador de livros”. Era considerado um verdadeiro artista do ofício da encadernação, não distante da perfeição de suas obras musicais. Livros com páginas soltas, pontas desgastadas ou corroídas, depois de passarem pelas mãos meticulosas e detalhistas de Tó, ganhavam vida e esplendor de obras de arte. Suas encadernações de luxo empregavam couro proveniente da Rússia, couro de jacaré, brumido, pirogravado em seda, cetim, pelúcia, percaline ou veludo, com frisos e dizeres a nankin, vermelho, ouro e prata, como bem relatou Mecenas Rocha em um de seus vários artigos publicados sobre Tó Teixeira. Logo chegou o momento de Tó Teixeira obter seu próprio negócio. Um amigo e confidente, companheiro de boas horas, não hesitou em aceitar a proposta de montar uma modesta oficina de encadernação. Esse amigo deliciava-se com a possibilidade das leituras de obras que naturalmente não possuiria condições de adquirir, mas como o jovem encadernador recebia os mais diversos tipos de literatura, sempre as colocava à disposição para que seu amigo tivesse acesso às novas leituras. Esse amigo era Bruno de Menezes, grande poeta e escritor amazonense, radicado no Pará. Bruno de Menezes nasceu em 1893, mesmo ano de nascimento de Tó Teixeira. Cursou apenas o primário, mas sua trajetória brilhante como intelectual, escritor e poeta, superou a qualquer expectativa. Há uma suposição de que o samba, tenha sido propositadamente composto para piano, em virtude de o compositor desejar que sua execução fosse feita pela pianista Lenora Menezes, filha de Bru-

BRUNO DE MENEZES Bruno de Menezes, poeta e escritor, amigo de Tó Teixeira, era membro da Academia dos Poetas Paraenses, foi responsável pela divulgação da poesia modernista na década de 30. Publicou Bailado Lunar; Poesia (1931), Batuque (1939), Lua Sonâmbula (1953), Poema para Fortaleza (1957) e Onze Sonetos (1960) entre outos. Bruno de Menezes pertence à segunda geração do modernismo brasileiro, segundo o crítico Dante Costa.


no de Menezes. Foi ainda dedicada para as irmãs Ruth, Belém, Lenora e Marília, a gavota em Dó intitulada “Rubelema”, peça cujo título é formado com as iniciais das irmãs citadas. Para o irmão do amigo, o desembargador Stélio Bruno de Menezes, foi dedicado o choro “Depois da Chuva”, linda peça originariamente composta para grupo de Pau e Corda, gravada em 1991, em LP, pelo selo “Música e Memória” da Universidade Federal do Pará, disco que já trazia os resultados iniciais da pesquisa feita pelo autor deste texto. O espírito de amor e musicalidade de Tó Teixeira foi retratado em seu cotidiano desde a mais tenra idade. Em uma de suas inúmeras declarações escritas, declarava que sua riqueza não era de dinheiro, mas de amor de seus pais e de sua música, que a ele havia sido dada pela graça de Deus, como mostra a valsa “Divina Remuneração”, composta bem mais tarde, em outubro de 1976. Nesta bonita valsa em lá menor, o compositor considera que a própria música é seu pagamento ou melhor, sua “remuneração”. O termo “Divino” tem razão na fervorosa fé católica que Tó demonstrava ter, ao considerar que Deus sempre “remunerava” com o dom da música, seu laborioso trabalho de dar aulas, fazer suas apresentações e acima de tudo ter a inspiração para compor tão belas e amáveis melodias, que tantas alegrias deram àquela enternecida “mocidade”, que amorosamente o escutava aos finais de tarde, em uma Belém morena, ainda repleta de cadeiras de fuxico e de balanço nas calçadas. A alma terna e apaixonada de Tó arrebatava sem distinção a todos que o conheciam. Poetas, jornalistas, cronistas, advogados, músicos, vizinhos, carvoeiros, comerciantes, enfim, todos os que conviviam com a figura de Tó Teixeira, eram conquistados por sua honesta simpatia. Aqueles que o conheceram em seu cotidiano, assim descrevem Tó: “Estatura mediana, voz invariavelmente em volume baixo, palavras pausadas, num português muito bem falado e pronunciado para um homem de poucos estudos formais; terno de linho branco ou preto, quando necessário; um chapéu “Panamá”; sapatos de couro e cadarços e a mais importante de suas características, o olhar!”

O olhar de Mestre Tó Teixeira era uma doce mistura de assertividade, atenção, reflexão e mistério. Para ele, em 1929, o poeta Miguel Oliveira publicou no Jornal, o lindo poema intitulado “Ao teu violão”. A obra de Tó Teixeira, apesar de composta magistralmente para variados instrumentos, foi indiscutivelmente voltada para o violão. Outra característica marcante em suas peças foi a contemplação de cenas simples do cotidiano, do homem pobre e comum, movimento musical que mais tarde seria explorado como grande vigor por outros compositores como Nego Nelson (Nelson Batista Ferreira) e Catiá (Alcides Batista de Freitas), ainda em atividade na cena musical de Belém.

Umarizal Era sobretudo o mês de junho que dava a tônica da alegria no bairro de Tó Teixeira. Além das luzes das fogueiras juninas era no Umarizal que ocorriam as serenatas ao luar. Grupos, de alunos do Mestre, se misturavam aos mais experientes e dobravam as noites em cantorias e execuções instrumentais. Documentos fotográficos das décadas de 20, 30 e 40 comprovam tais reuniões. Na casa de Tó, encontravam-se pessoas humildes e gente da alta sociedade paraense. Nos quintais, nas calçadas e nas esquinas, lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão. Não somente o violão, mas o violino, o clarinete, ganzás, banjos, flautas, trombones e uma variedade de outros instrumentos serviam para animar essas alegres noitadas. Conta-se que o jovem Tó Teixeira, saía na sexta-feira de casa para as apresentações em serenatas e voltava no domingo à noite, às vezes na segunda-feira, sem nunca ter bebido uma gota de álcool. Foi neste mesmo bairro do Umarizal que a cultura negra iniciou a sua difusão por toda a Belém; os terreiros de macumba, casas de batuque e todo o sincretismo religioso foi posteriormente tomando conta da cidade, que face a sua expansão, foi promovendo a transferência do negro para bairros mais distantes, como o bairro da Pedreira, Jurunas

e Sacramenta, tendo sido na Pedreira a instalação de alguns dos mais famosos batuques da cidade. Contam os mais antigos que no bairro do Umarizal existiam muitas vacarias de propriedade dos fidalgos portugueses, que eram cuidadas pelos negros e forneciam leite para as famílias de posses. Em sua exuberante geografia Belém era cortada por riachos e igarapés, que davam ao lugar um ar de excêntrica

“Foi em uma alegre noite de São João, cheia de risos de crianças e de balões multicores, em 1925. Tinha sob meus pés ao invés de um rústico banquinho, uma linda almofada de adorno. Eu e meu amigo Remo Figueiredo entoávamos uma belíssima canção de Vicente Celestino: “À Beira Mar!”....! Naquela noite ao sentir as pétalas de flores caindo sobre minha cabeça bem que pude ter a sensação de que era um príncipe; de ser um verdadeiro Deus da arte dos sons! Triste ilusão de um homem de cor. Neste momento bem que pudemos sentir as lágrimas descerem de nossos olhos... Essa foi a maior emoção de minha vida!” (Tó Teixeira). beleza, de cercados com caramanchões de jasmineiros, onde o perfume entorpecia a tarde daqueles que enamorados do poente, aguardavam as primeiras estrelas da noite, mutambeiras plantadas cuidadosamente e cadeiras de fuxico nas calçadas realçavam o ar das tardes tão fagueiras. Em 1850, governava o Pará Dom Marcos de Noronha e Brito, último vice-Rei do Brasil e Capitão de Mar e Terra dos Estados do Brasil, chamado de Conde www.revistapzz.com.br 73


ESPECIAL MÚSICA dos Arcos, título criado pelo Rei Filipe II de Portugal, em 8 de fevereiro de 1620, inicialmente em favor de Luis de Lima Brito e Nogueira. Dom Marcos foi o oitavo Conde dos Arcos. A cidade possuía o Igarapé das Almas, o Igarapé do Reduto, além do Igarapé do Piry que serpenteava pela cidade até as proximidades do Convento de São Boa Ventura, onde hoje está instalado o Arsenal de Marinha. Este lago era tão importante, que o historiador António Baena em sua obra “Compêndio das Eras” (1838), relata que determinadas autoridades da época ao referirem-se à cidade, dividiam-na em Oeste do Piry e Leste do Piry, face sua importância para o contexto geográfico da mesma. No plano inicial de transformação da cidade o engenheiro alemão Gaspar Gerardo Gronfelts chegou a cogitar a possibilidade de aproveitamento do Igarapé do Piry, o qual juntamente com o Igarapé das Almas e do Reduto, funcionariam como três grandes entradas de água da cidade, alimentando pequenos braços de rios e riachos que fariam de Belém uma cidade mais exuberante que a cidade de Veneza na Itália. O que propunha o engenheiro Gronfelts, não era do interesse do Conde dos Arcos, transformar Belém em uma segunda Veneza. Desse jeito aos poucos os Igarapés foram sendo aterrados, surgindo terrenos na cidade que até os dias atuais oferecem um verdadeiro quebra-cabeça aos profissionais que se “aventuram” em construir arranha-céus por essas áreas. Seguindo este plano de expansão chega-se ao período de urbanização do bairro do Umarizal que começa no ano de 1850. O italiano Antônio Landi, sob o comando de Mendonça Furtado, governador do novo Estado do Grão-Pará e Maranhão, inicia a construção de igrejas e palácios que vão dar graça, beleza e a atmosfera européia da luxuosa Belém. Ainda que o objeto maior deste texto, seja o panorama do violão na Amazônia, observado a partir da vida e obra do Mestre Tó Teixeira, torna-se quase obrigação histórica falar daquele que foi o responsável pela sua ambientação e arquitetura, que deu a Belém a alcunha de Paris n’América. Trata-se do maranhense radicado no 74 www.revistapzz.com.br

Pará, Antonio José de Lemos. Por sua habilidade com a escrita, logo ao chegar, Antônio Lemos ganha emprego no jornal A Província do Pará; não tarda em ser eleito como vereador da cidade de Belém e consequentemente, por seu trabalho dedicado logo é eleito Intendente, cargo correspondente hoje ao de prefeito municipal. Inspirado pelos ideais do urbanista Georges-Éugene Haussmann (1853– 1870), responsável pela urbanização da cidade luz, Paris, o intendente Antônio Lemos, determina em sua gestão mudanças significativas, que vão desde a instalação da primeira rede elétrica, a “Pará Eletric and Railway Company”, do primeiro clube, o Pará Country Clube, hoje simplesmente Pará Clube, do primeiro sistema de bondes do país, até a proibição de se cuspir no chão, fazer muito barulho nas ruas e praças ou esconder a fachada das casas, para que não derramasse água da chuva, proveniente das casas com eiras e beiras projetadas para a rua. Obteve concessão de Antonio Lemos o americano James Bond para explorar o fornecimento de gás para iluminação pública e sistema de transporte. O que poucos sabem é que na Belém da Belle Époque, o transporte em vagões movidos por eletricidade adquiriu o nome de “Bonde” por ter em suas carrocerias a inscrição do nome de seu proprietário e criador James Bond. O nome Bond ficava em destaque e logo a população passou a chamar aqueles vagões simplesmente de Bonde, aplicando à palavra a letra “e” no final. Todo o país, posteriormente passou a adotar o nome dado a este tipo de transporte de acordo com o nome criado pelos belemenses. Foi ainda de Antônio Lemos a ideia da plantação de mudas de mangueiras por todas as avenidas e ruas da cidade. Não sabia o visionário intendente, que tal ideia mais tarde daria o carinhoso apelido de Cidade das Mangueiras, em virtude dos “túneis” de árvores que até hoje são parte da atração turística da cidade. Na Belém da época da borracha, chamada de Belle Époque pela inspiração parisiense, era mais fácil e simples ir à Liverpool do que ao Rio de Janeiro, face à intensa rota de comércio estabelecida, além do transporte de navio ser estrategicamente mais bem posicionado.

Belém mantinha mais contato com o continente europeu do que com o resto do Brasil. Contudo, não era somente a visão urbanista, administrativa e política que Lemos tinha. Belém recebia companhias de teatro da europa para apresentações em praças públicas, tendo uma vida artística de dar inveja a muitos produtores atuais. Poucos sabem que Ierecê Lemos, uma das filhas de Antônio Lemos, foi compositora de lindas valsas e canções. Graças à importação que praticava-se diretamente da Guiana Francesa, o Pará foi o primeiro Estado brasileiro a possuir plantações de café e um dos primeiros a ter bolsa de valores, mais tarde demolida, no governo Presidente Getúlio

“...como todo negro, a ele coube o trabalho mais árduo e insalubre de limpeza dos fornos dos vapores que chegavam carregados de mercadorias e passageiros em Belém”. (Tó Teixeira) Vargas, para dar lugar ao que se conhece atualmente como Praça do Relógio. No bairro do Umarizal, nessa mesma cidade, residiam os negros que trabalhavam nos engenhos e nas casas dos ricos fidalgos portugueses, senhores de escravos e proprietários de vastas terras e das “rocinhas”, espécie de casas de campo, situadas na antiga Estrada de Nazaré. Os moradores do bairro do Umarizal mantinham um relacionamento raro com o chamado “mundo dos brancos”, com os Senhores das luxuosas casas de rocinha, convivendo pacificamente com os mesmos e em algumas circunstâncias, até participando de alguns eventos festivos e religiosos. Mesmo sendo de aparência triste e muito pobre, o bairro do Umarizal era de uma movimentação frenética, com seu intenso comércio de especiarias, produtos das ilhas e de estiva, comercializados na feira, trecho que atualmente se conhece por Avenida Visconde de Souza Franco; na época um ponto estratégico de negócios e embocadura do Igarapé das Almas, por onde chegava-se ao por-


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

to. Curioso é que muito confundiu-se (e ainda confunde-se) em Belém o nome deste igarapé, com “Igarapé das Armas” corruptela do sotaque caboclo que substitui frequentemente a letra “L” pela “R”. Pastorinhas, Cordões de Pássaros, Mastros de Santos, Carimbós, Grupos de Pau e Corda, entre outras ricas manifestações artísticas perfaziam e embalavam a Paris dos Trópicos, que acordava e adormecia ao som dos batuques negros do Umarizal, povo festeiro e simpático, criador de dezenas de folguedos. Na noite do dia 13 de junho de 1893, os muitos moradores do bairro do Umarizal, nem imaginavam que estariam recebendo um de seus maiores presentes. Tal presente, entretanto, não constituía-

-se em nenhum bem público, não era calçamento ou saneamento básico, tão esperados na época. A iluminação pública também não representava uma necessidade preemente, visto que o Bairro do Umarizal se iluminava por completo, principalmente, no mês de junho, em virtude da muitas fogueiras acesas em todos os cantos e pela esmolação constante acompanhada de ladainhas de Santos. Nessa noite em especial, o presente que o bairro recebeu foi o nascimento de um menino, filho de Dona Celeste e de um ferreiro, flautista, dono de conjunto de “pau e corda”, chamado Antonio Teixeira do Nascimento Costa. Ao menino recém-nascido deu-se o nome de An-

tonio Teixeira do Nascimento Filho ou somente, Tó Teixeira. Antonio Teixeira do Nascimento Costa, o pai (1864–1930), foi trabalhador de navegação e de estivas, tendo vivido grande parte de sua vida na área portuária da cidade e conforme as palavras do próprio Tó Teixeira “como todo negro, a ele coube o trabalho mais árduo e insalubre de limpeza dos fornos dos vapores que chegavam carregados de mercadorias e passageiros em Belém”. Contou ainda, Tó Teixeira, que o pai foi uma das muitas vítimas da ganância dos patrões da área portuária, que “sem piedade” o mantiveram no forno de um vapor (navio de carga e transporte de passageiros) recém-chegado, por mais www.revistapzz.com.br 75


ESPECIAL MÚSICA tempo que o necessário, a fim de que o mesmo procedesse a limpeza antecipada, pois o vapor precisava retornar imediatamente à sua jornada comercial, o que levou Antônio Teixeira do Nascimento Costa à morte em condições degradantes, quase escaldado em função do grande calor da fornalha, ainda deveras aquecida. Contudo, se como “artista” das forjas e da limpeza dos fornos de vapor não obteve grande reconhecimento, como “artista da música” ele obteve êxitos inigualáveis e sua própria imortalidade, em função do reconhecimento de sua maestria e influência anunciada pelo próprio filho, anos mais tarde. Regente de “Conjunto de Pau e Corda”, uma das manifestações artísticas, que se esvaíram dos encontros populares paraenses com o decorrer do tempo, o pai de Tó Teixeira era um exímio flautista e tocador de Folias e Reisados, além de possuir fama de seresteiro sensível e obstinado no ofício musical, o que de certo influenciou a produção musical de seu filho, que posteriormente se tornaria um grande autor de músicas perfeitas para serem entoadas nas famosas serenatas ao luar, de céus “recamados de estrelas”, típicas do bairro do Umarizal. A Belém de 1893 respirava arte. Sendo assim, é comum que se indague o motivo de não existirem mais tantos mestres da música, com a qualidade técnica e o talento daqueles que existiram no passado. Contudo, aos olhos de muitos, a resposta é simples: apesar do notável desenvolvimento tecnológico, da criação de inúmeros aparatos eletrônicos e sofisticados equipamentos da mídia e de gravações musical, o mundo de hoje sofre um déficit de aprendizado cultural em relação ao passado. Na Belém de outrora, assim como em muitas outras cidades, quem tivesse a vontade de ouvir música apenas ouviria “ao vivo”. Como não existia o rádio, não existiam equipamentos fonográficos avançados, muito menos TV, não existia outro meio de escutar música, que não fosse da forma produzida ao vivo e isso exigia estudo e aperfeiçoamento rigoroso dos músicos que se apresentavam para plateias exigentes. Logo, eis o “X” da questão: Era necessário um interesse genuíno pelo estudo da música, como algo inerente ao espírito do homem, como arte em sua qualidade 76 www.revistapzz.com.br

mais evidente, a de possibilitar a tradução das emoções humanas e nisso, Tó Teixeira, inegavelmente, foi um Mestre, por transformar em música todas as emoções e simples ações de seu cotidiano. Naquela época, todos tinham como espécie de utensílio doméstico do lar, além da bilha de água, do fogão, das gostosas cadeiras de balanço acolchoadas com tapetes de fuxico, um instrumento musical, que nas famílias abastadas consistia em um piano e nas mais simples, um violão, além de haver sempre à espreita, nas casas dos negros do Umarizal, um tambor, um curimbó. O melômano ou ainda simplesmente aquele que desejasse o deleite de uma nova canção poderia se dirigir a uma loja no comércio do centro de Belém, mais precisamente à Empório Musical,

de propriedade da ilustre viúva Abílio Fonseca, situada na atual Av. Sete de Setembro, para comprar uma partitura recém-lançada, a fim de executá-la ao piano ou em algum instrumento harmônico, em concorridos jantares ou saraus, típicos dessa época e oferecidos pelas abastadas famílias da terra. O ritual, portanto, era simples, mas ricamente explorado; executar a nova música ou cantar uma linda canção acompanhada de outros músicos era um primor. Uma gentileza das famílias que permitiam a todos essa sensacional experiência de apreciar a música! Por óbvio, os efeitos de tal necessidade se transpuseram num rico processo de ensino da música, pois na maioria das famílias, era preciso haver sempre alguém que tocasse um instrumento. Essa necessidade da música, associada à mis-


va de iniciá-la musicalmente, fato que inegavelmente garantia à moça, além de status de uma educação refinada, aos moldes da européia, ares de moça prendada e de boa família. Como quase todos os integrantes das famílias aristocráticas tocavam algum tipo de instrumento, a criação musical nessa região, florescia a cada dia. De forma que esta breve explanação, apesar de sucinta, fornece a ideia do número de pessoas diretamente ligadas à expressão musical, que buscavam novas tendências e conhecimentos nesta área. Os principais instrumentos utilizados nesta região eram o piano, o violino, o violão e o acordeão. Sendo uma constatação interessante, o fato de que, dentre todos estes instrumentos, apenas o violino não gozava de maior apreço entre os músicos da terra, justamente em função de ser melódico e não se prestar ao acompanhamento do canto, atividade muito popular na época em que viveu

QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

“Recomendo aos meus alunos as palavras do grande virtuose Juan Rodriguez: É preciso insistir, persistir e resistir pondo em jogo a inteligência, abraçando o útil e deixando o inútil.”(Tó Teixeira).

tura de raças, principalmente, ao vigor dos mestiços, com seu marcante imaginário, portanto, fizeram a arte efervescer na Cidade de Belém. Conservatórios lotados de alunos para aprender o ofício musical, aulas particulares em cada esquina, instrumentos sendo construídos em escala industrial, compositores e editoras com pleno sucesso e o mercado aquecido; é bom lembrar que não haviam máquinas de reprografia e que as peças musicais, por vezes eram itens exclusivos no mercado paraense. Havia também, além dos muitos copistas de partituras, profissionais especializados em desenhos de capas ou em reprodução gráfica dos próprios enredos musicais, enfim, tudo conspirava em favor da difusão da arte musical. Toda família que desejasse casar sua filha com um bom pretendente, trata-

Tó Teixeira. Foi nessa atmosfera de grande virtuosidade artística, portanto, que nasceu e cresceu o menino Tó Teixeira, tendo sido extremamente amado por seus pais (Antônio e Celeste), este exímio músico, logo transformou o enorme carinho recebido pelos pais e parentes, em um grande desejo de retribuição através da arte musical que desenvolveu com tanta sagacidade. Autodidata, observador assíduo dos encontros musicais de seu mundo, Tó Teixeira sempre demonstrou grande devoção pela música, principalmente no que se refere à cantos e obras litúrgicas. Após seu despertar musical, o pequeno Tó Teixeira aprendeu com seu pai, suas primeiras lições formais de música, tendo na adolescência revelado, como sua mais forte inclinação, o interesse pelo

violão, o que lhe levou mais tarde, a aperfeiçoar seus estudos com seu vizinho, Raimundo Trindade, outro famoso violonista de sua época. Pela influência francesa na Belém da “Belle Époque” decorrida na cidade entre os anos de 1870 a 1910, muito, para não dizer tudo, do desenvolvimento da capital, teve motivo na explosão do rentabilíssimo ciclo da exploração do látex na Região Amazônica. A cidade precisava adquirir, por sua importância econômica, ares europeus, tamanha era a influência deste continente na pacata capital paraense. Assim, a população absorveu e muito, termos oriundos da etimologia francesa ou ainda, notoriamente “afrancesados”. Dentre vários exemplos desta notável influência, dois momentos da vida do compositor podemos citar: a valsa para violão composta por Tó, denominada “Rêve del Muchacha”; peça no estilo clássico de Tó, dividida em duas partes e que possui no nome o termo “Rêve”, cuja tradução do francês para o português significa “sonho”; curiosamente o restante do título, “del muchacha”, provém do idioma espanhol. Fica a dúvida se o compositor propositadamente fez a mistura das línguas, motivado pela jocosidade do caráter instrumental da valsa ou se por um lapso, achou que o termo “Rêve” tinha como origem a língua hispânica. O outro momento, emblemático na juventude do compositor também demonstra a influência francesa. Sempre agradabilíssimo e de uma elegância de dar inveja ao mais sofisticado aristocrata europeu. Tó Teixeira se impunha naturalmente por sua educação e discrição. Seguindo os passos de Mestre Martinho, já comentado anteriormente, o violonista promovia não somente a arte musical, mas sabia como ninguém congregar pessoas e festejar a união dos amantes da música, em uma verdadeira “Sociedade de Euterpe”. Como diretor artístico do Grupo Pastoril, conhecido como “Briosinhas de Belém”, Tó Teixeira no ano de 1929, assim anunciava em pequenos panfletos, seus ensaios: “Pastorinhas e Presépios Briosinhas – Este sympathico grupo pastoril que todos os annos tem alcançado successo, realizará amanhã, em sua sede à Rua Domingos Marreiros, n. 30, o seu ensaio geral. www.revistapzz.com.br 77


ESPECIAL MÚSICA Após esta parte, seguir-se-á uma “soirée” dançante, offerecida pelo Sr. Tó Teixeira aos admiradores do seu grupo. Pastorinhas. Já está em ensaio à Travessa (rua) Domingos Marreiros n. 20 e sob a direção do conhecido violonista Tó Teixeira, o já conhecido grupo pastoril “Briosinhas de Belém”. As músicas que são de auctoria do referido musicista, são de um effeito harmonioso, casando-se bem com as vozes das gentis componentes do rancho em questão. (Belém, Pará, 1929)”. Observa-se que na segunda parte do anúncio, lê-se o termo “soirée”, que significa “reunião social”, “reunião noturna com amigos”. A naturalidade do emprego do termo denota o costume da sociedade, nos mais diversos extratos a falar com sotaques e termos originários da França. Não se tratava de uma peculiaridade da alta roda social, daqueles mais abastados ou de famílias nobres; a forma afrancesada de falar tomou proporções bem maiores do que se poderia imaginar. Não somente entre os mais humildes, descendentes de escravos, mais também por cidadãos de outras cidades, da vasta região do Estado como por exemplo Cametá, Mojú entre outras, a maneira de falar carrega até hoje, um sotaque com terminações em “u” em palavras de frases como por exemplo: “Já mé vu” ao invés de “Já vou” ou “Já me vou” ou ainda “foi ali que vuvú parú” ao invés de “foi ali que vovô parou”; percebe-se assim a nítida influência do francês no falar caboclo da região, desta feita, já tendo como motivo a colonização. Deixando o aspecto linguístico, que não deixa de ser importante, mas voltando ao aspecto musical; desde a juventude o compositor Tó Teixeira compreende que é a teoria, o ensino da música por leitura em partitura, que promove o desenvolvimento do aluno. Cercado de amigos, que a história mais tarde concederia a honra e importância merecidas, é interessante conhecer o naipe de artistas da época, nos mais diversos ramos da expressão da arte, que conduziam os encontros dos diletantes amigos e profissionais em torno aos saberes e fazeres artísticos. Reuniões aquelas, em que percebia-se o interesse pela expressão artística e a necessidade do diálogo e culto ao conhecimento tão valorizado em uma sociedade sem meios 78 www.revistapzz.com.br

tecnológicos. Abaixo, a nota publicada no jornal “A Folha do Norte” do dia 14 de julho de 1931, sobre a “Festa da Arte”, promovida pelo Clube Legionário da Cidade de Belém. Observa-se entre nomes de prestígio da história artística do Pará o nome do mestre violonista Tó Teixeira: O estudo da técnica, a Rádio Club do Pará e reflexões: “Recomendo aos meus alunos as palavras do grande virtuose Juan Rodriguez: É preciso insistir, persistir e resistir pondo em jogo a inteligência, abraçando o útil e deixando o inútil.”(Tó Teixeira). Entre as inúmeras anotações feitas por

Ao meu ver aqui no Pará não existe academia de violão, nem professores laureados por Conservatório. Mas, o alluno de violão que no prazo de dois annos de estudos não aprender dividir com desembaraço músicas communs, pode quebrar a guitarra ou vender e enforcar o officio. Palavras do educador de violão”. (Tó Teixeira). Tó Teixeira sobre sua visão da técnica do instrumento e seu grau de dificuldade, o violonista não poupa palavras ao se referir ao trabalho que terá aquele que se arvorar a seguir os caminhos secretos do violão. No ano de 1932, Tó escreveu de próprio punho, em original ainda conservado, um recado que demonstra uma mistura de seriedade, disciplina e porque não dizer um certo grau de ironia e brincadeira ao se referir aos estudantes relapsos. Em uma dimensão maior, Tó buscava alcançar conhecimento de todas as formas possíveis. Não se contentava apenas a tocar ou a repassar o conhecimento técnico do instrumento. Como verdadeiro professor e educador, ele considerava a história dos compositores, suas obras, local de nascimento, estilo e seu legado cultural, fosse pelas obras escritas ou mesmo pelo conhecimento repassa-

do aos alunos de uma nova geração. Com pouco acesso aos grandes livros, o violonista abstraia de absolutamente tudo o que lhe viesse à mão com sede de conhecimento e interesse, sabendo que para tocar bem era necessário ter informações. A demonstração de interesse de Tó Teixeira por seus recortes e os sequenciais comentários, o colocam na galeria dos sábios os quais em sua humildade não menosprezam qualquer informação. Outro exemplo pode ser observado no comentário sobre o grande violonista e professor de violão da Espanha, Francisco Tárrega: 1932 – Anotações de próprio punho de Tó Teixeira sobre o violonista espanhol Francisco Tárrega, considerado na história como o “pai” da moderna técnica violonística. Tó Teixeira escreveu: “Francisco Tárrega, o grande violonista nasceu em Villa Real, na Província de Castellon de La Plana na Hespanha, em 1854 e morreu em Barcelona em 1909. Morreu com 55 anos, aprendeu música e tocava piano, tendo o abandonnado para aprender violão com o “Ciego de La Marina”. Ainda moço, fez-se concertista de guitarra e deixou allunos completos como Miguel Llhobet, Emílio Pujol, Josephina Robledo e Pepita Rocha”. Dizia o poeta conterrâneo Bruno de Menezes em seu livro “Poesias”: “De nada valem predomínio e glória. Vencer na vida entre ovações e palmas, não passa de volúpia transitória.” – Dedicado ao Dr. Manuel Lobato. 1932 – Cartão de Apresentação do Professor Cyrillo Silva (Falecido em 1º de Outubro de 1932): “Professor Cyrillo Silva - Professor de música, compositor, instrumentista com trinta e três annos de prática. Lecciona todos os instrumentos de sopro em uso e mais alguns. Lecciona também solfejo cantante, divisão, elementos theóricos, transportes, curso prático de acompanhamento e instrumentações. Compõem músicas, desde o tango à pequena Ópera, desde a canção ao Sacro, Missa, Tantum Ergo, ladainhas, etc.., Compõem burletas, joanninhas, farças carnavalescas, scenas cômicas, pastoraes, com letra e música. Pode ser procurado das 6 horas às 11 da manhã e das 2 às 6 da tarde. Dom Romualdo de Seixas, 204. Dentre o material que Tó colecionava


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

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ESPECIAL MÚSICA está um artigo do escritor Mecenas Rocha sobre o magnífico violonista José Santa Cruz. Antes porém, vale o leitor saber quem foi Mecenas Rocha. Filho de Camerino Rocha, um intelectual premiado de saber literário e de conhecimento geral que iluminava a sociedade paraense de inteligência não somente cognitiva, mas de sensibilidade marcante. Camerino foi um homem à frente de seu tempo que entendia desde ciências até os recônditos da alta costura e tendências da moda ditada pela eterna Paris. De conhecimento enciclopédico, passou para o filho seu cabedal de homem literato e extremamente culto. Mecenas Rocha, cronista das edições domingueiras do jornal “Folha do Norte”, foi o jornalista que reuniu uma série de perfis, como ele mesmo chamava, “de personalidades ilustres da história da humanidade”, bem como de contemporâneos seus, no livro que intitulou “Entre os Vivos e os Mortos”. No ano de 1934 foi publicado no jornal “A Folha do Norte” o perfil de um dos maiores violonistas que habitou em Belém, o potiguar José Santa Cruz (1891– 1928), escrito por Mecenas Rocha. Artigo de Mecenas Rocha na íntegra - O Violão do Santa Cruz: “Era um artista de alma simples, despreoccupada, affavel e contente, satisfeita consigo mesma...” Na região nordestina de nosso paiz, o violão é o instrumento que melhor interpreta o lyrismo da alma sertaneja. Nos seus grandes lances patheticos, nos instantes em que a alma lhe arde, na febre das aventuras romanescas, precisamente, quando o accaso a colloca frente a frente de algum competidor implacável, que o fere com a agudeza farpeante dos desafios irônicos, o violeiro do sertão faz de seu instrumento uma arma vigorosa. Então, vibrado por dedos ágeis o violão parece traduzir, em toda escala chromatica dos sons, a linguagem feita apenas para ser comprehendida e usada pelos deuses. José Santa Cruz teve o peregrino dom maravilhoso de encantar e surprehender um selecto grupo de bohemios intelligentes realizando na sua curta existência fagueira, os sonhos de uma juventude entretecida das mesmas rosas que cingiram a fronte augusta dos antigos hellenos. Certamente, não ultrapassou a fama de 80 www.revistapzz.com.br

violeiro exímio que foi o maranhense Clementino Pereira Lisbôa, a quem o célebre Luiz Gottschalk convidou para companheiro de digressão artística aos paizes cultos da Europa e da América. Clementino Lisbôa não se exhibia como simples diletante. Era mestre consagrado nos mais íntimos segredos da arte musical. Alguns dentre os grandes clássicos, nas suas differentes escolas, não lhe eram extranhos, nem lhe causava difficuldade a execução de suas mais difíceis partituras: sabia-as de cór, emprestava-lhes maior realce com variações propriamente suas, chegando mesmo a obter prodígios de technica magistral,

QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). dando viva expressão melódica às páginas de Thalberg, de Mendelsonhn, de Ritter e Chopin. Clementino Lisbôa era violeiro dos salões fidalgos. A sua presença exigia ambiente próprio, povoado de gente educada, nos meios super aquecidos pelas vibrações symphonicas de Beethoven e de Wagner. Tocava de luvas e casaca, diante de auditórios ilustres, entre damas de gosto requintado. Nunca ousou macular o seu magnífico Lacote, servindo-se de um público amante de sambas carnavalescos. Tinha o orgulho nato dos talentos privilegiados, desde que no seu instrumento attingira absoluta perfeição [...]”. A sentimentalidade contida no artigo dá ideia da dimensão da admiração dos intelectuais de alma enternecida que compreendiam e valorizavam a cultura literária violonística e graças à esse sentimento muitas obras foram produzidas e difundidas.

1934 – Relativo a um artigo de Mecenas Rocha, publicado na “Folha” e intitulado “O Violão do Santa Cruz” que tratava sobre a necessária valorização da arte de talentosos violonistas brasileiros, incluindo neste rol José Santa Cruz. Em sete de agosto desse mesmo ano, Tó Teixeira escreveu sobre as dificuldades por que passavam muitos violonistas em função da parca dedicação à música e da ingratidão de seus próprios admiradores: “Santa Cruz não foi tão feliz com os seus admiradores; ainda com saúde, houve dias em que elle procurava um tostão no bolso para comprar café aos filhos e não tinha e por fim morreu quase que na miséria, em uma choupana no lagar Boa Vista, em Belém do Pará. Serviu isto de exemplo para os outros artistas, por que como Santa Cruz, muitos já têm se acabado. Todos gostam de ouvir


um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). Nesse sentido Tó critica a sociedade que se deleita com artistas de maravilhoso talento, mas que não os valoriza com a justiça de uma boa remuneração. Em que pese a época vivida por Tó não haver organização profissional ou acadêmica para a área, o compositor já observava a necessidade do artista desdobrar-se em esforços para a absorção de elementos teóricos responsáveis pela formação do músico como um fator de ampliação dos conhecimentos e, sobretudo, do talento a ser desenvolvido. “Aquele artista que não desenvolve a técnica, res-

tringindo-se única e exclusivamente ao empirismo, não deixa de ter seu talento reconhecido e sua arte aplaudida, mas se ao decurso do desenvolvimento do dom natural do artista advier o desenvolvimento do conhecimento da teoria musical, eis que os horizontes se ampliam em uma ordem quadruplicada, oferecendo ao músico possibilidades infinitas, tais como um pintor ao misturar matizes na pintura de um bom quadro, amplia suas formas e sombras de acordo com a fartura de tonalidades adquiridas e encontradas para a descrição visual de suas ideias”. Assim, mesmo no ano de 1934, onde ainda não se falava no ensino formal da música em escolas, fato que somente ocorre com Villa Lobos anos mais tarde, o professor Tó, querido por todos no bairro do Umarizal, aponta o caminho da técnica para o crescimen-

to, seja amador ou profissional, daquele aluno que à sua porta bate a procura de aprender a arte de um dos mais doces e sonoros instrumentos. José Santa Cruz era daqueles músicos que sublimavam a execução do instrumento. Pouco se atenta para o fato de que um instrumento é no sentido lato verdadeiramente um instrumento. Poucos artistas descobrem como ultrapassar a barreira física imposta pela dificuldade técnica que se interpõe entre o músico e seu instrumento. Para Santa Cruz, assim como para Tó Teixeira, é a música que importa. É a música que está dentro do artista; é ela que deve ser exposta de maneira plena, livre das amarras dificultosas, impostas pelo instrumento indômito para a grande maioria. O instrumento deve ser parte do próprio corpo; o veículo da música guardada no espírito; é fazer das cordas, seis gargantas plangentes que adornadas de vibrações divinas, cativam o ouvinte que as escutam no momento mágico da execução o som, não do instrumento e sim, o som da alma daquele que sabe fazer do violão seu coração e sua voz. Além de Santa Cruz, outros violonistas foram observados por Tó ao longo de sua juventude. Curiosamente, de acordo com anotações do próprio Tó, em meio a Quadra Nazarena, mais precisamente no dia do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, esteve em visita à capital paraense o grande gênio do violão mundial, o espanhol Andrés Segóvia. Não se tem notícias se a vinda do violonista espanhol foi motivada por algum concerto na cidade ou se ocorreu por trânsito de viagem. No que tange aos demais trabalhos artísticos musicais, haja vista o mosaico de talentos que a cidade de Belém possuía, nos mais diversos ofícios da arte musical, a atmosfera da década de 30, além do romantismo e paixão declaradamente acesas e direcionadas à contemplação de uma arte digna, possuía uma esplêndida demonstração das dificuldades e necessidades de superação para a socialização e divulgação da arte musical. Era a rádio, o grande veículo da arte dos sons. Neste templo da comunicação, revelavam-se artistas que, fosse ao canto ou ao instrumento, arrebatavam multidões não somente na área musical, mas também no teatro. As novelas de rádio www.revistapzz.com.br 81


ESPECIAL MÚSICA possuíam um elenco de atores fantásticos. Não havia cenário, não havia cor, não havia figurinos, elementos de cena, pois cena visual não havia! Havia apenas o som. O som da voz a proporcionar cor, cenário, cheiro, sabores, textura, alegria, tristeza, raiva, comoção. O Rádio era o lugar da catarse humana, o ponto de referência da sociedade em todos os sentidos da comunicação. A Rádio Club do Pará, pioneira em revelar talentos foi sem dúvida a maior empresa de comunicação que o Estado do Pará já possuiu, a contar da democratização e acesso dos artistas. Nesta época feliz fazia valer a forma correta de descobrir e valorizar a maturidade profissional dos artistas. Além de democratizar os espaços em programações, a Rádio sabia que necessitava dos mesmos e os respeitava como elementos que proporcionavam material de trabalho vivo em uma sociedade onde o saber e o fazer se realizavam sem as máscaras da tecnologia atual, que fornece 80% do que duvidosamente se poderia chamar de talento aos muitos artistas do mundo de hoje. Chamavam a atenção de Tó Teixeira os comentários e crônicas, tais como a que foi compilada e transcrita a seguir, que mostravam as vicissitudes dos artistas e a luta travada com os poucos recursos tecnológicos, no que se refere ao aparato eletrônico das emissoras de rádio modernas. Era necessário, além de cantar e tocar bem, ter o conhecimento de uma certa técnica para que as execuções musicais realizadas ao vivo não fossem distorcidas pela utilização dos parcos recursos eletrônicos existentes ou ainda, saíssem na medida certa de um tempo total na execução, que já naquela época era muito cobrado a fim de que não ficasse enfadonha a interpretação do artista convidado. Merece reflexão o grau elevado de dificuldades que tinha o músico para superar os problemas advindos da necessidade de uma transmissão limpa, clara e que fosse realmente fiel ao que pensava musicalmente o artista. Cordas de tripa de carneiro ou ainda de alguns tipos de peixe da Amazônia, além de não oferecer uma sonoridade de boa altura e qualidade, apodreciam com facilidade em razão da umidade e por serem de material orgânico; mas ainda assim se fazia 82 www.revistapzz.com.br

QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.


música maravilhosa! instrumentos que sofriam as intempéries de longas e sufocantes viagens de navio para que chegassem na cidade de Belém; mas ainda assim se fazia uma música maravilhosa! O advento da corda de nylon utilizada no violão é uma adaptação supostamente do início da década de 50 em diante, sobre a qual muitos comentam que o violonista Espanhol Andrés Segóvia encomendou ao amigo francês Du Pont um certo tipo de corda do material conhecido como nylon que se adaptasse em tamanho e diâmetro às seis cordas anteriores feitas com tripa de animal. A reflexão que se convida a fazer é sobre o fato da tecnologia do mundo moderno encaminhar o artista para um atrofiamento artístico irreversível e que sem dúvida nenhuma porá em risco a

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). existência da inteligência humana musical no planeta Terra. Uma das inúmeras curiosidades tecnológicas dos tempos modernos é um software capaz de compor peças musicais onde a única interferência humana é ligar o computador e pressionar algumas opções. A pergunta seria: que necessidade tem o homem de desenvolver no campo das artes, inteligências artificiais? não foi e sempre será a arte, a expressão ilimitada do espírito humano? montar um veículo automotivo através de softwares que comandam tal montagem é substituir uma mão-de-obra onde a força física não se torna mais tão necessária, porém compor uma melodia não encerra esforço físico, mas sensibilidade. Que sentido tem entregar ou melhor tentar entregar à máquina uma função que é fruto da sublimação do sentimento humano e não robótico?

Vale explicar que não é função deste livro formar teorias ou levantar teses sobre a desvalorização artística delegada às máquinas em detrimento ao espírito criativo do homem moderno. Porém, uma coisa é fato no mundo atual: dada a quantidade de facilidades que a tecnologia oferece, poucos são aqueles que não se acham em condições de “arranhar” um violão ou de tocar um teclado, como se o ato de tocar fosse fruto de um talento vendido em prateleiras. Afinadores eletrônicos para instrumentos foram inventados para que no ofício de músicos de bailes onde o ruído é muito alto, pudessem afinar seus instrumentos com a ajuda, é importante frisar: “ajuda”, de um aparato eletrônico.Infelizmente a invenção mal compreendida acabou por aniquilar em jovens estudantes de música a acuidade auditiva básica de saber afinar e distinguir as notas que determinam a correta afinação de seu instrumento. Para os músicos dotados do chamado “ouvido absoluto”, que é a capacidade de ter memorizada a frequência exata dos hertz que possuem cada uma das notas da escala, é um grande equívoco dizer, como muitos fazem, que ter o ouvido absoluto é um dom, é congênito. Há de se perceber que as frequências são convenções estabelecidas pelo homem e diferem muitas vezes. A nota lá vibra 440 hertz; ou seja, vibra 440 vezes por segundo. Isso é uma convenção que uma vez memorizada por pessoas com facilidade mental para este aspecto, fornece a identificação imediata das demais notas musicais sem o auxílio de nenhum tipo de agente externo, apenas pela simples audição. Na época de Tó, muitos eram os casos de pessoas com esta habilidade mental. Há de se considerar o fato de que o detentor de tal habilidade auditiva não obrigatoriamente é um músico excepcional. A realidade porém revela que elementos da tecnologia que são criados para facilitar em tese a vida dos músicos, mas por uma incompreensão de sua função ou ainda por uma superestima de seus préstimos, acabam por fazer mais mal que bem à evolução da inteligência musical e preservação da sensibilidade. Ainda no campo da reflexão, o contraste das dificuldades técnicas do passado de Tó, na comparação com as facilidades do mundo moderno, parecem ter distâncias tão absurdamen-

te grandes, que não seria estranho achar que os músicos do passado faziam parte de uma civilização extremamente inteligente, que foi extinta por um “corpo estranho” advindo do espaço, que ficou conhecido como “chip”. Mestre Tó Teixeira certamente por sua devoção católica praticante faria o sinal da cruz e rezaria baixinho pedindo proteção se por ventura entrasse em uma loja de instrumentos musicais hoje. Alguns instrumentos musicais do mundo atual encurtaram de tal forma a distância entre a o estudo da técnica do instrumento e seus resultados musicais esperados que o homem sem perceber, findou por se tornar refém da anti-mecânica. É importante não fazer a confusão entre a reflexão aqui apresentada com uma suposta recusa aos avanços tecnológicos. Tanto os programas criados para gravação de áudio, quanto a tecnologia de captação deste, é motivo de orgulho para o mundo moderno. O que se coloca em xeque é que um vibrato ou um glissando ou mesmo, um dulcíssimo mi na primeira corda do violão na décima segunda casa, jamais terá paralelo com qualquer outra forma de execução que não a execução puramente humana. É como se a sensibilidade advinda dessa execução fosse sendo empurrada para um “abismo” que de tão fundo nem se ouve o barulho da queda. Teclados que imitam orquestras, que produzem acordes, que cantam, falam, imitam pintinhos e sons de cachoeiras deveriam ser mais atrelados ao entretenimento que propriamente à arte. Tó Teixeira tinha a consciência da imperiosa necessidade da busca incessante por resultados que somente o estudo da técnica pode oferecer. Se a música é o retrato do espírito humano, o velho violonista tinha em seu doce semblante de homem sábio, as razões verdadeiras que levam um músico a tentar compreender seu instrumento na totalidade. Dominar a técnica é fazer dela um meio para se chegar à expressão da música que vem de dentro. Facilitar a busca nem sempre é o melhor caminho, uma vez que é certo que foi justamente a busca que ofereceu o melhor aprendizado e não o simples e rápido cumprimento de um determinado objetivo. As equalizações embutidas em violões, em centenas de marcas existentes no www.revistapzz.com.br 83


ESPECIAL MÚSICA mercado, acabam por “arrancar o leme do barco”, fazendo o artista perder a referência de uma sonoridade que é fundamental que esteja dentro da ideia de quem a procura. Hoje submete-se à eletrônica a escolha pelo timbre, quando na verdade a tecnologia deveria desenvolver-se no sentido de captar com absoluta fidelidade a sonoridade desejada por cada artista. Mas como retroceder as mais recentes gerações sustentadas nas muletas tecnológicas? – Gerações que lamentavelmente tiveram roubadas suas buscas em razão da fome do mercado de aparatos. Bem pior que não alcançar objetivos é não saber sequer o que se deve buscar. Infelizmente, ao contrário da sábia pedagogia vivenciada por Mestre Tó, os jovens modernos sem alguns volts ou pilhas, não saberiam afinar seus instru-

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). mentos. Saindo do campo da reflexão mencionada neste capítulo, é válido admirar o recorte feito por Tó sobre o elenco de artistas que atuavam na Rádio Clube do Pará, escrito pelo jornalista G.C.C.P., o qual infelizmente não pôde ser identificado pela presente pesquisa. Sindicatos, clubes, cassinos e a relação de trabalho dos músicos da Belém do início do século XX: “Santa Cruz não foi tão feliz com os seus admiradores; ainda com saúde, houve dias em que elle procurava um tostão no bolso para comprar café aos filhos e não tinha e por fim morreu quase que na miséria, em uma choupana no lagar Boa Vista (em Belém) do Pará. Serviu isto de exemplo para os outros artistas, por que como Santa Cruz, muitos já têm se acabado”. 84 www.revistapzz.com.br


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ESPECIAL MÚSICA (Tó Teixeira). O Pará do início do século XX possuía uma estrutura profissional muito forte no que se refere à organização do trabalho dos músicos; um bom exemplo disso é o “Syndicato dos Artistas Paraenses”, entidade que promovia desde saraus, até as grandes montagens de companhias locais, nacionais e até mesmo, internacionais. Os músicos das décadas de 10 até o início da década de 40, viviam senão bem financeiramente, certamente com a dignidade do emprego, casa e comida. O profissional da música vivia de sua arte, incomparável era a realidade daquela época com a dos dias atuais. Bares, restaurantes, rádios, festas, hotéis, entre outras categorias locais ofereciam ao músico paraense uma variedade de opções para a execução de serviços musicais, havendo, inclusive tabelas de “ordenados” e “cachês” para os mais diversos tipos de apresentação. Contudo, era nos cassinos que a maioria dos músicos era empregada. Com uma frequência crescente, os cassinos faziam a felicidade e a desgraça de muita gente; bebida, comida, dança, diversão, encontros amorosos, reuniões de negócios e muito mais era encontrado nas dependências das “casas de jogos de azar”. Muitos cassinos famosos como o Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, o Icarahy e Atlântico em Niterói, o Quitandinha em Petrópolis e o Central Hotel em Belém, entre centenas de outros espalhados por todo o país, empregavam mais de quarenta mil pessoas, dentre as quais grande parte era de músicos de orquestra e solistas. Foi durante a fase do Império que os cassinos foram trazidos ao Brasil, sendo frequentados por muitas personalidades da nobreza, incluindo Barões e Duques. Conta o historiador Milton Teixeira que Dom Pedro II frequentava com assiduidade os salões dos chamados “Jogos de Azar”. Após passar para os porões da clandestinidade em 1917, foi somente no governo de Getúlio Vargas em 1934, que os cassinos foram novamente oficializados. Diz ainda o importante historiador, que os mais famosos cassinos do Rio de Janeiro eram de propriedade do empresário Joaquim Rolla, considerado por muitos, como uma espécie de “testa-de-ferro” de Benjamin Vargas, irmão do presidente Getúlio Vargas. 86 www.revistapzz.com.br

QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.


Apesar da febre dos cassinos por todo o país, em Belém, existia uma área em que os artistas podiam se revelar de forma brilhante e inspirada: O Arraial de Nazareth. Tendo como motivo principal a festa religiosa do Círio de Nazareth, procissão que reúne mais de dois milhões de pessoas na capital paraense todo o segundo domingo de outubro, o Arraial constitui-se como a parte profana da festa, onde brinquedos, barracas, comidas típicas e atrações artísticas tomam vez por uma extensa área, nos dias de festa que se estendem até o que se denomina “Recírio”. Nessa ocasião, o mundo artístico se revelava brilhantemente nas imediações do Arraial de Nazareth. Na juventude de Tó Teixeira, em meio à efervescência dos cassinos e festas, a peça intitulada “Sei lá si é!” de autoria de Edilberto Domont foi sucesso absoluto. O Antigo Theatro Ideal era palco da troupe dos atores e músicos do Syndicato dos Artistas Paraenses, formado em seu elenco por Márcio Reis, Carlos Campos, Clarisse Soares, Dico Rocha e Dolores Menezes. O Syndicato dos Artistas Paraenses concedeu então a Tó Teixeira a possibilidade de ser considerado não somente um professor de violão. Com a montagem de seus muitos teatros de revista, o Syndicato dava a ele a oportunidade de mostrar seu lado de arranjador e multi-instrumentista. Orquestrações elaboradas com requinte de harmonizações para instrumentos de metal e madeira, peças para cantores solistas, além de luxuosas participações de acompanhamentos ao piano, demonstravam todo talento de Tó. Vale ressaltar, portanto, que sempre o violão foi parte garantida em tais espetáculos, haja vista a predileção do compositor pelo instrumento e de ser nele que o mesmo esboçava todas suas ideias iniciais. Interessante e fundamental era o envolvimento da plateia com os artistas paraenses. Já na década de 30, muitas eram as produções que enfrentavam as agruras e infortúnios de uma viagem do Rio de Janeiro à Belém, época em que se estava longe de se construir a rodovia Belém-Brasília. Mesmo assim, o Pará era palco de montagens de grande importância para o

cenário artístico, fato que despertava o interesse dos profissionais das mais longíncuas regiões brasileiras. O ouvinte, diletante, amante da boa música não se fazia de rogado e sempre que possível usava de todos os mecanismos para, de forma clara e pura e munido das melhores intenções possíveis, comentar as produções musicais e teatrais apresentadas, na intenção de contribuir para a excelência da qualidade da arte paraense. Diferente de muitos críticos atuais, cujo sensacionalismo e a falta de honestidade em seus comentários acabam por transformar a crítica musical em uma “vila de fofocas de bastidores”, os espectadores do passado, além de dar “nome aos

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). bois”, apontavam caminhos e sugeriam mudanças plenamente pertinentes à melhoria qualitativa das produções locais. Influências: “Quando eu fui batuqueiro do Cordão dos Pretinhos, meu curimbó era de barrica de cevadinha, leve, leve e um som excelente ao longe se ouvia! Eram os Pretinhos de Moçambique do Vicente Teixeira” (1905). (Tó Teixeira). A rigor, a obra musical de Tó Teixeira apresenta-se como um mosaico de estilos e gêneros musicais advindos do conhecimento técnico adquirido de seu pai e, posteriormente, do professor Raimundo Trindade. Mas é da sensibilidade do olhar cotidiano e do pulsar das raízes africanas em suas veias, que se origina a magia de suas composições. Como bem aponta o Professor Vicente Salles. “Nada é essencialmente indígena, africano ou europeu na Amazônia nos dias atuais. Tudo é experiência de vida de seus habitantes”. A conclusão do lau-

reado antropólogo nos faz compreender que dada a miscigenação e diversidade cultural a que foi submetido o homem amazônico, sua música, retrato sonoro de diversas épocas, é fruto da pluralidade das linguagens advindas não somente da cultura imposta pela dominação europeia, que no Norte do Brasil foi feita de forma violenta e cruel, mas fundamentalmente, da cultura autóctone indígena, associada à africana. Talvez pelo fato dos índios terem sido subjugados além dos limites suportáveis, sua cultura foi pouco absorvida e portanto, pouco difundida, fato que se percebe ainda nos dias atuais. Muitas etnias indígenas se embrenharam pelos confins da selva, onde encontram-se até hoje, numa desesperada tentativa de conservação de sua cultura, indiscutivelmente, sua maior riqueza. Os africanos, por sua capacidade inventiva e riqueza cultural multifacetada pela variedade rítmica e valorização da utilização de instrumentos de percussão, sem saber, construíram o maior pilar da música brasileira. Nesta região porém, foi comum o ensinamento aos índios dos cantos e utilização dos instrumentos musicais europeus. Por outro lado, para o negro o ensino da música européia se deu com muito mais rigor e sucesso. A charamela, instrumento de sopro feito de madeira e constituído de uma palheta simples, era o instrumento de origem portuguesa que era tocado por negros. Escravos ou libertos, esses homens formavam grupos variados que animavam festividades de santos, reisados, folias e demais folguedos, muito bem representadas, por exemplo, pelas festividades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cuja igreja existe até os dias de hoje, no bairro da Campina, na cidade de Belém do Pará. O tempo cada vez mais parece mostrar que os efeitos causados pelos eventos artísticos no país tais como concertos e temporadas de espetáculos de outras áreas, no início do século XX, até pouco depois de sua metade, eram de um valor inquestionavelmente superior aos realizados hoje. Ao se falar de “efeitos” causados por tais eventos, há de se ressaltar que não se questiona em primeira mão a qualidade destes, fato que se realmente fosse www.revistapzz.com.br 87


ESPECIAL MÚSICA tratado amiúde traria surpresas descontentes ao mundo atual. É evidente que a tecnologia traz à reboque uma gama de possibilidades que diariamente se aperfeiçoa, como microfones, caixas de som, sistemas de iluminação e instrumentos que imitam outros instrumentos, instrumentos eletro-eletrônicos etc. Porém, o aprendizado, fruto da observação técnica acessível, o conhecimento socializado e a sensibilidade típica dos grandes artistas parece hoje ceder dar lugar ao marketing e a um mercantilismo exacerbado, numa tendência de submeter tudo ao interesse do lucro antes do interesse pela verdadeira arte. Antes, a vinda de um músico de notório talento e domínio técnico causava frisson na comunidade artística, a qual se manifestava pronta para conhecer, aprender, interagir e comentar tecnicamente a respeito do evento, não com o intuito de lançar no mercado mais um nome ou de divulgar trabalhos com o olhar na venda desse ou daquele produto. Não! A arte e a busca pelo conhecimento sublimavam a espetacularização. Não se fazia a crítica pelos supostos “defeitos”, mas pelos valores contributivos advindos da oportunidade de assistir espetáculos artísticos de qualidade, que nessa época não eram poucos, a se considerar o número de habitantes da cidade de Belém e de outros Municípios do Estado do Pará. Se hoje o foco é voltado para a fabricação “diária” de bandas e artistas, muito mais ligadas ao “sucesso” dos discos de ouro e platina que, assim como surgem, desaparecem, como cometas perdidos na poeira de suas próprias caudas, antes a arte tinha o lugar de uma deusa respeitada pela sublimação da ternura e pelo arrebatamento causado na plateia, ao invés de uma mídia que vulgariza a arte. A mesma, portanto, era tida como uma entidade digna de respeito, fruto do toque que somente as verdadeiras musas podem conceder. Na esteira desses ricos valores perdidos, é uma pena constatar que o homem vivia melhor no passado. Talvez, para que não soe como um clarim do radicalismo, poderia constatar-se que a honestidade do fazer artístico se perdeu entre as raias do “comércio artístico”. O argumento ora apresentado é pertinente por cobrir-se com o manto do respeito pela 88 www.revistapzz.com.br

arte a qual não escondia ter o poeta do violão, Tó Teixeira. Em suas discretas observações, fazia questão de apresentar seus comentários à guisa de manter, prioritariamente, a comunidade bem informada sobre a qualidade de eventos, para que soubessem aproveitá-los em sua plenitude, mormente, para os alunos do instrumento, que na difícil tarefa de desvendar os segredos da técnica, necessitavam (e muito) de sua orientação indelével e honesta. É curioso observar que Tó Teixeira ao comentar sobre a vinda ao Brasil de violonistas consagrados como Isaías Sávio,

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). Homero Álvarez e Augustin Barrios, compositor paraguaio que se auto intitulava o “Índio Paraguaio”, assina uma nota, declarando-se músico amador no ano de 1940! Possivelmente esse excesso de modéstia de Tó tenha sido criado pelo fato de suas origens sociais não o terem favorecido com uma maior auto-estima. A essa altura o compositor já contava com quarenta e sete anos de idade e já havia composto a série de chulas, valsas, além de grandiosos prelúdios. No ano anterior, em 13 de outubro de 1938, como já foi relatado anteriormente, Tó Teixeira havia sido aclamado e elogiado por espectadores e jornalistas, os quais destacaram a qualidade dos trabalhos do mestre violonista. Considerar-se “um músico amador” muito provavelmente era uma prova de sua crença de que os degraus do conhecimento são muitos e que para se comprometer com a arte, é necessário dedicação e acima de tudo responsabilidade.

Tó, com sua postura modesta, na verdade, escrevia em mensagens subliminares, reflexões silenciosas e oportunas, peculiares de um gênio do ensino da música, com isso, se faz inevitável outra comparação com os dias atuais, onde a banalização do fazer artístico de profissionais, em nome de um direito à liberdade de expressão, finda por ferir os brios do diletante amador do passado, o qual não cedia às tentações do sucesso a qualquer custo. No passado, onde Tó viveu, não havia diferença entre o lazer e a arte, tal como se apresenta hoje em dia. O lazer encontrava-se na prática e no costume de se fazer ou de se deixar consumir pela arte. Uma fina membrana parece separar a arte do lazer; porém não é difícil perceber que tudo aquilo que serve ao entretenimento como finalidade única e exclusiva, é lazer, e embora a arte também possa entreter, fazendo às vezes do


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

lazer, nela a contemplação, a reflexão que extasia, o arrebatamento que causa a comoção inexplicável, a diferencia de maneira antagônica. Abissal, portanto, é a distância que separa essas duas entidades. Do teatro de revista às serestas e folias, tudo tinha como escopo a arte verdadeira. No lazer do passado a arte fazia-se presente de forma indelével, ao contrário dos tempos modernos em que a vulgarização e a espetacularização da mesma acabaram por tirar sua quinta-essência, transformando-a em simples lazer. Não haveria tanto problema se o público atual soubesse diferenciar as duas coisas, porém a falta de informação predominante e a cultura de massa nos impõem atualmente um consumo do entretenimento ilimitado como se fossem elementos artísticos. O resultado disso é a dilapidação de valores contemplativos, que vão do respeito que todas

as formas de arte reclamam para si, até a mudança de postura do expectador frente o artista. Neste sentido, vale a pena a leitura de duas matérias jornalísticas sobre a vinda de Isáias Sávio ao norte do Brasil. Exímio compositor e virtuoso violonista, Isaías Sávio fez Escola no Brasil e influenciando uma geração de violonistas brasileiros, ensinando a técnica do instrumento. Uruguaio e amante do Brasil, via no Rio de Janeiro, uma cidade fonte de suas mais belas inspirações. Decidido a conhecer o Norte do país, o violonista empreendeu uma viagem à esta Região no ano de 1939, cujo comentário publicado na revista “Manchete”: O Teatro de Revista: Um capítulo à parte. “Ao meu ver aqui no Pará não existe academia de violão, nem professores laureados por Conservatório. Mas, o alluno de violão que no prazo de dois annos

de estudos não aprender dividir com desembaraço músicas communs, pode quebrar a guitarra ou vender e enforcar o officio”. (Tó Teixeira). O hilariante e satírico Teatro de Revista, intitulado “Sei Lá Si É!”, de autoria do talentoso Edilberto Domont, cantor e ator, em parceria com Maurício Dubort, foi estruturado em um ato e dezesseis quadras, compostas de quatorze peças musicais de autoria do Mestre Tó Teixeira. Em pleno domingo em que se comemorava a maior festa dos paraenses, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, a estreia no Theatro do Syndicato dos Artistas, antigo Theatro Ideal, situado nas proximidades da Basílica no bairro de Nazaré em Belém, provocou frenesi em todos os que na cidade, já haviam adquirido o hábito de assistir aos esperados Teatros de Revista encenados no decorrer da quadra nazarena, período de quinze dias de festa que se sucede a data da famosa procissão. A começar pelos anúncios, repletos de uma alegria ingenuamente comovente, o período de divulgação do evento trazia publicações em jornais do tipo: “Todos estão de acordo em considerar a melhor Revista Regional do Arraial! “Sei lá si é!”, que faz rir a mais sisuda e circunspecta pessôa. Estrondoso triumpho ao gosto do público da espetaculosa e alegre phantasia de Domont e Dubort! Nos referidos anúncios, ainda se lia o deboche bem humorado do produtor ao afirmar: “A revista que vae fazer sucesso porque o resto... Sei lá si é!”. Comentavam os jornais que “Sei Lá Si É!” suplantara todas as demais revistas já apresentadas no Arraial e que aquela já era considerada a Rainha das Revistas. Com preços de ingressos vendidos por 2$200 (dois mil e duzentos réis) para adultos e 1$200 (hum mil e duzentos réis) para “creanças, estudantes e soldados”. Iniciando a sessão às 19 horas, no Theatro do Syndicato dos Artistas Paraenses, mais precisamente ao lado do indelével Photo Nazaré, a montagem trazia em seu elenco, além da belíssima atriz e cantora Jacira e do próprio autor que também atuava na peça, Domont, os seguintes artistas: Márcio Reis (Nicolau), C. Campos (O Coronel), Clarisse Soares (A Garota Risonha), Dico Rocha (O www.revistapzz.com.br 89


ESPECIAL MÚSICA Motorneiro Ranzinza), Dolores Menezes (Tentação) J. Pampolha (cantor). Uma das músicas de Tó que se tornaram célebres na peça e que recebeu a letra de Edilberto Domont foi “Luar no Sertão” cujo texto vem a seguir: Como é lindo no sertão/ Uma noite enluarada/ Iluminando o coração/ E rezando com ardor A cabocla apaixonada / Pensa no primeiro amor / Ave Maria / Dobra o sino na capella / Vem surgindo a lua bella / Por traz da solidão / A donzella em sua tenda / Troca o biltro e prende a renda / Com espinhos de limão Ave Maria / Quando a lua se aborrece / E por cá não quer passar / O sertão fica deserto / Nem uma estrella apparece / E a saudade resa então / A sua eterna oração / Ave Maria / Adormece Socegada (sic) / A cabocla apaixonada / Se a luz da lua sequer / Pois a lua tão esquiva / Já tornou-se fugitiva / No olhar desta mulher. As regras sociais, ou melhor dizendo, as condutas sociais basilares do direito consuetudinário, que ditam pelo próprio comportamento da sociedade, sua forma de agir, pensar, julgar, conservar e porque não dizer excluir, sempre sofreram alterações ao longo dos tempos graças à luta de classes minoritárias que através dos anos vêm conquistando espaços na sociedade contemporânea. Contudo, os escândalos sempre permearam o meio social. O combate aos comportamentos chamados imorais ou condenáveis é tão histórico quanto a sua prática. A arte é um território que ao passar por transformações se tornou um refúgio à liberdade de expressão do homem, na forma de catarse e de construção de alter-egos mantidos graças à não condenação da expressão artística. Embora em muitos outros meios hajam pessoas exaltando comportamentos ditos inadequados, que vão desde a forma de vestir e falar até o consumo e práticas não convencionais, é na arte que tudo se justifica como expressão. Não se trata de levantar qualquer tese sobre o assunto e nem é pertinente, porém o que ocorreu no Theatro da Paz naquele setembro de 1939 possui inúmeras variáveis merecedoras de uma análise mais detalhada. Na Belém da Belle Époque que traduzia a Paris em seu glamour histórico e inconteste, 90 www.revistapzz.com.br

também existiam cabarés de luxo com madames exuberantemente vestidas, evolando sensualidade com perfumes de lavanda. O povo que condenou o Sr. Raiquil Alves, dançarino conhecido como “Capitão Blod” foi o mesmo povo que recebeu de braços abertos o estilo de vida parisiense que se não igual, era até mais “liberado” no que tange aos apelos sensuais, que os franceses. A companhia humilhada naquela noite era mambembe e por assim apresentar-se, qual fora a indignidade em mostrar sua arte em uma casa de espetáculos como o Theatro da Paz? Há de se compreender que existem espetáculos cuja proposta não é adequada à espaços como um Theatro da Paz, mais pelo aspecto técnico de montagem e estilo. Considera-se um evento adequado, qualquer um que tenha em sua proposta a contemplação e não a interação física. Para melhor ilustrar, em um show de

Rock, onde todos pulam, gritam e se jogam do palco em um ritual frenético e tribal, que dá sentido ao estilo despojado do gênero, não fica tecnicamente adequado em um teatro, pela necessidade como foi dito, de interatividade entre público e plateia. Não é uma questão de adequação moral ou social, como foi o caso da companhia do Sr Raiquil em sua montagem de “Mademoiselle Lily”. O que houve de fato foi um festival de preconceito desmedido promovido por uma sociedade que de maneira antagônica reagia com admiração aos estilos extravagantes de Paris, mas não dava o direito sequer da possibilidade de apresentação de um grupo o qual de imediato foi associado à vagabundos e “pé-rapados”. Foi um apedrejamento moral o que sofreu a “Companhia Teatral Mambembe Guarany”, considerada, de acordo com a reportagem, como um “atentado aos


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

blemática canção de Edmar, compositor e vocalista da extinta banda de rock paraense “Mosaico de Ravena”. Hoje batatas e cebolas podres são atiradas por um sistema que elege somente uma parcela da arte caricata e teatral, vendendo esta arte como verdade absoluta e única, esquecendo que o Brasil é um mosaico de atitudes artísticas e que a formação do jovem merece um pouco de tudo. Lamentavelmente, o maior professor do mundo moderno é a TV ao ditar normas sociais e inventar formas equivocadas, disfarçadas de informação. Arte e entretenimento andam juntos mas são absolutamente diferentes. Certamente as batatas e cebolas atiradas hoje são bem piores do que as atiradas contra o

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). sentimentos artísticos de nossa cidade”. Certamente as batatas e cebolas podres atiradas contra os artistas serviram muito mais para alimentar um preconceito social histórico; numa intolerância que só gerava empáfia e ódio. Como classificar por exemplo, as bailarinas do balé Can-Can? Seriam estas mulheres, “moradoras de zonas suspeitas e dedicadas à amores fáceis?” Como entender a invasão dos Cabarés, no mais fino estilo francês? Como entender a própria moda importada da cidade luz que detalhava e apresentava o corpo da mulher, sob transparências e enlaces bem mais ousados que os vestidos locais? O que vale na reflexão é observar que nada mudou até hoje. No mundo atual continua-se a autenticar modelos externos em uma necessidade que remonta os indígenas ao receber europeus. “O que é bom vem lá de fora” já falava a em-

Sr. Raiquil. Mas se por um lado esta plateia cometia ataques de moralismo, por outro, um grupo diferente de melômanos sabia admirar um espetáculo bem produzido e executado sem prévios conceitos ou discriminação. Na aproximação do mês de outubro, ao iniciar a quadra Nazarena, nome dado aos dias de comemoração que sucedem o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, o Arraial de Nazareth era montado de forma congregar os mais variados tipos de diversão e trabalhos artísticos. Situado em plena a praça Justo Chermont, em frente à Basílica de Nazaré, o Arraial sempre foi palco de grandes produções. Bem próximo dali ficava a Teatro do Syndicato dos Artistas Paraenses, o Cine-Teatro Moderno, o Teatro São Cristovão, também conhecido como Associação Beneficente dos Chouffers do Pará, tudo enfim respirava arte e

diversão. Já em 1939, os jornalistas comentavam as mudanças significativas em relação às produções locais as quais já arrastavam grandiosas plateias. Sob a inspiração do mestre Tó Teixeira e suas composições musicais, devidamente letradas por Edilberto Domont e Paulo Castro, outro Teatro de Revista intitulado “Só Vendo” foi sucesso absoluto de público e crítica. “Só Vendo” – Teatro de Revista – Música Tó Teixeira e textos de Edilberto Domont Os jornais da época, “A Folha do Norte” e “O Estado” eram consonantes em seus comentários sobre a revista “Só Vendo” de Edilberto Domont e Tó Teixeira. Rebatendo as críticas negativas que recaiam sobre a peça, os jornais locais valorizavam o aspecto geral de comédia e leveza, cuja função de alegrar o público na Quadra Nazarena era plenamente cumprida pela proposta da montagem. Os chamados de “críticos de máo fígado” (sic) entenda-se como “mau fígado” em função da arrogância e prepotência com que desferiam seus comentários, certamente não entenderam o caráter satírico da apresentação que tem seu ápice no momento em que faz uma hilariante crítica aos maníacos por microfone. “A leveza da peça e a autenticidade regional fizeram valer e sublimaram qualquer possível momento onde tenha faltado a técnica de grandes produções. Embora cansado das sucessivas sessões o elenco não deixou a alegria diminuir, nem a empolgação do público aquiescer”. Quadros saborosamente regionais, fizeram a alegria dos paraenses naquela feliz Quadra Nazarena de 1939. O jornal “O Estado” defendia de tal modo a peça de Domont e Tó, que em um de seus artigos, publicado no dia 14 de outubro de 1939 apontou: “Está conquistando geraes applausos a revista regional “Só Vendo”, que está sendo encenada no Theatro Variedades. A “Só Vendo” está alcançando sucesso, pois é uma revista bem enscenada e bem defendida, já tendo conquistado a sympathia do público. O nosso povo tem sabido compensar o trabalho de Domont e Tó Teixeira, trabalho que veio a lume para gaudio de uns e o descontentamento de certos despeitados”. Como ficou claro no artigo do jornal www.revistapzz.com.br 91


ESPECIAL MÚSICA “O Estado” os jornalistas defendiam e valorizavam os trabalhos de artistas paraenses entendendo bem que mais que críticos. De fato existia um seleto grupo de pessoas que talvez por não admitir o sucesso e a popularidade de Tó e Domont, rebatiam com ataques de duvidoso entendimento, a magnífica arte do Teatro de Revista, muito bem adaptada ao gosto parauara. Os comentários a seguir, recolhidos por Tó, mostram claramente o carinho com que a plateia recebia seus artistas e a generosidade em buscar muitos mais que a celebridade, a disciplina e o esforço para uma boa atuação. Nas duas reportagens compiladas pelo compositor, a primeira de 29 de agosto de 1939, do “Jornal do Estado” e a segunda publicada em 15 de outubro do mesmo ano pelo Jornal “A Folha do Norte”, resta clara a tradição das produções dos Teatros de Revista. Tó Teixeira parecia compreender muito bem os meandros desse tipo de expressão, sendo pertinentes alguns comentários sobre este importante gênero que tantas gargalhadas proporcionaram ao povo brasileiro. 1939 – Reportagem “O Nosso Theatro” (Publicada no “Jornal do Estado” – No dia 29 de agosto de 1939). Coluna – Vendo, Ouvindo e Annotando. Aproxima-se o mez da tradicional Festa de Nazareth. Na praça Chermont já se estão instalando divertimentos para a creançada. Em breve, aquele Largo estará repleto de barraquinhas para a venda de brinquedos, bebidas, quitutes e até jaburus. Ouvimos falar ainda das Revistas Theatraes dos nossos artistas que integram o Syndicatho Paraense. De certo elles não ficarão sem tomar parte na feira. Tomados pela competência dos chamados feitos através de cartazes berrantes, ricos textos e indumentárias novas. Devemos incentivar essa gente. Dar-lhes apoio, animá-la, facilitar mesmo o que for possível para que os nossos artistas possam corresponder a esta confiança. A nossa plateia não exige barítonos, nem tenores, celebridades, nem gente consagrada, porém deseja ver algum esforço e progresso nessas revistas. Nada da velha “comperage” do Coronel do Sítio ou do circense enfadonho... Os artistas do Syndicato poderão orga92 www.revistapzz.com.br

nizar uma troupe em condições e escolher entre os seus elementos, quem possa realmente dar conta de um papel sem estropiar as falas do mesmo, nem esquecer as “deixas” a que tem que obedecer. A censura theatral deverá também agir com critério, liberta da prevenção pessoal e dos pruridos de exagerada e ridícula castidade. Que seja exercida por alguém que tenha independência mental e não se inspire nos “Capitães de Fancaria”, pseudos defensores dos melindres da sociedade. O nosso desejo é que os artistas daqui, dignos de sympathia levem avante a obra do seguimento do theatro regional.

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). E que a nossa plateia os prestigie e ampare. São também, votos que juntamos a esse desejo, para a realização de completa Victória: O dia mais feliz de minha vida! “Não sei como agradecer a gentileza..! Sou operário, encadernador e artista pobre!”. (Tó Teixeira). “Acostumado que estou a tanger o meu pinho diante dos entendidos na arte, não tive por que vacilar quando chegou a vez de manifestar-me...” Tó Teixeira Antes do relato emocionado do velho Mestre sobre aquele em que o próprio violonista elegeu como o dia mais feliz de sua vida, vale ressaltar na história, o olhar do compositor voltado para o mundo e suas reflexões a respeito da vida. A maturidade do espírito concede ao homem a visão mais clara dos valores humanos e tal estágio se atinge com a mensuração destes valores, fundamentalmente, com o emprego deste aperfei-

çoamento no convívio social, na melhoria da qualidade das relações pessoais e interpessoais. No caso de Tó Teixeira a priori, sua pobreza material poderia de imediato, em uma análise superficial, levar a crer que seu desapego com bens e riquezas; sua humilde postura perante a vida, não lhe dariam opção de ser diferente, tendo o mesmo, obrigatoriamente, que aceitar esta situação como uma redenção à condição social imposta. Ser filho de um músico flautista, de pronto já não traria tantas vantagens sociais, nem estabilidade financeira para estudos e desenvolvimento intelectual, face às vicissitudes dessa profissão, em uma época em que o glamour dos espetáculos estava apenas a favor de poucos. Como se sabe, seu pai tinha ainda a profissão de ferreiro, destinada aos negros, assim como ocorria com os coveiros, os recolhedores de excrementos, (conhecidos como “tigres”), por serem trabalhos de extremo esforço braçal, considerados depreciadores de mãos aristocráticas. Foi a propósito pela profissão, que Antônio Teixeira do Nascimento, o pai, veio a falecer em 1930, ao ser praticamente forçado a adentrar em um forno ainda quente de um “vapor” (nome dado aos navios cargueiros que aportavam em Belém) de propriedade da empresa Amazon River, para sua limpeza e manutenção, a fim de que não houvesse demora da embarcação no porto. A vida de Tó Teixeira era ao mesmo tempo sacrificada pela pobreza material, sendo relativamente limitada às cercanias de um bairro considerado de ex-escravos e festejada por seus muitos amigos, alunos e amantes das cordas do pinho. No contexto musical Tó Teixeira era muito bem aceito em rodas sociais por sua refinada educação e inigualável talento, os quais juntos concediam a ele uma espécie de passaporte para um convívio social mais amplo e aristocrático. Muitos eram os convites para Saraus e Serenatas nos mais diversos recônditos de uma cidade onde ainda se podia voltar a pé das festas e bailes, sem o pavor de assaltos e perigos urbanos comuns dos dias atuais. Apesar dos contrastes sociais existirem também na época em que Tó cresceu, havia digamos, uma conformada compreensão por parte da classe pobre a respeito de seu status so-


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

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ESPECIAL MÚSICA cial, historicamente advinda da submissão não muito distante do negro recém libertado da escravidão. Nesta análise é possível imaginar o motivo do bairro do Umarizal, ser pobre mas feliz, por outros aspectos que só a maturidade revela como intangível riqueza. Um texto escrito emocionadamente por Tó Teixeira fornece a dimensão da paixão e da ternura do olhar musical do compositor e sua relação com a beleza da arte. Como o próprio texto relata, o violonista maravilhado com o requinte de uma casa aristocrática que o recebia, percebeu de imediato que entre todos os convidados era o único homem negro; fato que por um lado revelava a dura realidade do preconceito e da discriminação racial, mas que por outro, o enaltecia pela comprovação de seu talento violonístico ímpar, somado à essência de um homem verdadeiramente fino, elegante e de bom coração. Sempre vestido com seu terno branco de linho, sapatos de couro envernizado de duas cores e seu inseparável chapéu “Panamá”, Mestre Tó dividiu nessa noite as

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). atenções com seu grande amigo Remo Figueiredo, o qual havia sido também abençoado pelos Deuses do Olimpo com o dom da música. Com uma voz forte, profundamente emotiva e afinada, Remo interpretou a canção “À Beira Mar” do famoso Vicente Celestino, que para delírio dos presentes foi brilhantemente acompanhada pelas seis cordas do violão de Tó Teixeira. O que chama atenção no texto é a narrativa emocionada do violonista e a singeleza do momento único muito bem captado pelo coração seresteiro do músico. 94 www.revistapzz.com.br

Certamente, a loa oferecida pela anfitriã, a aniversariante, como bem mostra o texto, seria para muitos músicos da atualidade mais uma mera noite de música e seresta; mas para Tó foi muito mais que isso. Talvez por todas as variantes desfavoráveis à ele, que iam desde a cor de sua pele, perpassando por seu status social, sua profissão de simples encadernador e sobretudo, a falta de um sobrenome

que o fizesse membro de uma classe mais abastada, fossem responsáveis pela magnitude da escolha desse dia como o dia mais feliz de sua vida; o dia em que pelo violão sua alma soluçou o pranto não da tristeza, como há muito fazia, mas da alegria de sentir-se valorizado e percebido em sua essência humana e musical. O dia mais feliz de Tó Teixeira reflete o respeito à arte e o respeito aos que a fa-


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

zem, não pelo retorno pecuniário, mas pelo compromisso maior em fazer dela um veículo de libertação do espírito e de divagação da alma, onde o dinheiro toma uma proporção ínfima, muito embora necessária à manutenção da vida material. Nesse aspecto sempre o compositor esteve à par de uma postura que visava a valorização do artista através do pagamento justo ao seu trabalho e do real valor que deveria ser concedido

à arte musical, que se mostra absurdamente inalcançável pelo dinheiro, não havendo forma ou condição de colocar em um mesmo nível o valor da música e o valor pecuniário. Em seu escrito Tó ensina a todos o poder abstração da ternura através de fatos considerados pueris e rotineiros. A cena que abre e fecha o texto se transforma em um pano de boca de um cenário onde se percebe, além do sentimento do

artista, todo o colorido de uma noite junina tipicamente belemense. A seguir a compilação do texto em que o violonista narra sua grata experiência. Um dia a mais para todos os que dela participaram, mas para Tó, o dia mais feliz de sua vida! 1942 – Depoimento “A maior emoção de minha vida” – Sobre sua lembrança de uma noite de festa em 1925. Escrito por Tó Teixeira em 31 de dezembro de 1942. Foi em uma alegre noite de São João, cheia de risos de crianças e de balões multicores, em 1925... O meu extinto e saudoso amigo Remo Figueiredo, o esplêndido cantor que nessa época, dava-me o prazer de sua amizade e agradável convivência, procurou-me nessa noite para fazer-me um convite – o de acompanhá-lo a uma casa aristocrática, onde se realizava uma festa e cuja casa está localizada ali, ao lado direito da Praça da Bandeira, antiga Saldanha Marinho. Aceitei o convite do meu amigo Remo e assim, após vestir o melhor terno (que sempre o tive, Graças da Deus), preparei, com todos os requintes do meu conhecimento, as cordas do meu violão de jacarandá, que me foi oferecido em Manaus, quando da temporada feliz que fiz naquela linda cidade em 1922. E dessa maneira fui, em companhia de meu amigo à casa aristocrática da Praça da Bandeira. Recebidos com todas as “honras do estilo”, não só pela aniversariante, como também por toda a sua excelentíssima família e convidados. Tive, logo que pude observar toda amplitude daquele ambiente em festa, esta surpresa inesperada: O violonista Tó Teixeira era, naquele ambiente em festa, o único homem de cor. Promoveu-se então, uma serata íntima naquela residência faustosa. Recitativos, declamações. – Acostumado que estou a tanger o meu pinho diante dos entendidos na arte, não tive por que vacilar quando chegou a vez de manifestar-me... E acompanhei então, na vocalização profundamente sentimental do meu amigo Remo, a popularíssima canção de Vicente Celestino “A beira mar”. Aplausos delirantes coroaram a interpretação desse número. E sob o calor daqueles aplausos, naquele ambiente www.revistapzz.com.br 95


ESPECIAL MÚSICA seleto, em que ao invés de um rústico banquinho, tinha sob os pés rica almofada de adorno, tive francamente a ilusão de que era um grande mágico do violão. E essa ilusão prolongou-se ainda mais – Doce ilusão de um homem simples e de cor! – Quando a linda e gentil aniversariante surge-nos pela frente, conduzindo uma cesta de flores e as vae jogando por sobre nossas cabeças, como se fôramos em realidade Deuses da Divina Arte dos Sons! Lembro apenas que eu e o cantor, empolgados por aquela manifestação surpreendente, dominados pela emoção

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). e enlevados por tanta generosidade de aplausos, bem que sentimos as lágrimas descerem pelos olhos. Lágrimas de agradecimento, por entre flores que se esfolhavam aos nossos pés! Até a presente data foi essa a maior emoção de toda a minha vida, naquela noite alegre de São João, cheia dos risos inocentes das crianças e das luminosidades dos balões multicores. Pará – Belém, 31 de dezembro de 1942. Antônio Teixeira Filho O ofício de encadernador concedia a Tó a possibilidade de relacionar-se com muitas personalidades consideradas eruditas de Belém. Corroborando a ideia de que realmente existem coisas que o dinheiro não paga, fica muito claro observar que a grande riqueza que Tó possuía, o grande patrimônio por ele cultivado, não era o dinheiro. O comentário jornalístico foi assinado com as iniciais C.V., não tendo sido possível sua completa identificação. Há no presente texto editorial uma poética reverência ao ofício de encadernador, ofí96 www.revistapzz.com.br


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

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ESPECIAL MÚSICA QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

cio que tanto instruiu e ajudou o jovem Tó a compreender o mundo e o homem. 1940 – Reportagem “A encadernação e seu artezanato” (Publicada no Jornal Carioca “Vamos Ler!” – Dia 21 de novembro de 1940). Muito antes de Guttemberg inventar a imprensa, facilitando, deste modo, extraordinariamente, a divulgação e a popularização dos conhecimentos humanos, a arte de encadernar já era conhecida e praticada. Vamos encontrá-la em plena Idade Mé98 www.revistapzz.com.br

dia, como um privilégio especial dos monges copistas (bibliopegas), depositários de todos os manuscritos de valor, herdados da Antiguidade Clássica. E ainda, depois de conhecida e utilizada a tipografia, continuou a encadernação a ser um artezanato, por sua natureza, exigindo mão de obra especializada e fatura verdadeiramente artística. Célebres tornaram-se alguns encadernadores, entre eles podemos citar o mestre Jacob Krausse, da Corte do Grão-Duque Augusto de Saxe, que viveu no

Século XVI. E fato muito significativo da importante situação que disfrutavam na época, é, sem dúvida, terem os reis da França, seus encadernadores particulares, conhecidos pela denominação de “Relieurs Du Roi”. Em nosso paiz esta arte vem sendo exercida de longa data. Por motivos vários, contudo, e entre eles, temos que considerar infelizmente a enorme percentagem de analfabetos ainda não atingiu a vulgarização que seria de esperar. A atual exposição do Livro Brasileiro dá


ça, pois à perfeição técnica, se reúne o mais apurado senso artístico. Esse é um homem que pode “encarcerar” o pensamento humano. Pondo-o “à ferros” quando encaderna as obras de sociólogos, poetas e dramaturgos, dando também, aos volumes que outros escrevem “fechos de ouro” por fora, nas encadernações. Agripino Grieco já teve oportunidade em uma de suas crônicas de referir-se à Mestre Oswaldo e suas excepcionais qualidades que o habilitam a transformar qualquer livro, por menor valor intrínseco que tenha, em autêntica preciosidade. Os trabalhos que expõe na Associação Brasileira de Imprensa, inclusive a magnífica encadernação do Barleus, são bem um atestado de sua arte, tendo merecido a atenção do Presidente da República que se deteve na apreciação dos mesmos. Com a vida simples de um homem que cultivava a ternura, a paciente alegria, eram os amigos sua grande fortuna; era sua fé a sua maior força; era o seu sorriso

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). oportunidade a que se apreciem alguns trabalhos de encadernação, que muito justamente, podem ser classificados de notáveis. É reconfortante constatar que há no Brasil mestres encadernadores realmente dignos desse nome. Há particularmente um que merece especial referência: Oswaldo de Souza. O mestre Osvaldo como é conhecido. Este bahiano, legítimo herdeiro das mais belas tradições do ofício, em nada fica a dever a seus antecessores da Renascen-

sua melhor qualidade. Dentre seus amigos e admiradores, o que mais escreveu sobre o jeito simples de viver do violonista e sua riqueza intangível, amealhada ao longo dos anos, foi sem dúvida o escritor e jornalista Mecenas Rocha. As palavras de Mecenas traduzem o carinho e o apreço que o jornalista nutria por Tó: 1946 – Em 19 de agosto de 1946, o conceituado jornalista Mecenas Rocha escreveu sobre Tó Teixeira: “Admiro os seus sentimentos. Tó Teixeira possue a

nobreza dos que se ufanam em ser reconhecidos ao bem que se lhe façam. Isso é uma virtude que vae rareando com a nova fisionomia moral do mundo hodierno.

Da arte de tocar violão Na sua tenda humilde de encadernador humilde, é encontrado todos os dias, para (rejuvenecer) todo e qualquer livro de toda e qualquer natureza, o encadernador Antônio Teixeira Filho, conhecido em todas as rodas por Tó Teixeira. Alli, com a modéstia commum em todas as pessoas affeiçoadas às virtudes santas do espiritualismo, elle leva a vida silenciosamente, reduzindo o seu esforço profissional em pecúnias parcas e ridículas e atrahindo por a lhanheza de seu caracter, as melhores amizades. Dedicando-se à sublime arte dos tons, Tó Teixeira não perde as suas horas de ócio e como o seu violão de oito cordas, faz dos sons, um motivo, um punhado de cousas lyricas e magestosas. Sob a pressão de seus dedos de Terpandro, as cordas se transformam em prodigiosos mananciaes, espalhando harmonias e despertando as almas para a religiosidade dos sons. E por isso mesmo, o dedilhador magestoso que fez-se o mestre de alguns enamorados de Euterpe, installou-se à Rua 13 de Maio, nº 86, onde attende qualquer interessado no assumpto. 1946 – Nota publicada em 11/02/1946 no Jornal “A Folha Vespertina” por Mecenas Rocha. Trecho do Livro em andamento intitulado “Entre os vivos e os mortos”. Ocultos no seio da terra estão os tesouros que enriquecem as nações. Não fossem expostos à luz do dia, as faiscantes pedrarias não seriam úteis aos homens e orgulhosamente ostentadas pelas mulheres. De igual sorte, isso acontece no meio das grandes organizações humanas. Muitas vezes, dorme na noite da indiferença e do desconhecimento humano tantas capacidades de inteligência e de trabalho, que laboram ocultos e silenciosamente escondidas numa excessiva e prejudicial modéstia. Em tais condições se acha Tó Teixeira. À maneira de Mozart, desde os dez anos de idade, quando por si mesmo comewww.revistapzz.com.br 99


ESPECIAL MÚSICA çou a tocar violão, manifestou profunda e dedicada vocação pela arte musical. Em 1905 o seu pai deu-lhes as primeiras lições de música, tendo se aperfeiçoado com Aluízio Santos, o mais adesttrado violeiro daquela época. Nesse tempo, mais realce alcançavam os que se exibiam em violão sem a exigência do solfejo e da pauta. Um escolhido grupo de alegres boêmios – Pedro Matafome, Belém, Vicente Teixeira, Raymundo Canella e Raymundinho do Pinheiro, despertou em Tó Teixeira arroubos de sublime inspiração, sendo Canelas o que mais orientou a primitiva técnica do artista. Na atualidade o competente violeiro não é apenas um impecável dedilhador de seu instrumento, mas num fulgurante relevo, o compositor que sabe colorir suas belas e inspiradas partituras com lindas tonalidades de um lirismo arrebatador.

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). Do seu precioso instrumento, ao livre vôo de suas formosas e arrebatadoras inspirações, arranca todas as cromáticas gomas do som, notando-se nas suas melodias, essa maravilhosa beleza de ritmos das valsas de Debussy e Berget, que parecem revelar às almas, uma musical confissão de amor. Em 1925, Tó Teixeira é introduzido no luxuoso salão residencial de uma das mais aristocráticas famílias de Belém. Foi uma festiva noite de São João. Receberam o modesto e tímido artista com as cativantes deferências de quem as merecia pela extensão e rutilante brilho de suas aptidões musicais. Posto em execução o seu escolhido repertório, secundado pela magistral 100 www.revistapzz.com.br

vocalização de Remo Figueiredo, Tó Teixeira atingiu a culminância das inspirações sublimes, enternecendo o pequeno auditório com os líricos floreios de suas românticas melodias. Ao findar as suas execuções, viu-se coberto de frementes aplausos e redolentes flores, estas despetaladas em sua fronte pelas níveas mãos afidalgadas de uma jovem formosíssima. Agora, no transcurso de tantos anos, o artista alcançou uma eminência mais elevada, aprimorou o sentido emocional de suas composições, requintou-se na perfectibilidade de sua técnica, tornou-se enfim um exímio criador de modulações novas. 1952 – Nota publicada em 18/11/1952

no Jornal “Folha do Norte” por Mecenas Rocha: “UM RECITAL DE VIOLÃO / O verdadeiro artista é um produto de si mesmo: nasce com a espontânea naturalidade de sua ingênita vocação, advinda da espiritual essência de seu próprio destino. Tó Teixeira como Mozart, nasceu artista. Não é a autêntica revelação de um artista genial desses que maravilham e encantam as multidões. Entretanto, possui o peregrino dom de ser, em toda a sua elevada expressão de beleza, um enamorado intérprete de músicas clássicas. As suas composições não apresentam a vulgaridade dos produtores de sambas, emboladas, rumbas e baiões, e se chega a compor fantásticos trechos dessas mú-


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

sicas ligeiras neles transparece um lírico sentimento de empolgante e arrebatadora ternura. A agilidade e a limpidez com que fere as cordas de seu instrumento mostram a perfeição técnica do amestrado e talentoso violeiro. Essa sua particular feição de musicista consegue pô-lo em evidência nas páginas da história da guitarra. Magnífica obra de Roberto Munhoz, tendo Maria Luiza Anido, considerada no seu instrumento um nome universal, encontra-se incluída no seu vasto e brilhante repertório. As suas belas composições Mágoas de Caboclo e Canção da Aurora são consideradas como poemas musicais. Numa noite de românticas e célicas claridades, com um plenilúnio a pratear a

amplidão azulada, Tó Teixeira pôs-se a dedilhar o seu violão. Achávamo-nos somente eu e ele, num lugar de estudos, de sonhos e de meditações – meu gabinete de trabalho – e tive então, um de meus momentos de embevecimento ouvindo-o executar, entre outras, a sua primorosa jóia de arte, que é, sem contestação, sua Paisagem Amazônica. Mas não se julgue Tó Teixeira apenas um excelente musicista. Na Rua 13 de Maio, 212, há uma porta que se abre para o interior de uma pequena oficina de encadernador. Ali se movimenta o corpulento vulto de um homem trigueiro, afável e cortês, que se requinta no aprimorado aperfeiçoamento de sua obra, dando-lhe o mesmo reverberante esplendor estéti-

co dos artistas da Renascença. Tó Teixeira, o mágico renovador de velhos livros estragados, de páginas soltas, esfragmentadas nas margens, alguns quase inservíveis. Depois de um adestrado e meticuloso processo de renovação, os velhos livros nos aparecem com uma feição primorosa. E que, de uma forma inconfundível, com a perícia de sua própria arte, Tó Teixeira possui o segredo do embelezamento de sua obra evidenciando-se nas encadernações de luxo, com o emprego de couro da Rússia, de jacaré, brumido, pirografado, em seda, pelúcia, percalina, veludo, com frisos e dizeres a nankin, vermelho, ouro e prata. Ele sente a volúpia da perfeição. Os mais afamados encadernadores mundiais encontram em Tó Teixeira um êmulo vitorioso, entretanto, sua excessiva e imperdoável modéstia, esconde em grande parte, a magnificência de seus esmerados trabalhos. Em 1906, ingressou nas oficinas gráficas da Livraria do Povo, filial da Livraria Clássica, de J.B. dos Santos, onde começou sua aprendizagem como encadernador. Até hoje, durante o decurso de quase 50 anos de uma vida sem repouso, conseguiu absoluta perfeição em seus trabalhos, não havendo uma só de nossas bibliotecas particulares que não contenha livros por ele encadenados. Um intelectual japonês encarregou-o de encadernar algumas de suas obras. Tó Teixeira é, pois, duplamente mestre, como encadernador e como professor de todos os instrumentos de corda. Não possui a esplêndida vocalização que possuíam Francisco Alves e Catulo Cearense, mas contudo, sem exceder-me nas elogiosas referências, no manejo do violão, verdadeiramente, Tó Teixeira tornou-se insuperável. Como bom professor de violão, Tó Teixeira escreveu no ano de 1955 aos seus alunos: “Nunca toquei para atrair multidões. Quando môço, dos vinte aos cincoenta anos, meu prazer era tocar para quantos me quizessem ouvir! Em noites escuras e em noites de luar, com o céu recamado de estrelas, para pobres ou ricos, das barraquinhas de chão, aos mais altos edifícios, em aniversários, reuniões íntimas, rádio etc., executei com desembaraço melodias que faziam a alma da gente sonhar.... Foi um tempo feliz. Eu era rico, não de dinheiro, mas rico de www.revistapzz.com.br 101


ESPECIAL MÚSICA amor de meus pais, de mocidade e tudo me sorria. Passou-se o tempo estudando Carcassi, Sor, Carulli, Aguado, Tárrega, Rodrigues, Segóvias, Sinópolis llobet, Anido, Barrios e tantos outros; consegui desvendar alguns segredos do violão e com certa convicção dediquei-me a lecionar o maravilhoso instrumento que sabe falar bem ao coração. Recomendo aos meus alunos as palavras

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). do grande virtuose Juan Rodriguez: É preciso insistir, persistir e resistir pondo em jogo a inteligência, abraçando o útil e deixando o inútil”. Tó Teixeira, Belém, Pará, janeiro de 1955. Em sua constante busca pelo conhecimento literário, Tó Teixeira também aproximou-se do poeta De Campos Ribeiro. José Sampaio de Campos Ribeiro, nasceu em São Luiz do Maranhão, no dia 28 de janeiro de 1901. Paraense de coração, chegou a Belém aos três anos de idade, adotando esta terra como sua, contribuindo grandemente para a cultura e a educação no Estado do Pará. De Campos Ribeiro, cujo poema inaugura essa publicação, foi o primeiro diretor do Departamento de Educação do Estado e por várias vezes, Presidente da Academia Paraense de Letras. Suas conferências no Conselho de Cultura foram transformadas em livretos. Gostava de exaltar a cidade que o acolheu: “Gostosa Belém de Outrora” é um exemplo desse amor. Tendo também escrito “Aleluia”, “Brasões de Portugal” e “Horas da Tarde”, converteu-se em um dos precursores do Movimento Modernista no Pará. Engenheiro Agrônomo de formação e 102 www.revistapzz.com.br

ainda, desenhista Naval do antigo Ministério da Marinha, é dele a letra do hino da Escola de Marinha Mercante do Pará. De Campos Ribeiro dedicou-se ainda ao jornalismo, atuando em conceituadas redações, como as dos jornais “A Província do Pará”, a “Folha do Norte”, “O Estado do Pará” e “O Liberal”, tornando-se um dos fundadores e primeiro Presidente do Sindicato dos Jornalistas do Pará. Eis um texto muito bem escrito de De Campos Ribeiro que refere-se ao Mestre Tó Teixeira e ao mês de junho, um de seus preferidos.

1960 – O Violão, por Joel Pereira – Nota publicada no Jornal de Domingo da “Folha Matutina” no dia 28 de agosto de 1960 em favor do maior respeito e melhor ensino do violão. Já é tempo de se fazer justiça, há um instrumento que há muitos anos, vem sendo relegado a um plano secundário no terreno da música: o violão. Em diversas partes do mundo, máxime no Brasil, o violão é considerado por muitos, como um instrumento de boemia e, consequentemente, um instrumento banal. Todavia, se os que assim pensam, se detivessem um pouco


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

a estudar mais profundamente os recursos técnicos do violão, certamente deixariam de incorrer em tão grave erro, pois compreenderiam que o violão é um instrumento tão nobre quanto o piano, o violino, o violoncelo, entre outros. Em muitos países da Europa, mormente na Espanha, que é seu lugar de origem, o violão pontifica ao lado dos mais estudados instrumentos musicais e para ele são escritas peças de extraordinária riqueza harmônica e executiva. Figuras exponenciais da grande música, como: Francisco Tárrega, Fernando Sohr, Castelnuevo Tedesco, Joaquim Tu-

rina e Heitor Villa-Lobos, dedicaram ao violão algumas de suas mais belas e mais inspiradas composições eruditas. Por outro lado, as obras dos grandes mestres da música, têm sido transcritas com rara telicidade para o violão, como exemplo, podemos citar o Minueto em Ré Maior de Beethovem, inúmeras peças de Bach, o Nocturno nº 2 de Chopin, e tantas outras peças de valor musical indiscutível. O violão é um instrumento que exige um estudo seríssimo para quem deseja tocá-lo realmente. Oito anos de aprimorados estudos é o tempo necessário

para que se forme um professor de violão. Como o piano, o violino, a harpa, o violoncelo, etc... o violão também tem seus grandes intérpretes, e para não citar outros igualmente geniais, bastaria que falássemos em Andreas Segovia que é considerado pela crítica de todo o mundo, como o maior violonista de todos os tempos. No Brasil, temos entre outros, o Professor Dilermando Reis, que é, sem favor, uma das grandes expressões nacionais do instrumento de Segovia. Em Belém do Pará, temos que render homenagens a dois grande violonistas. Um já não pertence mais ao número dos vivos. Trata-se do Prof. Artemiro Pontes Souza, o inesquecível “Bembém”, que foi para o violão o que Paganini foi para o violino. O outro, para felicidade nossa, ainda vive. É o Professor Antônio Teixeira Filho, o Tó das nossas rodas afetivas. Um verdadeiro gigante das seis cordas, um executor brilhante de quem o Mestre Segovia teria prazer em apertar a mão. É preciso derrubar de uma vez por todas o falso conceito em que o violão é tido e colocá-lo em cima do pedestal de ouro que a arte ergueu para ele. E essa tarefa cabe não somente a nós, professores deste belo instrumento, mas também aos nossos alunos, os que conosco aprendem a conhecer os maravilhosos segredos do violão. É preciso que nossos alunos levem bem mais longe e bem mais alto o seu ideal violonístico. É preciso que eles não se restrinjam apenas ao aprendizado elementar de músicas inexpressivas e acompanhamentos medíocres. Para isso é necessário que nós professores, nos proponhamos a fazer com nossos alunos, uma campanha de esclarecimento sobre o verdadeiro sentido e a verdadeira situação do violão em face dos demais instrumentos reconhecidamente musicais. O primeiro passo para a reabilitação do violão será a obrigatoriedade de seu ensino nos Conservatórios. Em alguns Estados Brasileiros, como São Paulo, Guanabara e Pernambuco, isso vem sendo feito com muito êxito. Agora chegou a vez do nosso querido Estado do Pará, dar ao violão o seu justo e merecido lugar ao sol. www.revistapzz.com.br 103


ESPECIAL MÚSICA

A morte de Tó teixeira “Escuto ao longe uma linda orquestra de violões..!”. Tó Teixeira, em suas últimas palavras no leito de morte. A febre que insistiu ficar até o último suspiro só passou quando as mãos cruzadas sobre o peito esfriaram e o corpo que resistia pelo amor à música sucumbiu ao cansaço dos anos. A notícia calou o Umarizal. Vozes vi104 www.revistapzz.com.br

zinhas falavam: Tó Teixeira morreu. O quadro era uma estranha mistura de tristeza e excitação. Sambistas, violonistas, seresteiros, percussionistas, comerciantes, empresários, advogados, funcionários públicos, padeiros, carvoeiros, tacacazeiras, gente do povo, todos queriam dar adeus ao velho Mestre, como se essa despedida formal fosse um direito adquirido ao longo de anos de convivência com esse grande violonista,

direito de saber que é também na música que um povo se perpetua. A tristeza era obviamente pela perda de um animador; um preservador e um produtor do maior bem que uma sociedade pode ter: a sua arte popular! Tristeza de ouvir um violão agora mudo e sem o toque das aveludadas mão de Tó. A excitação era geral pelo fato de todos desejarem dar-lhe adeus, não pela simples despedida e sim em agradeci-


QUINTAL MUSICAL Na casa de Tó ( à direita, em pé) encontravam-se pessoas humildes e da alta sociedade paraense. Lá estavam grupos que “choravam” suas mágoas ao som do pinho, apelido carinhoso dado ao violão.

nava como um ponto de encontro dos chorões e boêmios de Belém, sendo de propriedade de outro saudoso músico: Aldemir Martins, que escreveu próximo ao caixão, os seguintes dizeres: “Hoje o nosso choro é muito doído, vem de dentro da alma misturado com mil lembranças e com um gosto de tristeza profunda. Foi-se uma vida inteira dedicada à música e às coisas da terra. Fica uma saudade do tamanho do nosso abraço de despedida irmão querido!” (Aldemir Martins). Em reconhecimento à sua grandiosa contribuição para a cultura paraense Tó Teixeira somente no seu último ano de vida recebeu do Governo do Estado do Pará uma pensão especial, com a qual no final da vida sustentava pequenas despesas. Ao ser homenageado no momento do enterro muitos músicos, ex-alunos e personalidades encontravam-se presentes. Dentre os muitos presentes, deram adeus ao velho Mestre: João Paulo do Valle Mendes, na ocasião Vice-reitor da Universidade Federal do Pará; Olavo Lyra Maia; Laury Garcia, Edyr Augusto, Luiz Guilherme; Mestre Drago; Aurélia dos Santos, Maria Oliveira da Silva, entre outros.

Todos gostam de ouvir um violão bem tocado, porém poucos são aqueles que gostam de pagar (remunerar) o artista. Se José Santa Cruz existisse, teria que estudar o violão por música, para ter valor. Actualmente quem não sabe música é violonista nulo”. (Tó Teixeira). mento pelo músico ter vivido e convivido com muitos dali, em uma Belém tão feliz, como ele mesmo dizia. Homens, mulheres, tal como naquela linda noite “entre risos de crianças e balões multicores” considerado como o momento da maior emoção de sua vida, pararam seus afazeres para a despedida. Na Rua Honório José dos Santos, local onde ficava a Casa do Choro, foi velado o corpo de Tó Teixeira. O local já funcio-

Presentes no cemitério de Santa Isabel onde o corpo foi enterrado, estava também a Sra. Maria de Belém Menezes, filha do grande amigo de infância de Tó, o escritor Bruno de Menezes. Foi dela a ideia de pedir a todos que entoassem no momento da última despedida o hino “Vós Sois o Lírio Mimoso” tantas vezes oferecido por Tó, na porta de sua residência à Santa, no momento da passagem da Berlinda, que conduzia a ima-

gem de Nossa Senhora de Nazaré. Dona Amélia dos Santos conviveu com Tó Teixeira nos áureos momentos do bairro do Umarizal, onde suas serestas, ladainhas, novenas e batuques davam ao bairro a atmosfera de arte singular e a beleza autêntica. Entre as lágrimas que lhe desciam os olhos, cantou baixinho uma das ladainhas que Tó compôs, como quem queria dar prova de que falava a mais pura verdade e até para que os jovens presentes pudessem ter ideia do que ele falava. Mestre Drago, companheiro inseparável das festas de São Sebastião lamentava com os olhos vermelhos de choro, que já não poderia mais rezar a ladainha para o seu santo predileto e dizia: “Ninguém tocará de maneira competente e com um violão tão bem afinado e compenetrado como meu amigo Tó, ninguém!” Paolo Ricci, advogado, violonista e artista plástico, outro amigo querido, pronunciou emocionantes palavras junto ao corpo do velho violonista, lembrando passagens antológicas do Mestre. Hoje, ainda repousa sob uma velha mangueira, o corpo de Tó Teixeira. Contudo, seu sono eterno desperta a cada acorde, outros seres de seus próprios sonos, um intranquilo sono de esquecimento. Sob a mesma mangueira repousa o terno branco e o branco do papel pautado cujas linhas trêmulas escreveram a história musical de uma cidade amada que renasce agora. Tó Teixeira ressurge em cada acorde, em uma Belém que não mais nos pertence. Essa Belém é dele e essa alegria intangível da riqueza construída no olhar bondoso é mérito de poucos. Tó Teixeira construiu a sua Belém e entregou a cada serenata uma gota de lirismo essencial guardado em frascos de pinho e corda. Quantas luas Tó levou consigo? Quantas manhãs perfumadas de café pretinho foram degustadas e transformadas em notas azuis de uma caneta esferográfica no papel de pão? Quantas valsas perdidas nas noites caladas? Quanto choro engolido pelas madrugadas? Sob esta mesma mangueira repousa a memória. É só uma vontade imensa de tocar, tocar e tocar, como naquela noite cheia de risos de crianças e balões multicores.../ “Escuto ao longe uma linda orquestra de violões..!”, Tó Teixeira, em suas últimas palavras no leito de morte. www.revistapzz.com.br 105


HUMOR

Biratan Porto

6º Salão Internacional de Humor Da Amazônia

“O Mundo Árabe” O 6 º Salão internacional de Humor da Amazônia contou com a participação de cartunistas, caricaturistas, ilustradores, desenhistas e chargistas de 36 países, reconhecidos por seus trabalhos independentes em jornais, revistas e na internet. A XVIII Feira Pan-Amazônica do Livro realizada no período de 30 de maio a 08 de junho de 2014 no Hangar mais uma vez abrigou o Salão Internacional de Humor da Amazônia onde foram convidados a compor o júri desta edição do prêmio, Luiz Fernando Carvalho (RJ), Da Costa ( SP), William Medeiros (PB), J. Bosco (PA) e Atorres (PA) que ficaram com a missão de selecionar 100 trabalhos, 40 para o tema da Ecologia, 30 para o tema de Caricatura e 30 para o tema de Cartum com o tema “O Mundo árabe”. Entre os trabalhos selecionados, os dois melhores nas categorias de Tema Livre, Ecologia e Caricatura. A Coordenação Geral do Salão ficou a cargo de Biratan Porto e a Pré-seleção dos trabalhos ficaram responsáveis J. Bosco, Biratan e Roberto Pinto. As esculturas em Papel foram feitas pelo Paulo Emílio Campos de Melo. O patrocínio foi da Secretaria de Estado de Cultura do Pará – Secult e Apoio Cultural do Restaurante Terra do Meio. Os Artistas convidados ministraram dois WorkShops. O cartunista paulista, DaCosta e o ilustrador paraibano, 106 www.revistapzz.com.br

William Medeiros apresentaram algumas da características do humor gráfico. Da Costa ministrou: Desenhos e produção de Sketch books e William Medeiros: Caricatura, a arte da Distorção dentro da programação de workshops e mesas redondas que o salão oferecia dentro da Feira. Quem participou do workshop “Desenho de Humor e Sketchbook” com DaCosta, descobriu a evolução histórica do humor no mundo e no Brasil. Da arte renascentista de Leonardo da Vinci e Michelangelo às charges da época da ditadura civil-militar de Millôr e Ziraldo. Da invenção da prensa de Gutenberg à técnicas de desenho, colagem e pintura, DaCosta apresentou o universo que envolve a cultura gráfica, no Espaço Educação da Seduc. A palestra apresentou a origem de palavras que são frequentes no vocabulário de humor, como a própria palavra “Humor”, que era usada na Grécia Antiga para representar o bem-estar corporal. ‘Grotesco’, termo que denominava objetos antigos encontrados em escavações de grutas e ‘Cartum’, que surgiu do fato

de artistas rabiscarem em pequenos cartões. “A caricatura tem início nesse período porque os pintores ficavam desenhando uns aos outros para presentear”, explicou o ilustrador. DaCosta disse durante a fala que um evento como o Salão é um momento singular para quem trabalha com desenho de humor gráfico. “A gente só vê desenhista em Salão de Humor porque esse tipo de pessoa só vive na prancheta. Cartunista é um bicho que fica enclausurado”, brinca o vencedor de Menção Honrosa no 16º Porto Cartoon World Festival 2014. Já a caricatura, uma das categorias do VI Salão Internacional do Humor da Amazônia, foi o tema do Workshop com o designer e ilustrador William Medeiros, que atua no mercado editorial publicitário. O artista paraibano demonstrou também no Espaço Educação da Seduc, como desenhar pessoas a partir da arte do exagero. “Durante o processo de deformação, você tem que observar qual característica é mais marcante. Além de perceber o que deve ser ressaltado em cada pessoa,


TemaO Mundo ร rabe 1ยบ Lugar: Anderson. Delfino, Brasil.

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HUMOR

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TemaO Mundo Árabe Página à esquerda, Menção honrosa: Burka. Karry, Perú. Página à direita, à cima, Menção honrosa: Tobogã. Omar, Perú. Tema Ecologia Página à direita, à baixo, 1º Lugar: Cidade. OmerCam, Turquia é preciso trabalhar o corpo também, de forma que tudo se complemente com que ela faz,” destacou o desenhista, que começou a trabalhar profissionalmente aos 17 anos de idade, desenhando caricaturas da página editorial no Diário da Borborema, jornal impresso de Campina Grande. Biratan Porto, organizador do VI Salão Internacional do Humor da Amazônia, afirma que a importância de conversar com desenhistas de humor é a troca de experiências profissionais e pessoais. “O evento tem o objetivo de socializar conhecimento entre estudantes, artistas e pessoas que admiram o trabalho gráfico e os nossos convidados contribuem nesse acúmulo de maneira interessante,” pontua o cartunista paraense. Confira a lista dos Vencedores do 6º Salão Internacional de Humor 2014. 1º Lugar na categoria de Tema: Anderson Delfino/ Brasil. Com a Menção honrosa ficaram – Burka por Karry do Perú e Tobogã por Omar do Perú. Tema Ecologia: 1º Lugar : Cidade por OmerCam da Turquia, Menção honrosa: Selfie por Turcios da Espanha. Menção honrosa: Deserto/Klaus Pitter/ Áustria. No Tema Caricatura em 1º Lugar ficou Gabriel Garcia Márquez por Turcios / Espanha, Menção honrosa - Mujica por Ulisses do Brasil e Marina Silva por Jindelt do Brasil. O critério adotado para julgar os trabalhos fora. Originalidade, técnica e criatividade. No tema Caricatura e Ecologia o nível foi excelente. Já no tema O Mundo Árabe, apesar de muito engraçados os cartuns, abordaram situações e variações bem próximas. Mas foi o tema que mais se identificou com o público. A categoria mais difícil de ecolha foi a da Caricaturas. Um nível altíssimo de trabalho, com técnicas apuradas e diswww.revistapzz.com.br 109


HUMOR

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Tema ecologia Página à direita, Menção honrosa: selfie. Turcios, Espanha. Temacaricatura Página à esquerda, Menção Honrosa: Marina Silva. Jindelt, Brasil

torções bem feitas, além do trabalho pictórico. O júri bateu cabeça, mas achou o vencedor. No mtema ecologia houve consenso. O trablho do turco Omer foi o quer mais agradou ao Júri. Assim também com as menções Honrosas de 2º e 3º lugares dos três temas. O critério adotado para julgar os trabalhos fora. Originalidade, técnica e criatividade. No tema Caricatura e Ecologia o nível foi excelente. Já no tema O Mundo Árabe, apesar de muito engraçados os cartuns, abordaram situações e variações bem próximas. Mas foi o tema que mais se identificou com o público. A categoria mais difícil de ecolha foi a da Caricaturas. Um nível altíssimo de trabalho, com técnicas apuradas e distorções bem feitas, além do trabalho pictórico. O júri bateu cabeça, mas achou o vencedor. No tema ecologia houve consenso. O trablho do turco Omer foi o quer mais agradou ao Júri. assim também com as menções Honrosas de 2º e 3º lugares dos três temas. www.revistapzz.com.br 111


ARTES PLÁSTICAS

pavel,o mago da poesia no metal da pintura

Filósofo, poeta, pintor, escritor, ator de cinema e advogado, Pavel Fernandes funde poesias-pinturas numa fuselagem pra alcançar o vôo mais alto da viajem em suas literalturas, ofício natural de quem assa em paixão, fria arte de metal.

Denis Cavalcante é carioca, mas reside há quase 50 anos em Belém. Jornalista e escritor, Denis, também, é livreiro, escritor e membro da APL

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A poesia de Pavel e uma extensão do Pavel artista, do Pavel filósofo. Sua poesia é madura, forte, e, paradoxalmente suave. O leitor, que desavisado ler os poemas de Pavel, há de parar, refletir, e indagar curioso: Que idade terá o bardo? Quem o conhece (como eu) nao se surpreenderá com a verve fácil, os poemas sem rima, as estrofes contundentes, que, muitas vezes nos fazem parar e refletir sobre a vida. Nosso poeta tem lampejos angustiantes de Leminski. Facetas de Caio Fernando Abreu. O sarcasmo contundente de Bucowski. Ouso arriscar mais! Enigmáticas como o autor, como os títulos de seus poemas; explosões de lágrimas incineradas, varridas pelo tempo, magias por vezes sombrias, divinas, joviais, eternamente jovens, como a poesia, como o poeta. Delírios, pileques, caleidoscópio de palavras perdidas, achadas, soltas ao vento. Como se a intuição mágica do Pavel artista se fundisse com a po-

esia. É isso! Temos um artista que pinta poesia; um poeta que escreve arte. Conheci o jovem Pavel pelos bares da vida. Ou vocês acham que poetas, artistas, dão em árvores, caem do céu? Nosso bardo lembra ainda quiçá um querubim. Lembro-me como se fosse hoje, num final de tarde, quando tímido, mostrou-me seus escritos; pensei escreve bem o garoto. De outra feita foi a vez do Pavel artista apresentar-me belos esboços pictóricos. O cronista que entende pouquinha coisa de poesia pinçou uma pequena mostra do conteúdo que vos espera: “...Viva! / Gargalha! / No tablado vazio... / Do amor; Migalha” Nosso jovem poeta e uma força da natureza! Pavel se revela um feitiçeiro, caldeirão fumegante, senhor todo poderoso das alquimias, poções mágicas, bruxo da poesia... Querem saber quem é o melhor; o artista, o filósofo, o poeta? – Leiam o livro.


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ARTES PLÁSTICAS

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ARTES PLÁSTICAS

Ernani Chaves é Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986) e Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1993).

Pavel múltiplo - Inquietação, inquieto: talvez essas duas palavras, que remetem aos sobressaltos da alma, possam circunscrever, com alguma precisão, a figura de Pavel Fernandes, artista múltiplo, que envereda por diversas formas de expressão artística. Como estudante de Filosofia, o encontrei, pela primeira vez, já faz algum tempo. Sentado na primeira fileira, era somente olhos perguntadores, um mar de indagações, de questões que se estendiam após as aulas. E sempre, um prazer na escrita, textos sempre repletos de entrelinhas, por mais que necessitassem ainda do célebre rigor conceitual que costumamos cobrar dos alunos. Mas já plenos dessa inquietação que se deixava ver na fala incisiva, nos gestos largos das mãos, no riso sempre presente e nos olhares de espanto. Pavel múltiplo se multiplica sempre, seja como ator, como artista plástico e, agora, experimentando com as palavras nesse jogo que desde os tempos imemoriais parece ser o mais sublime, o mais nobre e, ao mesmo tempo, o mais difícil: o da poesia. Em “Comprimidos do exílio: uma hipocondria romântica” nos encontramos desde o título, no interior desses estados de exacerbada intensidade, alimentados por um comprimido muito especial, um comprimido de “vício-verso”, o qual, ao contrário do efeito desejado pela medicina, em vez de interromper esses processos intensos e exacerbados e com isso acalmar, dopar, fazer dormir, produz, cria, constitui o seu estado absolutamente oposto: o da hipocondria. Mas, se trata de uma hipocondria “romântica”! Romantismo nesses tempos ditos pós-modernos, de crise dos valores e desestabilização das verdades, nesses tempos também chamados de híbridos, onde os afetos se desfazem facilmente, tempos de amores “líquidos”? Não, Pavel não comete nenhum anacronismo simpático, não ide116 www.revistapzz.com.br


aliza amores eternos, nem nos convida para que juntemos as mãos e contemplemos, no horizonte, a felicidade que chega célere, trazida pela brisa de nosso bom comportamento. Seu “romantismo” não é dessa ordem, pois ele sabe que o poeta arrasta somente “ossos de palavras” e que ele se transformou apenas em um caça dor de “borboletras pelo jardim de papel”, como se lê em “Literalturas”. Trata-se de um romantismo circunscrito pela aguda consciência de que uma “natureza morta” pode se apresentar em “carne viva”. Os estados amorosos surgem, assim, atravessados por uma “metástase”, contra a qual só existem esses “comprimidos de exílio”. Entretanto, a “bula” que os acompanham nada ensina e nada diz acerca do modo como usá-los. Uma bula sem nenhuma “posologia”. Talvez, no limite, uma bula em branco. Resta, portanto, “arder em angústia”. A “oficina”, imagem que nos remete aos processos de trabalho pré-industriais, espaço de aprendizado entre mestre e discípulo, no qual trabalho e prazer em aprender ainda pareciam formar uma mesmo que precária unidade acaba por se transformar na banheira que acolhe a ressaca da noite insone, na qual “os diabos batem ponto”, como se fosse a última estação daqueles que acabam por “tombarenferrujados” em algum “hospício on the rocks” das esquinas da vida. Para fazer jorrar a inquietação própria de um mundo que já não oferece nenhuma segurança (embora ofereça muitas consolações), de uma geração para quem dia e noite se confundem num amanhecer que nem sempre chega, Pavel não se poupa, usando e abusando muitas vezes, de todos os clichês, multiplicados nas imagens de sombras, nas metáforas hiperbólicas, nas composições de palavras. Mas, em alguns momentos, as delícias do humor também aparecem muito mais reveladoras, na sua concisão. O melhor exemplo, está em “Desjejum”: - “Garçom!Uma faca e...um pescoço por favor” “Faca” e “pescoço” poderiam assim sintetizar o ofício do poeta iniciante imerso em uma banheira de angústia, ainda perplexo diante do próprio desatino, do próprio destino (o de poder fazer poesia?): uma faca afiada pela linguagem de encontro às palavras-pescoços. Vida longa ao jovem poeta Pavel! www.revistapzz.com.br 117


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