Tempo de batalha democrática

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TEMPO DE BATALHA DEMOCRÁTICA


Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504 Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Alberto Aggio

Política Democrática Revista de Política e Cultura www.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. Araújo Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos

Conselho Editorial Ailton Benedito Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico César Benjamin Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite Ferreira Neto Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra

Fernando Perlatto Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta

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Copyright © 2014 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446 Obra da capa: Pintura abstrata, 1,50x1,50cm – Isaac de Oliveira

Ficha catalográfica Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. No 40, dez./2014. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.


Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

TEMPO DE BATALHA DEMOCRÁTICA

Dezembro /2014


Sobre a capa

C

om um estilo singular, Isaac de Oliveira delicia nossos leitores, com a capa, contracapa e abertura das seções desta edição. Nascido no ano de 1953, em Ilhéus, na Bahia, ele desenha e pinta desde os 12 anos de idade, tendo recebido forte incentivo, desde muito cedo, de sua professora primária. Ainda adolescente, foi para São Paulo, onde fez o curso técnico na escola Campinas de Belas Artes e, após morar 17 anos, em terras paulistas, foi para Campo Grande/MS e ali se encontra, há três décadas. O artista plástico e hoje também homem de design e publicitário considera muito importante o aprendizado clássico e teórico que recebeu. Após conhecer o pantanal e inspirado pelos temas da região, direcionou sua arte buscando, com a força das suas cores, representar os motivos e a exuberância locais. Artista independente, pesquisou e conseguiu alcançar um modo próprio, tendo que passar por diversas fases até chegar ao estilo atual, cuja produção tem uma marca de cor e movimento. Segundo Isaac, há algum tempo atrás, suas telas traziam figuras bastante detalhadas, e o espaço que sobrava ao fundo (que era pequeno) era preenchido por movimentos coloridos. Movimentos que cresceram em suas telas e hoje ocupam parte muito importante, como uma marca registrada. Ressalte-se que boa parte de sua arte está direcionada para as cores fortes da região sul-mato-grossense. Ele afirma não ter medo da cor, e que não consegue ver o mundo sem elas. Daí viver procurando cores novas, tons diferentes. E revela que a síntese da sua criação está no desenho. Mantendo em Campo Grande, em uma galeria muito conhecida, o seu ateliê, nele é possível encontrar telas recentes, gravuras, reproduções e dezenas de opções em peças com design inspirados nos motivos da sua arte. Articulado com outros profissionais de sua área, ele participa de vários movimentos da arte regional e o seu trabalho ultrapassa as fronteiras nacionais, tendo diversas obras divulgadas no exterior, conquistando admiradores em diversos países. Você pode ver as obras e exposições deste fantástico artista baiano, mas já naturalizado sul-mato-grossense, bem como entrar em contato com ele, por meio do site <www.isaacdeoliveira.com.br>.


Sumário EDITORIAL Os esqueletos pós-eleitorais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I. TEMA DE CAPA: TEMPO DE BATALHA DEMOCRÁTICA Um golpe de Estado em doses homeopáticas Augusto de Franco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Rombo fiscal, petrolão, choque PMDB/PT e oposição forte Jarbas de Holanda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A tragédia petista em três tempos

Zander Navarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os 125 anos da República e as ameaças à democracia

Maurício Rudner Huertas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II. CONJUNTURA Quem controla a Petrobras e as empresas estatais? Gil Castello Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Continuidades e mudanças da corrupção no Brasil

Antonio Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres em espaços institucionais de decisão política Patrícia Rangel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Fora do eixo ou e nós aonde vamos!

Zulu Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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III. OBSERVATÓRIO Eleições 2014 e a cultura política brasileira Mércio Pereira Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os processos democráticos pressupõem o respeito às regras Luiz Carlos Azedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Diálogo com as esquerdas militantes Raimundo Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Financiamento de campanha e reforma política

Arlindo Fernandes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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IV. BATALHA DAS IDEIAS A precária sociedade mundial do trabalho Fabrício Maciel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A solução está no professor Jaime Pinsky . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública Laécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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V. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA Participação Cidadã & Estatização da Participação José Arlindo Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Tráfico de mulheres Mônica Sifuentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O Tribunal de Contas da União e suas nuanças

José Osmar Monte Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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VI. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO O aquecimento global e seus danos irreversíveis José Eustáquio Diniz Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Os desafios da engenharia brasileira na era contemporânea Fernando Alcoforado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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VII. ENSAIO Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci Theófilo Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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VIII. MUNDO Alguns sinais positivos no bilateralismo Paulo Delgado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O emprego e os negociadores da globalização difícil José Flávio Sombra Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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IX. HOMENAGEM & MEMÓRIA O marxismo de Leandro Konder (1936-2014), ode ao pensamento crítico e à democracia Marco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os 90 anos da Coluna Prestes Arnaldo Jordy . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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X. RESENHA O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva Marco Antônio Franklin de Matos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Spinoza: teologia, filosofia e política

César Benjamin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A revolução irreformável

Marcus Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os esqueletos pós-eleitorais

E

m democracia, o período imediatamente pós-eleitoral significa geralmente uma bem-vinda renovação de ares, de ideias e projetos. Mesmo quando não há propriamente a alternância, porque o chamado poder incumbente conseguiu a confirmação de outro período à frente dos negócios públicos, a sensação que se tem é a de que alguns desafios ficaram para trás, outros tantos se apresentam para os próximos anos e, assim, o estado geral da nação volta a refletir confiança nos dirigentes, nos planos e programas que acabaram de obter aprovação nas urnas, independentemente até dos números de uma tal aprovação: de fato, governantes há que, eleitos por exígua maioria, souberam, e sempre saberão, rapidamente tornar-se dirigentes de todos, não apenas daquela maioria eventual que os sufragou. Evidentemente, o Brasil de agora não se encaixa nesta descrição sumária. Governo e Congresso, sem mencionar os grupos estaduais agora à frente dos respectivos executivos e legislativos, não parecem ter saído de um salutar “banho de urna”. A sensação generalizada é a de que viemos de uma campanha cuidadosamente embalada pelo marketing para contornar os problemas reais. Não estiveram nos programas – com certeza, não esteve no programa da candidata à reeleição – temas como o cotidiano infernal das cidades brasileiras, a crise hídrica, a crônica deficiência de serviços públicos básicos, a corrupção como problema ético e político, para além da exploração moralista. Ou, se por acaso estiveram, foi de modo episódico e instrumental, para colocar contra as cordas o adversário/inimigo a ser desmoralizado nos ringues televisivos.

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Buscado provavelmente na sofisticada prateleira dos termos pós-modernos, um conceito como o de “desconstrução” deu o mote para a ação anomalamente agressiva dos marqueteiros. Aqui, a “desconstrução” virou mero sinônimo de propaganda negativa, fartamente usada, por exemplo, nas campanhas norte-americanas, talvez mais um sinal inesperado daquilo que já se chamou, em relação a outros âmbitos, de “americanização perversa” da vida brasileira. Num determinado momento, a candidata à reeleição gabou-se por não apresentar nenhum programa, vale dizer, nenhuma ideia de futuro e nenhum projeto de nação. Supostamente, as realizações de seu primeiro mandato – e, como reiterava à exaustão, de todo o ciclo petista no poder – eram a melhor e única garantia de que, se já não vivíamos no melhor dos mundos, este estava logo ali na esquina, ao alcance das mãos, bastando conceder à candidata Dilma Rousseff um segundo mandato. Mal fechadas as urnas, rasgou-se o véu diáfano da fantasia de onipotência. A herança perversa de si mesmo parece assombrar o “novo” mandato presidencial. Seja no campo econômico, seja no político, os esqueletos insistem em sair do armário, com a mesma sem-cerimônia dos mortos a rondar os vivos na “Antares” ficcional de Érico Veríssimo. A par do crescimento medíocre, que constitui óbvia ameaça à admirável promessa de Estado de bem-estar social contida na Carta de 1988, viu-se a nova/velha presidente às voltas com as más consequências do manejo populista da política fiscal, fenômeno não casualmente agravado em ano de eleições. Num país em que, como dizem, até o passado é incerto, legalizouse a posteriori, no final da legislatura, o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal cometido ao longo de 2014, dessa vez com a participação subordinada do Legislativo – uma espécie de fecho de ouro para a “contabilidade criativa” que corroeu a credibilidade pública, sem contribuir efetivamente para a retomada dos investimentos públicos e privados. O passado subjuga o presente diante de nossos olhos. Vê-se outro fantasma de outrora na opção “ortodoxa” implícita na escolha dos responsáveis pela economia no segundo mandato, como se coubesse aos liberais (em economia) a execução do trabalho sujo de cortar gastos, impor disciplina e refrear apetites excessivos. Economia e política se implicam mutuamente, uma vez que esta fórmula, inspirada muito provavelmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, busca acenar para a repetição de medidas tomadas no começo acidentado do primeiro governo do ciclo petista, ainda em 2003 e 2004, antes que a bonança 8


mundial, especialmente aquela made in China, contribuísse para inflar a popularidade do então governante. Ressurge também aqui, nesta manobra “maquiavélica”, que parece ter sido tomada menos por convicção ou virtude e muito mais por cega necessidade, a velha sombra que paira sobre a presidente Dilma Rousseff, não raras vezes vista como signo de interinidade imposta pela regra constitucional, à espera de que, mais adiante, volte o autoproclamado Pelé da seleção petista. Uma manobra, em suma, que nos distancia de modelos presidenciais, como o norte-americano, em que se veda a recondução do presidente após dois mandatos, e nos aproxima perigosamente de republiquetas em que nunca se sabe se estamos lidando com o detentor de mandatos, legítimos mas provisórios, ou com a identidade metafísica da nação, encarnada em determinado personagem e seu lastro carismático. E por último, mas não em último lugar, esqueleto de dimensões desconhecidas, mas certamente assustador até para a imaginação dos mais audaciosos romancistas, é o que tem vindo à luz com a ação autônoma – autonomia constitucionalmente garantida, não concedida pelo soberano – de órgãos do Estado a propósito da mistura explosiva de empreiteiras, obras públicas, propinas e partidos políticos. Neste ponto, muito vai ser exigido das oposições democráticas (a social-democracia de Fernando Henrique, Aécio Neves e José Serra, os representantes históricos do PMDB, a nova formação de Marina Silva, os socialistas democráticos do PSB e do PPS, entre outros): diante de uma possível crise de todo o sistema de partidos, à semelhança da operação italiana das mãos limpas, convém atenuar arroubos retóricos e agir com serenidade, preservando sem ambiguidades a legalidade democrática e contribuindo, na medida do possível – e do impossível –, para a permanente reconstrução das instituições, entre as quais um sistema partidário orgânico, à luz da Carta de 1988. Boa leitura!

Os esqueletos pós-eleitorais

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I. Tema de Capa: Tempo de Batalha Democrรกtica


Autores Augusto de Franco

Cientista político, especialista em redes sociais, em desenvolvimento local e sustentável .

Jarbas de Holanda

Jornalista, autor do blog mail de análise política semanal .

Maurício Rudner Huertas

Jornalista, é editor do Blog do PPS (www .23pps .blogspot .com) .

Zander Navarro

Sociólogo, é professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul .


Um golpe de Estado em doses homeopáticas Augusto de Franco Entenda a estratégia de conquista de hegemonia do PT Uma degeneração do estado democrático de direito em doses homeopáticas

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É

exatamente isto que está acontecendo. E não vemos porque tudo está sendo feito em doses homeopáticas. Por isso estamos sendo lenientes. Por isso permitimos que mais de uma centena de crimes cometidos pelos governantes – crimes que em qualquer país democrático do mundo levariam à queda do governo – permanecessem impunes. Não, não é uma conspiração. É uma ação continuada. No seu conjunto, estes crimes configuram um atentado à democracia. Acompanhem-me, por favor: Em 2004, tivemos os “casos Waldomiro-Dirceu” e “GTech”. Ali já tinha emergido a ponta do iceberg. Com exceção de Dirceu (e não por esse crime) todos os envolvidos do PT estão soltos, Waldomiro Diniz está solto e o computador do Palácio do Planalto que ele usava sumiu, ninguém sabe, ninguém viu. Em 2005, tivemos a “Corrupção nos Correios”, o “Mensalão”, os “Dólares na cueca” e a “República de Ribeirão”. Com exceção de Dirceu, Genoino e Delúbio, todas as dezenas ou centenas de operadores do PT, além do grande chefe, estão soltos. Depois da confissão de Duda Mendonça de que recebeu dinheiro no exterior para fazer a campanha presidencial de 2002, Lula não poderia continuar no governo. Mas as oposições botaram panos quentes e salvaram o chefe petista do naufrágio. Em 2006, tivemos a “Quebra do Sigilo do caseiro Francenildo” e os “Aloprados”. Todos os petistas que violaram a Constituição neste episódio estão soltos. Nenhum dos aloprados (homens da cozinha de Lula) está preso. Ficou tudo por isso mesmo e os criminosos permaneceram livres para cometer novos (e semelhantes) crimes. Em 2007, tivemos sucessivos “Renangates”. Renan foi salvo do pior pelo PT e continuou solto para voltar a delinquir. Em 2008, tivemos o “Escândalo dos cartões corporativos da Presidência” e o “Dossiê contra Ruth”. Como sempre, nada se apurou e ficaram todos soltos para reincidir.

Em 2009, tivemos o “Caso Lina Vieira” e nada foi esclarecido. Em 2010, tivemos o horroroso “Caso Bancoop” e o “Caso Erenice”, e os responsáveis por tão graves desvios não apenas não foram punidos, mas foram premiados com postos de direção no partido e no governo.

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Augusto de Franco


Em 2011 e 2012, tivemos vários escândalos envolvendo os Ministérios do Esporte, do Trabalho e da Pesca. Ficou tudo por isso mesmo. Em 2013, tivemos a “Máfia do ISS”. Em 2014, tivemos, na “Operação Lava Jato”, a revelação de que, há anos, na continuidade do “Mensalão”, o mesmo esquema de financiamento de partidos e atores políticos com dinheiro do crime (e com muito mais dinheiro) se manteve, agora com o “Petrolão”. É claro que os crimes aqui apresentados são apenas os mais notórios que vieram à luz. O sentido geral, de conjunto, dessa ação continuada, qual é? Em primeiro lugar, é privatizar a esfera pública, degenerando as instituições estatais e saqueando as empresas públicas para apoiar e financiar o projeto de poder de um grupo privado. Em segundo lugar, é falsificar a correlação de forças emergente das urnas. O PT conformou uma ampla base de apoio parlamentar, mas não se trata de uma base aliada (como seria normal em uma democracia) e sim de uma base alugada com dinheiro do crime. Isso é um ataque direto ao coração da democracia representativa. A vontade popular é fraudada quando se compra eleitores e também quando se compra eleitos. O objetivo geral dessas ações é erigir um Estado-partido autocrático dentro do Estado democrático de Direito. Isso é uma violação do espírito e da letra da Constituição Federal. Isso é um golpe de Estado, não dado de uma vez, por um movimento de força brusco, repentino, mas por ações continuadas, em doses homeopáticas, pacientemente, durante 12 anos.

Não se pode argumentar que foram atos isolados, pois que durante todo o tempo os chefes – Lula (solto) e Dirceu (depois preso) – continuaram comandando o esquema. Durante 12 anos, o que eles fizeram? 1) Instalaram quistos partidários em todas as instituições do Estado, convertendo tais instituições em palcos de disputa maioria x minoria, degenerando-as e transformando-as em extensões partidárias. Com mais alguns (poucos) anos, das instituições (públicas) vai restar apenas a casca: seu funcionamento virará mera encenação de decisões que já foram tomadas em outro lugar (privado).

Um golpe de Estado em doses homeopáticas

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2) Governamentalizaram as agências reguladoras (que eram entes estatais, não governamentais) para colocá-las à mercê do partido do governo e de seus aliados. 3) Aboliram a prestação pública de contas para as centrais e outros órgãos sindicais que foram transformados em correias-detransmissão do partido do governo. 4) Tomaram de assalto os Fundos de Pensão e espoliaram o Fundo de Amparo ao Trabalhador, para usá-los como aparelhos partidários para travar lutas em prol de mais controle do Estado. 5) Criaram uma imensa rede clientelista de organizações da sociedade civil favoráveis ao governo por meio de financiamento, fomento, apoio ou patrocínio seletivos (só para as que apoiam o PT e seus aliados) de órgãos governamentais e empresas estatais. 6) Decretaram a criação de uma Força Nacional de Segurança Pública, como organização militar centralizada e subordinada ao governo (e não como órgão de Estado, como exige a sua natureza). Isso foi feito de modo oblíquo pelo Decreto 5.298, de 2004 (que institui a FNS – embrião de uma guarda pretoriana –, chamando-a eufemisticamente de “programa de cooperação federativa”). 7) Articularam uma nova edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) para usar os direitos humanos como arma na luta político-ideológica de grupos privados subordinados ao PT que almejam conquistar hegemonia sobre a sociedade, a partir da ocupação do aparelho de Estado. 8) Implantaram (pelo Decreto 8.243) uma Política Nacional de Participação Social, cujo objetivo é subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado pelo partido e usar os “movimentos sociais” – que são, na verdade, organizações hierárquicas e autocráticas que atuam como correias de transmissão do PT – para cercar a institucionalidade vigente no Estado de Direito.

9) Violaram a tradição da política externa brasileira de não-alinhamento ideológico para editar uma política partidária, ditada por um assessor palaciano sobre a cabeça do Itamarati, associando o Brasil à protoditaduras e ditaduras em todo o mundo (financiando Cuba e os países bolivarianos inclusive) e namorando indecentemente com o bloco sujo político-ideológico e militar – capitaneado pelo neoditador Putin – que almeja reeditar a guerra fria. 10) Estão tentando articular uma conversão da democracia brasileira em democracia plebiscitária, de estilo chavista, com 16

Augusto de Franco


propostas autoritárias de plebiscitos e referendos controlados pelo PT e por menos de uma centena de “movimentos sociais” que atuam como braços do partido na sociedade, para realizar uma reforma política que: a) concede ao presidente (o líder, o führer) o direito de convocar plebiscitos impositivos; b) institui a partidocracia (voto em lista partidária fechada e pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal de campanha); e c) estabelece o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. O conjunto dessas ações continuadas ao longo do tempo (tempo conseguido com a abolição – na prática – da rotatividade ou alternância democrática), configura claramente um golpe de Estado. Esse golpe não está acontecendo por meio de uma guerra de movimento (lenineana), mas sim por meio de uma guerra de posição (gramsciana). O objetivo final é conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido. Mas o Estado em questão não será mais o Estado democrático de Direito. Terá sido transformado, ao longo do tempo, homeopaticamente, em Estado autocrático do partido. Não há nada de revolução aqui. Todas essas iniciativas são contrarrevolucionárias. Elas consagram mais-hierarquia e mais -autocracia, mais-comando e mais-controle, mais-obediência e mais-subordinação e não mais-liberdade. Do fundamental, está tudo aqui. Tudo o que o PT precisa é de mais quatro anos agora para amarrar as pontas que ficaram soltas e completar o processo nos oito anos seguintes (com a volta de Lula). Se a democracia brasileira deixar isso acontecer será quase impossível remover o PT do governo – e do poder – pelo voto. Estamos diante de uma nova geração de golpes de Estado. Dirigentes e militantes petistas fazem-se de desentendidos. Fingem que não sabem que as eleições podem ser usadas contra a democracia. Fazem ouvidos moucos quanto a isso para poder absolver todos os regimes autoritários que se instalaram aplicando a nova estratégia da autocratização no século 21: ganhar eleições democraticamente para obter um aval para não governar democraticamente. Com isso não veem nada de mais no que fizeram Chavez e Maduro, Evo, Correa, Ortega, Putin (Erdogan e muitos outros estão na fila), os quais, chegando ao governo pelo voto, degeneram as instituições para falsificar a rotatividade democrática e se prorrogar no governo o tempo suficiente para conquistar o poder. Um golpe de Estado em doses homeopáticas

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Parece tão simples. Mas boa parte das pessoas ainda não viu que isso é um golpe de Estado, não de uma vez, pela força, pela guerra de movimento, como se fazia nas revoluções ditas socialistas (como a cubana, a angolana, a moçambicana) ou nos golpes militares reacionários das décadas de 1970-80 do século 20 e sim pela guerra de posição, pelo aparelhamento do Estado, pela conquista de maioria em todas as instâncias públicas (sobretudo do Legislativo e do Judiciário), pela ereção de esquemas de banditismo de Estado e pelo uso da corrupção como método (para financiar as operações de conquista de hegemonia sobre a sociedade). Estamos diante de uma nova geração de golpes de Estado, a dos golpes de Estado em doses homeopáticas. A nova realidade exige mudanças de concepção e de prática no campo dos que se opõem às forças políticas que aplicam a nova fórmula de se prorrogar nos governos o tempo suficiente para tomar o poder. Em termos práticos é preciso reconhecer que: •

O atual governo não poderá ser removido sem contínua resistência democrática da sociedade. Não basta a oposição parlamentar e eleitoral.

Nenhum grupo autocrático organizado e socialmente enraizado que chegou ao poder pelo voto, saiu do poder apenas pelo voto. Pesquisem: não há um só caso na história.

Em democracias representativas, tudo tem que desembocar em eleições. Mas desembocar não é começar. Sem resistência democrática, nada feito!

E sem uma oposição popular, independente dos partidos e das suas conveniências, nada feito também. Não há saída, fora da democracia. Mas democracia não se reduz ao jogo parlamentar e eleitoral. Manifestações pacíficas contra o governo são legítimas.

Ações de desobediência civil e política a um governo que está perdendo legitimidade também são legítimas. Nenhum governo é legítimo só porque foi eleito. A legitimidade democrática tem outros requisitos (alem da eletividade: a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade) e vários desses critérios democráticos estão sendo violados pelo atual governo. Fazer oposição – resistindo na sociedade e não apenas nos parlamentos e nas urnas – a um governo (qualquer governo) é 18

Augusto de Franco


igualmente legítimo. Nas democracias, a oposição é tão legítima quanto a situação. E a resistência democrática na sociedade é tão legítima quanto a oposição parlamentar e eleitoral. Uma resistência democrática está se formando no Brasil e, no seu bojo, uma oposição independente está surgindo. Essa oposição popular nascente não está atrelada a nenhum partido (dito de oposição), nem está caindo na armadilha de se deixar aprisionar na contraposição PT x PSDB (que é manipulada pelo PT para permanecer indefinidamente no poder cometendo crimes para atropelar a democracia brasileira). Sem abandonar os partidos, a atividade parlamentar e as disputas eleitorais, é nisso fundamentalmente – na resistência democrática e na oposição popular – que devemos apostar se quisermos interromper a implantação da estratégia petista de conquista de hegemonia sobre a sociedade brasileira a partir do Estado controlado pelo partido.

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Rombo fiscal, petrolão, choque PMDB/PT e oposição forte Jarbas de Holanda

O

vale-tudo da campanha réeleitoral da presidente Dilma (do salto dos gastos com programas assistencialistas e benefícios fiscais seletivos até a grosseira “desconstrução” dos adversários e a disseminação do fantasma do medo aos beneficiários desses programas de que eles seriam extintos se a chefe do governo não ganhasse) foi eficaz para a conquista de uma vitória apertada no 2º turno. À frente, porém, a Dilma2 tem obstáculos igualmente complicados para o exercício do segundo mandato, que começam com o imperativo de respostas à verdadeira herança maldita recebida dela mesma no plano da política econômica e de sua gestão e desdobra-se em grandes dificuldades na área propriamente política. Nesta, o Executivo junto com expoentes de sua base parlamentar de apoio e figuras emblemáticas do lulopetismo deverão ser afetados por sérios efeitos das delações premiadas do megaescândalo do petrolão.

Neste cenário, a presidente, de um lado, vai relacionar-se, ou depender de um Congresso hostil ao hegemonismo e à agenda autoritária de seu partido, e, de outro, se defrontará com uma oposição fortalecida, a partir de um PSDB revigorado, ao lado de um novo bloco formado pelo PSB, PPS, PV e Solidariedade, ambos em condições de assumir a iniciativa de ações importantes de fiscalização do custoso, ineficiente e corrupto gigantismo da máquina federal, bem como de defesa da institucionalidade democrática (com destaque para a liberdade de imprensa). No plano da economia, temos a inflação no teto da meta oficial (com a dos serviços e de alimentos básicos, como a carne, em torno dos 8%) e o PIB caminhando para zero (com forte queda dos investimentos e estagnação de atividades produtivas essenciais). Logo nas primeiras semanas após o pleito, assistimos à explosão dos custos econômicos e sociais da referida herança, traduzida na sequência, quase diária, de dados macro e microeco20


nômicos altamente negativos. Destaque-se que esta sequência, que se iniciou com o aumento dos juros básicos, para 11,25%, considerada insuficiente pelo mercado financeiro e, de pronto, gerando crescimento das taxas das diversas modalidades de crédito bancário, prosseguiu com o déficit recorde das contas públicas, o primeiro desde o Plano Real e que inviabiliza o cumprimento da meta, já bem pequena, do superávit primário de 1,9% do PIB (o que, agora, o governo tenta disfarçar com manobras contábeis que agravam a falta de credibilidade no plano doméstico e junto às Agências Internacionais de Risco). Acrescente-se que esta terrível sequência continuou com outro déficit também preocupante: o da balança comercial, em outubro, de US$ 1,2 bilhão, basicamente reflexo da perda de competitividade da indústria brasileira e de sua marginalização das modernas cadeias globais de produção e de comércio, e ainda envolveu mais uma queda, mensal, das atividades da indústria, elevando para 2,9% o recuo delas ao longo de 2014. E se estendeu a uma piora das condições das famílias que vivem abaixo da linha da pobreza, com crescimento do número de indigentes, que passou de 10.081.225, em 2013, para 10.452.383, em 2014, segundo pesquisa do Ipea, e um avanço do desmatamento na Amazônia de 122% a mais nos meses de agosto e setembro, em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, ambas com divulgação matreiramente retardada para depois do segundo turno das eleições. A tudo isso devemos somar o anúncio, e o preparo, de medidas tornadas inevitáveis pelo descalabro fiscal: o aumento dos combustíveis e de tarifas ainda represadas de energia elétrica e cortes de programas de obras na infraestrutura pesada e urbana, além da recriação ou elevação de tributos. A maior parte das ações, desencadeadas pelo aumento dos juros, constitui um ostensivo estelionato eleitoral da candidata petista que considerava a inflação e as contas públicas sob completo controle, e acusava o adversário Aécio Neves (como antes, Marina Silva) de preparar “um pacote de medidas contra os trabalhadores e os pobres”. Nas esferas política e institucional, cabe destacar, além dos desdobramentos das delações premiadas do petrolão, a postura do PMDB – da liderança da bancada e da Presidência da Câmara – de aprovar, na Comissão de Constituição e Justiça, emenda constitucional que atribui ao Legislativo o controle da definição e do encaminhamento de uma reforma política; a votação, ao longo de novembro, no Senado, do projeto (já aprovado na Câmara) que 21


anula o decreto presidencial dos “conselhos populares”; a articulação da candidatura de Eduardo Cunha à Presidência da Câmara (à qual se contrapõem o PT e o Palácio do Planalto); e a afirmação de Aécio Neves, como líder de uma vigorosa oposição. Quanto ao papel do PMDB, no segundo mandato de Dilma, as evidências de uma troca à vista da subordinação ao Executivo, predominante nos primeiros quatro anos, por uma relação autônoma, manifestaram-se logo na forte resistência oposta na convenção partidária (realizada no meio deste ano) à reeleição da presidente, por parte de mais de 40% dos delegados presentes. Adensaram-se, durante a campanha eleitoral, nos conflitos com os petistas na maioria dos palanques e com apoio final de vários diretórios estaduais à candidatura oposicionista de Aécio Neves. Da mesma forma, após o pleito de 26 de outubro, a bancada peemedebista da Câmara, respaldada por vários senadores, passou a trabalhar o reequilíbrio eleitoral e político do país entre o governo e a oposição, no sentido de uma atuação contraposta à do PT e sem subordinação ao Executivo. Constata-se que começam a crescer as alternativas de uma candidatura própria do partido ou uma aliança com a oposição na disputa presidencial de 2018. Quanto à oposição, a ampla legitimidade política e social ganha nas campanhas de Marina Silva e de Aécio Neves, combinada com os graves problemas da gestão passada e nova de Dilma Rousseff e o desgaste do petismo, conferem ao senador Aécio Neves e às lideranças dos partidos oposicionistas que lhe apoiaram um bom espaço de protagonismo político-institucional e de atuação na sociedade, inclusive para negociação qualificada com o governo. Espaço que eles não tiveram ou puderam ocupar ao longo dos três últimos mandatos presidenciais.

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Jarbas de Holanda


A tragédia petista em três tempos

Zander Navarro O passado Nos anos 1980, contribuí mensalmente com parte do meu salário para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os depósitos duraram de dois a três anos, quando a campanha foi encerrada, por falta de adesão. Por que fiz isso? Naqueles anos, saindo do ciclo militar e ansioso pela democracia, ingenuamente entendi ser o MST uma força que renovaria a oligárquica política rural. Como os seus militantes passaram a ameaçar as famílias em assentamentos, o sonho desmoronou e retornei à vida universitária. Na época, quase todos nós apoiávamos o PT, mesmo não sendo filiados. Imaginávamos que o partido também forçaria transformações em alguma direção positiva. Ou a reforma social ou, ao menos, a democratização da sociedade. Vivíamos então um período febril de debates plurais e de experiências práticas. Lembram-se do “modo petista de governar”? Era simbolizado pelo orçamento participativo, que prometia a livre participação dos cidadãos em decisões públicas sobre os orçamentos municipais. Na campanha de 2002, contudo, o candidato petista mal falou do assunto e, no poder, o tema se esfumaçou. O assombroso escândalo da Petrobras, que nos deixa estupefatos, é apenas o efeito inevitável da história do Partido dos Trabalhadores. A causa original é um mecanismo que o diferencia das demais agremiações partidárias. Trata-se de um processo de mobilidade social ascendente, inédito em sua magnitude. Movimento que poderia ser virtuoso, se aberto a todos, pois seria a consequência do desenvolvimento social. Mas, na prática, vem sendo uma odiosa discriminação, pois é processo atado à filiação partidária. O núcleo pioneiro do PT recrutou segmentos das classes baixas e mais pobres, mobilizados pelo campo sindical, pelos setores radicalizados das classes médias, incluindo parte da intelectualidade, e pela esquerda católica, ampliando nacionalmente o grupo 23


petista inicial. À medida que o partido, já nos anos 90, foi conquistando nacos do aparato estatal, vieram os cargos para os militantes e, assim, a chance arrebatadora de ascender às vias do dinheiro, do poder, das influências e do mando pessoal. Esse foi o degenerativo fogo fundador que deu origem a tudo o que aconteceu posteriormente. Inebriados, cada vez mais, pelo irresistível prazer do novo mundo aberto a essas camadas, até mesmo impensáveis formas de consumo, todos os sonhos fundacionais de mudança foram sendo estilhaçados ao longo do caminho, incluídos a razoabilidade e os limites éticos. O PT gerou dentro de si uma incontrolável ânsia de mobilidade, uma voragem autodestruidora inspirada na monstruosa desigualdade que sempre nos caracterizou. Conquistado o Planalto, não houve nem revolução nem reforma e o fato serviu, particularmente, para saciar a fome histórica dos que vieram de baixo. Instalou-se, em consequência, o arrivismo e a selva do valetudo: foi morrendo o padrão Suplicy e entrou o modelo Delúbio-Erenice. Logo a seguir, ante a inépcia da ação governamental, também foi necessário impor a mentira como forma de governo. Por fim, o PT mudou de cabeça para baixo o seu próprio financiamento. Abandonou o apoio miúdo e generoso dos milhões que o sustentaram na primeira metade de sua história, pois se tornara mais cômodo usar o atacado para ancorar-se no poder. Primeiro, o mensalão e, agora, os cofres da Petrobras. Nessa espiral doentia de mudanças, a partir de meados dos anos 1990, o partido enterrou o seu passado. Sua capacidade de reflexão, por exemplo, deixou de existir e o imediatismo passou a prevalecer. Assim, um projeto de nação ou uma estratégia de futuro não interessavam mais. O pragmatismo tornou-se a máxima dessa nova elite e sob esse caminho o subgrupo sindical e seus militantes vêm pilhando o que for possível dentro do Estado. Examinados tantos escândalos, invariavelmente a maioria veio do campo sindical. E foi assim porque da tríade original dos anos 80, a classe média radicalizada e os religiosos abandonaram o partido. Deixaram de reconhecê-lo como o vetor que faria a reforma, sobretudo moral, da política brasileira. Entrando neste século, o PT não tinha nada mais para oferecer de distintivo em relação aos demais partidos. O que vemos atualmente é a soma dessa descrição com as nossas incapacidades políticas de construção democrática em favor do bem comum. O PT é hoje uma neoArena que promove, 24

Zander Navarro


sobretudo, o clientelismo nos grotões. Não aqueles definidos geograficamente, mas os existentes nos interstícios sociais, confundindo as pessoas por meio da mentira, do bolsismo e das mistificações de toda ordem. É uma trajetória vergonhosa para um partido que prometeu a lisura republicana, o aprofundamento democrático, a reforma de nossas muitas iniquidades e, especialmente, prometeu corrigir a principal deformação de nossa História, que é um padrão de desigualdade que nos infelicita desde sempre. É ação que igualmente vem abastardando o Estado, atualmente tornado disfuncional e semiparalisado em inúmeros setores. O presente Permitam-me apresentar-lhes uma equação que possa revelar as principais variáveis de sustentação do campo petista. Quem sabe, assim, entenderemos os ingredientes que explicam o seu continuado êxito eleitoral. Na analogia com a Matemática, seriam muitas as variáveis a desvendar. Algumas surpreendem, como a espantosa passividade de nosso povo, sujeitando-se às corriqueiras manipulações do sistema partidário, comportamento que inclui até cientistas sociais com elevada formação. Mas outras variáveis não são inesperadas, como o uso do Estado com fins primordialmente partidários ou a ocorrência dos absurdos gastos com propaganda. São fatos que tornam remotos os ideais republicanos que nos deveriam orientar. A meu ver, duas constantes e uma incógnita também compõem a equação, todas demonstrativas do crescimento do campo petista, especialmente nos anos pós-Constituinte e no curso da democratização do país. A primeira delas diz respeito à capacidade de elevar ininterruptamente o caudal de votos destinados ao partido. Numa democracia eleitoral, o acesso ao poder e ao Estado requer maiorias em eleições regulares. Aqui, o mecanismo decorreu da sorte circunstancial do campo petista, que foi a explosão contemporânea da expressão participação social. Esta surgira pelas mãos da clássica teoria democrática pluralista, definida, em especial, por autores norte-americanos, como Robert Dahl e outros, nos anos 1970. Mas foi expressão tornada obrigatória apenas na década de 1990, em quase todo o mundo. Ideólogos petistas, entretanto, dela se apropriaram, tornando-a (falsamente) uma prerrogativa da tradição da esquerda.

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Participação social tornou-se o fulcro da propaganda do partido, prometendo que os cidadãos teriam poder decisório sobre as coisas públicas, um sonho de teorias democráticas que a esquerda petista, espertamente, vendeu como criação sua. Foi assim com o Orçamento Participativo, a grande bandeira do partido naqueles anos, e tem sido da mesma forma com a multiplicação de conselhos. Tal ideal participativo irradiou-se para várias áreas, unindo uma narrativa irresistível, pois abriria o Estado à voz dos cidadãos, porém combinada a uma camuflada ação partidária capaz de capturar, cada vez mais, currais eleitorais e, ao fim, mais votos. A presidente reeleita conhece bem esse mecanismo: seu antigo abrigo, o PDT, era o principal partido em Porto Alegre, mas foi varrido do mapa pelo Orçamento Participativo, o qual cooptou as lideranças dos bairros, recrutando-as para o guarda-chuva petista. Conselhos e Conferências Nacionais, somados à oferta de todos os tipos de bolsas: nada disso tem alguma coisa que ver com a venezuelização e menos ainda com a democratização do Brasil. Relaciona-se, exclusivamente, à conquista do Estado por meio de um processo de clientelismo partidário sem precedentes em nossa História. A segunda constante da equação se chama corrupção. Nenhum partido sobrevive sem dinheiro, é preciso financiar seu funcionamento, com custos cada vez mais altos. Os fatos atuais, divulgados em escala crescente, emudecem a cidadania, perplexa com a ousadia de um partido que antes pregava a correção ética, à exaustão. O assalto à Petrobras torna tal escândalo o maior já registrado e, simultaneamente, marca o PT como o partido mais corrupto da História brasileira. Como responder à colossal transferência de recursos públicos para garantir o sucesso de um partido? E lembremos, pois é gigantesca a crueldade política: o escândalo incide sobre uma sociedade desigual como a nossa, na qual prevalece uma estrutura regressiva de tributos, prejudicando os mais pobres. Como um partido autointitulado de esquerda se pode envolver nesse inominável crime? E assim chegamos ao terceiro elemento e que diz respeito à incógnita da equação. Ou pelo menos assim aparece, pois ainda não foi decifrada – qual o objetivo finalístico de tudo isto? Há no horizonte de longo prazo um projeto para o Brasil ou um plano para reconfigurar a nação que igualmente descreva a estratégia do jogo? 26

Zander Navarro


A resposta a essas indagações realça a maior de todas as vilanias, pois esses objetivos são inexistentes. Deixo o desafio: que alguém aponte algum documento de alguma significação mais substantiva, com a assinatura do Partido dos Trabalhadores, no qual esteja delineado um cenário de transformações para o Brasil. Como afirmei anteriormente, o partido tem sido incapaz de sequer refletir sobre o país, apontando os desafios e as mudanças que nos fariam uma nação próspera e justa. Conformou-se com as delícias do poder, do consumo e do dinheiro produzidos pela ascensão social de seus operadores. O futuro Pouco mais de três décadas após a sua fundação, o PT ostenta a maior bancada no Congresso Nacional e mobiliza impressionante número de filiados. Sobretudo, responde por um feito extraordinário, que são os quatro mandatos presidenciais conquistados. Sua importância é inquestionável: sem sua ativa presença e de seus militantes, como seria a democracia em nossos dias? Que Constituição teríamos, sem a feroz ação petista na preparação da Lei Maior, sendo o conservadorismo uma das marcas pétreas do sistema político? Em teoria social, elaborar previsões significa pisar no escuro, pois os humanos são um tanto imprevisíveis. A ponderação de fatores intangíveis, como os culturais, e a leitura do devir das sociedades (ou de partidos) são um exercício mais intuitivo do que científico. A lógica foge por entre os dedos. Em meio à gigantesca crise da Petrobras, comprometendo a empresa e a economia brasileira em proporções abissais, como entender que a popularidade da presidente se mantenha elevada? Ela coordenou o conselho de administração, foi ministra e observou o aparelhamento da empresa: não teria visto a instalação dos condutos financeiros espúrios destinados aos partidos, o PT em particular? Como explicar que significativa proporção dos brasileiros não consiga estabelecer relações causais banais e imediatas em suas avaliações sobre os personagens da política e do Estado? Como interpretar que uma parte considerável de nosso povo acredite piamente que “Lula não sabia, Dilma não sabia, Graça não sabia”? Nem a melhor Sociologia do planeta explica a persistência dessas percepções sociais. Seríamos, enfim, como insistem os antropólogos, uma sociedade caracterizada por essencialidades particularíssimas, sem A tragédia petista em três tempos

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comparação com outros povos. Um caldo constante de autoengano e a opção preferencial pelo pensamento mágico, misturado com um catolicismo antimoderno de fundas raízes. E nosso tamanho e insularidade adicionariam outro ingrediente: a ignorância sobre o mundo e, como forma de alívio mental ante o desconhecido, a hostilidade em relação a tudo o que não seja parte dos hábitos locais, supervalorizados em face de nosso atraso. Em síntese: uma sociedade infantil e paroquial, presa facílima para os espertalhões da política. Como professor universitário e pesquisador, conheci de perto os três grupos sociais que principalmente formaram o campo petista. Primeiro, os religiosos católicos influenciados pela Teologia da Libertação. Portadores de dogmas petrificados em mais de 2 mil anos, depois misturados a um marxismo primário. Conduziam a verdade absoluta sobre tudo e, quando contrariados, se recusavam ao debate que os distanciasse do engessamento dogmático que faz o catolicismo tão bem-sucedido. Mas algo inaceitável para um partido político que precisa se ajustar à mutabilidade constante da política. Em segundo lugar, convivi (e ainda convivo) com os colegas das universidades e do mundo da pesquisa atraídos para a política. No geral, com as exceções louváveis de sempre, tem sido uma experiência melancólica, pois muitos, incrivelmente, se recusam a raciocinar, quando esta seria a âncora principal de sua atividade como intelectuais e cientistas. Aceitam com passividade o obscurantismo e as tortas explicações dos caciques partidários. Algum dia, quando um historiador escrever sobre as relações entre os professores universitários, os pesquisadores e o campo petista, concluirá sobre o patetismo desses anos: haverá até a filósofa que pretendeu explicar Spinoza e terminou amaldiçoando a classe média, enquanto escrevia livros de culinária. O terceiro grupo é o dos sindicalistas. Aqui, sem outros detalhes que seriam saborosíssimos, basta um: dirigentes e militantes sindicais se movem por um só vetor, o pragmatismo deformado. Sua única razão é a prática imediata. Sendo conduzidos por uma ótica (não uma ética) estritamente do momento, as interpretações, passadas e futuras, são irrelevantes, até desprezíveis. Movem-se somente pelo presente e, por isso, jamais são progressistas. A meta é apenas garantir poder, dinheiro, influência e o mandonismo como grupo. E o pragmatismo tem um segundo preceito: para ser dominante no presente, vale qualquer meio, pois o objetivo final o justifica plenamente. 28

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Na história do campo petista, as relações entre os religiosos, os intelectuais e os sindicalistas produziram a vitória inconteste dos últimos. Como estão amarrados ao presente, o PT jamais poderá ser de esquerda, pois esse é ideário que supõe o porvir. Por isso, o desenvolvimento do campo petista, desde meados dos anos 90, nada tem de distinto, se comparado com os demais partidos. E nem terá no futuro. Por quê? É simples: o futuro é antevisto e antecipadamente construído com exercícios sistemáticos de reflexão sobre os fatos e a produção de cenários possíveis. O PT não faz mais esse esforço estratégico, há quase 20 anos, nem tem mais quadros técnicos à disposição para essa operação. Rendeu-se à razão pragmática do presente, e por isso nada tem de inovador a propor, recorrendo, cada vez mais, à empulhação para justificar-se. Não obstante a complexidade da tarefa, não é difícil, portanto, de prever o futuro do PT. Será o mesmo dos demais partidos, imersos na mesmice mistificadora que todos já conhecem. Desta forma, a pergunta passa a ser outra: algum outro campo político reavivará as esperanças dos brasileiros?

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Os 125 anos da República e as ameaças à democracia Maurício Rudner Huertas Assistimos até então resignados à deterioração da política, ao total descrédito dos partidos e ao abalo das utopias de esquerda com o fiasco do PT nos governos de Lula e Dilma, que vem cometendo atentados sucessivos aos princípios democráticos e aos valores republicanos, tem seus principais líderes envolvidos em esquemas de corrupção e atua cotidianamente para o aparelhamento do Estado e a perpetuação no poder, a qualquer custo. Mas, cidadãos brasileiros começam a demonstrar um nível crescente de descontentamento e preocupação com os destinos da democracia. Não são as vozes tradicionais dos partidos nem a representação pronta e acabada de uma ideologia. Também não se trata simplesmente de ser anti-petista para marcar posição ao reafirmar as divergências com os atuais inquilinos do governo federal. Há um desejo insurgente para dar um basta à bandalheira na política e iniciar rapidamente a era “pós-PT” no Brasil.

Defensores do governo petista apontam nesta oposição, cada vez mais ruidosa e numerosa, uma motivação meramente eleitoral. Seria um suposto “terceiro turno” que os derrotados na eleição presidencial tentariam impor, alheios ao ordenamento democrático e republicano. Será? Cá entre nós, não seria o contrário? Como expressar este sentimento emanado de cada um daqueles que ajudaram a construir a história da democracia no Brasil, dentro ou fora da política institucional, e preservam vivo o espírito de luta pelas liberdades e pelos direitos individuais e coletivos? Devemos combater, sem receio, essa ameaça monstruosa do esquerdismo bolivariano e assumir o compromisso de ter como bandeiras permanentes da esquerda democrática a equidade e a justiça social. Formar verdadeiramente uma frente de partidos, instituições e cidadãos que tenham como prioridade a defesa dos princípios consagrados da liberdade, da igualdade e da fraternidade, além do respeito à diversidade da nossa gente, da sustenta30


bilidade (econômica, social e ambiental), do Estado democrático de direito e da participação direta dos cidadãos na política. Por que, então, é importante consolidar (sem nenhum ranço saudosista de décadas passadas) este novo movimento democrático de esquerda, ou uma frente da esquerda democrática contemporânea? Primeiro, é fundamental esclarecer que os métodos e as práticas do PT, nesses 12 anos de (des)governo, em que pese todo o sucesso do seu marketing sócioeleitoral de defesa dos pobres e oprimidos, na verdade apenas enxovalham o que se convencionou chamar de esquerda (em oposição também à direita mais tradicional) no Brasil. Porém, queiram ou não, há forças vivas da sociedade que permanecem à esquerda no espectro ideológico e político-partidário. Mas, atenção: não nos comparem com a esquerda de viés totalitário, que resiste feito um zumbi na América Latina pelas mãos de tiranetes reunidos hoje nesse convescote de viúvas do comunismo intitulado “Foro de São Paulo”. A nossa esquerda, ao contrário, mantém e valoriza o seu viés democrático e republicano. Em segundo lugar, a nossa vertente oposicionista já é bastante conhecida, mas precisamos ir além! As ruas, as redes e as urnas demandam um novo perfil para uma política diferenciada, mais plural, moderna, transparente, ética. Que, com esse espírito, a esquerda democrática também se renove e se reinvente na consolidação desta nova agenda emergente no Brasil e no mundo. Precisamos buscar a diferenciação do PT e a afirmação de quantos compõem a esquerda democrática como alternativa viável de poder nos municípios, nos estados e no país, estimulando e mobilizando a participação espontânea dos cidadãos, reposicionando as nossas lideranças no cenário político local e nacional, e possibilitando a construção de candidaturas (presidenciais, inclusive) competitivas e representativas, tal como ocorreu no pleito deste ano. A nossa atuação recente, tanto no Executivo quanto no Legislativo, mas principalmente durante o processo eleitoral de 2014, vem propiciando a reintrodução desta esquerda democrática como protagonista no debate político e resgatando princípios e ideais hoje simbolizados no conceito de uma “nova política”, que é reivindicada nas redes e nas ruas, para construir um programa alternativo ao dos partidos da atual coalizão governista e verdadeiramente identiOs 125 anos da República e as ameaças à democracia

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ficado com os cidadãos saturados do PT, reaproximando este novo movimento político das demandas populares e sociais. A independência e a autonomia dos poderes Aqui entramos em outro capítulo das ameaças à democracia e aos princípios republicanos, que precisamos combater: o funcionamento do Legislativo como mero “puxadinho” do Executivo é um caso típico. Deplorável! Será que as benesses do governo justificam o controle exercido sobre parte significativa dos parlamentares, numa interferência exagerada entre poderes que deveriam funcionar de forma independente? Por que o Legislativo parece sempre subordinado ao Executivo? Por que ocorre essa frequente chantagem de mão dupla entre mandatários eleitos democraticamente pelo povo, que transformam em moeda de troca o apoio necessário para garantir a maioria nos parlamentos? Este é o preço da “governabilidade”? O loteamento de cargos e a liberação de emendas, primeiro degrau na escala do desvirtuamento e da corrupção dos ditos “representantes do povo”, compensa todo esse desgaste, a desmoralização das instituições democráticas e a depreciação dos princípios republicanos?

Mas, espera lá, alguém realmente se importa em obstruir esses atalhos para a degeneração e a desmoralização da política, dos políticos, dos partidos e dos poderes constitucionais? Por que só uma minoria parece verdadeiramente indignada com o fato de um poder virar “puxadinho” do outro? Em São Paulo e em Brasília – ambas sob administração do PT – assistimos, neste final de 2014, a paralisação do Legislativo, imposta pela própria base descontente com o atendimento propiciado pelos atuais inquilinos do governo, não por acaso os detentores da “caneta” e das chaves dos cofres públicos. Note-se que, da Câmara Municipal ao Congresso Nacional, os parlamentares só exercem a prerrogativa de fiscalizar o Executivo como ameaça quando não se julgam atendidos a contento – até que, feitos os ajustes possíveis, as partes estejam satisfeitas ou uma delas ceda à pressão da outra.

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Maurício Rudner Huertas


Veja-se o caso de Dilma Roussef impondo mudanças na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) – na prática uma anistia para não responder por crime de responsabilidade –, como o time que evita o rebaixamento no tapetão ou as regras que mudam no meio de um campeonato, enquanto deputados e senadores aproveitam para medir forças e ampliar espaços num governo fragilizado. Era questão de tempo para a coalizão governista recompor a sua ampla e conivente maioria. Até lá, algumas poucas vozes da oposição seguiram denunciando os abusos cometidos e o funcionamento da Câmara e do Senado – controlados por PT, PMDB e satélites da base – feito um “puxadinho” da Presidência da República. Na Câmara Municipal de São Paulo, foi a mesma coisa. Vereadores governistas se rebelaram até que o prefeito Fernando Haddad – que precisava aprovar mais de 20 novas leis, entre elas o Orçamento de 2015, o aumento do IPTU e outras polêmicas caça -níqueis como a concessão de áreas públicas para exploração de estacionamentos – atendesse às suas reivindicações. Esse funcionamento como apêndice do governo é um desserviço para a democracia. Devemos reafirmar a independência e reconquistar a credibilidade do Legislativo. Precisamos garantir que, como já dissemos, da Câmara Municipal ao Congresso Nacional, as casas legislativas voltem a representar a maioria dos cidadãos, em vez de servirem à base cooPTada. Que o parlamento recupere a sua autonomia, o poder de fiscalização e de atuação em favor da sociedade. Que os senadores, deputados e vereadores deixem de atuar como meros despachantes do governo e voltem a fazer Política no sentido mais amplo, democrático e republicano. Parece-nos salutar rediscutir as instituições democráticas e os princípios republicanos à luz da história e do ideário dos partidos políticos brasileiros, sobretudo num momento em que há o enxovalhamento de toda a esquerda como reação à tomada de assalto ao poder pelo petismo, com seus métodos deploráveis e práticas criminosas. O governo Dilma – e seu ministério bambo à direita, em que não haverá calço ideológico que aprume – parece de fato ser um dos mais conservadores, desde o fim do período Collor.

Há dez anos, o PPS já apontava as contradições do governo petista, que deu continuidade à política macroeconômica do governo Fernando Henrique, sem fazer os avanços que prometera. Quando Lula estava no auge da popularidade, em 2004, sem que Os 125 anos da República e as ameaças à democracia

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ninguém o contestasse, no documento Sem Mudança Não Há Esperança, já pregávamos a correção de rumos do seu governo, e por não sermos sequer ouvidos abandonamos o seu barco. Dilma não é ruim por se declarar de esquerda ou de direita, mas por agir na contramão do que pregou durante a campanha. O PT não tem palavra, não tem programa, não tem projeto, salvo permanecer no poder. E, para se manter ali, coloca em prática aquilo que o motivou à reeleição: “Vale fazer o diabo”. Ante este quadro preocupante em que o país foi colocado, precisamos superar a forma tradicional de fazer política e buscar a incorporação das novas forças sociais, hoje dispersas, em um amplo movimento reformista, impondo ao Estado uma pauta centrada no desenvolvimento econômico e ambientalmente sustentável, equânime na distribuição da riqueza, e aos partidos o papel de interlocutores destes movimentos, coformuladores de suas reivindicações e seus tradutores na linguagem das leis e das políticas públicas.

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Maurício Rudner Huertas


II. Conjuntura


Autores Antonio Ribeiro

Mestre em Administração/UFBA e doutorando em Sociologia Econômica/ Universidade de Lisboa .

Gil Castello Branco

Economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas .

Patrícia Rangel

Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao projeto 50 Anos de Feminismo (1965-2015): Novos Paradigmas, Desafios Futuros. Argentina, Brasil e Chile (Universidade de São Paulo).

Zulu Araújo

Arquiteto, produtor cultural e ativista do movimento negro latino-americano .


Quem controla a Petrobras e as empresas estatais? Gil Castello Branco

A

cada novo escândalo envolvendo as empresas estatais, lembro-me de frase curiosa do diplomata e economista Roberto Campos: “A diferença entre a empresa privada e a empresa pública é que aquela é controlada pelo governo, e esta por ninguém”.

No Brasil, mesmo após tantas discussões sobre as privatizações, ainda existe uma centena de empresas estatais que empregam mais de meio milhão de funcionários e movimentam, anualmente, R$ 1,4 trilhão, montante superior ao PIB da Argentina. Apenas os investimentos do Grupo Petrobras no ano passado somaram R$ 99,2 bilhões, o dobro dos investimentos federais dos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). A conjunção de recursos volumosos, ingerência política e pouca transparência fizeram das estatais a Disneylândia dos políticos. Afinal, parafraseando Milton Nascimento na canção “Nos bailes da vida”, o corrupto vai onde o dinheiro está. O ex-deputado e hoje condenado, Roberto Jefferson, no seu livro “Nervos de aço”, referindo-se aos Correios, confessa: “... é evidente que as nomeações feitas pelo PTB se prendiam, sim, a uma estratégia de captação de recursos eleitorais. Nunca neguei isso”. Essa lógica parece ser a mesma da camarilha infestada na Petrobras para intermediar negócios entre empreiteiras, prestadoras de serviços e políticos. A cada contrato, 3% para a patota. Até o momento, réus que decidiram colaborar com as investigações da Lava Jato já se comprometeram a devolver aproximadamente R$ 170 milhões. O primeiro da fila da delação premiada, 37


o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, que confessou participar do esquema de corrupção deverá devolver mais de R$ 70 milhões. O doleiro Alberto Youssef irá restituir aos cofres públicos R$ 55 milhões. Volume expressivo de dinheiro deve ser devolvido também por outros “colaboradores”, entre eles o executivo Júlio Camargo, da Toyo Setal, que também decidiu fazer acordo de delação premiada. Os valores que ele irá recolher à União estão estimados em R$ 40 milhões. Os recursos recuperados devem aumentar ainda mais até o fim do processo caso algumas empreiteiras confirmem a intenção de fazer acordo de leniência. Ao que dizem, emissários de várias empresas já fizeram sondagens sobre possível acordo logo na primeira fase das investigações. A movimentação financeira irregular já identificada na operação Lava Jato chega a R$ 10 bilhões, oriundos não só do desvio de dinheiro público, mas também de tráfico de drogas e contrabando de pedras preciosas. A importância faz o mensalão (R$ 141 milhões) parecer roubo de galinha. De fato, as estatais são figurinhas carimbadas nos escândalos recentes. Com as eleições cada vez mais caras – e muitos ainda se valem dos pleitos para aumentar o próprio patrimônio – os partidos aparelham as empresas indicando “operadores” ou utilizam servidores de carreira filiados para viabilizar ganhos ilícitos em obras, contratos de prestação de serviços, aquisição de equipamentos ou, ainda, nos Fundos de Pensão. Quanto mais esses delinquentes “arrecadam”, mais são valorizados politicamente. Como consequência da interferência do governo, a Petrobras e a Eletrobras se apequenaram como “autarquias” vinculadas ao Ministério da Fazenda, reféns da política econômica. Na Petrobras, a contenção dos preços dos combustíveis, para empurrar a inflação com a barriga até depois das eleições, afetou o caixa e a rentabilidade da empresa. Na Eletrobras, as ações viraram “mico” após o subsídio ao uso das usinas térmicas e a redução das tarifas de energia. Em 2013, segundo cálculos do economista José Roberto Afonso, as duas estatais tiveram déficit primário de 0,71% do Produto Interno Bruto (0,09% para a Eletrobras e 0,68% para a Petrobras). Em conjunto, investiram 2,2% do PIB, mas tomaram 1,58% do mesmo em operações de crédito. Se fossem empresas privadas, quebrariam. As estatais fogem da transparência como o diabo da cruz. Incluídas na Lei de Acesso à Informação (Lei no 12.527/2011), 38

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pressionaram o governo e foram praticamente excluídas da obrigatoriedade de prestarem informações à sociedade pelo Decreto 7.724/2012. Algumas situações beiram o ridículo. No primeiro dia da vigência da Lei, a Associação Contas Abertas solicitou à Petrobras o Programa de Dispêndios Globais (PDG), conjunto de informações relacionado às receitas, dispêndios e necessidades de financiamento. A empresa negou sob a alegação de que “a informação não podia ser fornecida por comprometer a competitividade, a governança corporativa e/ou os interesses dos acionistas minoritários”. O próprio governo federal enviou-nos os dados. Na verdade, o que hoje compromete a governança das estatais é, justamente, a falta de transparência. Os investimentos das estatais em novembro, por exemplo, só serão conhecidos no fim de janeiro de 2015. Sequer existe um portal com informações atualizadas e detalhadas sobre esse segmento. Assim, a corrução sistêmica e bilionária aconteceu por vários anos e não foi notada pelos órgãos de controle interno da estatal – incluindo a Diretoria e Conselho de Administração – pelas auditorias externas, pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pelo Departamento de Coordenação e Governança das Empresas Estatais do Ministério do Planejamento (Dest), pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O fato de todos esses órgãos terem comido mosca evidencia a necessidade de ampla discussão a respeito dos sistemas de controle das empresas estatais. É necessária maior transparência nas decisões e nas operações para que não volte a acontecer o que Dilma e Lula costumam chamar de “malfeito”, expressão que minha avó usava quando fazia um bolo e ele solava. No bom português, o que aconteceu na Petrobras envolve peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. A governança da Petrobras está em xeque até no exterior. A Securities and Exchange Commission (SEC), a “xerife” do mercado de capitais americano, começou a investigar, a partir das denúncias de corrupção, as responsabilidades da estatal diante de evidentes prejuízos aos investidores. A reputação das administrações da empresa poderá sofrer um dano severo, caso fique provado que os delatores dizem a verdade. Até hoje, os balanços da estatal passaram pelo crivo da SEC sem ressalvas, mas agora a instituição procura saber se foi, e por quem foi, ludibriada. Diante do tamanho do problema, e visando mais sua defesa junto à SEC do que propriamente investigar fatos, a Petrobras contratou dois escritórios de advocacia, um brasileiro e outro americano. À petroleira interessa provar que entrou como vítima Quem controla a Petrobras e as empresas estatais?

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nesse processo. Na berlinda também estão o presidente da companhia durante o período em que Paulo Roberto atuou ilegalmente, José Gabrielli, e o diretor financeiro, Almir Barbassa, que atestaram a veracidade das informações apresentadas aos investidores e a eficácia dos controles internos. A descoberta de eventual cobertura contábil às fraudes, poderá colocá-los em maus lençóis diante da lei americana. É oportuno ressaltar que tal investigação foge ao controle de Dilma e do Partido dos Trabalhadores. Para agravar a tensão, a divulgação do balanço da Petrobras, que aconteceria no último dia útil de outubro, foi adiada. Como a empresa tem ações na bolsa de Nova York, submete-se à legislação americana onde consta que a auditoria externa que avalia os balanços de empresa com valores mobiliários negociados no EUA deve inserir na sua análise a existência de “atos ilegais” que afetem as demonstrações financeiras, o que aparentemente abunda na estatal. Desta forma, seria absurdo imaginar que Sérgio Machado, presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobras, supostamente envolvido no escândalo que afeta o Grupo, assinaria o balanço do terceiro trimestre de 2014. A solução foi o seu afastamento, ainda que apadrinhado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, como condição para a PriceWaterhouseCoopers (PwC) realizar a auditoria. É óbvio que os auditores não podem ter qualquer restrição de acesso a documentos e instalações das empresas que fiscalizam, o que poderia acontecer caso Sérgio Machado permanecesse no cargo. A exigência da PwC é exemplo de independência e contribui para o avanço da democracia no Brasil. Enfim, voltando à frase de Roberto Campos, já é tempo de as empresas públicas serem controladas pelos acionistas e sobretudo pela sociedade.

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Continuidades e mudanças da corrupção no Brasil Antonio Ribeiro

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corrupção sempre ocupou um lugar de destaque no cenário político nacional. Já influenciou no suicídio de um presidente da República, inspirou várias campanhas eleitorais vitoriosas, foi decisiva para a deposição do primeiro presidente eleito após a redemocratização e, na atualidade, levou à prisão a cúpula dirigente do partido governista, o PT.

No golpe de Estado de 1964 os militares, embora desprovidos de um projeto para o Brasil, se uniram em torno de dois objetivos claros: derrotar o comunismo e combater a corrupção.

Contrariando o discurso oficial, a desenvoltura com que se praticou a corrupção nas entranhas da ditadura não chegou a surpreender, afinal, se enquadrava na mesma lógica da corrupção dos direitos, dos valores e da dignidade humana presente nas sessões de tortura e nas torpes perseguições aos que se opunham à tirania. Trata-se da lógica do arbítrio, da não aceitação de qualquer norma que se afigure contraditória com as premissas do autoritarismo. Coerente, enfim, com a corrupção mãe, aquela que, por meio da violência, impôs um regime que só pode se afirmar através da destruição das instituições que dão significado à democracia. Em uma estrutura de poder em que o desprezo pela legalidade guia os movimentos da política e dos modelos econômicos impostos, o público e o privado se confundem e o arbítrio é radicalizado pelo caráter centralizador das decisões, elevando substancialmente a propensão à corrupção, particularmente em um ambiente desprovido de controles independentes. E foi exatamente o modelo econômico adotado no governo Geisel, numa tentativa de repetir o êxito alcançado pelo “milagre brasileiro”, que a corrupção alcançou sua maior notoriedade, associada, predominantemente, a dois mecanismos: (1) a distribuição de financiamentos, subsídios e incentivos fiscais pelo Tesouro Nacional, BNDES, BB e BNH, em benefício das instituições do mercado financeiro e de capitais; e (2) concessão de exage41


rada autonomia e aportes milionários para as empresas estatais, justificados pela crença oficial do milagroso papel a elas reservado enquanto indutoras do crescimento econômico. A “nobreza” da missão salvacionista não permitia que os orçamentos das estatais se subordinassem ao controle do Legislativo – estímulo adicional às oportunidades e incentivos à corrupção em larga escala. Em última instância, a economia – por meio do modelo econômico imposto – foi o fator determinante da corrupção no regime que apostava alcançar a legitimidade pormeio do sucesso econômico que não se concretizou. No governo seguinte, com o regime já em franca decadência moral e política – derrotado nas eleições de 1974 e envolvido em disputa interna com a extrema direita –, novas condicionantes políticas são introduzidas em um cenário de desagregação, revelando casos de corrupção desconhecidos até então, inclusive os que culminaram em outros crimes, a exemplo do “escândalo Capemi-Baumgartem” e do “escândalo da Mandioca”, que resultaram no assassinato de Alexandre von Baumgartem e de Pedro Jorge de Melo e Silva, respectivamente. O primeiro, um empresário membro do serviço de informações que sabia demais e ameaçava personalidades do alto comando militar; o segundo, um procurador da República que apurava um esquema de desvio de verbas – destinadas às atividades agrícolas –, operacionalizado por agentes do Banco do Brasil, de um lado, e fazendeiros e políticos do interior do país, do outro. Se a centralização das decisões, a falta de transparência dos atos públicos e a inexistência de controles independentes fornecem as estruturas de oportunidades que alimentam a corrupção nas ditaduras, nas democracias é o desenho institucional – sem prejuízo de outras variáveis – de cada país que pode oferecer elementos definidores de práticas ilegais. A forma de governo, a descentralização política e administrativa, a legislação eleitoral e os financiamentos de campanha despontam como os elementos mais marcantes que contribuem para adubar o terreno em que o fenômeno da corrupção se manifesta nos regimes democráticos. No caso específico do Brasil, a sua forma de governo já denominada de presidencialismo de coalizão1 incentiva relações de trocas entre parlamentares e a Presidência da República, tradu1

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Título da obra do cientista político Sérgio Abranches, utilizado para definir os mecanismos de funcionamento do regime político brasileiro, assentado nas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo, fundadas na união do elemento presidencialista e as coalizões firmadas com os partidos políticos. Antonio Ribeiro


zidas na concessão de cargos públicos e benefícios materiais em troca de apoio na casa legislativa.2 Ademais, os processos eleitorais em todo o país exigem elevadas somas de recursos para as campanhas, fomentando financiamentos ilegais para as mesmas. Além desses aspectos, importa ainda ressaltar a ênfase conferida por alguns estudiosos ao papel dos atores políticos, particularmente Weyland3 (1998), quando vincula o crescimento da corrupção em alguns países da América Latina – após a redemocratização – ao surgimento de lideranças personalistas ou carismáticas que assumiram a Presidência da República em alguns países, por meio dos recursos da mobilização de massas e do uso dos meios de comunicação. Nesta mesma linha de raciocínio, o professor Filgueiras4 (2013) avalia: (...) a análise da corrupção deve estar relacionada ao modo como o desenho institucional da política brasileira opera um contexto favorável às práticas de corrupção, uma vez que eleva o personalismo acima dos valores e normas republicanas (p. 2).

Os mais notórios casos de corrupção ocorridos nos anos que se seguiram à redemocratização no Brasil não guardaram semelhanças entre si, além do fato de terem sido, majoritariamente, de inspiração individual. Foram dispersos quanto à modalidade, o modus operandi e os favorecidos pelos ilícitos. Caracterizados, pois, como corrupção de pessoas.5 A partir de 2003, no entanto, para além da continuidade dos ilícitos de cunho individual, assistimos à crescente disseminação e institucionalização da corrupção, além de mudanças quanto aos métodos, instituições e atores envolvidos, tanto no âmbito da administração pública quanto da iniciativa privada, além de organizações não governamentais. Enquanto meios para viabilizar os ilícitos, chamam a atenção: (1) a radicalização do aparelhamento da máquina administrativa 2 3 4 5

Os escândalos conhecidos como “Mensalão” e “Petrolão”, retratam com detalhes, esta realidade. Weyland K. The politics of Corruption in Latin America. Journal of Democracy, v. 9, n. 2, p. 108-121, 1998. FILGUEIRAS, Fernando de Barros. A corrupção no Brasil e as instituições políticas. Disponível em: <www.ecsbdefesa.com.br>. São exemplos os seguintes casos: “Esquema Collor-PC Farias”, “Banpará”, “Sudam”, “Sudene”, “Máfia da Previdência”, “Banespa”, “Precatórios”, “Fonte-Cindam” e “TRT-SP”, entre outros.

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do Estado; (2) a compra de apoio de parlamentares para aprovação de projetos no Congresso Nacional e apoio nos processos eleitorais; (3) a utilização de organizações não governamentais como instrumentos de desvio de recursos; (4) fraudes milionárias nas empresas estatais; e (5) a associação com outras atividades ilegais para a viabilização de operações fraudulentas. Estas práticas servem à arquitetura de um projeto de manutenção do poder em curso, cuja execução implica no desvirtuamento do papel do Estado e da administração pública enquanto instrumento de realização de programas governamentais. A nova configuração da corrupção inaugurada pelo Partido dos Trabalhadores foi explicitada em alguns trechos do voto do ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação penal conhecida como Mensalão: Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais. Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e rigor das leis desta República (...).

Condenados os acusados, o discurso oficial tenta justificar a disseminação da corrupção com o argumento de que ela não cresceu no Brasil, apenas se tornou mais transparente, em razão da disposição do governo de apurar os fatos. As evidências, porém, são outras. Primeiro, porque o aprimoramento dos trabalhos desenvolvidos pelo Ministério Público e pela Polícia Federal foi impulsionado pelos arranjos institucionais assegurados na Constituição de 1988, conforme se constata nos arts. 127 (Ministério Público) e 144 (Polícia Federal), da Carta Magna.

Em segundo lugar, porque, recorrentemente, é constatado o envolvimento da cúpula governamental e do partido do governo em casos de corrupção. Afinal – há de se perguntar –, o governo 44

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envolvido nas irregularidades é o mesmo que supostamente se preocupa em combatê-las? Em terceiro lugar, contrariando o discurso da transparência, os parlamentares governistas insistem em obstruir investigações das Comissões Parlamentares de Inquéritos que visam investigar casos de corrupção envolvendo o PT e seus aliados. Chama ainda a atenção que o Ministério Público tenha aberto inquérito civil (FABRINI, 2014)6 para apurar a redução, no governo da presidente Dilma, do número de fiscalizações da Controladoria Geral da União (CGU) em municípios que recebem verbas federais. Em 2004, a CGU fiscalizou 400 municípios, número reduzido para 180, em 2010. Em 2011, foram 120 os municípios fiscalizados e, no ano seguinte, 84. Em 2013, houve uma redução para 60 municípios, o equivalente a apenas 15% do número de fiscalizações em 2004. Por outro lado, o gigantesco desvio de recursos públicos por ONGs foi explicado pela diretora executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Vera Masagão,7 no seguinte depoimento: “a corrupção está nas ONGs de amigos e apoiadores do governo. São entidades ligadas a grupos políticos que participam da máquina e dão sustentação ao governo. As entidades sérias querem uma relação transparente com o Estado, mas estão sendo criminalizadas”. Extrapolando as práticas já conhecidas, nos últimos dez anos, a corrupção já se instalou em ministérios, empresas estatais, bancos sob controle do governo, fundos de pensão de servidores públicos, aeroportos, cooperativa de crédito habitacional, agências reguladoras etc. Para operacionalizar os ilícitos, utiliza casas de câmbio, jogos ilegais, agências de publicidade, companhias telefônicas, empresas fantasmas e até ativos nacionais sediados em outros países, a exemplo de refinarias na Argentina e nos Estados Unidos. Se nos debruçarmos sobre as relações causais que contribuíram para a disseminação e diversificação da corrupção no Brasil, nos últimos anos, encontraremos fortes evidências de que o atual estado de anarquia moral está intimamente ligado a um 6 7

FABRINI, Fábio. Inquérito apura menor fiscalização a verbas federais. Agência Estado. Disponível em: <www.estadao.com.br>, acesso em: 19/05/2014. QUADROS, Vasconcelos. Corrupção está nas ONGs dos amigos do governo. Disponível em: <htpp//ultimosegundo.ig.com.br>, IG São Paulo, 05/02/2014.

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projeto de manutenção do poder de um partido que não reconhece limites à sua pretensão continuista, identidade que aproxima o autoritarismo disfarçado daquele ostensivo. Se a semelhança entre os dois momentos, no plano operacional, se apresenta na utilização das empresas estatais e bancos oficiais para as práticas criminosas, é no plano político que ela produz seu efeito mais perverso. A subestimação e desprezo às instituições de controle e de representação – presentes tanto na ditadura quanto nos governos do PT – traduz os elementos de continuidade mais preocupantes desta trajetória, porquanto revelam com muita clareza o desapreço aos significados democráticos que elas incorporam. É esse sentimento autoritário presente nos dois momentos políticos que conduz a um estado de exacerbação e descontrole das práticas corruptas, que se aproximam de um deboche para com a sociedade. Neste ambiente, longe de representar os interesses mais amplos, dirigentes políticos e burocratas praticam arbitrariedades de toda ordem, com a convicção de que estão imunes aos controles, quer oficiais quer oriundos da sociedade. Esta foi a realidade no ciclo autoritário militar que se repete à exaustão nos dias atuais. No presente, no entanto, o centro do tráfico de influência que articula os saques dos recursos nacionais se desloca das Forças Armadas e se faz representar pela cúpula de um partido que assumiu o poder com o discurso da ética e da democracia e que nele se mantém por meio da violação de ambos os valores. Diante deste quadro, faz-se necessário o entendimento de que a superação da desordem institucional vigente não deve se dar com a troca das práticas autoritárias – disfarçadas no presente –, por aquelas ostensivas do passado, como pregam alguns saudosistas. Ao contrário, deve resultar do avanço desta democracia de cunho eminentemente eleitoral para uma democracia moderna, substancial, na qual: a) a administração pública seja posta a serviço da sociedade e não dos partidos políticos; b) a Constituição seja protegida; c) se restabeleça a autonomia da sociedade civil, desatrelando-a dos vínculos financeiros que a subordinam ao poder governamental; e, d) os membros das altas Cortes de Justiça sejam nomeados por mérito, de modo a não deverem retribuições às autoridades que os apadrinharam, situação que nega o princípio da independência dos poderes – base legal do Estado de direito democrático.

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Antonio Ribeiro


Urge combater as práticas autoritárias, a anarquia administrativa e moral, a sangria dos recursos públicos, a manipulação do povo humilde e o desrespeito à consciência nacional. Afinal, nas atuais circunstâncias, não soa exagerado afirmar que o combate vigoroso e sistemático à corrupção institucional é uma exigência inerente à própria defesa da democracia.

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As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres em espaços institucionais de decisão política Patrícia Rangel

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ste breve artigo apresenta resultados resumidos da análise sobre as eleições de 2014, que realizei no Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea), na qualidade de consultora. Em uma série de três textos (um dedicado às candidaturas de mulheres, outro sobre mulheres eleitas e um terceiro sobre os compromissos dos novos governadores com as plataformas de igualdade de gênero), indiquei que o pleito desse ano manteve a tradicional exclusão feminina no processo eleitoral e o apagamento das demandas feministas nos debates e planos de governo. A base utilizada foi o banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os dados e as reflexões que resultaram desse trabalho podem ser encontrados no sítio eletrônico do CFemea <www.cfemea.org.br>. Novidades do pleito Destaco dois aspectos relevantes que distinguiram as eleições deste ano do pleito de 2010. O primeiro se refere ao cumprimento da cota por sexo nas listas de candidaturas prevista na Lei Eleitoral. Foi a primeira vez em que isso ocorreu em um pleito nacional (contudo, a reserva de 30% para candidaturas do sexo minoritário em cargos escolhidos por representação proporcional fora respeitada também no pleito municipal de 2012). Outro aspecto importante teve a ver com a divulgação de dados sobre a cor/raça dos candidatos, também inédita até então. O TSE utilizou, para o levantamento, as mesmas categorias da classificação do IBGE: branca, preta, parda, indígena e amarela. Tais novidades causaram otimismo entre especialistas e militantes do(s) feminismo(s) e movimentos pela igualdade racial, que esperavam avanços no tocante à presença de mulheres e negros em espaços institucionais de poder e decisão, após o fim da corrida eleitoral. Contudo, os resultados não foram mais animadores do que os dos anos anteriores: apesar da reeleição de uma mulher à 48

Patrícia Rangel


Presidência da República, o número de deputadas federais e senadoras subiu pouco e reduziu-se o percentual de deputadas estaduais em relação a 2010. Da mesma forma, caiu o número de mulheres nos governos estaduais, visto que somente uma conquistou o cargo dentre as 27 unidades federativas (26 estados e o Distrito Federal). Veremos esses dados em seguida. Mulheres candidatas e eleitas: cargos majoritários Observemos, primeiramente, a disputa aos cargos escolhidos pelos sistema majoritário – presidente/a, governador/a e senador/a –, nos quais não atua a cota por sexo. Nessas eleições, houve 11 candidatos à Presidência da República,1 dos quais três foram mulheres (27,3% do total): a presidenta Dilma Rousseff (PT), Marina Silva (PSB) e Luciana Genro (PSol). Durante parte do período que antecedeu o pleito, duas mulheres lideraram as pesquisas de intenção de voto: Dilma Rousseff e Marina Silva2 (em 2010, também foram elas as candidatas a presidenta – duas mulheres dentre os 9 candidatos, ou 22,2%). Contudo, ao final do primeiro turno, os mais votados foram a presidenta Dilma e Aécio Neves (PSDB), com 41,6% e 33,5%, respectivamente. O terceiro e o quarto lugares ficaram com Marina Silva (21,3%) e Luciana Genro (1,5%). No segundo turno, Dilma foi reeleita com 51,6% dos votos válidos. Quanto aos governos estaduais e do Distrito Federal, neste ano, foi eleita somente uma governadora (3,7% do total de eleitos) e 26 governadores (96,3%). Em 2010, foram eleitas duas governadoras (7,4% do total de eleitos) e 25 governadores (92,6%). Constata-se, portanto, queda de 50% entre as governadoras eleitas, o que equivale a um decréscimo de 3,7 pontos percentuais, enquanto o crescimento percentual de homens eleitos foi de 4% e 3,7%. Chamamos atenção para o fato de que o número absoluto de governadoras eleitas vem caindo inalteradamente há três pleitos (vide Gráfico 1). Vejamos a relação candidatura-eleição de mulheres para este cargo: em 2014, o TSE contabilizou 173 candidatos a governador/a, dentre os quais as mulheres foram 18. Elas 1

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O TSE manteve cadastrada a candidatura de Eduardo Henrique Accioly Campos (PSB), falecido em 13/08/2014, como “inapto”. O Tribunal, desta forma, contabiliza 12 candidatos ao cargo. Contudo, em nosso estudo, optamos por desconsiderar a candidatura de Eduardo Campos e registrar somente a de Marina Silva (PSB), que o substituiu, somando 11 candidatos. Ibope / TV Globo e O Estado de S .Paulo – Pesquisa de 03/09/2014.

As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres

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foram, portanto, 10,4% dos candidatos e 3,7% dos eleitos; enquanto nas eleições de 2010, foram 11% dos candidatos e 7,4% dos eleitos. Houve, assim, aumento no percentual de candidatas, porém queda no de eleitas. Encontramo-nos com o mesmo percentual de governadoras que possuíamos há 16 anos. É neste cargo que as mulheres são mais sub-representadas no Brasil. Gráfico 1. Mulheres candidatas e eleitas: governos estaduais e do DF, 1998-2014 (%)

Fonte: CFEMEA/TSE, 2014.

Já no Senado Federal, foram eleitas 5 mulheres (18,5% do total de eleitos) e 25 homens (81,5%), totalizando 27 eleitos. Em 2010, foram eleitas 8 senadoras (14,8% do total de eleitos) e 46 senadores (85,2%), totalizando 54 eleitos. A diferença no total se deve ao fato de a renovação do Senado ser parcial: alterna-se entre 1/3 da casa (com a eleição de 1 senador/a por unidade federativa) e 2/3 (quando se elegem 2 representantes). Desta forma, cada UF possui sempre três representantes na Câmara Alta. Nota-se que, de 2010 para 2014, conquistou-se espaço de representação para as mulheres no Senado, uma vez que sua eleição cresceu em 3,7 pontos percentuais. As cinco eleitas deste ano se juntarão às sete3 que cumprem mandato até 2019, formando uma bancada de 12 mulheres entre os 81 representantes (14,8%). Com esse pequeno avanço, rompeuse a estagnação que vinha marcando a eleição de senadoras nos últimos três pleitos, quando o percentual de eleitas foi o mesmo: 14,8% do total em 2010, 2006 e 2002. Se retrocedermos mais um 3

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Apesar de terem sido eleitas 8 senadoras em 2010, somente 7 exercem mandato, pois Marinor Brito (PSol) perdeu sua vaga para Jader Barbalho em dezembro de 2011. Para mais detalhes, ver: <http://www12.senado.gov.br/ noticias/materias/2011/12/14/marinor-brito-critica-decisao-do-stf-que-pode-dar-sua-vaga-a-jader-barbalho e http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=196835>. Patrícia Rangel


pouco e compararmos o atual resultado com 1998, observaremos crescimento de 11,1 pontos percentuais, como mostra o Gráfico 2. Gráfico 2. Mulheres candidatas e eleitas: Senado Federal, 1998-2014 (%)

Fonte: CFEMEA/TSE, 2014.

O mencionado gráfico indica também o padrão das candidaturas de mulheres ao Senado: Em 2010, as mulheres representaram 13,3% do total de 241 candidatos e, no presente ano, o percentual subiu e chegou ao seu ponto mais alto dos cinco pleitos: 35 em 184 candidaturas (19%). No que concerne à relação candidatura-eleição, interessa notar que, ao contrário de todos os outros cargos, os percentuais de candidatas e eleitas em cada pleito são bastante próximos. Na verdade, houve momentos em que houve mais senadoras eleitas do que candidatas (anos de 2002 e 2010). Com base nestes dados, destacamos que este cargo foi o que teve maior crescimento (em pontos percentuais) de mulheres eleitas, ganhando das deputadas estaduais, deputadas federais e governadoras. Apesar de possuir um índice de representação parlamentar baixo, é no Senado Federal que as mulheres são mais numerosas: somos 14,8% dos senadores, 13,4% dos vereadores, 11,4% dos deputados estaduais, 11% dos prefeitos, 9,9% dos deputados federais e 3,7% dos governadores brasileiros. Mulheres candidatas e eleitas: sistema de representação proporcional Quanto aos cargos cuja eleição é regida pela representação proporcional (deputado federal e deputado estadual/distrital), interessa observar o efeito da lei de cotas por sexo. Como se sabe, As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres

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este mecanismo reserva um percentual das vagas de candidaturas (atualmente, de 30%) em eleições proporcionais para o sexo minoritário (na prática, para as mulheres), como vêm indicando estudos do CFemea, desde a criação da cota (Lei no 9.100/1995). De lá para cá a legislação já passou por duas reformas (leis no 9.504/97 e no 12.034/09) para torná-la mais eficaz frente à sistemática violação pelos partidos políticos, que não apresentavam o percentual mínimo de candidaturas para mulheres. Vejamos agora como foi o desempenho dos partidos políticos no tocante à eleição de deputadas federais. Em 2014, foram eleitas 51 deputadas federais (9,9% do total de eleitos) e 462 deputados federais (90,1%), totalizando 513 eleitos. No pleito anterior, foram eleitas 45 deputadas federais (8,8% do total de eleitos) e 468 deputados federais (91,2%), totalizando 513 eleitos. Observamos 6 eleitas a mais que em 2010, o que corresponde a um crescimento de 13,3% ou 1,1 ponto percentual. Se compararmos com a primeira aplicação das cotas em uma eleição à Câmara dos Deputados (1998, quando foram eleitas 29 deputadas), o crescimento é de 75,9% ou 4,3 pontos percentuais. Desde aquele pleito, o avanço tem sido bastante tímido, com estagnação em 2006 e 2010, como aponta o Gráfico 3. Gráfico 3. Mulheres candidatas e eleitas: Assembleias Legislativas Estaduais e Câmara Legislativa do DF, 1998-2014 (%)

Fonte: CFEMEA/TSE, 2014.

O gráfico também indica aspectos interessantes na relação candidatas-eleita: verifica-se que os dois lados não cresceram proporcionalmente, pois o percentual de candidaturas obteve crescimento muito superior ao de eleitas – nas eleições de 2010, as mulheres foram 19,4% dos candidatos e 8,7% dos eleitos e, em, 2014, 31,8% dos candidatos e 9,9% dos eleitos. Ou seja, houve 52

Patrícia Rangel


crescimento de 21,4 pontos percentuais em relação às candidaturas e de somente 4,3 pontos percentuais para as eleitas. Este padrão também é observado nos Legislativos estaduais: o percentual de mulheres candidatas evoluiu bastante historicamente, sobretudo na última eleição, mas não encontrou correspondente entre as eleitas. Vejamos: nas Assembleias Legislativas Estaduais e Câmara Legislativa do Distrito Federal, elegeram-se 120 mulheres (11,4% do total de eleitos) e 939 homens (88,6%), totalizando 1.059 deputados estaduais e distritais. Em 2010, foram eleitas 137 deputadas estaduais/distritais (12,9% do total de eleitos) e 922 deputados estaduais/distritais (87,1%), totalizando 1.059 eleitos. Observamos, portanto, 17 eleitas a menos que em 2010, o que corresponde a uma decréscimo de 12,4% ou 1,5 ponto percentual (ver Gráfico 4). Não é a primeira vez que se verifica queda no número de mulheres para este cargo. O mesmo já havia acontecido em 2006, quando houve um ponto percentual a menos que em 2002. Quanto à comparação entre mulheres candidatas e mulheres eleitas, elas foram, em 2010, 21,1% dos candidatos e 12,9% dos eleitos e, este ano, 31,4% das candidaturas e 11,3% dos eleitos, um resultado que pode ser interpretado como indício de que há muitas mulheres inscritas sem chances de eleição. Vale lembrar que a lista aberta é considerada pouco favorável à efetiva implementação da cota. Gráfico 4. Mulheres candidatas e eleitas: Assembleias Legislativas Estaduais e Câmara Legislativa do DF, 1998-2014 (%)

Fonte: CFEMEA/TSE, 2014.

Deputadas federais e deputadas estaduais/distritais compartilham de uma série de similaridades. Nesses dois cargos foi onde houve maior crescimento de candidaturas femininas em relação a As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres

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2010 (no caso da Câmara Federal, o crescimento foi de 12,4 pontos percentuais e nas Assembleias Legislativas, de 10,3 pontos percentuais), enquanto foi no Senado o maior sucesso eleitoral de mulheres e, no caso das deputadas estaduais, houve retração no número de eleitas. De qualquer forma, tanto no Legislativo federal quanto nos estaduais e do DF, houve muitas candidatas e poucas deputadas eleitas, o que sugere a maciça inscrição de candidatas laranjas. O mesmo se observou, nas eleições municipais de 2012, no caso das vereadoras, cargo sobre o qual impacta a cota.4 O ponto central, contudo, certamente concerne à postura dos partidos políticos: apesar de respeitarem a cota este ano, eles continuam não investindo capital financeiro e político em candidaturas de mulheres. Apesar de terem respeitado o mecanismo da cota (em 2014, 31,8% dos candidatos a deputado federal foram mulheres, bem como 31,4% das candidaturas a deputado estadual), talvez o tenham feito por conta das ameaças da Justiça Eleitoral de impugnação de algumas candidaturas masculinas com vistas a manter a proporção 30%-70% exigida por lei (Resolução nº 23.373 do TSE).5 Contudo, seguem desrespeitando medidas complementares previstas na Lei nº 12.034/09, principalmente a que estabelece que 10% do tempo de propaganda partidária, fora de anos eleitorais, deve ser utilizado para promover a participação política das mulheres.6 Esses e outros dados estão dispo níveis na seção Poder e Política – Dados Estatísticos do sítio eletrônico do CFemea. Sugiro, além da consulta a eles, a leitura das publicações Série Histórica Mulheres e Eleições: 1996-20127 e Guia Feminista para as Eleições 2014,8 que oferecem informações importantes sobre os processos eleitorais e uma perspectiva histórica mais ampla. 4 5 6

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Ver: <http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article& id=3957&catid=214&Itemid=147>. Uma discussão mais detida pode ser encontrada na publicação “Série Histórica Mulheres e Eleições: 1996-2012”. Ver nota de rodapé nº 7. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, em outubro de 2014, o Ministério Público começou a julgar partidos que não respeitaram a cota e fará o mesmo para os que não utilizaram o tempo reservado para incentivar a presença de mulheres em espaços de poder e decisão. Ver: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/politica/mp-condena-mais-um-partido-por-desrespeito-a-cota-feminina/>. A versão digital pode ser baixada gratuitamente em <http://www.cfemea.org. br/index.php?option=com_content&view=article&id=4460:serie-historica-mulheres-e-eleicoes-1996-2012&catid=402:publicacoes&Itemid=182>. Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&vi ew=article&id=4461:guia-feminista-para-as-eleicoes-2014&catid=402:publicaco es&Itemid=182>. Patrícia Rangel


Raça/cor dos representantes eleitos Causam preocupação os ínfimo percentuais de eleitos negros, sobretudo os de cor preta, quando consideramos que os dados do último Censo Demográfico (realizado 2010) apontam que menos da metade (47,7%) da população brasileira é de cor branca e que maior parte dos brasileiros é negra (43,1% de cor parda e 7,6% de cor preta).9 Os dois candidatos que disputaram o segundo turno para a Presidência da República são autodeclaradamente brancos. Quanto aos governadores, dos 26 homens eleitos, 73,1% se declararam de cor branca; 23,1% de parda e 3,8% de amarela. Nenhum governador eleito é indígena ou de cor preta. A única governadora eleita se declarou branca. No Senado, não houve eleitos de cor preta, indígena ou amarela. Somente cinco se declararam pardos (18,5%) e 22 são brancos (81,5%). Na Câmara dos Deputados, os brancos são 79,9%, os pardos 15,8% e os pretos 4,3%. Não foram eleitos deputados amarelos ou indígenas. Nas Assembleias Legislativas Estaduais e Câmara Legislativa do Distrito Federal, 73,4% são de cor branca, ao passo que pardos são 23,5% e pretos, 2,7% (indígenas e amarelos contam com 0,2% cada um). Em geral, não observamos diferença substantiva ao analisar o perfil de mulheres e homens no que toca a cor das eleitas e eleitos: a maioria, em ambos os grupos, é branca. Vale destacar que, em todos os cargos, a presença de negros (pretos e pardos) foi muito menor entre os eleitos do que entre os candidatos. Não há dados oficiais referentes a 2010 ou eleições anteriores, pois, como comentado no início do artigo, o TSE só começou a divulgar a cor/ raça de candidatos e eleitos na presente eleição. Considerações finais Com o término das eleições de 2014, deparamo-nos com um cenário pouco animador: espaços institucionais de poder com escassas mulheres eleitas, um Legislativo conservador e governos estaduais que priorizam pouco a igualdade de gênero. Segundo estudo do CFemea, são poucas as ações e promessas dos governadores para promover a igualdade de gênero (cerca de 10%). Isso 9

Os povos indígenas, dizimados pela colonização e pelo capital, compõem somente 0,4% da população (817 mil pessoas), e pessoas de cor amarela, 1,1% do total.

As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres

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não é exclusividade deles: dados do Instituto Patrícia Galvão apontam a invisibilidade de demandas como “enfrentamento à violência de gênero”, “vagas em creches”, “autonomia econômica” e “representação das mulheres na política” nos discursos dos presidenciáveis, nas eleições de 2014, em debates na mídia ou nas propagandas eleitorais.10 Os dados apresentados e analisados neste artigo reforçam o que o(s) movimento(s) feministas vêm apontando há décadas: mulheres são interditadas dos espaços institucionais de poder e decisão. A retração no número de governadoras e deputadas estaduais/distritais são evidências contundentes. Nossa sub-representação política é incompatível com qualquer presunção democrática, já que as mulheres são maioria da população brasileira, do eleitorado e, apesar de serem pouco menos da metade dos filiados a partidos políticos,11 são maioria dos novos filiados.12 Nestas poucas páginas, vimos e revimos exemplos da sobre-representação de brancos, da sub-representação da população afro -brasileira e da ausência de indígenas nos espaços de poder e decisão. O resultado das eleições de 2014 nos mostra que, apesar das minirreformas eleitorais e decisões da Justiça Eleitoral nos últimos cinco anos, o poder político continua sendo território de homens brancos e proprietários. Sabemos que os motivos dessa sub-representação perpassam a cultura, a economia e a vida social como um todo, e são sempre estruturais, ancorados em valores de sistemas ideológicos excludentes como o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Sabemos também que as regras do jogo regidas pelo sistema eleitoral contribuem para reproduzir tal situação. Portanto, faz-se necessária uma reforma política ampla e radical, que supere os privilégios de gênero, classe e raça.13 Neste sentido, cabe mencionar

10 Ver: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/politica/demandas-das-mulheres-estao-ausentes-dos-debates-politicos/>. 11 Segundo dados da SPM, da Procuradoria Especial da Mulher do Senado e da Justiça Eleitoral, do total de 15,1 milhões de pessoas vinculadas a algum partido político, 8,4 milhões são homens (55,6%) e 6,7 milhões são mulheres (44,3%). 12 Informações da SPM apontam que, em 2013 (de outubro de 2012 a outubro de 2013), as mulheres foram 64% das 136 mil novas filiações aos partidos políticos 13 Para conhecer em detalhes estas propostas, recomendamos a leitura da “Agenda Feminista para a Democratização do Poder na Reforma Política” (disponível para download gratuito no sítio eletrônico do CFemea) e dos textos da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político (http://www.reformapolitica.org.br).

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Patrícia Rangel


a “Campanha pela Constituinte!”,14 composta por mais de 450 organizações (incluindo a AMB e outras redes feministas) e 1800 Comitês Populares. Reunidos na campanha, quase oito milhões de brasileiros participaram do Plebiscito Popular e demandaram uma reforma política realmente democrática.15 Por fim, precisamos enfrentar outro problema, não menos grave, evidenciado pelos resultados deste pleito: o conservadorismo. Sobretudo no Congresso Nacional, é preocupante o elevado número de parlamentares conservadores, vinculados a agendas políticas militares, religiosas e ruralistas. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), esta é a legislatura mais conservadora desde 1964, o que definitivamente representará obstáculo para as pautas dos movimentos sociais e a qualquer agenda progressista. Tendo em vista o exposto, é preciso fortalecer a luta pelos direitos das mulheres e pela igualdade racial.

14 Mais informações em: <http://www.plebiscitoconstituinte.org.br>. 15 Em setembro, o Plebiscito Popular indicou que 97% dos participantes disseram “sim” à pergunta: “Você é a favor de uma constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político?”. As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres

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Fora do eixo ou e nós aonde vamos! Zulu Araújo

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omo a maioria dos brasileiros, creio eu, vivi, senti e respirei eleições nos últimos meses do ano de 2014. Como um bom baiano, retornei à minha terra natal e participei ativamente do processo eleitoral com o objetivo de dar minha contribuição para a melhoria das condições de vida do nosso povo. No primeiro momento estive alinhado com o candidato a Presidência da República que considerava a alternativa de futuro para o país, o ex-governador de Pernambuco – Eduardo Campos, do Partido Socialista Brasileiro, jovem liderança política que apontava e simbolizava a um só tempo, tanto a necessidade premente de modernização do fazer política no Brasil quanto a emergência do aprofundamento da nossa democracia, mas que foi abduzido tragicamente pelas forças da natureza no meio da campanha e alterou substancialmente (para o bem ou para o mal) os rumos de uma campanha eleitoral que se mostrava, até aquele momento, das mais instigantes e desafiadoras.

O resto, todo mundo já sabe de có e salteado, até porque os articulistas, especialistas, cientistas políticos e curiosos de plantão já fizeram todas as análises possíveis e imaginárias sobre o fato. Por isto mesmo, desejo no entanto, tratar aqui, de algo mais caseiro, embora de enorme importância para o desenvolvimento da plena democracia em nosso país, que é a sub-representação, no parlamento brasileiro, dos chamados segmentos excluídos da sociedade – mulheres, índios, negros, homossexuais etc. No caso, falo de um aspecto da campanha eleitoral que me chamou a atenção e que não vi, até o presente momento, abordada com a devida profundidade: a derrocada de praticamente todas as lideranças da chamada representação negra no parlamento brasileiro.

Ao analisar os dados disponibilizados pela justiça eleitoral, percebi que além do quadro geral de participação de representação da comunidade negra no parlamento brasileiro ter continuado praticamente igual, ou seja presença majoritariamente branca (79, 35) 58

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entre os deputados federais, o mesmo acontecendo para o Senado; apenas 05 senadores que se autodeclararam negros foram eleitos (18,5%) entre as 27 vagas em disputa, mantendo quase que inalterada a proporção alcançada na Câmara dos Deputados (81,5% de senadores brancos). Mais que isto, vi, preocupado, que praticamente todas as principais lideranças do movimento negro brasileiro ou a ele ligado e que possuíam postura ativa na defesa das ações afirmativas empreendidas pelos governos (federal e estaduais) em favor da promoção da igualdade racial no país, haviam perdido as eleições parlamentares em 2014, tanto nos planos estaduais quanto no federal. Cito aqui alguns deles para refrescar a nossa memória e contribuir para a compreensão do fenômeno: Netinho de Paula (ex-secretário municipal da Promoção da Igualdade e vereador) e Janete Pietá (deputada federal), em São Paulo); Edson Santos (ex-ministro da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Seppir, e deputado federal), no Rio de Janeiro; Domingos Dutra (deputado federal) no Maranhão; e Luiz Alberto (ex-secretário da Promoção da Igualdade e deputado federal) na Bahia. Aliás, neste sentido, o caso da Bahia chama a atenção e amplia o sinal de alerta, tanto pela extensão do estrago eleitoral, como pela importância e dimensão simbólica que o estado possui no campo das lutas de combate ao racismo e pela promoção da igualdade racial, pois além da perda do mandato de deputado federal, também naufragaram nas eleições parlamentares todos os candidatos que se apresentaram de uma forma ou de outra como representantes do movimento negro local. Segue para análise a extensa lista dos mais expressivos nomes que a população rejeitou nas urnas: Luizlinda Valois (primeira juíza negra da Bahia), Olívia Santana (ex-secretária de educação e ex-vereadora de Salvador), Gilmar Santiago e Luiz Carlos Suíça (vereadores de Salvador), Bira Coroa (deputado estadual), Elias Sampaio (ex-secretário estadual da Promoção da Igualdade da Bahia). Convenhamos, é derrota demais para uma eleição só. Na esperança de que estes resultados negativos não sirvam apenas para o lamento e reconhecimento da nossa fragilidade no campo político, como de hábito o fazemos, desejo que os mesmos nos levem, ao menos, a fazer com que as atuais lideranças do movimento negro brasileiro e, em particular as da Bahia, se deem conta da gravidade do estrago e parem para pensar e refletir sobre o que está de fato ocorrendo com o trabalho político desenvolvido até agora, pois o resultado, ao menos do ponto de vista eleitoral, foi no mínimo catastrófico. Fora do eixo ou e nós aonde vamos!

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Se é verdade que alcançamos vitórias importantes no campo das ações afirmativas, a exemplo das cotas para negros no ensino superior (aprovado por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal e com resultados extremamente positivos de aproveitamento escolar), a introdução da Lei nº 10.639/2003 na grade curricular do ensino fundamental (ainda com dificuldades na sua implementação por conta da resistência ativa dos setores evangélicos na área educacional e da ausência de qualificação adequada aos professores) e o reconhecimento das terras remanescentes de quilombos (também enfrentando fortes resistências dos latifundiários e a inércia de parte significativa do governo), por meio do Decreto nº 4.887/2003, também é verdade que, há muito tempo, a agenda do movimento negro brasileiro não se renova. Lamentavelmente a maioria das lideranças atuais tem se contentado com o discurso fácil da denúncia ou constatação do racismo institucional ou social existente no Brasil. Esta postura “discursiva radical” que tem agradado e muito aos ouvidos de um pequeno contingente de aguerridos militantes incrustados na máquina pública, pelo visto, não tem sensibilizado a grande maioria da população negra brasileira que continua sofrendo as agruras e os horrores da violenta discriminação praticada em nossa sociedade. Daí, o que podemos depreender é que apesar das enormes mazelas raciais ainda presentes em nossa sociedade, suas principais vítimas não estão se sentindo representadas por estas lideranças. Vale a pena tratar aqui de um dos grandes flagelos que assola a sociedade brasileira atual e que tem atingido dramaticamente a juventude negra deste país. Neste sentido, os dados elencados nos últimos anos pelo Mapa da Violência no Brasil, coordenado e dirigido pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, talvez nos dê uma pista da enorme distância entre o discurso de parte das lideranças negras e a realidade cotidiana da população negra brasileira, em particular da sua juventude, no enfrentamento diário da discriminação. Segundo o referido Mapa, no período de 2002 a 2012, enquanto “O número de homicídios de jovens brancos caiu 32,3%, o dos jovens negros aumentou 32,4%”. Traduzindo em miúdos, ainda segundo o Mapa, “o índice de vitimização de jovens negros que, em 2002, era de 79,9, sobe para 168,6: para cada jovem branco que morre assassinado, morrem 2,7 jovens negros”. É visível que há um verdadeiro abismo tanto na condução quanto no resultado obtido pela implementação da política pública de segurança no país, no que diz respeito ao tratamento dado aos 60

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jovens brancos e negros. E a consequência desta política tem sido das mais danosas e perversas, não apenas para a comunidade negra, mas para toda a sociedade brasileira. Mas, nem por isto, temos uma posição unificada e firme de enfrentamento e solução para este grave problema. Pelo contrário, vivemos, por mais que não queiramos, ao sabor das conveniências partidárias e das pressões dos setores conservadores da sociedade. Tanto isto é verdade que, nas últimas eleições, por conta dos arranjos políticos/partidários, boa parte das nossas lideranças estavam alinhadas politicamente com candidatos a cargos eletivos que defendiam abertamente a redução da maioridade penal e a criação de Batalhões de Operações Especiais (Bopes), como mecanismos de solução para esta verdadeira epidemia que ocorre no país, mesmo em estados, como a Bahia, onde a violência policial contra a comunidade negra se abate de maneira incontestável. É claro que esta flagrante contradição entre o discurso e a prática foi identificada pela população, além do que é uma equação mais do que perversa, em particular para quem é preto e pobre – ou seja, enquanto a classe média negra adentra as universidades (com justa razão), à juventude pobre e negra é indicado o caminho do cárcere ou do extermínio. Um outro aspecto relevante, que não podemos dispensar nesta análise, foi a “desconstrução” – eufemismo largamente utilizado nestas eleições para a violenta desqualificação dos adversários – da qual foi vítima a candidata a Presidente da República – Marina Silva, por parte dos seus concorrentes, da sua condição de mulher negra e pobre. Mesmo sem querer, pois participaram de forma subalterna neste trabalho, parcela significativa do movimento negro brasileiro, terminou por avalizar a tese de que não basta apenas a cor da pele, origem social ou de gênero para se constituir enquanto legítima representante das mulheres, dos negros ou dos pobres, melhor dizendo o avesso do avesso do avesso do que é afirmado cotidianamente por boa parte das lideranças negras brasileiras. A menos que acreditemos na pureza sectária de uns poucos – de que negros só são aqueles que são de esquerda e que são filiados ao mesmo partido que o meu, esta talvez tenha sido a ação mais forte e contundente para o enfraquecimento, de uma vez por todas, do tradicional discurso da militância negra e consequentemente a perda de substância do discurso das nossas lideranças. Para quem ainda não se deu conta do que aconteceu com a “desconstrução” de Marina, como mulher, negra e pobre, festejada Fora do eixo ou e nós aonde vamos!

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em prosa e verso por tantos “combativos companheiros”, foi também a “desconstrução” do voto racial. Enfim, o que podemos perceber é que o resultado eleitoral está indicando não apenas ao movimento negro, como também à boa parte da esquerda brasileira, é que: Sem que se constitua uma nova agenda política no país, que contenha temas de real interesse da comunidade negra e do cotidiano da vida das pessoas em geral, a exemplo do combate à violência na juventude, melhoria da mobilidade urbana (transporte público de qualidade) e acesso aos bens e serviços culturais; sem que se reposicione o discurso político e se busque alianças, de forma ampla, com os demais setores políticos e movimentos sociais, a exemplo do que vem fazendo o movimento LGBT; sem que sejam substituídas as práticas autoritárias de cooptação política por novas formas democráticas de participação social, em particular na relação dos partidos políticos, autoridades públicas e lideranças comunitárias com a sociedade, na qual a reforma política seja o porta-estandarte deste novo tempo, dificilmente teremos sucesso naquilo que é essencial para mudar as vidas das pessoas, sejam ela pretas, brancas ou amarelas – a representação política nas esferas de poder. Axé! Toca a zabumba que a terra é nossa!

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III. Observat贸rio


Autores Arlindo Fernandes de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal do Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional e Eleitoral . É bacharel em Direito e especialista em Direito Constitucional (IDP) e Ciência Política (UnB) .

Luiz Carlos Azedo

Jornalista e comentarista político .

Mércio Pereira Gomes

Antropólogo, professor da História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ .

Raimundo Santos

Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) .


Eleições 2014 e a cultura política brasileira Mércio Pereira Gomes

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credito que há cinco modos de visar, isto é, perceber e atuar sobre o campo político, entendido aqui como o espaço-tempo onde se constituem as concepções do coletivo social, onde se realizam diferentes modos de disputas e lutas pelo poder, e onde atuam claramente os interesses sociais e econômicos.

A primeira visada e o primeiro modo de luta pelo poder é o autocrático. Aqui a política se realiza por uma vontade absoluta, em geral sancionada por uma sacralização da coletividade, incorporada por um grupo social que se arvora ser a representação dessa coletividade. A história nos mostra os reinos absolutistas desde a Idade do Bronze e nos traz até o presente em nações onde prevalece a união entre religião e Estado, ou entre o Estado e um espírito de povo. Estou falando aqui de Estados islâmicos absolutistas e da Alemanha hitlerista, como paradigmas, mas há outros tantos com tendências amenizadas a essa posição, sem deixar de lembrar as ditaduras, de esquerda e de direita, que se perpetuam além do esperado e que buscam fôlego numa identidade com o “espírito do povo”. O segundo modo de visar a política é o anárquico. Nosso melhor exemplo são os povos ditos “sem Estado” ou igualitários, dos quais temos representantes prístinos e originais em nosso Brasil, como os povos indígenas. Há também exemplos em muitas experimentações políticas na história passada e recente, como aquela deflagrada pela Guerra Civil Espanhola, na década de 1930. Contemporânea e corriqueiramente, a visada anárquica se dá quase sempre por uma atitude de assombro e inquietude diante 65


do avassalador controle da vida humana pela máquina política. A negação ao poder muitas vezes se efetiva pela ausência de participação na cultura que controla esse poder, como no caso da população brasileira marginalizada. A terceira visada é a dialética. Aqui a política é realizada como uma luta de facções, muitas vezes formadas empiricamente, outras, mais recentemente na história, via ideologias aglutinantes. A velha Grécia Clássica experimentou, por dois séculos, essa modalidade com muita intensidade, e a maioria das sociedades modernas de cunho democratizante se regem por esse modo. A prevalência da relação entre economia e política acirra a visada dialética na modernidade. O quarto modo de visar o político é o racionalista ou positivista. O poder é operado como um subproduto do social e do econômico, estes concebidos como fatos inquestionáveis, quase imutáveis, pelo prestígio a eles conferidos e pelo poder que deles emana. O melhor exemplo que tenho em mente desse modo são os Estados Unidos, onde a política se dá no campo da definição da identidade da nação. A luta entre os partidos Democrata e Republicano se apresenta fundamentalmente como uma disputa por quem melhor representa o espírito da nação, seja lá o que ele for, com aspectos permanentes e circunstanciais. Entre eles não se duvida que a sociedade é coerente, ainda que eivada de injustiças, e que o econômico é o seu fundamento. O político parece aos americanos como derivativo, não tanto subordinado, ao econômico. Daí porque há tão pouca participação eleitoral de seus membros. O quinto modo de visada é o que chamo, seguindo meu mestre Luiz Sérgio Sampaio, hiperdialético. Esse modo reconhece que todos os modos anteriores, de cunho social, advêm, no nível individual, de tendências humanas que se socializam. Estão em conflitos mútuos, uns contra os outros, porém o modo hiperdialético os absorve e os sintetiza numa nova configuração, e com isso conforma um sentido integrador e transcendental. São raras as sociedades que se imbuem dessa percepção da política, mas podemos reconhecer que as sociedades mais modernas da atualidade, como a Holanda, os países escandinavos, até a Suíça, buscam se pautar por essa visada. Daí que a alternância de partidos e de concepções filosóficas é absorvida e negociada socialmente, sem prejuízo do bem-estar da população em geral, cuja identidade cultural jamais é posta em dúvida. Diria que alguns líderes excepcionais, como Gandhi, Mandela e, de um modo longínquo, a figura de Lula, carregam em si uma postura hiperdialética da política, e foi por isso 66

Mércio Pereira Gomes


que conseguiram efetivar singulares sínteses políticas, ainda que precárias, de suas respectivas atuações. Reconhecendo a singeleza resumida de minha visão, pergunto: como se opera a política no Brasil? Em primeiro lugar, podemos reconhecer que todas essas variantes estão presentes na nossa arena política republicana, nela se exercitando a autocrática, sem sacralização, apenas em alguns períodos de nossa história, e a anárquica atuante apenas episodicamente e por intenções, ainda que fundamental no nível de percepções de mundo. Ao reduzirmos momentaneamente a política apenas àquilo que podemos chamar de “classes políticas”, isto é, os grupos que atuam no ramo e ditam o seu ritmo, torna-se claro que o modo dialético é o que prevalece. Nessas classes políticas estão os segmentos intelectualizados das classes média e alta, os sindicatos e movimentos sociais, e, complementarmente, o trabalhador não sindicalizado, seja por ser autônomo, seja por indiferença ou, na maioria, por estar à margem do mercado formal do trabalho, tomando parte na liça política quase sempre apenas nas horas de eleições. Pautadas por visões de cunho marxista, weberiana ou funcionalista-historicista, as classes políticas costumam dividir o mundo entre esquerda e direita (com variações, entreguista x nacionalista, conservador x progressista), a partir de onde instituem suas percepções e posicionamentos. No calor da refrega política, tal como vivenciamos na disputa presidencial de outubro de 2014, o posicionamento dialético percebe tão somente uma luta renhida, de vida e morte, entre dois polos políticos no país. Quem vencer come o outro. Entretanto, como a luta eleitoral recente foi tão animosa, os dialéticos autonomeados de esquerda se esqueceram distraidamente que a história é feita de sínteses do passado. A frase mais característica dessa visão foi dada por Lula, autoinspirada ou soprada por outrem, “nunca antes na história desse país... se fez tal ou qual coisa”. Essa visão não é tão somente retórica. Um intelectual do PT já asseverou que a última ação positiva feita pelas classes políticas brasileiras, mais propriamente pela elite política, ao povo teria sido a abolição da escravatura. Daí não terem os petistas nenhum constrangimento em afirmar que a Bolsa Família teria sido criação exclusiva da mente clarividente do presidente Lula.

Eleições 2014 e a cultura política brasileira

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Por sua vez, os dialéticos acusados de direitistas veem na continuidade dos seus adversários esquerdistas uma projeção do caos político, dados os desmandos econômicos e éticos apresentados por eles, os quais, de certo modo, ainda que a sotto voce, são reconhecidos pelos dialéticos autonomeados esquerdistas. A dualidade esquerda/direita nas classes políticas, incluindo as classes médias e alta brasileiras, é evidentemente uma pretensão irrealizável. Não somente os que assinaram o referido Manifesto da Esquerda Democrática, como eu, não são de direita, como também não o são os familiares e amigos dos esquerdistas que eventualmente votaram em Aécio. Tampouco podem ser chamados de esquerdista muitos dos que tinham intenção de votar ou votaram em Dilma, seja por seus passados políticos, seja por suas visões sociais e culturais do Brasil. Enquanto isso, onde está o povão moreno, como diria Darcy Ribeiro? Bem, o povão, como categoria maleável, por não bem definida, vive ainda, em parte substancial, sofrendo as agruras da pobreza e da exclusão da cultura dominante, enquanto uma parte minoritária está em ascensão socioeconômica, participando fragmentadamente dessa cultura. Percebe a luta renhida das classes políticas pela visada anárquica da sensibilidade, pelos comportamentos e atitudes, pelos interstícios dos discursos, pelas ações de caráter pessoal ou coletivo. Percebem esses atos como significantes metonímicos, cujo sentido só é obtido por uma síntese conjuntiva realizada por um símbolo maior de compreensibilidade. Alguns anos atrás, esse povão votou num candidato que lhes prometia, por gestos e atitudes messiânicos, uma redenção, que não foi cumprida, posto que falsa. Lula os despertou, virou seu símbolo (ou ícone) e os chamou para seu lado pela mesma percepção da sensibilidade, não pela argumentação dialética, posto que os indícios de que Lula teria meios para cumprir suas promessas não tinham nenhuma base factual, visto que nunca havia sido executivo e seu partido não dera nenhuma mostra de realização dos seus intentos revolucionários ou reformistas. Aliás, os intentos políticos revolucionários foram amaciados pelo peso da responsabilidade de Estado e pela experiência político-administrativa e ficaram reduzidos, ao final, a simples retórica. De qualquer modo, Lula, o político proto-hiperdialético, “ganhou” o povão por seu modo de ser e estar no mundo, e confirmou esse ganho por políticas públicas não revolucionárias, 68

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antes por políticas de ordem racional, advindos da visada racionalista. Bolsa Família, empregos formais ou terceirizados, cotas para ascensão socioeducativa etc., são políticas concebidas e realizadas pelo governo FHC, muitas emuladas por políticas de compensação norte-americanas, cunhadas pelo mesmo Lula, antes de sua ascensão ao poder, como “compensatórias”, para não dizer “esmolas”, à implantação de políticas econômicas de feitio neoliberal (privatização de empresas de telefonia, metalurgia, a Vale do Rio Doce etc.), isto é, políticas correspondentes às mudanças recentes do capitalismo brasileiro por participação nas transformações do capitalismo internacional. Pode-se dizer que Lula e o PT são sujeitos dialéticos operando, num vai e vem de indecisão, no sistema capitalista, de visada racionalista. Dada a história brasileira desde sua formação, sua inserção no mercado capitalista desde 1533, com a implantação do primeiro engenho de cana de açúcar em São Vicente, alguém poderia dizer, em sã consciência, que haveria outro modo de ser no mundo atual? A visada racionalista é própria do capitalismo desenvolvido em sua plenitude. Pode-se dizer que os intelectuais do PSDB, principalmente os economistas e os cientistas sociais ligados ao grupo FHC, têm como objetivo implantar o capitalismo sem arestas dialéticas no Brasil, ainda que muitos deles tenham vindo de um registro dialético. São Paulo é a sua Nova Iorque. Para tanto, tal qual considerava Karl Marx em relação aos países não europeus, e também à Rússia czarista, haveria, ao final desse processo dialético avassalador, vencidos que seriam absorvidos e assimilados, quando muito relegados às beiradas da história. Nos termos da política brasileira, a ação desencadeada se daria pela tal fórmula de “acabar com a era Vargas”, fórmula esta que também foi duramente alvejada pelo PT, em sua disputa com o PDT, da qual saiu vencedor inconteste. Entretanto, no poder, em confronto com os sindicatos de trabalhadores e com organizações patronais, Lula logo se deu conta de que essa rejeição a Getúlio não casava bem com seu projeto político. E se recompôs rápida e espertamente. Os mais renitentes racionalistas do PSDB querem o Brasil capitalista ao modo americano, inglês, ou francês, dependendo do gosto cultural. Não veem outra saída. Aos vencidos serão concedidas bolsas de toda sorte, não maldosamente (creio eu), mas certamente sem nenhuma identificação com os destinatários, apenas por raison d´État, tal como se dá nos Estados Unidos com os programas de ação afirmativa dirigidos aos negros e chicanos. Eleições 2014 e a cultura política brasileira

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Já Lula, por sua vivência, vê nesse outro renegado uma vítima histórica, no que faz muito bem, e amplia o sentido de identificação cultural. De algum modo, isto é compreendido não só pelo povão, mas também pelas classes políticas de cunho esquerdista, especialmente as intelectualizadas. Entretanto, a entrega da mercadoria compensatória não vem sendo feita a contento, tanto do ponto de vista do povão quanto das mencionadas classes políticas. Eis a crítica fundamental, e eis também a razão pela qual uma boa parte desse povão, especialmente aquela em ascensão, não mais se identifica com os propósitos político-administrativos do PT, ou de Dilma Rousseff. Na política, esperar gratidão eterna é uma ilusão tremenda, mesmo porque esse mesmo povão não se considera um mero sujeito passivo da história. Sua ascensão é percebida, pela sua própria experiência de batalhar por sua sobrevivência, como um feito próprio, dadas as condições possíveis. Soltando-se das amarras da marginalidade e da ancilaridade, quer o povo mais do que se lhes oferta. E eis porque o PT por muito pouco não perdeu essas eleições. Chegando ao fim desta sucinta análise, resta-me ainda talvez esclarecer minha posição a favor de Aécio no segundo turno das eleições passadas. Nas entrelinhas deste texto talvez alguns tenham percebido algumas motivações de ordem pessoal. Elas valem, mas não tanto. O que vale é minha visada hiperdialética sobre a história do Brasil e sobre a política brasileira. Eu sou partidário de uma terceira visão do Brasil. Não a dialética, nem a racionalista. Entendo, entretanto, que essas são determinantes no contexto em que vivemos e as respeito pela sua existência e por suas forças mobilizadoras. Eu também as tenho em mim e em meus argumentos, inescapavelmente. Porém, superá -las é tarefa dos nossos tempos. Em primeiro lugar, há que se romper as amarras da marginalidade e da ancilaridade que mantêm o povão distante e, ao mesmo tempo, dependente, da cultura dominante. Para isso, o caminho não violento é o da educação. Não vejo essa prioridade sendo trabalhada com consciência cultural, embora educação seja o tema mais enfatizado nos discursos políticos, desde sempre, e por grandes pensadores brasileiros. Algo muito grave impede que uma educação de qualidade seja providenciada para o povão. As obstruções não são apenas de ordem econômica, mas devem-se também à própria classe que se faz educadora, isto é, ao compro70

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metimento destrambelhado desse segmento, em geral de classe média. Não é propriamente devido a uma luta de classes (médias contra baixas), senão por uma disputa de ordem estamentária – o estamento superior, onde se localizam a classe média e seu ramo docente, se indispõe a destroçar as barreiras do regimento estamentário vigente no Brasil – estamento concebido aqui de um modo bem mais ampliado que o proposto por Raymundo Faoro, mais aos moldes da visão de Florestan Fernandes, em seus estudos sobre as condições socioculturais do negro brasileiro. Não vejo nenhum ímpeto de concepção e aplicação política e cultural nesse setor por parte do PT. Muito menos do PSDB. Vejo-o, vi-o, como reminiscência do projeto Ciep – que propunha uma escola não somente de tempo integral, mas com qualidade total, desde sua pedagogia às facilidades extracurriculares –, apenas na proposta de Eduardo Campos, e por isso abracei sua candidatura, referendada por Marina Silva. Da mesma forma, alimentei a expectativa de que Aécio, ao conformar uma aliança programática, pudesse iniciar sua realização. Em segundo lugar, não obstante os dados socioeconômicos comparativos com os governos anteriores, favoráveis ao PT, como muitos amigos apontam, mas inegavelmente com base no que foi realizado anteriormente, o modo petista de administrar demonstra claramente não somente um atabalhoamento racionalista – hidrelétricas impostas aos índios por meio de enganações e recompensas de curto prazo e não negociação sobre a preservação de suas terras e participação nos seus resultados globais, inclusive financeiros –, mas em especial um grave desvio ético, compreendido não só pela corrupção de grupos, mas também pelo autocratismo (com o perdão do neologismo) – vide aparelhamento do Estado – que domina sua filosofia e sua prática políticas. Não vejo como o PT possa se autocorrigir dessas enfermidades políticas. Não certamente no segundo governo Dilma. Justificando-o como prática política tradicional brasileira, por isso mesmo o PT não entende que o desenvolvimento integrado do Brasil não pode ser moldado por essa atitude cínica e, por força, oportunista. Por fim, há o argumento, por muitos considerados não tão substantivo, de alternância do poder. As evidências históricas de nossa formação e de outros países latino-americanos demonstram essa necessidade, e muitos, ingênua ou conscientemente, consideram isso positivo. Pelo que estamos vivendo hoje, pelo que poderá se desdobrar no próximo ano no Congresso Nacional e em relação às empresas envolvidas no processo de corrupção, Eleições 2014 e a cultura política brasileira

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a mudança de governo poderia propiciar um tempo de respirar outros ares de novo, com novos modos de realização política, de críticas e de reformatação de nossa cultura e de nossa organização política. Mais não posso dizer sobre o que seria uma visada política hiperdialética, nem o que viria a ser a sociedade brasileira do futuro próximo. Como transcender o capitalismo, visando algo que chamamos corriqueiramente de socialismo, sem passar por ele em toda sua plenitude, não sei. Acho, contudo, que não precisamos nos espelhar nos Estados Unidos, nem na França ou Inglaterra, muito menos na China, Japão ou Coreia do Sul para tocarmos nossas vidas. Nossa inserção no mercado e no mundo cultural mundial não nos permite, é certo, sermos muito diferentes do que vimos sendo há muitos anos. São poucos os elementos estratégicos claros para propor algum tipo de salto ou atalho para o socialismo sem passar pela moenda do capitalismo. Considero que a educação, a ética e o senso de responsabilidade histórica são itens fundamentais para o desenvolvimento integral do Brasil. Considero que a história, do ponto de vista hiperdialético, não se faz por uma simples síntese, como a visão dialética – hegeliana, marxista ou weberiana – o propõe. A história não segue um caminho retilíneo feito por sínteses de contrários, em que a tese absorve a antítese e a incorpora, extinguindo-a. Tal como o proletariado faria com a burguesia, se a “revolução verdadeira” eclodisse. Antíteses continuam a existir, persistem, ainda que submetidas a novas sínteses, enquanto houver espaço no processo histórico global (econômico, cultural e político). A história como processo hiperdialético requalifica essa síntese de tal modo que favorece a permanência das antíteses, tal como se deu na história do Brasil com os povos indígenas sobreviventes, muitos viáveis culturalmente até no seio da cultura dominante, a cobrar seu espaço político-cultural na sociedade mais ampla. Enfim, nada que passou na história brasileira está resolvido, da escravidão ao servilismo, do patrimonialismo ao clientelismo, do jesuitismo ao positivismo, da matança de índios à violência urbana desenfreada. Persistem travestidos de muitos modos em nossas relações culturais e econômicas. A educação necessária ao povão não compreende tão somente os aspectos formais de aprendizado e qualificação para o mercado. Necessita mais ainda da abertura da cultura dominante à sua participação, não como sujeito passivo, mas como sujeito ativo e 72

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transformador. Parafraseando o jovem Marx, o professor é que tem que se abrir para o aluno, a classe média é que tem que se abrir para o povão. De certo modo, tal ocorrendo, apresentar-se-ia como uma aliança de “classes” que poderia não somente arrefecer as contradições entre os estamentos sociais superior e inferior que nos caracterizam desde sempre, como quiçá derrubar os muros que enclausuram o povão no estamento de baixo. Todos nós de classe média sabemos ou sentimos que a singularidade brasileira não está na herança europeia, que mal conseguimos exercer com alguma altivez, mas sim deriva da formação do nosso povão e de suas emanações culturais. Estas qualidades e especificidades da cultura brasileira popular refrescam o nosso ranço estamentista europeizante (norte-americanizante na atualidade), sem o que não passaríamos de uns lusos retesos caminhando pelos trópicos com chapéu coco. Imaginem o que será de nós quando a porteira se abrir e os muros da exclusão forem derrubados!

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Os processos democráticos pressupõem o respeito às regras do jogo e aos poderes constituídos Luiz Carlos Azedo

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golpismo é uma marca registrada na política brasileira. Do ponto de vista institucional, significa uma ruptura constitucional estribada nas Forças Armadas. Nem sempre deu certo, apesar da frequência. Mas foi bem-sucedido em momentos cruciais da história brasileira, como na Proclamação da República, que “o povo assistiu bestificado”, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964. Engana-se, porém, quem imagina que o golpismo é uma característica apenas das forças políticas mais conservadoras. Ele está impregnado na esquerda brasileira, como foi demonstrado em 1935, com os levantes comunistas do Rio de Janeiro, Recife e Natal, e às vésperas do golpe de 1964, quando se tramava a reeleição de João Goulart e a “reforma agrária na lei ou na marra”.

Nesse último caso, ganhou quem deu o golpe primeiro. Isso não justifica os 20 anos de ditadura que o país atravessou, com sequestros, torturas e assassinatos. A luta armada contra o regime militar, porém, também foi uma manifestação de golpismo. Por que? Era fruto de uma concepção militarista, que excluía o povo do processo decisório e pretendia implantar uma ditadura do proletariado. Mesmo com apoio da população, o golpismo carece de legitimidade. Os processos democráticos pressupõem o respeito às regras do jogo e aos poderes constituídos. Quando a cúpula do PT fala em golpismo, deve ter seus motivos, mas não parece que o problema real seja a oposição derrotada nas urnas. O que acontece é outra coisa. Cada dia que passa surgem novas evidências de violações às regras do jogo pelo PT e seus aliados. O segundo maior fornecedor da campanha de Dilma Rousseff foi uma empresa laranja que já havia sido citada no processo do mensalão; o governo gastou muito mais do que a Lei de Responsabilidade Fiscal permitia para ganhar as eleições e omitiu o fato mediante manobras contábeis; parte da propina do escândalo da Petrobras, flagrada pela Operação Lava Jato virou doação eleitoral. 74


Houve um vale-tudo para ganhar a eleição. O PT argumenta que a oposição, especialmente o PSDB, utilizou os mesmos métodos e que o jogo é jogado. Cita o escândalo do metrô de São Paulo, que seria tão antigo ou mais do que o da Petrobras. A tese é quase uma espécie de nos locupletamos todos, já que não há moralidade. A ameaça ao PT, porém, não vem da oposição, apesar dos discursos e dos protestos, alguns realmente golpistas, com objetivo de insuflar os quartéis. Na verdade, vem dos órgãos de controle que apuram os malfeitos na República: Polícia Federal, Ministério Público Federal, Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU) e, agora, a auditoria do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cujos técnicos propuseram a rejeição das contas de campanha da presidente Dilma. Mas voltemos à discussão sobre o golpismo. A ideia de que a eleição da presidente da República está acima das instituições republicanas é perigosa. Se fosse assim, nenhum prefeito ou governador poderia ser cassado. Impeachment não é golpe, cassação de mandato com base no devido processo legal também não. Fazem parte das regras do jogo e são instrumentos de autodefesa das instituições democráticas. A Presidência não está acima do bem e do mal. Este é o recado que está sendo dado pela alta burocracia (delegados, procuradores, auditores, juízes) que zela pela legitimidade dos meios utilizados na política. Mas ninguém está propondo o afastamento da presidente Dilma Rousseff, recém reeleita pela maioria dos brasileiros. Na verdade, o país está sobressaltado, principalmente, por causa da situação de descalabro na Petrobras. Como se sabe, a estatal carrega grande simbolismo, nasceu de uma vitoriosa campanha popular nacionalista. O próprio mundo político vive uma grande expectativa com relação aos desdobramentos do escândalo na estatal, devido ao suposto envolvimento de parlamentares, ministros e governadores no esquema. O PT, porém, numa coisa tem razão: sempre houve corrupção na política. A diferença é que isso ocorria na base da Lei de Murici, a máxima do coronel Tamarindo, que morreu esquartejado pelos jagunços de Canudos: “Cada um cuida de si”. A Operação Lava Jato, entretanto, desnudou um esquema sistêmico de envergadura, com um centro dirigente e muitas ramificações envolvendo grandes empresas e partidos.

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Sintomas mórbidos Quando o novo quer nascer e o velho ainda não morreu, estamos diante de uma situação potencialmente de crise e os seus sintomas mórbidos e patológicos aparecem. É mais ou menos o que está acontecendo nesta transição do primeiro para o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, no qual o cavalo de pau na condução da economia está em contradição com a continuidade nas relações políticas do “presidencialismo de coalizão”. Além da força de inércia das patologias de natureza administrativas, nos deparamos com os sintomas mórbidos das falcatruas na Petrobras e outras estatais, que estão sendo reveladas pela Operação Lava Jato da Polícia Federal. A única surpresa em relação ao novo governo, até agora, foi a indicação de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Mesmo aí, porém, há sintomas de que o velho não morreu e o novo ainda está por nascer. O Palácio do Planalto moveu mundos e fundos, na base do tradicional “é dando que se recebe”, para aprovar mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, vai gastar tudo o que pode para aliviar as despesas com “restos a pagar” em 2015, como servem de exemplo os R$ 30 bilhões transferidos pelo Tesouro ao BNDES por medida provisória. É grande o rombo dos empréstimos camaradas, uma parte dos quais foi parar nos caixas de campanha eleitoral — como no caso da JBS, que doou mais dinheiro do que as empreiteiras enroladas na Operação Lava Jato. O peso do passado no novo governo não é trivial. Represadas, as tarifas de ônibus, de energia elétrica e outros preços administrados terão de ser aumentados. O desmonte do que foi chamado de “nova matriz econômica” não será nada fácil. O Banco Central já sinalizou que manterá a inflação raspando o teto da meta, chegando mesmo aos 7% no primeiro semestre. Foi um banho de água fria no mercado, pois mostra que o presidente do BC, Alexandre Tombini, está mais afinado com a velha orientação da presidente Dilma Rousseff. Mira no emprego e na renda e não a meta de 4,5% de inflação, como caberia ao BC. O novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, anunciou um superavit fiscal de 1,5% para 2015, mas a proposta de Orçamento da União já reduziu essa meta para 1,2%. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2015 prevê um crescimento do PIB de apenas 0,8% no ano que vem. Ou seja, teremos um ano de crescimento baixo e inflação alta, provavelmente com menos empregos e perdas salariais, apesar da retórica oficial. 76

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O pano de fundo dessas dificuldades é uma visão atávica de que os gastos públicos serão a alavanca para o crescimento da economia, muito mais do que os investimentos privados, o que significará, talvez, até aumentar a carga tributária. Além disso, da mesma forma como culpa a crise mundial pelas dificuldades econômicas que enfrenta, o Palácio do Planalto acredita num ambiente externo mais favorável em 2015. Na verdade, sem agouro, a situação será outra, a curto prazo: a recuperação dos Estados Unidos terá forte impacto no câmbio, a moderação do crescimento da China joga pra baixo os preços das commodities e o cenário de agravamento da crise europeia prejudica ainda mais nossas exportações, sobretudo de manufaturados. E ainda tem a redução do preço do petróleo, que prejudica a exploração do pré-sal. A velha política Dilma venceu as eleições com um discurso eleitoral que mascarou os problemas e muito prometeu, mas agora está diante da realidade nua e crua. O país regrediu em muitos aspectos, não apenas do ponto de vista do equilíbrio fiscal. Agravaram-se os problemas ambientais e energéticos, as políticas públicas de saúde, educação, transportes e segurança deixam a desejar. A nossa indústria está sucateada. E a infraestrutura não entrou em colapso por causa da baixa atividade econômica. Não sabemos se a nova equipe ministerial estará à altura desses desafios. Dilma Rousseff é prisioneira da velha política. No momento, sofre fortes pressões dos partidos aliados para a formação de seu ministério. Ao contrário do presidente Lula, que conseguiu formar uma equipe melhor no segundo mandato, nada garante que agora acontecerá o mesmo, embora a nova equipe econômica tenha sido recebida de forma positiva pelo mercado e por alguns setores da oposição. O toma lá dá cá parece impor a sua lógica à formação da nova equipe ministerial. O PMDB não abre mão de seis ministérios; o PP e o PR também querem lugares privilegiados pelo orçamento e pela capilaridade. O PT mira posições-chaves no governo e já mandou recado de que pretende controlar as verbas de publicidade do governo.

E tem a metástase da Operação Lava Jato. A estratégia de Dilma Rousseff é fazer do limão uma limonada. Estariam envolvidos no escândalo cerca de 40 políticos, entre deputados, senadores, ministros e governadores. Nada garante que o enfraquecimento do PT, do PMDB e do PP, partidos mais citados nas denúncias da Lava Jato, venha a beneficiar a formação do novo governo. Eis aí mais um sintoma mórbido. Os processos democráticos pressupõem o respeito às regras

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Diálogo com as esquerdas militantes1 Raimundo Santos

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s protestos de junho de 2013 abalaram a vida nacional ao revelarem quanto distanciada ainda está a sociedade do Estado criado pela Constituição cidadã de 1988 que aproximou a democratização social da democracia política. As manifestações nas ruas e nas redes sociais interpelaram o Congresso Nacional, todos os partidos e associativismos, e a própria atividade política. Estes são os dados básicos da nova circunstância que o país vive no plano político desde aquela ativação juvenil.

Então, as esquerdas militantes viveram seu próprio momento de espanto na eclosão dos protestos. Depois, áreas suas e da própria intelectualidade passaram a desqualificá-los, dizendo que carregavam reacionarismo de classe média. O sentido renovador das contestações de opinião pública de junho iria se diluir à medida que surgiram manifestações com traços diferentes, procurando mudar o cenário das ruas. Como logo proclamaram seus defensores, estas teriam direção organizada, o que significava dizer, condução vanguardista tradicional de forte presença no campo das esquerdas militantes. As novas ações de rua seguiram pelo resto do ano de 2013, passaram pela Copa de 2014, chegando até bem entrado o processo eleitoral deste ano. Alguns dos seus protagonistas, citando três dos traços mais visíveis, especialmente observados no Rio de Janeiro, reivindicavam-se esquerda revolucionária, ativistas anticapital e antiEstado, não sinalizando, no entanto, para seus protestos e próximos passos, rumo fundamentado em reflexão sobre a circunstância brasileira, por isso podendo ir, a cada situação que surja, por rotas mais desconhecidas e perigosas.

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Este texto foi apresentado no Grupo de Trabalho “De junho/2013 à Copa: Narrativas e interpretações das mobilizações populares”, do IV Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito/Faculdade de Direito (UFF), Niterói, 14-15 de outubro de 2014.


Essa ausência no agir militante de uma baliza proporcionada por análises de conjuntura lembra o momento do enrijecimento do regime de 1964, após a imposição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, quando vários grupos de esquerda radicalizaram-se. Esta ida ao passado traz para as correntes de esquerda militantes ativadas à sequência dos protestos de junho de 2013 o tema do ator diante da sua circunstância de modo bastante útil. Não se busca uma imagem do passado vazia, mas a lembrança das posições das esquerdas daquela época sobre a estratégia para combater a ditadura. Enquanto o PCB, tendo por norte a luta pelas liberdades democráticas (PCB, 1965), defendia o caminho político da resistência, isolamento e derrota do regime de 1964, outras correntes de esquerda, justamente por não valorizarem o processo político vivido pelas oposições, decidiram ir para o confronto direto. Entre 1965 e 1967, vinham se afirmando ações contra o regime de 1964: eleitorais, logo em outubro de 1965, quando ele foi derrotado nos pleitos para governador em Minas Gerais e na Guanabara; partidárias, com a criação do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), também em 1965, e com o movimento da Frente Ampla, cujo manifesto, assinado por Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart, foi lançado em 27 de outubro de 1966, em defesa dos seguintes pontos: eleições livres e diretas, reforma partidária e institucional, retomada do desenvolvimento econômico e a adoção de uma política externa soberana. A Frente Ampla teve suas atividades proibidas em 5 de abril de 1968. Nesses mesmos anos, saíam à superfície resistências nas esferas da cultura, da vida intelectual e do associativismo à medida que eram recuperadas suas entidades, e, no campo estudantil, cujo ponto alto foi a passeata dos 100 mil, na cidade do Rio de Janeiro, ocorrida em 26 de junho de 1968. O AI-5 interrompeu toda essa mobilização antiditatorial, impondo o “Estado policial” no país, como dizia um texto divulgado pelo MDB gaúcho em 1974 (MDB, 1975). Aos atores postos numa tal circunstância era exigido avaliar a situação efetivamente existente. Ao não recorrerem a uma reflexão sobre a natureza do regime de 1964 e à análise da conjuntura, os setores radicalizados reduziram a luta contra a ditadura à questão da “forma de luta” e escolheram as ações armadas, pois consideravam as lutas políticas inócuas e não Diálogo com as esquerdas militantes

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revolucionárias. Assim, enquanto o PCB seguia na frente democrática reunida em torno do MDB, da qual foi um dos principais artífices e, nos momentos críticos, seu defensor intransigente, não poucos grupos militantes, com um grande número de estudantes e jovens, foram para a luta armada. As correntes que concentravam suas ações na luta pelas liberdades democráticas, em particular o PCB, não tiveram capacidade de convencimento para evitar aquela radicalização (GUEDES, 1973). Os próprios comunistas se dividiram, tendo dirigentes e muitos quadros seus organizado grupos de luta armada. Inclusive intelectuais de renome, à época bastante gravitantes no campo intelectual-político em que circulavam as esquerdas democráticas, reformistas e revolucionárias, não contribuíram para este tipo de convencimento. Ao contrário, o seu paradigma estagnacionista levaram-nos a escrever artigos que previam o fracasso do regime de 1964 no plano econômico, e, por conseguinte, a divisar seu colapso no curto prazo, assim induzindo à tese da sua derrubada (SANTOS, 2014). O diálogo que faltara entre os dois campos das esquerdas – em torno da natureza obrigatoriamente defensiva que assumia a luta oposicionista na circunstância pós-64, sobretudo às vésperas dos anos de chumbo, exigia muita lucidez, como insistia o PCB (GUEDES, 1970) –, por assim dizer, novamente está posto. Agora, em termos de uma interlocução entre as correntes intelectuais de pensamento democrático de esquerda, hoje dispersas em ambientes intelectuais e partidários, pois já não há no país esquerda militante de orientação democrática influente na vida política nacional, e grupos militantes que saíram às ruas depois de junho de 2013. Uma dessas correntes, identificada com a defesa da democracia política e compromissada com o desenvolvimento da cultura democrática ativa da população, tem militância em círculos intelectuais-universitários, e na divulgação de ideias (artigos em revistas, sites, blogs, facebook, artigos e entrevistas frequentes em jornais de circulação nacional, publicação de livros e coletâneas, debates e reuniões). Ela descende de três construções formulativas integrantes do pensamento e padrão de agir do PCB, em suma, da cultura política pecebista. A que vem de muito longe, de Caio Prado Jr., com sua teoria da revolução brasileira como reestruturações da economia capitalista nacional e da política existente no país, por meio da asso80

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ciação entre a vida social com suas tensões e conflitos, a esfera dos partidos de ideias, debates sobre problemas nacionais e opinião pública, sob regime democrático, como se vê em Evolução política do Brasil (1933), História econômica do Brasil (1945); especialmente os artigos políticos publicados na Revista Brasiliense entre 1954 e 1964, in Prado Jr., 2007). Aliás, uma boa chave de leitura desses artigos são as anotações que Caio Prado faz em seus diários durante o ano de 1945 (ver IUMATTI, 1998). A segunda construção, a do pecebismo contemporâneo, tal como aparece em Armênio Guedes, prefigura a transformação do PCB em partido político e a valorização da política como meio de mudança social (ver GUEDES, 1957; 1958; 1970; 1987, in GUEDES, 2012). E, por último, a que vem da reinterpretação da modernização brasileira e do reconhecimento da Constituição de 1988 como concretização da nossa revolução democrática, e que já foi chamada de “matriz da revolução passiva”. Ela tem suas referências intelectuais mais visíveis em Luiz Werneck Vianna, Gildo Marçal Brandão, Marco Aurélio Nogueira, Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques, José Antônio Segatto e outros. Referências GUEDES, Armênio. Conversa com o autor deste texto em Santiago do Chile, 1973. ______. Algumas ideias sobre a frente única no Brasil (1957), in: O marxismo político de Armênio Guedes (Org. Raimundo Santos). Brasília/Rio de Janeiro: Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira-FAP, 2012. ______. Uma ação positiva das forças nacionalistas (1958), in: O marxismo político de Armênio Guedes (Org. Raimundo Santos). Brasília/Rio de Janeiro: Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira-FAP, 2012. ______. Resolução política do Comitê Estadual da Guanabara (1970), in: O marxismo político de Armênio Guedes (Org. Raimundo Santos). Brasília/Rio de Janeiro: Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira-FAP, 2012.

______. PMDB: as novas tarefas do partido da transição democrática (1987), in: O marxismo político de Armênio Guedes (Org. Raimundo Santos). Rio de Janeiro/Brasília: Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2012.

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IUMATTI, Paulo. Diários políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Brasiliense, 1998. MDB, Le MDB face a la conjuncture electorale (les lignes du programme), in: Études Brésiliennes (revista pecebista editada em Paris), n. 1, 1975. PCB. Resolução política do Comitê Central, maio de 1965. PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933. ______. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1945. ______. Dissertações sobre a revolução brasileira (Org. Raimundo Santos). São Paulo/Brasília: Brasiliense/FAP, 2007. SANTOS, Raimundo. O conjuntural desaparece por trás do estrutural, in: 1964: As armas da política e a ilusão armada, Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Brasília, out./2014.

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Financiamento de campanha e reforma política Arlindo Fernandes de Oliveira

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ideranças políticas brasileiras, especialmente governistas, têm insistido em concentrar a proposta de reforma política na defesa do financiamento público exclusivo de campanha como elemento estrutural, e do plebiscito como a maneira de tentar legitimar essa escolha. Este nos parece ser o melhor caminho para manter tudo como dantes. A reforma do sistema político, e, nele, de sua fórmula de financiamento, somente resultará na diminuição do peso do poder econômico nas campanhas, caso seja alterado o sistema eleitoral brasileiro. A expressão sistema eleitoral, nesse caso, se refere à sistemática aplicada às eleições para os cargos de deputado federal, estadual e distrital, e para vereador. Trata-se do assim chamado sistema eleitoral proporcional de listas abertas e voto uninominal, que o Brasil pratica desde 1945.

Não está em debate o sistema eleitoral majoritário, adotado para eleger prefeitos, governadores e presidente da República. Nesse caso, discute-se apenas o modelo de financiamento e o tema da reeleição. Salvo a disciplina da suplência e a extensão do mandato, tampouco se questiona a disciplina das eleições para o Senado. O sistema eleitoral proporcional de lista aberta com voto uninominal foi utilizado no Brasil, desde sua efetiva vigência, nas eleições de 1945, em 17 pleitos para deputado federal e estadual. E foi manejado também em número semelhante de eleições municipais. Podemos afirmar, então, que este é o único sistema eleitoral que o brasileiro conhece. Dada sua natureza, esse sistema é caro e será assim qualquer que seja o modelo de financiamento adotado. Por seu custo, favorece o poder econômico e a manipulação de máquinas administrativas. Ao personalizar o voto, enfraquece os partidos políticos. Ao ensejar cizânias internas, gera esse mesmo efeito.

O sistema eleitoral proporcional de lista aberta implica afastamento entre o eleitor e o representante eleito, e não traduz de 83


forma rigorosa a vontade do eleitor em mandato político de modo eficaz, causando, nesse passo, prejuízo à soberania popular e à expressão da verdade eleitoral. Os debates sobre a reforma política, no Brasil de hoje, cingemse a uma discussão sobre a reforma do sistema eleitoral e seu modelo de financiamento. Ou menos do que isso, na verdade, pois o sistema eleitoral brasileiro compreende os sistemas majoritário e proporcional: o primeiro aplicado às eleições para os cargos do Poder Executivo – Presidente da República, Governador de Estado e Prefeito Municipal – além do de Senador, enquanto o proporcional se aplica às demais eleições legislativas, sendo que apenas estas últimas são efetivamente objeto do debate. Discutimos, portanto, no presente momento, qual a fórmula legal a ser aplicada às eleições dos deputados federais, estaduais, distritais e dos vereadores. Os dois sistemas Os sistemas eleitorais aplicados aos regimes democráticos do mundo dividem-se basicamente em duas grandes famílias: a distrital, ou majoritária; e a proporcional. A partir da experiência alemã, decorrente da Lei Fundamental de Bonn, de 1949, observamos a afirmação do sistema misto, que combina elementos de uma e de outra dessas famílias. O sistema majoritário, ou distrital, nasceu na Inglaterra, e é aplicado principalmente por países que se inserem na tradição histórica e cultural anglo-saxã. Além da Inglaterra, o adotam os Estados Unidos, o Canadá, a Índia, a Austrália e Bangladesh, entre outros.

O sistema proporcional nasceu na Bélgica, em fins do século XIX, e as circunstâncias de seu surgimento incluíam a necessidade de favorecer a representação parlamentar da diversificada sociedade do país, a dimensão étnica e a religiosa, inclusive. Pelo sistema proporcional, cada partido, coligação ou aliança político-eleitoral é representado na Casa Legislativa na proporção dos votos obtidos junto ao eleitorado. Essa fórmula permite a representação parlamentar das minorias, favorece o pluralismo político, estimula a diversidade social e cultural, e é coerente com o propósito de fortalecer as representações partidárias, especialmente quando o voto é conferido à lista partidária. 84

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A adoção do sistema proporcional no Brasil se iniciou com o Código Eleitoral de 1932. Esse sistema de então, inicialmente muito complicado, foi modificado com a Constituição de 1934 e recebeu sua forma atual em 1945. Um dos principais elaboradores do Código Eleitoral de 1932 foi o jurista gaúcho Assis Brasil, que defendeu a representação proporcional com o seguinte argumento: Antes de tudo, e não tendo em vista senão o mais elementar espírito de justiça parece claro que a maioria dos eleitores deve fazer a maioria dos representantes, mas não a unanimidade da representação. Se esta representação é nacional e não de um partido, ela deve refletir, tanto quanto possível, como hábil miniatura, a situação geral, a soma das opiniões do povo que compõe a nação.

Do ponto de vista técnico, o sistema eleitoral adotado no Brasil nas eleições para os cargos legislativos, exceto senador, conjuga a chamada Fórmula Hare para o cálculo dos quocientes eleitoral e partidário; e adota a fórmula D’Hondt, das maiores médias, para o cálculo necessário ao preenchimento das vagas decorrentes das assim chamadas sobras, quando estas ocorrem. No sistema proporcional, admite-se a lista fechada, aplicada em um número maior de países, e a lista aberta, em que o eleitor, antes de votar no partido, vota em um candidato de um partido e, dessa forma, detém a prerrogativa de ordenar a lista partidária. Há, ainda, a opção de uma lista fechada e preordenada que pode ser alterada pelo eleitor. Este é o caso da lista preordenada, mas flexível. O sistema proporcional de lista flexível pode ser realizado mediante a reordenação da lista partidária pelo eleitor, ou simplesmente com o eleitor anotando, dentro da lista, o nome do candidato de sua preferência, o que faz com que esse candidato suba posições na lista pré-ordenada. O sistema eleitoral misto

Na Alemanha do pós-guerra, durante a elaboração da nova Constituição, os democrata-cristãos propuseram o sistema majoritário, enquanto os social-democratas, a outra formação influente, defenderam manter o sistema proporcional vigente no período histórico anterior, da República de Weimar (1919-1933). Como nenhum dos grupos tinha maioria bastante para impor sua Financiamento de campanha e reforma política

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proposta, optou-se por uma solução de compromisso, consistente no sistema eleitoral misto (meio distrital, meio proporcional), dotado da chamada cláusula de correção. Nesse sistema, a Câmara dos Deputados daquele país (Reichstag) será assim composta: o seu número de integrantes flexível, a partir do número-base de 598; o país é dividido em 299 distritos e, em cada um deles, o deputado será eleito em votação uninominal, com turno único; os partidos, além disso, lançam uma lista de candidatos em cada circunscrição eleitoral (nos estados, ou länder); assim, cada eleitor tem direito a dois votos, desvinculados: o primeiro para eleger o representante de seu distrito; o segundo, é dado a uma lista partidária; os deputados eleitos nos distritos têm o seu mandato assegurado; quanto aos integrantes da lista, há que observar o seguinte: O tamanho da bancada do partido é determinado pela votação na lista. Ou seja, se o partido obteve 10% dos votos na lista, tem direito a 60 deputados; caso o partido, com 10% dos votos, nesse exemplo, eleja 40 deputados nos distritos, estes têm o mandato assegurado, e as demais 20 vagas serão preenchidas pelos primeiros 20 candidatos da respectiva lista; caso o partido eleja mais de 60 deputados nos distritos, o número excedente será somado ao número total de deputados. Por esta razão, o número total de deputados é flexível. A esse sistema dá-se o nome de sistema eleitoral misto com cláusula de correção. A correção, nesse caso, faz-se mediante a citada adequação entre o voto conferido na eleição proporcional – o voto partidário – e o total de representantes do partido na Câmara dos Deputados. Desde 1949, o sistema eleitoral misto tem sido aquele que maior número de adeptos tem conquistado: hoje, o adotam a Itália, a Rússia, a Ucrânia, a Nova Zelândia, a Hungria, a Venezuela, as Filipinas, a Coreia do Sul, a Tailândia e Taiwan, entre outros. A chamada terceira onda de democratização, aquela ocorrida no século XX, e descrita por autores como Samuel Huntington, levou o sistema eleitoral misto aos mais diversos continentes, especialmente à Europa Oriental e à Ásia. O sistema eleitoral brasileiro e custo das campanhas

No sistema eleitoral brasileiro, o candidato é eleito por um partido ou coligação, a qual funciona, no processo eleitoral, como 86

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um partido temporário. Ela serve para definir os candidatos eleitos, durante o processo eleitoral, e serve também, durante os anos do mandato, para estabelecer os suplentes e a sua ordem. Apurados os votos, calcula-se inicialmente o quociente eleitoral, que constitui o número mínimo de votos necessário para que um partido ou coligação eleja um deputado ou vereador. O quociente eleitoral é definido pela divisão do total de votos válidos, em dada eleição, pelo número de vagas em disputa. Em seguida, calcula-se o quociente partidário, que, muitas vezes, costuma ser relativo a uma coligação, aqui vista como um partido. Tal quociente, que consiste em observar se o partido ou coligação alcançou o quociente eleitoral e quantas vagas lhe cabem, determina quantos serão eleitos pelo partido ou coligação, nesse primeiro cálculo. Ocorre que, sistematicamente, uma parte das vagas deixa de ser preenchida por esse primeiro critério, aqui descrito, o que obriga a um segundo cálculo, chamado de cálculo das sobras. Por ele, a quantidade de votos que o partido ou coligação obteve será dividida pelo número de vagas que ele alcançou no primeiro cálculo, mais um, para se chegar a uma média. Esse cálculo, das maiores médias, ou do Método D’Ondt, é repetido com todos os partidos ou coligações que alcançaram o quociente eleitoral e, em seguida, repetido até que todas as vagas sejam preenchidas. No caso, o montante dos votos de cada partido ou coligação são os votos dados aos seus candidatos e aqueles simplesmente registrados em favor da sua legenda. O partido ou coligação que obtiver a maior média terá direito à primeira sobra. Este partido ou coligação participará do rateio da segunda sobra acrescentado mais um ao seu respectivo divisor. Esse procedimento será repetido até que todas as vagas sejam ocupadas. Finalmente, serão considerados eleitos os candidatos mais votados de cada partido ou coligação que tenham alcançado o quociente eleitoral, até o limite dos quocientes partidários mais as vagas obtidas pelo cálculo das sobras, ou, em termos técnicos, pelo cálculo das maiores médias. Esse sistema, na prática da vida política, é responsável pelo fenômeno da luta eleitoral intrapartidária, uma vez que os principais adversários de cada candidato são justamente seus companheiros de partido ou coligação, pois que com ele disputam as melhores posições na lista de candidatos. Na hipótese em que um partido ou coliFinanciamento de campanha e reforma política

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gação inscreva cinquenta candidatos e, nas condições político-eleitorais em que ocorre o pleito, se estime que tenha condições de eleger três, os eleitos serão os três que lograrem superar, na composição da lista, os demais quarenta e sete. Essa situação gera conflito de interesses dentro do partido ou da coligação. Em síntese, nos termos do sistema eleitoral brasileiro, ou seja, aquele adotado para a eleição dos cargos de deputado federal, estadual e distrital, e para o de vereador, cada candidato constitui um ente isolado, com personalidade política própria, e cujos interesses se tornam contraditórios em relação aos de todos os demais candidatos ao mesmo cargo, sobretudo daqueles que concorrem pelo mesmo partido ou coligação. Assim, cada um desses candidatos constitui em torno de si um complexo de interesses independentes e autônomos em relação a todos os demais. Para ser viável, esse candidato precisa constituir para sua campanha um sistema de financiamento igualmente autônomo. Por isso, colocando outra vez a situação em termos práticos, o candidato precisa, em boa medida, funcionar como se fosse um partido do eu sozinho, um partido unipessoal e temporário, cujo sucesso se vincula ao resultado daquele processo eleitoral específico. Essa circunstância corriqueira no processo político brasileiro atua fortemente no sentido de tornar o processo eleitoral ainda mais oneroso financeiramente. Como argumenta Jairo Nicolau: “Primeiro, em eleições para o Legislativo, o sistema eleitoral tende a aumentar o custo das campanhas. O sistema eleitoral brasileiro (representação proporcional em lista aberta) incentiva táticas de campanha individual. Sob tais regras, os candidatos têm de competir com seus partidários e com os candidatos de outros partidos, e, portanto não podem apelar aos eleitores com uma base coletiva, partidária: para ganhar votos, os candidatos têm de se diferenciar individualmente. Uma forma de fazê-lo é levantar e gastar fundos construindo uma base de voto personalizada por meio de favores, presentes e outros benefícios”. Como a nº 9.504, de 1997 (Lei Eleitoral), permite que cada partido registre até 150% dos lugares a preencher, e cada coligação lance até o dobro desses lugares, dá-se que em um estado como São Paulo, por exemplo, que conta com setenta vagas de deputados federais, cada partido possa lançar até 105 candidatos ao cargo, e cada coligação, até 140. O resultado desse sistema é que houve, nas eleições de 2014, 1.485 candidatos ao cargo de deputado 88

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federal na terra paulista. E como o sistema faz com que cada candidato constitua um sistema de interesses independentes, tem-se que dessa realidade somente possam resultar eleições situadas entre as mais caras do mundo para cargos parlamentares. Deve-se reconhecer, contudo, que as eleições na regra do sistema majoritário também são caras, e que a realidade do alto custo eleitoral não é exclusiva do Brasil. Há que se notar, ainda, que o alto custo das campanhas eleitorais brasileiras sofre também a influência de outros fatores, extrajurídicos, com natureza sociocultural, relacionadas à fragilidade da sociedade civil e à submissão de grandes parcelas do eleitorado ao poder econômico e à influência das máquinas administrativas e suas políticas compensatórias. Mas é inegável que a maior parcela de responsabilidade pelo peso exagerado do poder econômico e das máquinas administrativas no processo eleitoral brasileiro decorre das características do sistema eleitoral e, em especial, a lista aberta e o voto uninominal. No que se refere aos gastos de campanha, o debate às vezes se circunscreve à arrecadação dos recursos para as campanhas, mas estes decorrem de um sistema eleitoral que, por sua natureza, os exigem em nível muito elevado. Arrecada-se muito porque o sistema exige eleições caras. Como argumenta Caetano Ernesto Araújo: É possível constatar que toda a discussão a respeito de financiamento de campanhas eleitorais aborda a questão a partir da perspectiva exclusiva da entrada de recursos, ou seja, da regra de arrecadação. Debate-se o fluxo de recursos financeiros para a campanha, sua origem, se pública e/ou privada, e as limitações a que deve estar sujeito. A discussão ignora, até o momento, a perspectiva alternativa do gasto eleitoral, do curso comparativo das eleições no país, ou seja, da saída desses recursos no decorrer da campanha. Mesmo o debate em torno do sistema eleitoral tem como foco o fortalecimento dos partidos, sem analisar as consequências do sistema em termos de volume de gastos, demanda por recursos e relação dos candidatos com o universo dos financiadores.

A necessidade de reforma do sistema eleitoral no Brasil

Um debate sério sobre o aprimoramento do sistema político somente acontecerá, no Brasil, quando incluir entre seus temas principais a reforma do sistema eleitoral aplicado às eleições para deputados federais e estaduais, e vereadores. Diante desse tema, Financiamento de campanha e reforma política

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o financiamento das campanhas eleitorais pode tornar-se secundário, face o impacto do sistema proporcional de lista aberta no custo das eleições. Mantido o sistema atual, as eleições continuarão caras, e o peso do poder econômico e das máquinas administrativas e eleitorais permanecerá, qualquer que seja o modelo de financiamento. A possibilidade de democratizar o processo eleitoral brasileiro, mitigando o peso do dinheiro nos processos eleitorais e fortalecendo a cidadania, depende da rejeição do sistema eleitoral proporcional de listas abertas. Mantido esse sistema, a proposta de financiamento público de campanhas, especialmente se for exclusivo, será manobra diversionista, útil apenas para desviar a atenção das pessoas durante processos eleitorais ou como recurso para justificar atos de corrupção. Pior: a introdução do financiamento público exclusivo poderá implicar a aplicação à distribuição dos recursos aos partidos e candidatos a mesma fórmula ou fórmula assemelhada àquela que é hoje utilizada para distribuir entre os candidatos o tempo de propaganda no rádio e na TV. Por ela, que guarda relação com o tamanho das bancadas dos partidos na Câmara dos Deputados, alguns candidatos podem ter recursos e tempos de propaganda gratuita em volumes muitas vezes superiores aos de outros. Para que se tenha ideia das dimensões desse perigo, basta apreciar a realidade da distribuição do tempo de propaganda gratuita na recente campanha eleitoral de 2014 para a Presidência da República: enquanto uma candidatura dispunha de mais de onze minutos (Dilma Rousseff), outra dispunha de um terço desse tempo (Aécio Neves), ou um sexto (Marina Silva), ou menos de dez por cento dele (Eduardo Jorge e Luciana Genro). Assim, a observação da evolução histórica da legislação eleitoral durante os últimos trinta anos nos permite prever, mantidas as condições que hoje determinam o processo legislativo, que os critérios de distribuição dos recursos do fundo de financiamento de campanha não serão distintos daqueles que são hoje utilizados para distribuição do tempo de propaganda no rádio e na TV, até porque inexistem critérios alternativos nesse debate. A referência padrão é a representação dos partidos na Câmara dos Deputados ou, no caso de coligação, a soma das representações dos partidos que a integram. Claro que há opções legislativas: uma seria aplicar ao caso os critérios que a Lei dos Partidos Políticos utiliza para a distribuição 90

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dos recursos do Fundo Partidário. Como é sabido, aqui prevalece, como referência, a quantidade de votos que o partido recebeu nas eleições para a Câmara dos Deputados. Isso, entretanto, pouco modificaria a realidade que aqui se cogita. Outra opção seria destinar ao candidato apenas o tempo (e os recursos) relativo ao seu partido, sem considerar os tempos pertinentes aos partidos coligados. Essa providência, que pode desestimular o comércio de coligações, apenas mitiga a desigualdade. Ademais, sua viabilidade legislativa é duvidosa, pelas mesmas razões aqui expostas. Em qualquer desses casos, entretanto, incidirá um perigoso agravante: definido que o financiamento público será exclusivo, os candidatos dos partidos minoritários, além de prejudicados pelo menor tempo de propaganda partidária e eleitoral e pela quantidade menor de recursos financeiros, estarão também proibidos de buscar junto à sociedade, entre pessoas físicas e jurídicas, os meios materiais necessários para mitigar essas desigualdades e que lhes permitam disputar as eleições em condições menos adversas. Enfim, a adoção do financiamento público de campanha, especialmente se exclusivo, não contribuirá para aperfeiçoar a disciplina legal das eleições no Brasil. A decisão política de baratear o custo das campanhas eleitorais no Brasil exige a rejeição do sistema eleitoral proporcional de listas abertas, naturalmente encarecedor das eleições, e a adoção de um novo sistema, preferencialmente aquele que possa combinar o voto em candidato, no distrito, com o voto em lista partidária. Plebiscito e referendo Ambos constituem forma de consultar o eleitorado sobre tema de competência do Congresso Nacional. A diferença é que o plebiscito consulta, antes do exame do projeto de lei, sobre um tema em aberto (financiamento público, sistema misto ou distrital), enquanto o referendo consulta sobre um projeto de lei determinado, já apreciado pelo Poder Legislativo, mas que somente entrará em vigência caso referendado pela população. Em tese, não haveria grande diferença entre as duas formas de consulta, caso o tema fosse mais específico.

Entretanto, no caso da reforma política, matéria na qual os detalhes técnicos e jurídicos são da grande importância, o plebiscito pode significar assinar um verdadeiro cheque em branco. Não Financiamento de campanha e reforma política

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é difícil aprovar em plebiscito a adoção do sistema misto e, na prática, quando do exame da lei, esse sistema ser basicamente proporcional, ou distrital, quando de sua disciplina. Quando o tema é reforma do sistema eleitoral, o diabo mora nos detalhes. Já no referendo, o Congresso aprova a lei – com todo o seu detalhamento – e, portanto, o eleitor que dele participa tem conhecimento do tema e de suas minúcias. Ou seja, o referendo, quando o tema é reforma política, favorece uma maior transparência à participação popular no processo legislativo. Referências ARAÚJO, Caetano Ernesto Pereira de. Financiamento de Campanhas Eleitorais. Revista de Informação Legislativa . Ano 41, n. 161, p. 59-66, jan.-mar./2004. ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. Democracia Representativa: do voto e do modo de votar . 4. ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931. NICOLAU, Jairo. Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais . Rio de Janeiro: J. Zahar, 2012. 167p. il. (Nova Biblioteca de Ciências Sociais).

NICOLAU, Jairo. Para reformar o financiamento de campanhas no Brasil. Democracia Viva, n. 37, p.11-28, dez./2007. SAMUELS, David. Financiamento de campanhas no Brasil e propostas de reforma. Suffragium: revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, v. 3, n. 4, p. 11-28, jan.-jun./2007.

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IV. Batalha das Ideias


Autores Fabrício Maciel

Pós-Doutorado em Sociologia, em andamento na Humboldt-Universität zu Berlin, professor adjunto do mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades da Universidade Candido Mendes .

Jaime Pinsky

Historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto .

Laécio Noronha Xavier

Advogado, mestre em Direito Constitucional (UFC), doutor em Direito Público/UFPE e professor de Direito Urbanístico-Municipal/Unifor .


A precária sociedade mundial do trabalho Fabrício Maciel

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aumento gradativo e inevitável do trabalho precário em todo o mundo é uma das questões mais relevantes da realidade social contemporânea. Na periferia do capitalismo, presenciamos atualmente a radicalização de um processo que eu gostaria de denominar como a precarização estrutural do trabalho, o que em grande medida sempre esteve inscrito em nossa história. Por outro lado, em seu tradicional centro, ou seja, as nações ricas do Atlântico Norte, é possível observar, pelo menos desde a década de 1970, um aumento quantitativo no trabalho informal e precário e uma correspondente mudança qualitativa nas condições e nas relações de trabalho. Em outros termos, isso significa que o centro do capitalismo presencia agora uma precarização conjuntural do trabalho. Esta nova realidade nos obriga a repensar a sociedade contemporânea com conceitos novos. Estes só podem derivar da observação das novas situações empíricas de trabalho que o mundo atualmente nos apresenta.

O trabalho precário, ou seja, aquele sem seguridade social, sem vínculos estáveis e sem segurança ontológica, sempre foi uma característica estrutural de sociedades periféricas como a brasileira. Desde que a sociedade do trabalho moderna se instaura no Brasil, na era Vargas, o que experienciamos é a inclusão parcial das classes populares no sistema formal de trabalho. Uma parte significativa de nossa sociedade desde então sempre permaneceu excluída da possibilidade de acesso ao trabalho formal e digno. Em outros termos, a precariedade estrutural do trabalho, o que significa também o não acesso de todos ao caminho do trabalho 95


digno, ou seja, aquele que pressupõe condições mínimas de proteção e respeito ao corpo e ao espírito, sempre foi uma das marcas centrais de nossa modernidade periférica. A realidade das nações ricas do Atlântico Norte, em contrapartida, durante todo o século XX, foi completamente diferente. A estabilização estrutural do trabalho é um de seus principais pilares, contrário ao que se experienciou até então na periferia. A modernidade central dos países ricos, em outros termos, significa a generalização do trabalho digno para toda a sua população. Isso não é mera realização histórica do Welfare State. Também é fruto dos conflitos históricos da classe trabalhadora europeia. Esta, entretanto, só alcançou a sua dignidade por viver em condições objetivas favoráveis para tanto, exatamente o contrário do que sempre viveu a ralé brasileira. Na periferia, a precarização estrutural significa o contrário da estabilização estrutural, ou seja, a impossibilidade perene de criação de condições objetivas para o acesso de todos ao trabalho digno. Entre nós, este acesso sempre foi e ainda é parcial e seletivo. Desde os anos 70, entretanto, esta realidade global começa a presenciar um processo gradativo de mudança. A queda do Welfare State em várias das principais nações ricas da Europa é um dos principais fatos empíricos que atestam esta afirmativa. O aumento do trabalho informal e precário, realizado em grande parte por estrangeiros do leste europeu ou não europeus, passa a ser uma característica cada vez mais evidente nas sociedades europeias desde então. Isso significa, essencialmente, o advento gradativo de condições e situações instáveis e imprevisíveis de trabalho. O desemprego conjuntural e o aumento significativo de beneficiários da ajuda social do Estado (os Hartz-IV-Empfänger na Alemanha, por exemplo) também fazem parte desta nova realidade do trabalho na Europa. Deste modo, a estabilização estrutural do trabalho no tradicional centro do capitalismo começa gradualmente a experienciar um processo de desestabilização, ou seja, começa a conhecer a precarização do trabalho. Um outro aspecto deste novo panorama geral do trabalho surge agora na periferia. Desde os anos 90, e com intensificação maior na década de 2000, vários países da modernidade periférica, como o Brasil, passam a presenciar um significativo aumento gradual nas possibilidades de acesso ao trabalho digno. No caso brasileiro, vários indicadores oficiais sugerem um relevante aumento na geração de postos de trabalho formais e na consequente inclusão gradativa das classes populares em condições mais dignas de vida. 96

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Especialmente na década de 2000, o aumento sem precedentes da chamada “classe C” no Brasil tem sido o principal indício de uma mudança social especialmente significativa na história da precarização estrutural do trabalho. O significativo crescimento desta nova classe, em seu potencial produtivo e de consumo, bem como em sua força e significado político, é a principal característica do início de um novo processo de estabilização do trabalho no Brasil, ou seja, uma desprecarização conjuntural de nossa precarização estrutural histórica. Este processo é conjuntural na medida em que, ainda que apresente números significativos de ascensão e inclusão social, não abrange todas as frações das classes populares no Brasil, deixando de fora a nossa ralé. Estas duas novas realidades empiricamente observáveis, ou seja, o início de um processo de desestabilização do trabalho no tradicional centro do capitalismo e, de outro lado, um processo de estabilização conjuntural, em países da modernidade periférica, parecem se complementar na conformação gradual de uma nova realidade global. Trata-se de uma nova sociedade mundial do trabalho, cuja principal característica é a generalização do trabalho precário, ainda que diferencialmente, tanto em seu centro quanto em sua periferia. Esta nova realidade global, que vem se estruturando de forma significativamente nova desde pelo menos os anos de 1970, com padrões de produção e reprodução modificados, tem sido enfrentada por alguns conceitos que hoje já são dominantes. Dentre eles, o paradigma capenga da globalização parece ser o mais influente. Um longo debate já existe sobre o tema tanto dentro quanto fora do Brasil. No geral, a ideia de globalização sugere um enfraquecimento dos Estados nacionais e uma internacionalização da economia sem precedentes na história, bem como o surgimento de redes de atores econômicos e sociais transnacionais. O problema deste conceito é que ele é elástico, podendo de imediato ser utilizado para a explicação de todas as questões sociais contemporâneas. É quase que uma palavra mágica facilmente mobilizada para se explicar tudo, na ausência de conceitos melhores. Outra perspectiva dominante hoje, que em vários aspectos na verdade não contraria a ideia de globalização, é o que poderíamos denominar como a combinação “Pós-Fim”. Nas últimas décadas, o pensamento dominante declarou a pós-modernidade, as sociedades pós-tradicionais, pós-industriais, pós-nacionais, pós-coloniais, etc. Por outro lado, vários fins também foram declarados: o fim das sociedades nacionais, o fim da história, o fim das sociedades indusA precária sociedade mundial do trabalho

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triais, o fim do capitalismo e também o fim das sociedades do trabalho e das classes. Este último é o que especialmente nos interessa. Na verdade, a ideia do fim das sociedades do trabalho e das classes compartilha de um traço comum com as demais perspectivas. Parece que o aspecto mais relevante aqui é o fim da sociedade industrial e o advento de um novo capitalismo globalizado. A compreensão do processo conjugado de precarização estrutural na periferia e de precarização conjuntural no centro exige que enfrentemos este processo de transição entre as sociedades industriais nacionais e a nova realidade que estamos chamando de uma nova sociedade mundial do trabalho. Para todos os grandes clássicos da sociologia, as sociedades industriais são sinônimos de sociedades nacionais. Também são sinônimos de sociedades do trabalho e das classes. As tentativas dominantes de interpretação da nova realidade global dissociaram os conceitos de trabalho e classe, cuja articulação era central na teoria clássica sobre o mundo moderno. Uma nova teoria sobre a sociedade mundial do trabalho precisa realizar a sua rearticulação a partir da nova realidade empírica global. Dois aspectos cotidianamente presentes na mídia global contemporânea chamam a atenção para a necessidade de se pensar sobre uma nova conformação na relação entre a precarização estrutural do trabalho na periferia e a sua atual precarização conjuntural no centro. De um lado, nos deparamos com o discurso sobre os emergentes, ou seja, a ascensão de uma nova classe média na periferia do capitalismo. No Brasil, podemos perceber sua importância empírica e analítica em sua relação com as eleições presidenciais e com eventos recentes como as manifestações de rua de 2013 e a copa do mundo no Brasil. Por outro lado, presenciamos o discurso da crise europeia, na qual a crise do emprego e o crescimento inevitável do trabalho precário estão o tempo inteiro na pauta do dia. Estes dois discursos, um sobre o centro e o outro sobre a periferia, se articulados, podem apontar para um importante sintoma empírico na nova realidade global, que precisa ser enfrentado com teoria. Entretanto, estes dois discursos, que no fundo são faces de uma mesma moeda, parecem exagerar as realidades atuais do centro e da periferia da nova sociedade mundial do trabalho. O discurso da crise europeia sugere uma precarização estrutural no centro do capitalismo, enquanto que uma leitura atenta sobre o tema e um olhar sobre a atual realidade empírica parecem apontar para uma precarização apenas conjuntural, que ainda 98

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não afeta profundamente a infraestrutura dos países centrais e a qualidade de vida de todas as suas classes sociais. Por outro lado, o discurso da ascensão dos emergentes sugere agora uma estabilização estrutural do trabalho na periferia, quando na verdade o que as pesquisas recentes tendem a sugerir é que se trata apenas de uma estabilização conjuntural do trabalho, e não de mudanças profundas nas estruturas sociais da modernidade periférica. Uma nova teoria social sobre a sociedade mundial do trabalho não deve se contentar com esta edição da realidade realizada pela grande mídia e por parte do pensamento acadêmico dominante. O discurso já dominante, sobre a crise europeia e os emergentes na periferia, nos apresenta uma meia verdade e não uma compreensão profunda da realidade global contemporânea. Na condição de meia verdade, este discurso pode ser compreendido como um dado empírico. O que ele quer dizer? De um lado, o alarde apocalíptico da crise europeia encontra afinidade e suporte teórico no pensamento dominante que declarou o fim das sociedades do trabalho e das classes. Não por acaso, teóricos como Ulrich Beck são porta-vozes oficiais da sociologia para a sociedade europeia hoje. Por outro lado, a celebração dos emergentes não deve ser simplesmente reproduzida pela teoria sem nenhum olhar crítico, mas também não pode ser ignorada. Ela parece sugerir o início de uma mudança empírica na economia mundial globalizada, na qual a hegemonia das nações do Atlântico Norte parece estar menos garantida. Entretanto, isso ainda não nos autoriza a falar em uma superação da dicotomia centro-periferia. A tematização teórica e empírica da nova sociedade mundial do trabalho precisa considerar e superar estas meias verdades discursivas. A crise europeia e os emergentes da periferia são dados parciais para análise que, se articulados, sugerem uma mudança nas estruturas tradicionais do capitalismo rumo a uma economia globalizada. Entretanto, neste plano, ainda não temos uma teoria sobre a nova sociedade mundial do trabalho. Esta precisa articular conceitualmente e com pesquisa empírica as mudanças atuais no centro e na periferia do capitalismo, de modo a percebê-las enquanto dois lados conjugados de um mesmo processo de mudança. A hipótese central, nesta direção, é que hoje presenciamos o início de uma estabilização conjuntural da precarização estrutural do trabalho na periferia, de um lado, e de uma precarização conjuntural da estabilização estrutural do trabalho no centro. A relação empírica entre estes dois fenômenos atuais se encontra no cerne da definição de uma sociedade A precária sociedade mundial do trabalho

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mundial do trabalho, na qual a precarização das condições e relações de trabalho se torna um fenômeno universal, porém ainda estrutural na periferia e apenas conjuntural no centro. A definição desta nova sociedade mundial do trabalho, ao que me parece, precisa desdobrar seis aspectos essenciais sobre a realidade contemporânea, que devem ser compreendidos em conjunto, de modo a se articular um panorama geral sobre as principais mudanças no trabalho contemporâneo. Uma precarização generalizada sem precedentes é o aspecto principal, ainda que se apresente empiricamente de forma diferenciada no centro e na periferia, conjuntural no primeiro e ainda estrutural na última. 1 – A ideia de uma nova sociedade mundial do trabalho precisa de uma nova perspectiva epistemológica, que não se restrinja à tradicional metodologia das histórias nacionais, predominante no século XX. Este desafio pode ser enfrentado com a reconstrução da crítica ao nacionalismo metodológico, realizada por Ulrich Beck (BECK, 2008). Esta perspectiva não deve negar a existência, reprodução, legitimação e perpetuação das desigualdades nacionais. Pelo contrário, a tentativa é a de identificar em que medida a existência e o desenvolvimento crescente de padrões universais de produção da desigualdade podem intensificar a desigualdade social específica já existente no interior do centro e da periferia. Em adição, esta reconstrução teórica também pode permitir a identificação de possíveis mudanças nas desigualdades específicas do centro e da periferia. 2 – A sustentação da hipótese de uma nova sociedade mundial do trabalho precisa reconstruir teoricamente algumas mudanças sociais nas formas de produção e reprodução do trabalho contemporâneo, bem como na alteração de seu significado. Três autores são fundamentais nesta direção: Claus Offe (1994), por seu conhecido questionamento sobre o fim da categoria trabalho como chave central para a sociologia contemporânea; André Gorz (2004), por sua análise sobre a transição do Fordismo para o Pós-Fordismo e por sua proposta de substituição da ideia de sociedade do trabalho pela ideia de sociedade do conhecimento ou do “imaterial” (2005); e por fim Ulrich Beck (1986, 2007), pela peculiaridade de sua perspectiva europeia sobre o trabalho, incluindo como novidade a periferia do capitalismo na análise e a tematização do advento global do trabalho precário e informal. 3 – Se quisermos sustentar uma ideia atualizada de sociedade do trabalho, precisaremos enfrentar seus críticos, ou seja, as 100

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propostas contemporâneas que se apresentam como tentativas de novos paradigmas alternativos ao de sociedade do trabalho. A teoria da sociedade do conhecimento é uma destas principais tentativas, talvez a mais poderosa. Para tanto, uma leitura crítica da teoria da sociedade do conhecimento de André Gorz é fundamental, de modo a identificar como esta trata de uma meia verdade no capitalismo contemporâneo, no qual o conhecimento científico e tecnológico se impõe como uma força produtiva sem precedentes na história. Também é preciso nesta direção uma reflexão sobre a ideia de uma economia do conhecimento, a partir da recuperação deste conceito, na obra de Pierre Bourdieu. 4 – Uma nova teoria do trabalho em perspectiva global precisa rever a relação centro-periferia. Durante o século XX, a teoria dominante foi a de que o capitalismo estabeleceu uma hierarquia entre Estados-nacionais, centrais e periféricos, o que sempre se explicou pelas histórias nacionais, por diferenças culturais, e pela perspectiva do século XX enquanto efeito do colonialismo e imperialismo do século XIX. Hoje, duas meias verdades, como faces da mesma moeda conceitual, política e midiática, se apresentam como dado empírico que nos obriga a uma revisão e atualização desta perspectiva. A primeira é o advento das economias emergentes. A segunda é a decadência do Welfare State em países do lado A da Europa. Para tanto, a obra de Ulrich Beck é a mais emblemática, pois sua tese da “Brasilização do Ocidente” apresenta a ambiguidade de, ao mesmo tempo, tentar tematizar uma nova sociedade mundial do trabalho, através do advento do trabalho informal na Europa como ponto de partida, ao mesmo tempo em que atualiza o culturalismo e nacionalismo metodológico que mantém a hierarquia conceitual entre centro e periferia. 5 – Uma teoria sobre a nova sociedade mundial do trabalho precisa identificar qual é a principal questão social contemporânea. A perspectiva de uma nova vulnerabilidade social, de Robert Castel, é incisiva nesta direção, com sua crítica ao conceito de exclusão, bem como sua contra-proposta, com o conceito de desfiliação social. Sua análise sobre a decadência da sociedade salarial com a produção crescente de “sobrantes” do mercado de trabalho no centro do capitalismo, é uma contribuição decisiva para uma reconstrução da precarização conjuntural do trabalho na Europa. A identificação da lógica da desfiliação, agora no centro, que faz parte desde sempre da precarização estrutural na periferia, é fundamental para a compreensão da sociedade mundial do trabalho. A precária sociedade mundial do trabalho

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6 – A nova teoria mundial do trabalho precisa rearticular os temas do trabalho e da classe, fragmentados pelo pensamento dominante. Esta rearticulação pressupõe que capitalismo, sociedade do trabalho e sociedade de classes são sinônimos. Para este objetivo, é preciso uma reconstrução teórica, no Brasil e no pensamento europeu, tanto da perda da centralidade do conceito de classe social quanto de seu retorno recente na teoria social. Também é preciso analisar como a sutileza do pensamento europeu, em boa medida, não declara abertamente o fim das classes sociais, mas as relega a um segundo plano na teoria social, no que a tese do individualismo parece ser o melhor exemplo. Este exercício teórico nos permite mostrar que a rearticulação da centralidade do trabalho e da classe na teoria social é um só movimento teórico sem o qual não parece ser possível uma reconstrução crítica sobre a sociedade contemporânea. Desta maneira, é possível o esboço de uma tentativa de articulação dos principais aspectos teóricos e empíricos da nova sociedade mundial do trabalho. Esta é mundial uma vez que experiência em sua totalidade (e não mais apenas na periferia) um processo generalizado de precarização crescente e constante das condições e relações de trabalho. Também é mundial na medida em que apresenta um processo histórico conjugado de precarização estrutural em sua periferia (que agora presencia o início de um processo de estabilização conjuntural) e de sua correspondente precarização conjuntural no centro (o que agora significa o início do desmonte de sua estabilização estrutural histórica). Esta atual mudança tanto no centro quanto na periferia nos apresenta a generalização da precariedade como principal marca da nova sociedade mundial do trabalho. Referências BECK, Ulrich. Die Neuvermessung der Ungleichheit unter den Menschen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008. ______. Schöne neue Arbeitswelt. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007. ______. Was ist Globalisierung? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A distinção . Crítica social do julgamento. São Paulo; Porto Alegre: Edusp; Zouk, 2007.

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Fabrício Maciel


CASTEL, Robert. Die Krise der Arbeit . Neue Unsicherheiten und die Zukunft des Individuums. Hamburg: Hamburger Edition HIS Verlag, 2011. ______. Metamorfoses da questão social . Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. GORZ, André. Abschied vom Proletariat . Jenseits des Sozialismus. Frankfurt am Main: Europäische Verlagsanstalt, 1980. ______. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004. ______. O imaterial . Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. MACIEL, Fabrício. A nova sociedade mundial do trabalho: para além de centro e periferia? São Paulo: Annablume, 2014. OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. Trabalho: a categoria-chave da sociologia? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 4, n. 10, p. 6-20, 1989. SOUZA, Jessé. A ralé brasileira . Quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

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A solução está no professor

Jaime Pinsky

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Brasil está fora do “Círculo de fogo”, aquela região do Pacífico particularmente sujeita a abalos sísmicos e ação de vulcões, assim aprendemos na escola. De fato, a despeito de um tremorzinho mixuruca aqui e ali, nosso solo não tem a instabilidade de um Chile ou um Japão, nem está à mercê dos humores de montes fumegantes. O problema é que aprendemos também que somos um povo cordial, unido, e que água aqui era mato. Aos poucos, começamos a perceber que 1) não temos tanta água quanta se dizia, e, pior, desenvolvemos um talento especial para poluir rios, córregos, lagos e represas; 2) embora tenhamos uma identidade nacional (falamos uma só língua, embora com variações significativas, ideias separatistas não vingam por aqui), são poucas as cidades nacionais como São Paulo, e sentimentos regionais são alimentados por um coronelismo mal disfarçado em grande parte do território nacional; 3) cordiais não somos mais, se é que de fato já fomos. Às vezes somos calorosos, por outras aplicamos mentiras flagrantes (“querida, como você está linda!” é uma falsidade detonada sem pudor a qualquer hora), nossos cumprimentos transitam desavergonhadamente entre um resmungo de bom dia e efusões desproporcionais de abraços e beijinhos. De resto, tratamos mal os inferiores hierárquicos e adulamos os donos do poder. Isso não é cordialidade.

Mas, se alguém ainda acreditava no mito da cordialidade brasileira, deve ter abandonado essa ideia durante a última campanha eleitoral. Amigos se digladiavam em prosa e verso, em e-mails, twiters, e, principalmente, nas páginas do facebook. Criada para mães e avós colocarem fotos de bebês da família, o face provocou desavenças familiares e ruptura em redes de amigos. Foram momentos gloriosos para argumentos rasteiros, afirmações sem base, ofensas gratuitas, acusações inconsequentes, certezas sem comprovação, exaltação sem fundamento. A civilização do espetáculo mostrou sua face: bastava um boato, o 104


importante era a aparência das coisas, nenhum compromisso sério com a verdade era buscado. Acostumados a enviar mensagens curtas, mesmo que incompletas, incoerentes, muito mais uma sugestão do que uma reflexão, os participantes das chamadas mídias sociais (nome curioso para um veículo que se demonstrou tão antissocial) se vangloriavam de seu suposto poder de síntese. Ora, poder de síntese tem aquele que condensa em poucas palavras um pensamento complexo, não aquele que só consegue produzir banalidades, que não tem a capacidade de articular uma reflexão mais elaborada. Conclusão? Muito simples. O melhor a fazer para não brigar em família ou perder amigos inutilmente é continuar colocando bebês e paisagens no facebook. Ficar irado com aquele velho amigo porque as posições políticas dele são diferentes das suas não vale a pena. Não que não possamos ter com ele divergências intransponíveis. Temos o direito de romper com qualquer um, mas não a partir de entrechoque de slogans, da oposição entre palavras de ordem, de “ouvi dizer que”, e por aí afora. O fato é que não somos cordiais mesmo. Pois sejamos, ao menos, sérios. E, em nome da seriedade, vale a pena voltar a atenção para uma área fundamental para o próximo governo (tem a economia também, é claro, mas sobre isso já está todo mundo falando), aquela que decretará o sucesso ou o fracasso da atual gestão, a educação. Não há dúvida de que ela pode ser a chave da inserção social de muitos, uma das portas de saída da política assistencialista deste governo. Desde que consigamos implementar um ensino público universal (ele quase é) e de qualidade (isto ele não é). Como historiador e editor, posso afirmar sem medo de errar: de nada adianta fornecer livros, mesmo bons livros, para alunos, se eles não tiverem professores bem formados, atualizados e motivados. Bons professores podem trabalhar com livros escolares ruins. Professores ruins nunca conseguirão bons resultados, mesmo com o melhor livro. Se não houver uma mobilização nacional que atinja todos os professores do ensino fundamental, nós nunca sairemos da mediocridade em que nos encontramos na educação. Nem com muito dinheiro. Nem com a melhor gestão. A chave do ensino de qualidade está nos professores, como já descobriram, para o bem e para o mal, tanto regimes democráticos, como totalitários, ao longo da história. Vamos enfrentar esse desafio? A solução está no professor

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Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública Laécio Noronha Xavier

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om o advento da Constituição Federal de 1988, por meio do § 4º do art. 18, a competência para legislar sobre emancipação de distritos e criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios restou aos Estados, obedecendo-se os requisitos previstos em Lei Complementar Estadual e sempre a depender de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações diretamente interessadas. Ocorre que sem a interferência da União, os requisitos que deveriam selecionar as localidades que realmente poderiam tornar-se municípios, serviram tão somente para cumprir meros processos burocráticos. Prova disso foi o exagerado e crescente número de novos municípios surgidos no período. Em 1980, existiam no país 3.974 municípios, passando a 4.090 em 1984. Em 1996, já eram 4.974 municípios e outros 533 aguardavam instalação. Já em 2000, o número de municípios atingia 5.561. Como nem o Produto Interno Bruto (PIB) nacional ou a arrecadação de receitas públicas cresceram na mesma proporção no período, as fatias de receita de cada município ficaram menores e a Federação tornava-se mais pobre a cada município criado (LORENZETTI, 2003, p. 4).

Conforme dados do IBGE (2013), o Brasil possui desde 1º de janeiro de 2013, exatos 5.570 municípios, distribuídos entre 26 estados da Federação. Seguem listados todos os estados brasileiros e seus respectivos números de municípios: Minas Gerais (853), São Paulo (645), Rio Grande do Sul (496), Bahia (417), Paraná (399), Santa Catarina (293), Goiás (246), Piauí (224), Paraíba (223), Maranhão (217), Pernambuco (185), Ceará (184), Rio Grande do Norte (167), Pará (143), Mato Grosso (141), Tocantins (139), Alagoas (102), Rio de Janeiro (92), Espírito Santo (78), Mato Grosso do Sul (78), Sergipe (75), Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). São Paulo é o município mais populoso, com 11.244.369 habitantes, enquanto que o menos populoso é Borá/SP, com 805 habitantes.

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A promulgação da Emenda Constitucional nº 15/96 alterou o § 4º do art. 18 (que vigora até os dias atuais) e retirou dos estados a prerrogativa de legislar exclusivamente, com a União voltando a participar do processo de criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios conforme período determinado por Lei Complementar. Desde a citada Emenda Constitucional muitos foram os projetos de Lei Complementar e de Emenda Constitucional apresentados e aprovados para novamente regulamentar o § 4º do art. 18 da Constituição de 1988, apesar de vetados pela Presidência da República. Na falta da edição da Lei Complementar Federal acerca dos novos municípios e sem Emenda Constitucional que alterasse tal competência, vários estados tentaram “regulamentar” a criação de municípios, uma vez que, conforme José Afonso da Silva (2007, p. 4), o processo quedou regulado por meio de três leis: uma estadual que cria, incorpora, funde ou desmembra o município, e duas federais, uma de natureza complementar (período em que as alterações por lei estadual poderão ser realizadas), e outra, ordinária (Estudo de Viabilidade Municipal para realização da consulta prévia à população envolvida através de plebiscito). Em outubro de 2013, o Senado aprovou outro Projeto de Lei Complementar (PLC) sobre criação de municípios e definiu regras mais rígidas do que as previstas em outros projetos de lei. Mesmo assim, no mês seguinte, a presidente Dilma Rousseff vetou integralmente o PLC por provocar despesas adicionais, sacrificar finanças municipais e em face dos cortes nas transferências constitucionais. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2013) estimou a criação de 363 novos municípios, caso o veto fosse derrubado pelo Congresso Nacional, gerando uma redistribuição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) que ultrapassaria R$ 1 bilhão/ano. Em maio de 2014, o Senado aprovou outro PLC relatado pelo senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que diminuiu em 1/3 o número de municípios a ser criados (130), tendo em vista que novos municípios do Norte e Centro-Oeste deviriam ter território de pelo menos 200 km², com o limite para a criação de municípios em outras regiões ficando em 100 km². A população mínima exigida para novo município no Sul e Sudeste passou de 12 mil para 20 mil e, no Nordeste, esse limite foi elevado de 8,4 mil para 12 mil habitantes. No Centro-Oeste e Norte foi mantida a exigência de 06 mil moradores para a nova municipalidade. Em outubro de 2014, novo veto presidencial inviabilizou o Projeto de Lei Complementar. Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública

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Países do primeiro mundo alcançaram estágios avançados de gestão pública ao concentrarem, no plano local, toda a parte executiva das ações de interesse imediato do cidadão, com serviços públicos essenciais (educação, transportes, policiamento e controle urbano). A Constituição de 1988 seguiu tal tendência, transferindo da União e dos Estados tarefas vinculadas diretamente à cidadania para o âmbito municipal. Em primeiro lugar, haveria economia de escala na aplicação de recursos; depois, o contribuinte, beneficiário direto de cada empreendimento, seria fiscal natural dos recursos do erário. Na prática, porém, o plano não funcionou dessa forma. Às prefeituras competem diversas atribuições gerenciais, ao mesmo tempo, que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/2000) regulamentou a execução orçamentária, estabelecendo o emprego de 25% da receita tributária em educação; 15% em saúde; e, no máximo, 60% no custeio da máquina. Poucos gestores se dão conta da tênue margem de destinação de recursos financeiros de seus municípios para empreendimentos fora desse compromisso legal de absorção da arrecadação. A falta de domínio sobre essas limitações legais resulta, na maioria das vezes, em gestão temerária, com risco de enquadramento nas penalidades legais. Para Tasso Jereissati (2009, p. 18), o correto seria primeiro procurar o município desenvolver os distritos, para, em seguida, buscar a independência destes, considerando-se os benefícios ou prejuízos ocasionados com sua criação. A emancipação pode até tornar-se um instrumento de desenvolvimento socioeconômico de determinadas áreas. Entretanto, este potencial há de ser comprovado, por meio de estudos confiáveis e critérios técnicos que tratem sobre população mínima, estrutura física adequada, capacidade do novo município de autossustento e garantia de que a União poderá proporcionar o mínimo necessário para a sobrevivência do novo ente. Por falta de recursos próprios, milhares de municípios brasileiros sobrevivem apenas das cotas constitucionais. Criar município implica em aumento de despesas de custeio e, sem qualquer incremento na receita, seja no novo ou no município originário, torna-se difícil a situação de ambos. Em maio de 2014, a presidente Dilma Rousseff reuniu-se com o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, que solicitou aumento de 2% na fatia da arrecadação total do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) destinada ao FPM, passando de 23,5% para 108

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25,5%. Com as desonerações de alíquotas do IPI, o governo federal retirou dos municípios brasileiros R$ 77 bilhões entre 2008 e 2013. O deputado Danilo Forte (PMDB/CE), relator da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 406-A/99 que trata da redistribuição orçamentária aos municípios e do aumento do FPM, da parcela de arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e da arrecadação das contribuições sociais sobre receita, faturamento e lucro do Programa de Integração Social/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (PIS/Cofins) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), analisa que o incremento nas contas municipais passará dos atuais R$ 82 bilhões para R$ 90 bilhões (FORTE, 2014). Em especial, pequenos e médios municípios brasileiros estão enfrentando fase financeira crítica em razão da diminuição dos valores transferidos à conta do FPM. Essas transferências constitucionais são afetadas a cada desoneração tributária concedida pelo governo federal, como parte dos ajustes em sua política econômica. Como o FPM é constituído com parcelas oriundas dos IR e IPI e, nos últimos anos, a União estimulou vários segmentos industriais (automobilístico e eletroeletrônico) com redução de alíquotas do IPI para preservar empregos e incentivar vendas, tal ação fiscal implicou em parcelas menores correspondentes às transferências para estados e municípios. O FPM corresponde à principal fonte de receita de quase todos os municípios cearenses em face da fragilidade das economias locais. A inviabilidade da gestão municipal se deve ao peso excessivo de sua despesa pública e de elevados encargos com pessoal. O centralismo da arrecadação federal afeta os estados, mas, fundamentalmente os municípios, com 80% deles sem receita própria para cobrir seus gastos/encargos obrigatórios. A base física da geração das riquezas nacionais é o município, mas a distribuição fiscal não lhe faz justiça. A Constituição de 1988 ensaiou uma partilha equitativa em relação à sistemática, mas a União foi expedita ao retomar o centralismo da arrecadação dos tributos federais. Apenas quatro capitais brasileiras dispõem de arrecadação própria maior do que o valor recebido das transferências do FPM e do ICMS. São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis são as únicas capitais que conseguiram equilibrar suas finanças próprias, superando as transferências constitucionais. As demais capitais continuam dependentes das transferências do FPM, ICMS, fundos setoriais para merenda e transporte escolar. Macapá, ocupante do último lugar na geração de receitas Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública

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próprias, consegue apenas R$ 22,00 para cada R$ 100,00 obtidos com os repasses constitucionais (DIÁRIO DO NORDESTE, 2014). Com a criação de novos municípios, esses recursos constitucionais não aumentarão, apenas serão redistribuídos. Muitas vezes, o que ocorre com a emancipação de distritos é que a separação deixa a sede do município em situação financeira ruim. O cenário preocupa porque, em vez de ser canalizado para a população, os recursos vão para a folha de pagamento das prefeituras. A emancipação de distritos se compara à “economia de escala”, quando uma única estrutura burocrática que servia a 20 mil habitantes, ao ser duplicada para atender metade da quantidade de habitantes, dobra o valor dos custos. Atualmente, quando o Executivo Municipal envia a previsão de gastos do ano seguinte para ser aprovado no Legislativo, as despesas são pensadas por áreas temáticas (saúde, habitação, educação). Entretanto, a gestão não se responsabiliza com a execução orçamentária por regiões das cidades. Ademais, as prefeituras carecem de melhor administração para democratizar as ações que contemplem os distritos. A solução seria uma gestão pública regionalizada e um orçamento territorializado, sem que haja necessidade de novos prefeito e câmara de vereadores para que o município atenda aos seus distritos. De maneira geral, o que se tem presenciado na maioria dos estados é a tentativa de criar municípios inviáveis, seja pelo tamanho, condições econômicas e arrecadação de recursos através de tributos ou de produtividade. O déficit de bons gestores municipais talvez seja a mais grave preocupação do quadro geral de problemas que historicamente assola os novos municípios. Ademais, os altos custos para manter a máquina pública, a baixa arrecadação tributária, o centralismo fiscal na União, que com suas desonerações fiscais reduzem os repasses de recursos constitucionais são obstáculos para a emancipação de distritos e a criação de novos municípios. Lógico, sem desconsiderar a falta de diversificação das fontes geradoras de riqueza do PIB, a precariedade econômico-financeira, as dificuldades de atração de investimentos produtivos e a ausência de equipamentos públicos e obras de infraestrutura. Na verdade, os distritos cumprem fragilmente os critérios estipulados nas diversas legislações federal e estadual, como é o caso dos baixos índices populacionais e da parca capacidade de arrecadação de receitas. Torna-se, portanto, fundamental que as lideranças políticas dos distritos, os parlamentares das assembleias legislativas e setores da mídia proporcionem um grau mais apurado de análise 110

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técnica acerca do planejamento regional dos estados e influenciem as administrações municipais para que possam ampliar os seus níveis de desenvolvimento socioeconômico em todos os quadrantes de suas extensões territoriais. A Revista de Administração Municipal do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) publicou vários artigos para entender o animus emancipatório. Rudolf Noronha (1996, p. 110-117) procurou focar a opinião das comunidades locais, através de entrevistas realizadas com os habitantes de 17 municípios do Rio de Janeiro que alcançaram sua emancipação durante o período de 1985-1993, concluindo que 04 desses municípios emanciparam-se por interesses político-eleitorais visando novos núcleos de poder; 06 deles por apresentarem estáveis condições econômicas; e 07 buscaram a emancipação para evitar que a economia local estagnasse. Vale ressaltar, que 1.408 municípios foram criados entre 1984 e 1987, quando não havia regras claras. Desses 77% tinham 10 mil habitantes ou menos, e geralmente sem capacidade de gerar receita. Entre 1991 e 1996, mais de 1.000 municípios foram criados no Brasil, saltando, em menos de 05 anos, de 4.491 para 5.507 municípios. A pesquisa de Rudolf Noronha (1996) no tocante aos 04 distritos que haviam buscado a emancipação movidos, prioritariamente, por interesses político-eleitorais de determinados grupos, analisou que diversos políticos vendo-se derrotados eleitoralmente e sem novas chances de retornar aos poderes públicos (Executivo e Legislativo), viam na criação de um novo município o retorno de tal possibilidade, ainda que estes intuitos fossem ocultos nos discursos de emancipação. Mas, nesses discursos, também se omitia a estrutura do município (em geral com até 15 mil habitantes), quais sejam eles: 01 prefeito e 01 vice-prefeito, o mínimo de 09 vereadores (art. 29, IV, a da Constituição de 1988), 06 secretários municipais, em média; e centenas de cargos comissionados que independem de concursos públicos. Levantamento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), de 2011, concluiu que 533 cidades analisadas (12%) gastaram mais com atividades burocráticas da administração e com o Legislativo local do que com Saúde e Assistência Social. Além do que, 548 cidades (12,3%) desembolsaram mais com o custeio da máquina do que com Educação. A análise considerou 4.437 municípios no período, que com o cruzamento de dados, verificou-se que 269 prefeituras gastaram mais com atividades burocráticas da administração e com o Legislativo do que com Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública

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Saúde, Assistência Social e Educação. Metade delas possuía menos de 05 mil habitantes, e apenas 10 superavam 100 mil habitantes. O peso da administração municipal é maior nas cidades pequenas, já que enquanto cada brasileiro desembolsou, em média, R$ 280,00 com administração e Legislativo municipais em 2011, em cidades com menos de 5 mil habitantes, esse valor era R$ 621,00 (CASTRO & ILHA, 2013). Outro levantamento feito pelo O Globo nas Assembleias Legislativas dos 26 estados da Federação revela que o país poderá ganhar até 410 novos municípios, elevando para quase 06 mil o número de cidades brasileiras. Lançado pela Firjan, o Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM), demonstrou que em 58 prefeituras criadas entre 2001 e 2010 foram abertos novos 31 mil cargos públicos, que movimentaram, em 05 anos, R$ 1,3 bilhão do FPM. Todo esse investimento, entretanto, não se reverteu em melhoria dos indicadores sociais para a maioria dessas cidades. Segundo o IFDM, divulgado pelo O Globo em janeiro de 2013, 45% dos 58 municípios emancipados registraram piora de desempenho ao longo da última década (BIASETTO, 2013). Em 2013, 88% das prefeituras brasileiras tinham débito com a Previdência, apenas 4% conseguem levar seus resíduos sólidos para aterros sanitários e 37% dos municípios com menos de 50 mil habitantes não conseguem disponibilizar seus dados para os cidadãos. Cerca de 2.500 dos atuais municípios brasileiros não têm nenhuma receita própria (ALENCAR, 2014). Criar municípios, na maior parte dos casos, será bom para os políticos, não para a população. Não é por falta de municípios que a sociedade está desassistida. É preciso que as prefeituras usem melhor os recursos. Atividade-fim de prefeitura não é criar cargos públicos, é trabalhar para o bem-estar da população. Conforme Juliana Coissi (2013, p. 13), levantamento promovido pela Folha de S .Paulo, em 2013, dá conta das condições enfrentadas pela maioria dos últimos 595 municípios instituídos no país em 1997: baixa qualidade de vida e a expressiva maioria se mantêm abaixo da média dos demais municípios. Do total, 570 municípios não evoluíram a novos estágios no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de seus estados, que avalia renda, escolaridade e expectativa de vida. Os municípios-mãe também não alcançaram o IDH estadual, depois que perderam área e população pelo desmembramento. Segundo Sergiano de Lima Araújo (2010, p. 20), cerca de 85% dos municípios cearenses “sobrevivem” quase que exclusivamente 112

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dos recursos oriundos do FPM e do ICMS. Dos 184 municípios do Ceará, somente 15 têm outras arrecadações tributárias além destas e, a grande maioria dos municípios sequer cobra o IPTU de seus munícipes, tendo em vista que mesmo sendo uma obrigatoriedade legal, do ponto de vista político, tal ação faz perder eleitores na municipalidade. É o que se denomina de “economia sem produção”. Ou seja, os recursos arrecadados mal dão para custear os gastos da máquina pública e pagar o funcionalismo. Sem recursos próprios, a maioria dos municípios tem ficado refém da renda gerada pelas aposentadorias rurais e pelas políticas sociais de complementação de renda do governo federal, mantendo quase inalterado o estado de pobreza dessas populações. Num país onde há uma forte crítica pelo inchamento da máquina administrativa e, de modo geral, à política fiscal, a criação de novos municípios também significa criar mais despesas e menos investimentos. Ao mesmo tempo, algumas responsabilidades passam a ser das novas cidades, como construção de escolas, postos de saúde, manutenção de estradas, aluguel de imóveis e pagamento de pessoal, inclusive prefeitos e vereadores. Para além das generalidades, nem todos os interesses de lideranças locais que intentam a emancipação advêm de benefícios próprios, embora se saiba que na realidade política brasileira, com inúmeros escândalos de desvios de verbas públicas, abusos de poder e débil capacidade administrativa dos gestores executivos e parlamentares torna-se fundamental a atenção para estas questões e que cada processo emancipatório seja analisado detalhadamente. Diante das pesquisas realizadas sobre o processo de emancipação distrital e a criação de novos municípios em vários estados brasileiros, pode-se constatar a fragilidade no cumprimento de critérios técnicos e os interesses políticos não confessos das lideranças distritais. Sem mencionar a morosidade do Congresso Nacional em regulamentar assunto que tanto interessa aos estados e municípios e que levanta discussões controversas. Fato é que desde 1996, o Brasil encontra-se sem a lei federal para regular o processo de criação, fusão, desmembramento e incorporação de municípios. Na verdade, em face desta realidade difícil, o que deveria nos interessar é como os municípios se aglutinam e organizam e, não, necessariamente, como se apartam para que nasçam novos municípios.

Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública

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Referências ARAÚJO, Sergiano de Lima. O surto dos novos municípios. O Povo . 19/02/2010. Opinião, p. 20. BIASETTO, Daniel et al. Partidos querem criar 410 novos municípios no país. O Globo . 26/05/2013. Caderno Brasil, p. 18. CASTRO, Juliana; ILHA, Flávio. Municípios gastam mais com burocracia que com saúde. O Globo . 20/10/2013. Caderno Brasil, p. 17. CENTRALISMO fiscal. Diário do Nordeste . 13/05/2014, Editorial, p. 2. COISSI, Juliana. Novos municípios mantêm a baixa qualidade de vida. Folha de S .Paulo . 28/10/2013. Caderno Poder, p. 13. FIRJAN. Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal 2011. IFDM 2011. Rio de Janeiro, 1º/06/2014. Disponível em:<http://www. firjan.org.br/ifdm/>. Acesso em: 03/06/2014. FORTE, Danilo. Pela autonomia financeira dos municípios. O Povo. 26/05/2014. Opinião, p. 9.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Perfil dos Municípios Brasileiros 2013. IBGE, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 18 mar. 2014. INSTITUTO DE POLÍTICA ECONÔMICA APLICADA. Renda per capita dos novos municípios cresceu menos. IPEA, Brasília, dez./2013. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/>. Acesso em: 11 mar. 2014. JEREISSATI, Tasso. Novos municípios e viabilidade. O Povo . 18/12/2009. Opinião, p. 18.

LORENZETTI, Maria Silvia Barros. Criação, incorporação, fusão e desmembramento de municípios . Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Brasília: 2003. Disponível em:<http:// www.camara.gov.br>. Acesso em: 05/04/2014. NORONHA, Rudolf. Criação de novos municípios: o processo ameaçado. Revista de Administração Municipal, n. 219, p.110-117, abr.-dez./1996. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

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Laécio Noronha Xavier


V. Quest천es do Estado e da Cidadania


Autores José Arlindo Soares

Sociólogo, professor voluntário do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPB, consultor em Políticas Públicas Locais e diretor do Centro Josué de Castro .

José Osmar Monte Rocha

Graduado em Ciências Contábeis, é contador, auditor, analista de Finanças e Controle do Ministério da Fazenda (aposentado) e professor da Universidade do Distrito Federal (UDF) .

Mônica Sifuentes

Desembargadora federal do TRF – 1ª Região .


Participação Cidadã & Estatização da Participação José Arlindo Soares

N

o final dos anos 1970 até metade dos anos 80, em quase todos os países ocidentais (particularmente nos que viveram sob regimes ditatoriais), afloraram intensos debates sobre a superação do autoritarismo por um sistema de representação política de democracia ampliada que contemplasse a participação direta da sociedade na definição e no acompanhamento das políticas públicas, ou seja, que a democracia não ficasse apenas nos limites da representação da política parlamentar. A Espanha foi possivelmente a pioneira dessas novas proposições, que eram muitas mais amplas porque envolviam a reconfiguração institucional do Estado através da obtenção das “autonomias regionais”, com inserção de parlamentos próprios e com a participação direta da população no plano do poder local. Como diz o sociólogo espanhol Jordi Borja (1975), a necessidade de democratização do Estado transcende as limitações do sistema representativo e até mesmo as lutas por uma melhor distribuição de recursos públicos. Impõe-se como exigência para se construir uma nova organização da sociedade e outro tipo de relação de poder.1 A importância da combinação do conceito de democracia ampliada com a descentralização possibilitou que, nas primeiras eleições municipais democráticas na Espanha, os candidatos oriundos das “Associaciones de Vecinos” obtivessem expressivas

1

JORDI, Borja. Movimientos Sociales Urbanos, Buenos Aires: Ediciones Siap, 1975.

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vitórias em Prefeituras de importantes cidades.2 A participação direta ficou muito ligada ao poder local e sempre combinada à representação política parlamentar. A lógica do novo modelo passaria por manter os mecanismos clássicos de representação da democracia liberal tradicional e incorporar instrumentos que possibilitassem uma maior aproximação do cidadão com a administração pública, não apenas nos momentos eleitorais, mas na vida cotidiana da população. Em países que tinham experimentado um largo ciclo autoritário seria muito importante o exercício dessa nova pedagogia participativa. Impunha-se, porém, uma adequação às mudanças na configuração econômica mundial, caracterizadas pela diminuição do papel de decisão dos Estados Nacionais em muitas questões econômicas e sociais, provocando o agravamento do déficit da participação, mesmo nos países de democracias consolidadas. Nos ano 80, a literatura sobre o assunto resaltava a importância de se reconstituir as identidades coletivas embaçadas pela globalização, enquanto as unidades descentralizadas teriam que refundar a participação política em razão de terem que assumir questões estruturais e complexas, como uma maior atenção ao crescimento econômico, à preservação do meio ambiente, ao combate à pobreza e à garantia das liberdades. O Brasil não ficou atrás nesse processo de encontrar novas alternativas para redesenhar o tecido democrático do país. Durante a transição do regime militar, o discurso da participação esteve presente em quase todas as forças de oposição ao regime, incluindo os liberais mais convictos, como Ulisses Guimarães, que passou a defender a presença da democracia direta e semidireta junto com a representação política parlamentar através do modelo insubstituível do voto universal e do pluralismo. As eleições diretas para prefeitos das capitais em 1985 aceleraram essas discussões, dando origem a várias experiências inovadoras sobre a presença da sociedade organizada em instâncias do poder local. A cidade do Recife foi pioneira em iniciativas inovadoras, que viriam a ser consagradas no Brasil. Nesse processo, algumas tendências dos movimentos sociais sempre advertiam sobre o perigo da instrumentalização dos movimentos sociais pelos partidos hegemônicos no campo da política tradicional.

2

Ver NUNES, Edson. Partidos e Nuevos Movimientos Sociales. Madrid Editorial Sistema, 1968.

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José Arlindo Soares


A Constituição de 1988 ampliou o conceito de participação direta, que estava muito restrito às instancias do poder local. Logo no parágrafo único do artigo primeiro da Carta de 1989, define-se que ”o poder no Brasil será exercido por meio de representantes ‘eleitos ou diretamente’, nos termos da Constituição”. A partir dessa autorização constitucional, criaram-se e foram regulamentados os diferentes instrumentos de participação direta ou semidireta, como a iniciativa popular, o plebiscito, o referendo e os conselhos de participação de fiscalização junto às diferentes políticas públicas nacionais, estaduais e municipais. Com o respaldo da Constituição, a participação direta ou semidireta passou a fazer parte das propostas de governos de diferentes orientações ideológicas, com eficácia variável, dependendo dos níveis de autonomia da sociedade ou da força e organização das categorias profissionais ou dos grupos sociais envolvidos. Uma variável sempre muito importante na vida desses conselhos é o reconhecimento efetivo e respeito à autonomia que os governos atribuem à participação organizada da sociedade. Um exemplo consagrado de participação semi-direta são as Conferências Nacionais de Saúde, que se iniciaram há 70 anos, cumprindo o disposto no parágrafo único do art. 90 da lei 378 de janeiro de 1937. Atravessando diferentes regimes, as Conferências de Saúde têm revelado um aumento significativo em importância. A cada ciclo, adquiriram maior representatividade e uma influência efetiva nas políticas públicas. De modo particular no período da última transição democrática, a consistência conceitual e a representatividade das Conferências Nacionais de Saúde foram essenciais na aprovação e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Um exemplo contrário, que mostra fragilidade da participação, são as recentes Conferências de Políticas Públicas, de caráter transversal, que se esgotaram no ato mesmo da conferência com delegados, com quase nenhuma representatividade e teses pouco consistentes e sem força para se tornarem paradigmas a ser levadas em conta pelos Planos Plurianuais do próprio governo nacional. Para quem teve oportunidade de assistir a algumas dessas conferências, foi fácil perceber a fluidez dos critérios para a escolha de delegados, além da pouca discussão sobre os temas em foco, com resoluções quase sempre limitadas à votação de uma lista de prioridades sem teses mais consistentes sobre as políticas públicas de largo alcance, relacionadas ao objeto da conferência. É verdade que também os conselhos formais previstos na legislação perderam conteúdo e representatividade e até mesmo Participação Cidadã & Estatização da Participação

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sofreram um esvaziamento pela imbricação com o Estado. Mesmo assim, são ainda os que mais acumulam conhecimento sobre as diferentes políticas setoriais no país. A tentativa da presidente Dilma de instituir uma Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) é o tipo da medida inócua, que legisla sobre o já existente, além de provocar desconfiança em relação ao futuro. O decreto presidencial, derrotado na Câmara Federal, estabelece diretrizes relativas ao conjunto dos mecanismos participativos, tais como conselhos, conferências, ouvidorias, audiências públicas e ambientes virtuais de participação social. Com exceção da chamada participação virtual, todos já estão presentes na legislação. Na verdade, o decreto não cria nem extingue Conselhos, mas define parâmetros para uma eventual criação de novos. Talvez, por esse caráter de generalidade, foi que Gilberto Carvalho disse que a decisão da Câmara Federal foi uma vitória do “nada”. Bem que o ministro poderia ter acrescentado: foi uma decisão sobre o “nada”, em relação a um decreto que não queria dizer ‘‘nada”. É sempre bom dar o direito da dúvida ou da ingenuidade e aceitar que a presidente queria apenas ter o que dizer no futuro: que ela teria sido a idealizadora da participação direta no Brasil. Com isso, iria se apagando a memória do que foi estabelecido pela Constituição e pela legislação complementar dos governos anteriores. Seria, então, um simples pecado venial da vaidade. Por outro lado, o aspecto sombrio da questão está no que “poderá vir a ser”. Ou seja, na alimentação do ideário de estatização completa dos mecanismos de controle social e, no limite máximo, no ideário de transformar os Conselhos, controlados pelo Estado, em embriões de uma “democracia popular”. Seguramente essa é uma hipótese que não passa pela cabeça da presidente, embora suscite dúvidas sobre o que está presente na mente de certa “esquerda senil” que frequenta os bastidores do governo e sempre vem se mostrando muito dócil aos regimes autoritários da atualidade. O decreto presidencial contraria a essência da democracia ampliada proposta pela Constituinte, que se coaduna com os ensinamentos de Noberto Bobbio, ao defender que as diversas formas de participação devem ladear de forma autônoma o sistema de representação universal, representado pelo Parlamento, mesmo considerando as suas imensas dificuldades e limitações que têm abalado a própria representatividade desse sistema.

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José Arlindo Soares


Uma análise um pouco mais cuidadosa mostra que os problemas da baixa organicidade e representatividade dos conselhos de controle sobre as políticas públicas estão na própria composição da sociedade e não se resolve com a centralização e a estatização. Ao contrário, exige um processo gradativo de mudanças na cultura política, onde não seja cultuada a conquista do poder a qualquer custo ou o princípio de que os fins justificam os meios para se alcançar o paraíso. Na verdade, o caminho seguro da democracia ampliada passa pela presença da sociedade nos diferentes espaços públicos de forma autônoma e independente, dentro dos limites do pluralismo e do repeito à representação parlamentar com voto universal, embora com todas as críticas merecidas que marcam a distância entre o Parlamento e a sociedade.

Participação Cidadã & Estatização da Participação

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Tráfico de mulheres

Mônica Sifuentes

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ecidir que a vida só tem sentido se houver liberdade. Descobrir que a escravidão pode vir embrulhada em papel de presente. Saber que o rompimento e a construção de uma vida nova envolvem coragem e escolhas. Foi mais ou menos assim que Jurema começou a contar a sua história. Sentada meio sem jeito na cadeira de espaldar alto, a mulher de aspecto sofrido e rosto magro, a pele sem viço, os cabelos soltos, parecia um animal acuado. Viu o juiz cochichar alguma coisa com o promotor e ambos rirem. Pensou se não estariam comentando o fato de ela ser uma prostituta. Teve vontade de sair dali correndo, fugir, mas era tarde demais. As imagens vieram à sua mente como em um filme. Lembrou-se de quando conheceu Lorenzo, um italiano alto, bonito, falante, que chegou em sua pequena cidade, no interior de Goiás, com muitas promessas. Procurava moças para trabalhar na Europa, com garantia de salário bom e benefícios. Quando pôs os olhos em Jurema, uma mulata de corpo roliço e sorriso brejeiro, fez-se de apaixonado, prometeu-lhe casamento. Encarregou-a de conseguir outras moças. Ela cumpriu o combinado, trabalhou por ele e para ele, até que a ficha caiu. Mas nessa altura, já estava completamente envolvida em uma complexa rede de exploração do tráfico de pessoas.

A história de Jurema e de outras mulheres cooptadas para o tráfico e o trabalho no estrangeiro não é nenhuma novidade e tem se tornado recorrente, com poucas variações. Nem todas as vítimas desse crime têm ciência de que o convite que recebem objetiva a exploração sexual. Partem para o exterior na convicção de que exercerão atividades lícitas. Mesmo as que sabem, ou desconfiam, desconhecem a situação de encarceramento e abuso que viverão lá fora. Sofrem preconceito, discriminação e violência por parte dos clientes e dos donos dos estabelecimentos em que se realizam os encontros. Exercem a prostituição por várias horas, sem segurança e higiene e são estimuladas a usar drogas e álcool para ficarem despertas. Têm que lidar com constantes ameaças e intimidações por todo o período que permanecem sob escravidão sexual. Muitas se matam. Outras são assassinadas. 122

Mônica Sifuentes


Há pelo menos dois pontos, essenciais à efetiva repressão ao tráfico de mulheres, que necessitam da atenção das autoridades. O primeiro diz respeito ao preconceito. Não se pode fazer vista grossa para o fato de que, mesmo entre aqueles encarregados de reprimir e punir esse crime, há quem veja as vítimas como responsáveis pela própria sorte, pelo caminho que escolheram. Esquecemse de que ninguém, a menos que padeça de algum masoquismo patológico, aceita realizar, por vontade própria, qualquer atividade em regime de escravidão. A revitimização é outro dos aspectos do preconceito. Ao ser submetida a repetidos interrogatórios, em que a sua situação de prostituição e os abusos que sofreu são reforçados, renova-se a violência. O segundo refere-se ao processo. A apuração desses crimes não tem sido nem rápida nem eficaz. Uma vez que a vítima tenha revelado a existência de situação configuradora de tráfico de pessoas, a autoridade policial deve imediatamente proceder à colheita das provas, evitando que o decurso do tempo pese contra a investigação. Essas provas, no entanto, não raro, encontram-se no estrangeiro, pelo que é necessário o reforço dos mecanismos de cooperação judicial internacional para o auxílio à recolha desses elementos lá fora. Muitos juízes e promotores ainda não sabem como utilizar essas ferramentas. Imprescindível, portanto, estabelecer-se formas de proteção às vítimas e testemunhas, para que possam, sem receio, levar os fatos ao conhecimento das autoridades e terem segurança para denunciar os responsáveis. Essencial, também, capacitar-se policiais, promotores e juízes para a correta apuração e punição desses crimes. Sem provas, por mais convincente que seja a palavra daquelas que sofreram a violência, o resultado do processo será a absolvição. Hoje em dia, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual movimenta milhões e ocupa o terceiro lugar entre as atividades ilícitas mais lucrativas em todo o mundo. Somente perde para o tráfico de armas e de drogas. Não há, no entanto, estatísticas confiáveis sobre o número de mulheres traficadas no Brasil para essa finalidade, embora os dados indiquem ser o país o que possui o maior número de casos na América do Sul. Essa constatação, por si só, gera péssima reputação para a imagem do país lá fora e traz a desconfortável sensação de impunidade, aqui dentro. (Texto publicado originariamente no Correio Brasiliense, 26/07/2014)

Tráfico de mulheres

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O Tribunal de Contas da União e suas nuanças José Osmar Monte Rocha

Q

uando alguém fizer um estudo completo sobre o controle da gestão pública, verá a importância fundamental de três tipos de controles previstos na Lei nº 4.320/64 (art. 75, 76 e 77) e art. 13 do Decreto-Lei nº 200/67. A Constituição Federal ratificou e ampliou as exigências anteriormente definidas para maior aplicação nos três níveis de governos (federal, estadual e municipal). A Carta de 1988 inovou e deu mais amplitude aos sistemas de controles interno e externo de cada poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. Neste contexto, não se pode deixar de falar da importância do Tribunal de Contas da União (TCU) – instituição secular criada pelo Decreto nº 966-A, de 17/11/1890, e instalada em 17/01/1893, com a presença do então ministro da Fazenda, Innocêncio Serzedello Corrêa.

As diversas Constituições brasileiras sempre conferiram poderes ao TCU, para que o mesmo pudesse desempenhar as competências definidas na Lei Maior. Podemos destacar as mais recentes: as de 1946 e de 1988, que, de forma decisiva, ampliaram as competências definidas e alçaram a Corte de Contas ao mais elevado grau, gerando inquietação aos poderes da República. Mas o TCU não é um quarto poder. Quando o governo ditatorial designou técnicos especialistas em administração pública, juristas e estudiosos de Direito Administrativo, com a finalidade de promover uma Reforma Administrativa, na década de 1960, o que resultou no Decreto-Lei nº 200/67 (de 25/02/1967), também se preocuparam em adequar a organização, competência e atuação do TCU, o que foi feito com a edição do Decreto-Lei nº 199/67 (de 25/02/1967). Também não é um quinto poder. Mas, às vezes, deixa o Executivo arrepiado e estremecido quando promove algumas inspeções, fiscalizações e auditorias com a finalidade de verificar a arrecadação, aplicação, administração e guarda de bens e valores 124


públicos, tal como previsto no art. 70 da Constituição Federal. O Congresso Nacional também sofre as ações do TCU; principalmente os parlamentares quando defendem projetos de suas bancadas, em especial obras de interesses de seus estados e municípios e que, por algum motivo, o Tribunal as classifica como “obras e serviços com indícios de irregularidades graves”. Isso é inaceitável por parte de deputados e senadores. Sua competência está definida no art. 71 da Carta. Ninguém no serviço público escapa da ação desse Tribunal. Todo servidor público federal que ingressa, atua na gestão pública ou pede reforma ou aposentadoria, passa pelo crivo do TCU; ninguém foge desse alvo de julgamento; servidores dos três poderes da União, magistrados e ministros dos tribunais superiores estão sujeitos à ação dele, conforme previsto nos arts. 1º, 4º e 5º da Lei nº 8.443/92, de 16/07/1992 (Lei Orgânica do TCU). Nem é um sexto poder. Mas, em alguns momentos, pode mais e pode menos, contrariando a tese de que a obra criada respeita o seu criador. Isso pode ser comparado ao caput do art. 71 da Constituição que define: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ...”. Também pode ser observado no art. 70, que cabe ao Congresso e não ao TCU a competência ampla e irrestrita: “A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União (... será exercida pelo Congresso Nacional mediante controle externo e pelo sistema de controle interno de cada Poder”. Como está demonstrada na Carta Magna, a competência plena é do Congresso – criador do controle, tendo como auxiliar o Tribunal de Contas da União. Entretanto, em diversas ocasiões, o TCU sacode o Congresso e exerce devassa na gestão do Legislativo, esquecendo que é obra criada e não é o criador. Em 2000, o presidente do Congresso, insatisfeito e contrariado ameaçou cortar competências do TCU, que também legisla em assuntos que lhe são afetos, conforme estabelecido no art. 4º da Lei nº 8.443/92. Em recente episódio, o Tribunal de Contas foi protagonista, oferecendo ao Congresso Nacional a lista de “obras e serviços com indícios de irregularidades graves” para inclusão na Lei Orçamentária Anual, para o exercício de 2010. O Congresso acolheu e encaminhou ao Presidente da República o projeto de lei aprovado para a sanção presidencial. O presidente Lula discordou do TCU e do Congresso, vetou dispositivos da Lei nº 12.214/2010, de 26/01/2010, e partiu O Tribunal de Contas da União e suas nuanças

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para o confronto, vetou alguns títulos de obras com indícios de irregularidades, e, em ato contínuo, o Congresso, em sessão para apreciação do veto presidencial, em fevereiro de 2010, perdeu a batalha por não conseguir derrubar o veto. Nesse contexto, há um caso especial, curioso e notório: o deputado Humberto Souto, atuante deputado por Minas Gerais, foi líder do Governo na Câmara dos Deputados; foi indicado para ministro do TCU, sendo aprovado e nomeado. Chegou a ser presidente do TCU, aposentou-se aos 70 anos, voltou à lide política e conquistou novo mandato para a Câmara dos Deputados, contrariando a tese dos que pensam que aposentadoria significa paralisia funcional. Esse importante Tribunal de Contas da União, que zela pela utilização dos recursos públicos, aprecia e julga atos de admissão de pessoal, aposentadorias, reformas e pensões, e principalmente julga os ordenadores de despesas, abrangendo o cumprimento dos princípios constitucionais fixados no art. 37 da CF (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), bem como o princípio da eficácia definido no art. 74; e ainda os princípios determinados no art. 3º da Lei de Licitações nº 8.666/93. Que Tribunal é esse? É integrado por nove ministros (art. 73 da CF, art. 62 da Lei nº 8.443/92), oito procuradores do Ministério Público junto ao TCU e três auditores que atuam sempre como ministros substitutos. Sua sede é em Brasília, sendo composto por duas câmaras (primeira e segunda), cada uma formada por quatro ministros e o plenário é composto por nove ministros; e um exército de excelentes técnicos auditores. Seus ministros não são submetidos a concurso público, têm cargo vitalício e aposentam-se por tempo de serviço ou compulsoriamente aos 70 anos de idade, a exemplo dos ministros dos Tribunais Superiores (TSE, TST, STM, STJ e STF); são nomeados, após aprovação do Senado Federal, pelo presidente da República, que indica 1/3 deles e 2/3 são indicados pelo Congresso Nacional. Os auditores e procuradores são submetidos a rigoroso concurso público. As exigências para a nomeação de um ministro do TCU estão fixadas no art. 73 da CF e no art. 71 da Lei nº 8.443/92: “I – ter mais de 35 e menos de 65 anos de idade; II – idoneidade moral e reputação ilibada; III – notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; IV – contar mais de 10 anos de exercício de função ou de efetiva ativi126

José Osmar Monte Rocha


dade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior”. Em suma, o presidente da República sempre tem maioria no Congresso Nacional e, finalmente, indica candidatos por conta das vagas do Executivo e do Congresso Nacional. A escolha desses candidatos recai, na sua maioria, em nomes de deputados ou senadores, em geral sem mandatos, que desistiram de concorrer a cargos eletivos, considerando que já serviram ao país, enfrentando o sufrágio popular. O corpo técnico do Tribunal é formado por um batalhão de servidores bem treinados; há uma atuação efetiva, imparcial e eficaz, examina, instrui e oferece todos os elementos necessários para os ministros julgadores; é essa a chamada área técnica. Os ministros formam a área política, apreciam, relatam, votam e julgam todas as matérias submetidas às Câmaras e ao Plenário. O TCU também não é um sétimo poder. Para exercer as competências constitucionais conta com a importante atuação do sistema de controle interno de cada poder, em especial do Executivo, que, de maneira normal, acompanha os programas do governo federal, fiscaliza e audita toda a gestão de cada ordenador de despesas e emite relatórios de auditorias, e os encaminha para o Tribunal. Tudo isso como preconiza o art. 74 da Constituição Federal. É o sistema de controle interno do Executivo que cumpre a nobre missão de orientação, assessoramento, acompanhamento, fiscalização e auditoria em primeira etapa, de todos os programas governamentais para posteriormente servir de base ao TCU, que, em sequência, avalia, instrui e julga os atos de gestão dos administradores de recursos públicos. Afora a atuação dos seus ministros, procuradores, auditores e técnicos, não se pode esquecer que esse importante Tribunal também é um celeiro de dedicados e excelentes professores que, em todas as épocas, contribuíram com instituições de ensino médio e superior, ministrando aulas e ajudando a formar novos profissionais para o mercado de trabalho. Existem perguntas que, até o momento, continuam sem respostas: Por que um técnico do quadro não ascende ao cargo de ministro do TCU? Por que um auditor do controle interno do Executivo não é indicado para ministro do Tribunal? Ninguém ousa responder essas perguntas; o vazio do tempo se encarrega de manter no silêncio qualquer resposta. É bom lembrar que o O Tribunal de Contas da União e suas nuanças

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sistema de controle interno do Poder Executivo, em todas as épocas, contou com excelentes profissionais e que poderiam ter ascendido ao cargo de ministro do Tribunal. Penso que seria mais proveitoso se, no plenário do TCU, estivessem alguns ministros oriundos do corpo funcional do próprio Tribunal e também outros originários do sistema de controle interno do Poder Executivo, somando as experiências e sensatez desses técnicos com a capacidade e a sensibilidade dos outros ministros de origem política vindos do Congresso Nacional. Certamente ainda seria melhor, mais ampla e progressiva a atuação desse Tribunal. Como se vê, o TCU representa um grande poder, na conformidade da legislação vigente e que se sobrepõe aos três poderes da República. Embora seja órgão auxiliar do Congresso Nacional, age, assusta e determina ao próprio Legislativo a adoção de medidas por meio de acórdãos prolatados. Todo servidor público está sujeito à ação do Tribunal, desde a admissão até à aposentadoria; todo gestor público federal está submisso ao julgamento dele, por meio de Tomada ou Prestação de Contas; e toda matéria de gestão está sujeita à sua jurisdição, em todo o território nacional. Em resumo, esse Tribunal que arrepia e sacode os poderes da União, também de forma justa, instrui, julga e ampara a todos os que buscam, por meio de recursos de reconsideração, embargos de declaração e revisão, ou ainda, pedidos de reexame de matérias sujeitas à sua competência e jurisdição. Esse Tribunal de Contas da União representa um equilíbrio entre os três poderes. Mesmo sendo órgão auxiliar do Congresso Nacional, às vezes é maior, legisla e julga com inteligência técnica e sabedoria jurídica. Sem ele, a sociedade estaria desamparada por falta de um controle externo eficiente, efetivo e eficaz no cumprimento das leis, decretos e normas que regem a gestão pública brasileira.

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José Osmar Monte Rocha


VI. Economia e Desenvolvimento


Autores José Eustáquio Diniz Alves

Doutor em Demografia, professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – Ence/ IBGE, e colunista do Portal EcoDebate .

Fernando Alcoforado

Engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, membro da Academia Baiana de Educação, é autor de vários e importantes livros em que se destaca Globalização, De Collor a FHC – O Brasil e a Nova (Des)ordem Mundial .


O aquecimento global e seus danos irreversíveis José Eustáquio Diniz Alves Quando meus olhos estão sujos da civilização,cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves . Manoel de Barros

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civilização urbano-industrial obteve um grande progresso humano nos últimos 240 anos, ao mesmo tempo em que protagonizou um grande regresso ambiental. A concentração de gases de efeito estufa (GEE) ultrapassou 400 partes por milhão (ppm), o nível mais elevado dos últimos 800 mil anos. Em consequência, a temperatura média na superfície da Terra e dos oceanos aumentou 0,85ºC entre 1880 e 2012. O nível do mar já subiu cerca de 20 cm, desde 1900. Os cenários para as mudanças climáticas no século XXI são dramáticos. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e o diretor do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), Rajendra Pachauri, apresentaram, no dia 1º de novembro último, o mais recente relatório sobre mudança climática, alertando que os danos causados por este processo poderão ser irreversíveis, embora ainda haja formas de evitá-los. Eles reafirmam, com base em evidências empíricas, que a influência humana no sistema climático é clara e quanto maiores forem os impactos antrópicos, maiores serão os riscos de consequências graves, amplas e irreversíveis. Nenhuma parte do mundo ficará intocada. O relatório do IPCC afirma que a mudança climá131


tica já aumentou o risco de ondas de calor severas e outros eventos extremos. O Brasil tem sofrido vários desastres climáticos nos últimos anos. O relatório também alerta que o pior está por vir, incluindo escassez de alimentos e conflitos sociais violentos. Aquecimento Global ENTRE 1880-2012 aumento de 0,85ºC

ATÉ 2100 alta de 2,6ºC e 4,8ºC

Fonte: IPCC Fifth Assessment Synthesis Report. CLIMATE CHANGE 2014, 1/11/2014 http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/SYR AR5 LONGERREPORT.pdf

De acordo com os cenários do IPCC, a Terra caminha atualmente para um aumento de pelo menos 4ºC até 2100 na comparação com nível da era pré-industrial, o que pode levar a uma alta de 55 cm do nível do mar, somente no século XXI. Tudo isto, caso não seja evitado, provocará grandes secas, inundações, acidificação dos oceanos e extinção de muitas espécies, além de fome, populações deslocadas e conflitos inter e intra países. Para o IPCC, o uso de energias renováveis, o aumento da eficiência energética e o estabelecimento de outras medidas destinadas a limitar as emissões custaria muito menos que enfrentar as consequências do aquecimento global. Os custos para mudar a matriz energética são muito mais baixos do que os gastos mundiais com a conta a pagar atualmente para atingir a meta ainda é possível, mas adiar a resposta aumentaria consideravelmente a fatura para as gerações futuras. O relatório alerta que o mundo tem pouco tempo pela frente para que o aquecimento fique abaixo dos 2ºC. Mas para tanto, é preciso haver negociação e cooperação entre os países. Porém, as negociações esbarram, há vários anos, no debate sobre quais países deveriam assumir o custo da redução das emissões de gases do efeito estufa, tanto aquelas procedentes dos combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão), que sustentam e energizam a economia internacional, quanto do gás metano emitido pelos imensos rebanhos da escravidão animal a serviço do apetite humano. 132

José Eustáquio Diniz Alves


Aquecimento Global, degelo e aumento do nível dos oceanos

Fonte: IPCC Fifth Assessment Synthesis Report. CLIMATE CHANGE 2014, 1/11/2014 http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/SYR AR5 LONGERREPORT.pdf

Portanto, a chave para destravar as ações para mitigar o aquecimento global está nas negociações internacionais, na mudança do padrão de desenvolvimento e na mudança de hábito dos consumidores. Mas ai também está o grande obstáculo, pois cada país atua em função de seus interesses próprios e os governantes, em geral, pensam no curto prazo de acordo com os ciclos eleitorais, levando a uma tragédia na busca de solução dos interesses comuns. A “Tragédia dos Comuns” é um conceito que considera que o uso irrestrito de um recurso finito (como o ar limpo) pode levar à sua degradação por conta de uma superexploração ou manejo inadequado. A Tragédia dos Comuns é um termo que ganhou repercussão com o artigo “The Tragedy of the Commons”, de Garrett Hardin, publicado em 1968. Para o autor, os regimes de propriedade comum não seriam sustentáveis, devido aos interesses antagônicos dos usuários. Isto é, a racionalidade instrumental induz os agentes econômicos e as pessoas a retirar o máximo de proveito e colocar o mínimo de esforço pelo interesse do bem comum. Quando isto acontece, o bem comum estaria condenado pela superexploração do seu uso e pela falta de defesa coletiva da sua sustentabilidade. A eficiência econômica ajuda, mas não resolve o problema. Segundo o professor Vaclav Smil, embora cada unidade de produto e cada unidade de valor são oferecidas com uso decrescente de O aquecimento global e seus danos irreversíveis

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energia e com menos emissões, as emissões globais derivadas do uso de energias fósseis aumentaram de 1,6 gigatoneladas (Gt) de carbono em 1950 para 6,8 Gt em 2000. E entre 2000 e 2010 o ritmo do aumento se intensificou: só nessa década, foi de 35% e as emissões chegaram a 9,13 Gt (ABRAMOVAY, 2014). Portanto, a emissão de GEE continua aumentando a despeito de todos os problemas do efeito estufa e das inúmeras reuniões e conferências internacionais. Emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE)

Total Annual Anthropogenic GHG Emissions by Gases 1970-2010

Fonte: IPCC Fifth Assessment Synthesis Report. CLIMATE CHANGE 2014, 1/11/2014 http://www.ipcc.ch/pdf/assessment-report/ar5/syr/SYR AR5 LONGERREPORT.pdf

Se olharmos para a falta de resultados concretos das negociações anuais da Convenção do Clima (adotada na Rio/92), houve até agora poucos avanços. O recente acordo climático entre Estados Unidos e China pode ajudar. Temos ainda duas Conferências pela frente para chegar a um acordo real. A 20ª Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP20) vai acontecer entre os dias 01 e 12 de dezembro de 2014, na cidade de Lima, Peru. Como todos os anos, o evento reunirá representantes nacionais dos países signatários da convenção. A COP-20 será de fundamental importância, por fazer parte do processo de negociação do novo acordo mundial sobre o clima que vai substituir o Protocolo de Kyoto. As discussões sobre este novo acordo começaram oficialmente na COP19, 134

José Eustáquio Diniz Alves


em Varsóvia, e espera-se que sejam finalizadas na COP-21, na França, em 2015. Se houver continuidade dos efeitos danosos do modelo desenvolvimentista e consumista, a civilização humana poderá entrar em colapso e provocar a extinção em massa de outras espécies. A civilização precisa aprender a “não desprezar as coisas desprezíveis”, para usar um verso do poeta Manoel de Barros (falecido em novembro de 2014). A Terra é um Bem Comum não só do homo sappiens, mas de todos os seres vivos do Planeta. Levar em consideração o conjunto da biodiversidade só aumenta a responsabilidade atual. Como escrevi em um outro artigo: “Somos a primeira geração a sentir o impacto da mudança climática e a última geração que pode fazer alguma coisa para evitar um desastre ecológico global”. Referências ALVES, J. COP-17 e o Aquecimento Global: tragédia ou regulação dos “Bens Comuns”? EcoDebate, 11/01/2012 ABRAMOVAY, Ricardo. PIB pró-consumo é bom, menos nas consequências. Jornal Valor, 04/11/2014

IPCC Fifth Assessment Synthesis Report. CLIMATE CHANGE 2014, 01/11/2014. (Publicado originariamente no Portal EcoDebate, de 21/11/2014)

O aquecimento global e seus danos irreversíveis

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Os desafios da engenharia brasileira na era contemporânea Fernando Alcoforado

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o Dia do Engenheiro no Brasil, comemorado em 11 de dezembro, é importante fazer uma reflexão sobre a contribuição da Engenharia ao progresso da humanidade e apontar seus desafios na era contemporânea brasileira. Desde os primórdios da humanidade, muita gente se ocupou de diversas tarefas que hoje são atribuições do engenheiro, e estão aí para provar as incontáveis e magníficas obras de Engenharia da Antiguidade, como o Farol de Alexandria, as Pirâmides do Egito, os Jardins Suspensos da Babilônia, a Acrópole e o Partenon de Atenas, os antigos aquedutos romanos, a Via Ápia, o Coliseu de Roma, Teotihuacán no México, as Pirâmides dos Maias, Incas e Astecas e a Grande Muralha da China, entre muitas outras obras. Desde a Antiguidade até o século XV, as obras de engenharia foram muito mais fruto do empirismo e da intuição do que do cálculo e de uma verdadeira engenharia. A investigação científica, inclusive nas ciências físicas e matemáticas, era quase mera especulação, em geral sem ter como alvo aplicações práticas. Havia, quando muito, alguma aplicação com finalidades militares.

Leonardo da Vinci e Galileu Galilei, nos séculos XV e XVII, por exemplo, podem ser considerados os precursores da Engenharia de base científica porque o que eles fizeram era regido por leis físicas e matemáticas. A Engenharia, compreendida como a arte de fazer, consiste em aplicar conhecimentos científicos e empíricos à criação de estruturas, processos e dispositivos, que são utilizados para converter recursos naturais em formas adequadas ao atendimento das necessidades humanas. A Engenharia tem sido utilizada ao longo da história da humanidade como um meio para a conquista de melhores condições de vida para a sociedade em todos os países do mundo e também para fins militares. A Engenharia é o meio através do qual as pessoas podem adquirir condições para habitar melhor, se transportar com mais rapidez, adquirir conforto e segurança, ter acesso a alimentos mais nutritivos e saudáveis etc. O bom funcionamento 136


da Engenharia, portanto, não é de interesse apenas dos profissionais e empresários do setor. É de interesse de toda a sociedade, sendo também sinônimo de desenvolvimento. A Engenharia é, em suma, sinônimo de progresso técnico. É sabido que a Engenharia está presente em todo o setor produtivo, a saber: nas fábricas, nos canteiros de obras habitacionais e de infraestrutura, nas universidades, nos laboratórios científicos, nos centros de pesquisas tecnológicas, nos transportes, na geração de energia, nas comunicações, na produção de alimentos, entre outros empreendimentos. As grandes mudanças que vêm ocorrendo na vida das pessoas, no mundo moderno, foram geradas pela tecnologia que é alimentada pelo conhecimento acumulado e os grandes investimentos em pesquisa e inovação. A humanidade precisa da Engenharia porque é ela que transforma o conhecimento acumulado em universidades e centros de pesquisa, públicas e privadas, em produtos e serviços disponibilizados à sociedade. A transformação do conhecimento produzido em laboratórios por profissionais de várias áreas, inclusive engenheiros, cabe a estes projetar e realizar. Não é à toa que em todas as definições da Engenharia, e são muitas, encontramos as palavras “aplicação prática de princípios científicos visando à transformação da natureza com economia de recursos”. A Engenharia deve ser entendida, portanto, como uma cultura, aberta para a sociedade, ativa na promoção de seu desenvolvimento, procurando como propósito a melhor qualidade de vida. Como o desenvolvimento tecnológico depende fundamentalmente da capacidade em Engenharia, pode-se afirmar que educação, ciência, engenharia e tecnologia estão intimamente relacionadas. A Engenharia é estratégica para o progresso da humanidade. Modernamente, são inúmeros os empreendimentos no Brasil e no mundo que contaram e contam com o decisivo apoio da Engenharia, tais como as gigantescas usinas hidrelétricas de Três Gargantas, na China, e Itaipu, no Brasil/Paraguai; edifícios como o Empire State Building, em New York, o Capital Gate, na cidade de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos e o Kingdom Tower, ainda em fase de projeto, que será construído na cidade de Jeddah, Arábia Saudita, que deve possuir 275 andares quando estiver pronto, atingindo a incrível marca dos 1,6 mil metros de altura; pontes como a mais longa do mundo sobre o mar de 36,48 quilômetros construída na cidade litorânea de Qingdao, na China, e a Rio-Niterói, no Brasil; grandes estádios de futebol, shopping centers, aeroportos, ferrovias, rodovias e viadutos, navios transaOs desafios da engenharia brasileira na era contemporânea

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tlânticos, navios superpetroleiros e supergraneleiros, aviões a jato, foguetes espaciais, entre outros. Ao longo da história da Engenharia brasileira, tem sido grande o número de engenheiros e empresas, das mais diversas áreas de atividades, que se têm destacado pela criatividade e pioneirismo das soluções adotadas nos projetos e nas obras que executaram. Da época da instalação das grandes siderúrgicas, a partir da industrialização, na década de 1930, durante o governo Getúlio Vargas, que alteraram o modelo e as possibilidades de crescimento do país, da fase da abertura dos eixos rodoviários de penetração, da construção de Brasília, na ação desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e da construção das grandes hidrelétricas, a partir da década de 1950, até o completo domínio da tecnologia de exploração de petróleo off shore, na década de 1990, muitas empresas nacionais e muitos engenheiros ajudaram a modernizar e a desenvolver o Brasil. O Brasil é plenamente desenvolvido em diferentes setores de Engenharia. Da construção de estradas ao setor energético, tudo é possível de ser projetado e construído no Brasil. Em alguns setores, inclusive, somos referência mundial, como é o caso dos programas ligados ao Proálcool e biodiesel, à exploração de petróleo em águas profundas, construções de grandes hidroelétricas, como Itaipu, a maior em operação até bem pouco tempo, projetada, construída e montada por empresas brasileiras. Os engenheiros e empresas de engenharia colaboraram decisivamente para desencadear o processo de modernização do país. É importante destacar também os administradores públicos engenheiros que tiveram larga visão e contribuíram para materializar ousados projetos de infraestrutura de energia, transportes e comunicações implantados no Brasil, nos últimos 60 anos. Cabe lugar de relevo, também, os pioneiros na fabricação de máquinas e equipamentos, além de bens de capital e fornecedores de insumos que ajudaram a proporcionar extraordinário impulso à Engenharia e à construção brasileiras. A Engenharia foi, portanto, responsável pela construção do Brasil moderno. Apesar da enorme contribuição da Engenharia brasileira à modernização do país, ela precisa se fortalecer ainda mais para superar os desafios da era contemporânea visando contribuir para o progresso nacional, destacando-se, entre eles, os seguintes: 1) a participação do Brasil na corrida à inovação tecnológica, em nível 138

Fernando Alcoforado


global; 2) a melhoria da qualidade da educação em geral no país e, em particular, dos atuais cursos de Engenharia no Brasil; 3) a eliminação do déficit de engenheiros no Brasil; 4) o desmantelamento da Engenharia consultiva do país; e, 5) o fortalecimento do Sistema Confea/Crea, cujas fragilidades precisam ser superadas. Estas são as condições exigidas para o fortalecimento da Engenharia brasileira. Não existem dúvidas de que, para se desenvolver, o Brasil tem que contar necessariamente com sua Engenharia e, com o melhor uso desta, alavancar seu progresso econômico e social e evitar a eterna dependência tecnológica em relação ao exterior. Para a Engenharia brasileira elevar seu nível de contribuição ao progresso do Brasil, é preciso enfrentar o desafio de aumentar a participação do país na corrida à inovação no plano global. A situação brasileira é desvantajosa quanto à inovação tecnológica porque, enquanto os Estados Unidos, por exemplo, têm 800 mil cientistas trabalhando em pesquisa e desenvolvimento, o Brasil possui apenas 137 mil. Outro aspecto a considerar: torna-se ridículo falar-se em inovação tecnológica no Brasil com a indústria desnacionalizada e com os seus centros de decisões sobre produção e mercados se situarem no exterior, como é o caso da indústria brasileira. Tudo isto explica porque continuamos sendo um dos países menos inovadores do mundo. A indústria desnacionalizada é fator determinante para o Brasil ser um país que investe pouco em pesquisa, menos de 1% do seu PIB, enquanto a maioria dos países industrializados está no patamar médio de 3%. O Brasil investe pouco em educação, algo como 4,5% do PIB, enquanto nos países desenvolvidos esse índice chega a 7% ou mais. Para a Engenharia brasileira elevar seu nível de contribuição ao progresso do Brasil, é preciso também enfrentar o desafio da melhoria da qualidade da educação dos atuais cursos de Engenharia no Brasil, que têm um número excessivo de especializações na graduação. Para superar este problema, os cursos de Engenharia deveriam ser reestruturados visando formar o engenheiro básico, tal como o médico e o advogado, com a especialização contemplada na pós-graduação cujas atribuições seriam redefinidas pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea). Para contribuir para o progresso do Brasil, seria desejável que a formação do engenheiro do futuro fosse orientada no sentido de que o mesmo adquira uma visão totalizante das engenharias, estabelecendo as relações entre as partes e o todo em seu conjunto Os desafios da engenharia brasileira na era contemporânea

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ao contrário do que ocorre na atualidade, que impõe o conhecimento fragmentado de acordo com as especialidades. Para a Engenharia brasileira elevar seu nível de contribuição ao progresso do Brasil, precisaria também enfrentar o desafio da insuficiência de engenheiros no Brasil que, segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), teria necessariamente que formar 60 mil engenheiros por ano, para dar conta da demanda desses profissionais. Mas o que acontece é que apenas 48 mil obtêm este diploma, a cada ano. Uma das causas da insuficiência deles resulta, entre outros fatores, da desistência ou evasão dos alunos durante o curso, que é muito grande, chegando a 60%. A evasão acontece no primeiro e no segundo anos, principalmente pela formação deficiente em matemática e física do estudante no ensino médio que, em muitos casos, tem dificuldade para acompanhar o curso. A luta pela melhoria do ensino médio é essencial para enfrentar o problema da evasão nos Cursos de Engenharia. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do governo federal, estima que, em 2022, haverá a necessidade de 1,565 milhões de engenheiros em ocupações típicas, o que significa dobrar a população de engenheiros em relação à situação atual. Para a Engenharia brasileira elevar seu nível de contribuição ao progresso do Brasil, precisa também enfrentar o desafio de evitar o desmantelamento da Engenharia consultiva do país, que ocorre devido ao baixo nível dos investimentos no aumento da capacidade produtiva do país, a desindustrialização e os problemas financeiros que afetam a Petrobras, principal contratante de serviços de consultoria. Tudo isto está levando ao sucateamento da Engenharia brasileira e sua consequente incapacidade de colaborar com a execução das obras necessárias ao desenvolvimento do Brasil, sobretudo no campo da infraestrutura. É fundamental considerar que a Engenharia consultiva é a base para o crescimento do país, porque, sem projetos bem feitos, o Brasil não tem como crescer. Bons projetos e serviços de Engenharia consultiva dependem fundamentalmente de equipes formadas por profissionais experientes no desenvolvimento de trabalhos nas mais diversas áreas abrangidas pelos setores de transportes, energia, telecomunicações, edificações, saneamento, entre várias outras, as quais estão sendo desestruturadas. A situação atual contribui para a falta de projetos básicos e executivos competentemente elaborados e para o superfaturamento de obras atuando como um obstáculo para a infraestru140

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tura do país. A superação desses problemas que afetam a Engenharia brasileira precisa ser levada avante sem a qual comprometerá o futuro do Brasil. Para a Engenharia brasileira elevar seu nível de contribuição ao progresso nacional, precisa também enfrentar o desafio do fortalecimento do Sistema Confea/Crea, cujas fragilidades precisam ser superadas: 1) o Sistema é uma autarquia do governo federal e, portanto, não é independente; 2) cumpre uma função meramente burocrática de fiscalização do exercício profissional; e, 3) é omisso na busca de solução para os grandes problemas nacionais, sobretudo no campo da educação, da infraestrutura e da ciência, tecnologia e inovação. Por que não fazer com que o Sistema Confea/Crea passe a operar como a OAB que é, em verdade, entidade autônoma, porquanto autonomia e independência são características próprias dela? Para atuar com firmeza na defesa da Engenharia nacional, o Sistema Confea/Crea deveria se empenhar na luta pela melhoria da estrutura de ensino da Engenharia e da educação em geral que contribuem para a insuficiência de engenheiros no país, bem como exercer rigorosa fiscalização na execução de obras públicas no Brasil para elevar seu nível de qualidade e combater a corrupção. Para contribuir na solução dos grandes problemas nacionais, sobretudo no campo da infraestrutura e da ciência, tecnologia e inovação, o Sistema Confea/Crea deveria ser independente do governo federal, e se fortalecer para cumprir sua missão. Estas são as condições para o soerguimento da Engenharia no Brasil.

Os desafios da engenharia brasileira na era contemporânea

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VII. Ensaio


Autor Theófilo Rodrigues

Graduado em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio .


Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci Theófilo Rodrigues

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arl Marx não nos legou uma teoria plenamente sistematizada da política ou do Estado, embora fosse sua vontade. Tal vazio abriu espaço para que muitas vertentes marxistas construíssem possíveis sociologias ou ciências da política a partir de suas interpretações singulares da obra do filósofo alemão. Neste breve texto sugiro o que o italiano Antônio Gramsci [1891-1937] compreendeu como sociologia e ciência política a partir de seus famosos Cadernos do Cárcere. Principal dirigente do Partido Comunista Italiano, Gramsci foi preso em 1926 de onde saiu apenas quando a morte já se aproximava em 1937. Embora seja autor de obra vastíssima que hoje está organizada e publicada em todo o mundo, o comunista da Sardenha jamais publicou um livro em vida. Seus textos publicados eram apenas informes políticos ou artigos de jornais, em especial para o L´Ordine Nuovo. Mas foi na prisão que o autor escreveu a extensa obra que o traria postumamente para o panteão dos grandes clássicos do marxismo: os Cadernos do Cárcere. Ao todo somam 33 os cadernos redigidos na prisão entre 1929 e 1935 e que tratam dos mais variados assuntos como a filosofia, a arte, a cultura, o folclore, a linguística, a religião, a história da Itália, a economia, a educação etc. Aqui, interessa-nos em especial os temas relacionados ao Estado, à ciência política e à sociologia, com ênfase no diálogo realizado com a obra de sociólogos de seu tempo. O objetivo é observar os diálogos travados por Gramsci com os seus sociólogos contemporâneos como Bukharin, Michels, Mosca, Pareto e Weber. Acrescente-se ao debate a influência de 145


Maquiavel sobre Gramsci pelo seu protagonismo como um dos fundadores da ciência política moderna. Gramsci e a ciência política de Maquiavel “Tudo começou com Maquiavel” é um importante e frequente aforismo da ciência política. Há seus motivos para sê-lo. Foi a partir de Nicolau Maquiavel [1469-1527] que os estudiosos da política passaram a dar visibilidade ao mundo real em seus estudos – aí inseridas suas contingências e circunstâncias –, ou, empreenderam críticas alicerçadas naquilo que Lênin definiu como as “análises concretas da realidade concreta”. Soma-se a isso o fato de Maquiavel ser um italiano e compreenderemos o destacado papel que o filósofo ocupou nos Cadernos do Cárcere . São muitos os cadernos onde encontramos menções ao nome de Maquiavel, mas foi indubitavelmente no Caderno 13 que Gramsci melhor dedicou-se ao estudo do filósofo de Florença. Aqui encontramos referências aos Discursos, à Arte da guerra e às Histórias florentinas, mas é em especial O Príncipe que ocupa maior destaque nos cadernos. De acordo com nosso autor, até Maquiavel a ciência política caminhava “entre a utopia e o tratado escolástico”. É a partir do Príncipe, de Maquiavel, que algo muda na exata medida em que o dever ser une-se finalmente à realidade concreta. “Maquiavel trata de como deve ser o Príncipe para conduzir um povo à fundação do novo Estado, e o tratamento é conduzido com rigor lógico, com distanciamento científico” (2007, p. 14), informa-nos Gramsci logo no início de seu texto. Ao trazer Maquiavel para o seu campo de estudo Gramsci está preocupado em apropriar-se de um elemento fundamental de sua ciência política, qual seja, a mudança histórica na forma como se dá a ação política na sociedade moderna a partir da mediação entre coerção e consenso. Gramsci percebe – influenciado por Maquiavel – que o desenvolvimento histórico obriga a ciência política a operar uma mudança radical na ação política. A “guerra de movimento” própria do Oriente onde a “sociedade civil era primitiva e gelatinosa” é substituída no Ocidente pela “guerra de posição”. Em outras palavras, a ação política direta contra um determinado Estado era possível nas sociedades atrasadas que não desenvolveram uma sociedade civil. Nas sociedades modernas, onde a sociedade civil é complexa, a disputa pelo Estado também é complexa, pois é necessário conquistar a hegemonia da sociedade civil antes de alcançar o “Palácio de Inverno”. Segundo 146

Theófilo Rodrigues


Gramsci, “o Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas” (2007, p. 262). As sociedades primitivas mantinham-se através de um máximo de coerção e um mínimo de consenso. O desenvolvimento de uma sociedade civil complexa nas sociedades modernas, ao contrário, possibilitou a manutenção do poder do Estado por um máximo de consenso e um mínimo de coerção. Mas não é apenas a natureza dúplice do Centauro maquiavélico, “ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da “Igreja” e do “Estado”), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia” (2007, p. 33) que Gramsci recolhe do autor do Príncipe. Assim como o filósofo de Florença descreveu a necessidade histórica de um Príncipe capaz de unificar a Itália, o filósofo da Sardenha depositou no partido político a tarefa de ser o moderno Príncipe, com a responsabilidade de “ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total da civilização moderna” (GRAMSCI, 2007, p. 18). Por fim, importante ressaltar um ponto fundamental lembrado por Gramsci. O mérito da original ciência política de Maquiavel não está nos ensinamentos dados ao príncipe propriamente. Por óbvio, as táticas da política – como as da guerra – modificam-se ao longo do tempo e do espaço. O original na ciência política advinda do Príncipe está na percepção da responsabilidade histórica dos atores políticos e em como eles devem posicionar-se diante dos problemas de sua época, diante dos fatos concretos. Conforme nos indica o sardo, Maquiavel é um homem inteiramente de seu tempo e sua ciência política representa a filosofia da época que tende à organização das monarquias nacionais absolutas, a forma política que permite e facilita um novo desenvolvimento das forças produtivas burguesas. Em Maquiavel, pode-se descobrir in nuce a separação dos poderes e o parlamentarismo (o regime representativo): sua “ferocidade” está voltada contra os resíduos do mundo feudal, não contra as classes progressistas (GRAMSCI, 2007, p. 30). De Maquiavel o sardo recolhe, portanto, importantes elementos que constituirão as bases da sua nova ciência política.

Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

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Gramsci contra a sociologia de Bukharin O debate sobre a então nascente sociologia encontrou um espaço profícuo – embora crítico – nos Cadernos do Cárcere, em especial no Caderno 11. A partir da desconstrução da principal obra do bolchevique Nikolai Bukharin [1888-1938] Gramsci apresentou alguns elementos de sua crítica da sociologia. Sendo o mais relevante construtor e difusor do que seria uma possível sociologia soviética, ou do que seria um diálogo do marxismo com a sociologia, Bukharin acabou tornando-se o alvo preferencial da crítica de Gramsci. Autor de proeminente obra teórica dentre os bolcheviques, Bukharin influenciou diretamente textos de Lênin como O Estado e a revolução e Imperialismo, fase superior do capitalismo. Contudo, foi com A teoria do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista publicado em 1921 que o autor encontrou de vez a sociologia e tornou-se referência teórica para grande parte dos revolucionários do período. Foi também a partir da Teoria do materialismo histórico – que ao longo do Caderno 11 aparece como Ensaio popular – que Gramsci estabeleceu seu diálogo crítico com Bukharin. De antemão, poderíamos dizer que as principais críticas formuladas por Gramsci ao Ensaio popular encontram-se em um só lugar: a relação construída por Bukharin entre sociologia e marxismo a partir da suposta falta de uma análise dialética da realidade. Logo na introdução do seu Ensaio Popular, Bukharin declarou que “a classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida pelo nome de materialismo histórico”. Todavia, para Gramsci toda a ciência e a sociologia desenvolvidas por Bukharin não passavam de uma sociologia positivista. De forma assertiva o autor chegou a afirmar que o conceito de ciência presente no Ensaio popular “deve ser criticamente destruído; ele é pura e simplesmente recolhido das ciências naturais, como se estas fossem a única ciência, ou a ciência por excelência, tal como acreditava o positivismo” (GRAMSCI, 2011, p. 122). Tal categorização possui relação com aquilo que Gramsci definiu como a “lei dos grandes números”, ou seja, a busca científica por leis estatísticas que possam prever os resultados sociais. Se o concreto é “síntese de múltiplas determinações”, conforme asseverou Marx em sua Crítica da economia política de 1959, e se as múltiplas determinações são dinâmicas, então qualquer previsão social será sempre imprecisa, na medida em que partirá sempre de informações incompletas. Ao contrário das ciências naturais, a história não é um laboratório asséptico onde as variáveis estão sempre controladas por um analista. Deste 148

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modo, Gramsci apenas aceita a possibilidade de previsão da luta social, mas jamais dos seus resultados ou dos seus momentos. De forma original o italiano observa que a “lei dos grandes números”, ou melhor, que a sociologia só pode encontrar resultados reais em sociedades passivas, ou seja, em contextos em que esteja presente um determinado equilíbrio social. Utilizar a sociologia para aferir resultados de sociedades em processos de transformação certamente levará o analista ao erro. Em suas palavras, “a extensão da lei estatística à ciência e à arte política pode ter consequências muito graves se delas nos utilizarmos para construir perspectivas e programas de ação” (GRAMSCI, 2011, p. 147). A segunda crítica está na suposta falta de compreensão do processo dialético apontada por Gramsci. De fato, essa deficiência de Bukharin já havia sido registrada por Lênin em seu testamento político. Não obstante os elogios feitos à Bukharin já mencionados anteriormente, Lênin asseverou que “as suas concepções teóricas só com grandes reservas se podem qualificar de inteiramente marxistas, pois há nele qualquer coisa de escolástico – nunca estudou e penso que nunca compreendeu inteiramente a dialética” (LENINE, 1979, p. 641). Não se sabe se Gramsci chegou a conhecer o testamento de Lênin, mas a semelhança na crítica que ambos fazem à Bukharin é notável. Conforme o texto de Gramsci, “no Ensaio, inexiste qualquer tratamento da dialética” (GRAMSCI, 2011, p. 142). Mais do que isso, “deve-se dizer que escapa ao autor o próprio conceito de metafísica, na medida em que lhe escapam os conceitos de movimento histórico, de devir e, consequentemente, da própria dialética” (GRAMSCI, 2011, p. 120). Gramsci contra a teoria das elites de Mosca, Pareto e Michels Em seu cárcere, Gramsci dedicou-se a estudar profundamente a sociologia e a ciência política italiana de sua época, em especial aquela formulada pelos autores da Teoria das elites. Robert Michels [1876-1936], Vilfredo Pareto [1848-1923] e Gaetano Mosca [1858-1941] são autores de Sociologia dos partidos políticos, Tratado de sociologia geral e Elementos de ciência política respectivamente, clássicos que podem ser considerados fundadores da moderna ciência política. A inovação teórica proposta pelos três está na percepção da política dividida entre governantes e governados, divisão permanente e existente em todas as sociedades. Os três foram densamente examinados e criticados pelo sardo ao longo dos Cadernos como veremos adiante. Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

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Uma das críticas disferidas por Gramsci contra os autores da teoria das elites, notadamente à Michels, é aquela que também está presente na crítica à Bukharin, qual seja, a tentativa desses teóricos de constituir rígidas leis sociológicas. No Caderno 11, redigido entre 1932 e 1933, encontramos a maior parte dessas críticas. A implicância de Gramsci também está presente no Caderno 2 – escrito entre 1929 e 1933 – quando afirma que “Michels fez muito barulho na Itália por “seu” achado do “líder carismático”, que provavelmente, seria preciso verificar, já estava em Weber” (GRAMSCI, 2007, p. 162). Michels também é criticado pela superficialidade com que trata a definição teórica de partidos políticos. “Quando se quer escrever a história de um partido político, deve-se enfrentar na realidade toda uma série de problemas muito menos simples do que aqueles imaginados, por exemplo, por Robert Michels, considerado um especialista no assunto” (GRAMSCI, 2007, p. 87). Gramsci, um filósofo da totalidade, observa que a compreensão da história de um determinado partido político só é possível se forem analisados dados mais complexos e abrangentes da realidade histórica e suas relações internas e externas. Até mesmo as influências internacionais precisam ser estudadas. Antes de tudo, é necessário compreender a que grupo social cada partido pertence e como ele se coloca em antagonismo com outras forças sociais. Em suas palavras, “a história de um partido não poderá deixar de ser a história de um determinado grupo social” (GRAMSCI, 2007, p. 87). Gramsci não se contenta apenas em criticar a essência do erro de Michels. Traz para o seu alvo de ataque também a forma como o cientista político apresenta suas ideias. “A classificação que Michels faz dos partidos é muito superficial e sumária”; “O artigo [de Michels] está cheio de palavras vazias e imprecisas”; “As ideias de Michels sobre os partidos políticos são bastante confusas e esquemáticas”; “A bibliografia dos trabalhos de Michels pode ser reconstruída sempre a partir de seus próprios textos, porque ele cita a si mesmo abundantemente”; “seus escritos estão cheios de citações bibliográficas, em boa parte ociosas e confusas”; “ele apoia até ao mais banais truísmos com a autoridade dos escritores mais díspares”; “Michels deve ter organizado um imenso fichário, mas como diletante, como autodidata”; são apenas alguns exemplos do modo exagerado com o qual Gramsci trata seu adversário teórico no Caderno 2 redigido entre 1929 e 1933. Todavia, não é apenas Michels a ser criticado pela insuficiência conceitual do que seriam os partidos políticos. Mosca também é 150

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apresentado por Gramsci como um autor que não obteve sucesso nessa tentativa. Em seu Caderno 13 o sardo explica que “a deficiência da abordagem de Mosca reside no fato de que ele não enfrenta, em seu conjunto, o problema do partido político, o que se compreende, dado o caráter dos livros de Mosca e especialmente dos Elementi di scienza politica” (GRAMSCI, 2007, p. 22-23). Para além da crítica ao líder carismático, ao conceito de partido político ou ao positivismo sociológico que estava impregnado naqueles teóricos, Gramsci também concentra esforças em condenar a essência da teoria das elites que pode ser compreendia a partir dos conceitos de “elite” de Pareto, de “classe política” em Mosca ou de “lei de ferro das oligarquias” de Michels resguardadas suas diferenças. Como já foi dito, a teoria das elites caracteriza-se por compreender as sociedades através da divisão entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos. Para os autores, todas as sociedades sempre terão uma minoria que ocupa o poder para dirigir uma maioria, seja nas democracias, seja nas sociedades socialistas. Essa perspectiva certamente não é compartilhada por Gramsci. Evidentemente, o sardo compreende as sociedades modernas através do binômio elitista dirigentes-dirigidos, governantes-governados. Contudo, observa que essa construção elitista é histórica e que pode ser superada na sociedade de novo tipo. Notória também é a maneira como Gramsci refere-se a Mosca de forma ríspida. Os adjetivos utilizados para descrever seus escritos assemelham-se em dureza àqueles empregados contra a obra de Bukharin. Em uma de suas obras mais maduras, o Caderno 19 – redigido entre 1934 e 1935 – trata o texto de Mosca da seguinte forma: A reedição do livro de Mosca é um dos tantos episódios da inconsciência e do diletantismo político dos liberais no período imediatamente após a guerra e no subsequente. De resto, o livro é bisonho, desordenado, escrito apressadamente por um jovem que pretende “sobressair” em seu tempo com uma atitude extremista e com palavras altissonantes e, muitas vezes, triviais em sentido reacionário. Os conceitos políticos de Mosca são vagos e oscilantes, sua preparação filosófica é nenhuma (e assim restou por toda a carreira literária de Mosca), seus princípios de técnica política também são vagos e abstratos e tem caráter acentuadamente jurídico. O conceito de “classe política”, cuja afirmação se tornará o centro de todos os escritos de ciência política de Mosca, é de uma fragilidade extrema e não é discutido nem justificado teoricamente (GRAMSCI, 2011, p. 32). Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

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Embora demonstre ser leitor assíduo e conhecer perfeitamente bem a literatura produzida pelos três cientistas políticos, Gramsci os trata, como vimos, com o desdém de quem os considera adversários teóricos, do mesmo modo como já havia feito com o sociólogo marxista Bukharin. Max Weber não foi destinatário dos mesmos ataques, ainda que sua sociologia estivesse muito mais próxima dos autores da teoria das elites do que de Gramsci. Aproximações com a sociologia de Max Weber Não há muitas dúvidas sobre o fato de Gramsci ter sido um conhecedor da obra do sociólogo alemão Max Weber [1864-1920], ainda que não da mesma forma profunda como a dos sociólogos anteriormente analisados. Não apenas por Weber ter sido um dos mais conhecidos fundadores da moderna sociologia, mas também pelas afinidades temáticas dos dois autores. Ao longo dos Cadernos do Cárcere encontramos algumas referências a obras do autor como Parlamentarismo e governo, Economia e sociedade e a Ética protestante e o espírito do capitalismo. Mais do que isso, mesmo em passagens sem citações, observamos nitidamente semelhanças analíticas que indicam a influência que o alemão exerceu sobre o italiano. Vejamos primeiramente as menções aos estudos de Weber sobre os partidos políticos. Logo no Caderno 2, redigido entre 1929 e 1933, Economia e sociedade de Weber surge como referência para a compreensão sociológica dos partidos políticos. Outra fonte do italiano para a questão dos partidos é o livro Parlamento e governo de Weber. No Caderno 15 de 1933 Gramsci descreve como os partidos elaboram na sociedade civil determinadas diretrizes políticas que após passarem pelo debate no Parlamento tornam-se políticas de governo de acordo com as maiorias formadas. A não existência desse debate no Parlamento oculta um regime de partidos fracos definidos por ele como de pior espécie. A referência ao livro Parlamento e governo também está presente no Caderno 12 de 1932. Ao realizar uma análise comparativa entre diversos países no que diz respeito ao papel dos intelectuais orgânicos e tradicionais – como, aliás, é uma característica do seu método – Gramsci observa como na Alemanha os junkers cumpriram papel destacado como intelectuais tradicionais. No que diz respeito à Ética protestante e o espírito do capitalismo, Gramsci provavelmente conheceu apenas a tradução italiana que havia sido publicada em 1931 na revista Nuovi Studi di Diritto, Economia e Política. No Caderno 11, redigido entre 1931 152

Theófilo Rodrigues


e 1932, o autor menciona o texto de Weber ao comentar a questão do calvinismo e da difusão popular das concepções de mundo. Contudo, talvez esteja para além das citações diretas de Weber presentes nos Cadernos do Cárcere a maior afinidade entre os dois autores. Penso, em especial, na proximidade existente entre o tema da hegemonia em Gramsci e da dominação legítima em Weber. Em seu conhecido discurso conhecido como A política como vocação Weber observou que “o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 2002, p. 56). Trata-se, portanto, de um instrumento de dominação. Todavia, essa dominação precisa ser legítima. O sociólogo descreveu então três tipos puros dessa dominação legítima: a de caráter racional; a de caráter tradicional; e a de caráter carismático. Ora, como não perceber a similitude entre o que Weber definiu como dominação legítima e o que Gramsci conceituou como hegemonia? Como já vimos na primeira seção desse artigo dedicada à Maquiavel, Gramsci apropriou-se da ideia de complementariedade entre o consenso e a coerção para compreender a formação do Estado e da hegemonia. Assim, facilmente podemos relacionar a coerção com o “monopólio do uso legítimo da força física” e o consenso com a dominação legítima. Além disso, poderíamos citar objetos de análise como a burocracia, o líder carismático, a objetividade como método e a questão da religião como exemplos de afinidades temáticas entre os dois autores na conformação de uma teoria sociológica e que certamente precisariam de uma observação mais complexa. Considerações finais Por que trabalhar a relação entre Gramsci e a Sociologia e ciência política neste breve artigo? Diria serem duas as principais razões. Em primeiro lugar, porque Gramsci trouxe no início do século XX contribuições originais para a análise do desenvolvimento das complexas sociedades modernas em diálogo permanente com a obra dos grandes sociólogos e cientistas políticos de seu tempo. Contribuições que ainda são válidas nos dias de hoje. Em segundo lugar – simples, mas verdadeiro – por serem pouquíssimos os trabalhos da literatura especializada que se debruçaram sobre o tema. Uma pesquisa mais acurada observará, por exemplo, que grande parte dos textos que trazem Gramsci para o centro da Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

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lupa analítica possuem alguma relação com o campo da pedagogia a partir de seus textos de educação. Muitos outros estão relacionados a problemas filosóficos ou históricos. Os que abordam as perspectivas das ciências sociais estão preocupados, em geral, com temas como hegemonia, movimentos sociais, Estado, partidos políticos e sociedade civil. Mas os que tratam especificamente da relação de Gramsci com os sociólogos e cientistas políticos da época e de suas contribuições para a pesquisa científica são raros. Percebe-se, ao longo dos Cadernos, a predileção de Gramsci pela ciência política em detrimento da sociologia. Certamente por Gramsci ter observado na sociologia de seu tempo uma certa aproximação deletéria dessa disciplina com o positivismo, seja em sua vertente marxista – notoriamente em Bukharin –, seja na versão “burguesa” de Michels, Mosca, Pareto e Weber. Daí que em suas palavras o autor diga que Se ciência política significa ciência do Estado e Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados, é evidente que todas as questões essenciais da sociologia não passam de questões da ciência política (GRAMSCI, 2007, p. 331). Por fim, parece-nos que uma pequena mensagem de Aléxis de Tocqueville permanece atual, embora em outras bases. Logo no início de sua Democracia na América, Tocqueville adverte ao mundo do século XIX ser “necessária uma nova ciência política para um mundo totalmente novo” (TOCQUEVILLE, 1998, p.12). Talvez possamos dizer, com Gramsci, que essa nova ciência política iniciada no século XX e continuada no XXI passe de algum modo pela filosofia da práxis. Referências BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

COHEN, Stephen F. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. V. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 154

Theófilo Rodrigues


______. Cadernos do Cárcere. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ______. Cadernos do Cárcere. V. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. LENINE, V.I. Obras escolhidas. Lisboa: Avante! 1979. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002.

Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

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VIII. Mundo


Autores José Flávio Sombra Saraiva

PhD pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, é professor titular de Relações Internacionais da UnB, atual Diretor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, pesquisador 1 do CNPq, autor de 13 livros, sendo o último intitulado África parceira do Brasil atlântico (Belo Horizonte: Traço Fino, 2012), colunista dos jornais Correio Braziliense e O Povo .

Paulo Delgado

Sociólogo, ex-deputado federal .


Alguns sinais positivos no bilateralismo Paulo Delgado

L

á se foram 25 anos da queda do Muro de Berlim, e o mundo rejuvenesceu um pouco com a entrada em cena de estilos e posições interessantes de diálogo entre países. Espera-se que seja um fato real, mais do que contemplação ou impostura. Firmes demonstrações de uma compreensão da circularidade da história em que toda tensão exacerbada pode também fazer nascer o acordo e a reconciliação. Afinal, os últimos meses não foram prosaicos nas relações internacionais. A agenda negativa do mundo não arrefece, ofuscando e desviando o rumo do encontro do G20, na Austrália, sobre a sorte econômica dos países. O Oriente Médio sectário e o conflito Rússia -Ucrânia realimentam o prato do antagonismo mundial mantendo forte o apetite dos que pregam a desilusão democrática como doutrina. Tristes tempos para o multilateralismo. É em virtude desta sina de inação e desavenças no ambiente multilateral que se deve festejar bons sinais oferecidos pelo bilateralismo. O último deles foi esse acordo selado entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China para cortar emissões de gás de efeito estufa. As duas maiores economias do planeta, que sempre se portaram como principais dores de cabeça nas conferências globais do clima, resolveram começar a se acertar por conta própria. Alívio grande, já que as duas são responsáveis por quase metade (cerca de 44%, atualmente) das emissões nocivas do planeta. Um grande passo para o clima, sem dúvida alguma, mas 159


de forma mais ampla uma demonstração de que o temido G2, negado tanto por Washington quanto por Pequim, é uma realidade inescapável. Traços importantes da realidade global poderão ser submetidos à consideração prudencial de seus principais protagonistas. Não sei se vão ser resolvidos entre os dois, mas o fato dos problemas climáticos ficarem flutuando na esfera de um ou de outro pode ajudar a salvar outros países. Engana-se quem pensa que há interesse real em Pequim de fazer antagonismo a Washington. As máscaras do antagonismo são portadas apenas para proteger pontualmente seu direito à autonomia e ao exercício ponderado de poder. Exercício esse que quer exercer inclusive em conjunto. Assim, quem sabe, mais prudentes, EUA e China ajudem ao mundo a se protegerem dos EUA e da China. Do rol dessas encenações virtuosas, uma delas ainda não deu sinais de esgotamento nessas semanas, mas começa a dar, ao menos, sinais de que não é só encenação. Quando no primeiro encontro entre o atual primeiro-ministro japonês e o presidente chinês a disputa pelas ilhas Diaoyu (em chinês) ou Senkaku (em japonês) foi levada muito bem a arrefecer. Não que não possa inflamar novamente – na foto oficial do encontro, durante o aperto de mão, um mirava o Himalaia, o outro o vulcão no Monte Fuji –, mas, no momento, é apenas peão manobrável no tabuleiro de facetas instransponíveis de tão contraditórias. Mais bem encaminhada está a pacificação da velha disputa entre Japão e Rússia pelas ilhas Curilas. Assim, de modo geral, todos se mexem na Eurásia para garantir melhores chances de influência e maior lugar ao sol nos tempos vindouros. Às vezes consegue-se isso cedendo, ofertando, doando, reconciliando. Do ponto de vista material, chamou atenção o apetite chinês de criar um fundo para financiar o que eles dizem ser uma nova Rota da Seda. Iniciativa fundamental, não apenas de boas vizinhanças, mas de grave interesse comercial e de solidificação da dependência regional ao império do meio, assim como foi por séculos a fio. Colocar, tributários da China, todos os países ao redor por meio de facilidades logísticas e acesso a mercados.

Enquanto isso, do outro lado do mundo, o desenrolar do acordo comercial chinês com os membros da Cooperação Ásia-Pacifico 160

Paulo Delgado


(Apec), como forma inclusive de fazer contraponto à proposta americana da Parceria Transpacífico, é trabalho consistente de defesa do interesse próprio num ambiente hostil e de comprometimento. Com um papel protagonista no desenhar das décadas que estão por vir. Aproveita, inclusive, em outra frente, os imbróglios que a Rússia vem passando com o Ocidente para oferecer um ombro amigo na forma de mais contratos de compras de hidrocarbonetos. O livro de George Orwell, 1984, é um sonho às avessas, uma distopia. Falava da gigante Eurásia. A Rússia fazia parte. Em um mundo que cada vez mais pende para aquela porção mais oriental do globo, a Eurásia tende a perder influência e território, passando a ser bem menor do que o imaginado na ficção orwelliana. No lugar, tende a aparecer um inflado leste asiático (ou extremo oriente) que absorva inclusive essa Rússia, tão bela e tão filosoficamente sem rumo. Espera-se somente que a realidade se distinga do visionário livro não só geograficamente, mas que tenha pontes, estradas e rotas progressistas e emancipadoras do ser humano.

Alguns sinais positivos no bilateralismo

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O emprego e os negociadores da globalização difícil José Flávio Sombra Saraiva

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relativo baixo desemprego na economia brasileira talvez seja uma das últimas métricas que valorizam, ao lado dos programas sociais, o modelo social do capitalismo brasileiro. Apesar das dificuldades de crescimento pífio, reconhecido pelo próprio governo Dilma, bem como dos problemas fiscais que já se observam no tecido produtivo do Brasil, a expectativa de emprego, particularmente de menor valor agregado e de conhecimento sofisticado, segue positivo no país. O Brasil foi ao último encontro dos líderes do G20 em Brisbane, na Austrália, em novembro de 2014. Levou na mala o dado salvador de baixo desemprego no país, embora se anunciem preocupações particularmente na indústria. O Brasil, embora tenha ficado bem na foto nesse quesito, não foi muito prestigiado naquela parte do mundo.

Segue o G2O, o mais poderoso grupo organizado dos Estados do mundo, motor de quase 90% do PIB global. Nos seus roteiros voltados para o crescimento econômico global reuniram-se os países de capitalismo de Estado, como a China, bem como economias liberais como os Estados Unidos e a Alemanha. Mas os emergentes, com o Brasil, o México e a Turquia, também participam desse conclave da economia e de suas rezas pela retomada da economia global. Em Brisbane, o G20 anunciou seu roteiro para os próximos encontros dos países centrais e emergentes que conformam a governança econômica mais imponente e colegiada do mundo. Desenhos e projetos proliferam ante o medo do baixo crescimento. A Turquia receberá na cidade de Antália, em novembro de 2015, a próxima edição do encontro das grandes economias. A cidade do Mediterrâneo turco já estará envolvida no caminho do compromisso ambicioso da elevação do PIB do G20 em pelo menos 2% anualmente até 2018.

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O projeto central do G20 é agregar mais de US$ 2 trilhões à economia global, nos próximos quatro anos, o que corresponderia, em média, a um PIB brasileiro a cada ano. A geração de emprego é o coração da meta do grupo, além do desenvolvimento com crescimento inclusivo. Objetivos consonantes com os problemas de hoje, mas advindos do passado, foram lançados em Brisbane. O desemprego se mantém em grande parte dos países do G20, mas especialmente nas economias avançadas. Vi, nesses dias, em conferências em três capitais europeias, no contato com estudantes de pós-graduação de boas universidades, o receio dos jovens que não terão acesso ao emprego qualificado. Os meios propostos pelos governantes do G20 são clássicos: reformas estruturais para estimular o crescimento do setor privado. Nada muito novo, já testado na história econômica. Em geral dá certo, por um lado, ao destravar as amarras dos investidores e remover os nós da desconfiança. Por outro lado, o estímulo competitivo por acessos pode vir a acirrar competições nem sempre administráveis em conferências internacionais. Para o espectro das economias globalizadas e integradas às correntes agregadas de valor, da China aos Estados Unidos, da Suécia ao Chile, o velho e bom mercado pavimenta o caminho da prosperidade, como quase sempre desde a emergência do capitalismo global. O Estado é instrumento logístico, nesses casos. Buscar o crescimento via reforço da demanda e da promoção do reequilíbrio global por meio de estratégias fiscais e monetárias flexíveis e sustentáveis são receitas consagradas dos negociadores hegemônicos nas decisões do G20. Confiança e cooperação seriam os meios de política econômica da nova governança. Só o tempo dirá se terão sucessos os caminhos das lideranças do G20. Não há garantia antecipada que o plano funcione nos próximos quatro anos. A aceleração do crescimento e da criação de empregos com qualidade ainda depende de outras variáveis importantes. E há pelo menos três entraves, no momento. Um advém da modesta capacidade de investimento do setor privado. Outro está na exaustão do comércio internacional de parte dos países emergentes, ainda amarrados às velhas commodities. O último expõe a baixa transparência da concorrência e o protecionismo disfarçado. Em todo caso, vale a iniciativa do G20 no sentido da criação de um centro global de infraestrutura, com o objetivo de promover a O emprego e os negociadores da globalização difícil

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colaboração entre as partes. A criação de plataformas de compartilhamento de conhecimento científico e tecnológico, ao lado da articulação entre governos, bancos e setor privado, em rede internacional, pode ajudar aos líderes mundiais no novembro de 2015, quando o G20 se reunirá à margem do mar Mediterrâneo, na Anatólia turca. Talvez na China de 2016, o G20 possa vislumbrar a evolução positiva de uma experiência de governança econômica global entre países avançados e emergentes. A literatura das Relações Internacionais, em geral, reconhece esse esforço próprio e crescente da cooperação grupal entre os mais ricos no patamar do G7 e os remediados no movimento da curva de elevação do desenvolvimento e da riqueza mundial. O comunicado dos líderes em Brisbane foi esperançoso. Demonstram eles que a maior prioridade é elevar o padrão de vida e oferecer empregos de qualidade para todos. Embora reconheçam que a recuperação é lenta e desigual, entendem que há oportunidades para ampliar a demanda, desde que haja a superação de constrangimentos e melhore a oferta. Para tal, os líderes do G20 tentam levantar projetos. Um dos esforços está no aumento do crescimento econômico e do investimento, do comércio e da concorrência. Entendem que isso pode gerar empregos de qualidade. Porém, reconhecem que se deve fazer mais particularmente na participação das mulheres no mercado de trabalho e melhorar a qualidade do emprego feminino. A ideia é reduzir em 24%, até 2025, o hiato das taxas de participação entre homens e mulheres no mercado de trabalho dos países do G20. Outra área que atinge o desemprego mundial é a juventude. Consideram inaceitável os líderes do G20 que os jovens estejam ocupados seja com a educação, seja com o treinamento ou emprego. O caminho para essa gente jovem precisa incluir investimentos em aprendizagem, educação e treinamento, além de incentivos para a contratação de jovens e de estímulos ao empreendedorismo. Sublinhou também o G20, na Austrália, o compromisso com a erradicação da pobreza e com o desenvolvimento, de forma a assegurar que ações desses países da governança global sejam eficazes. Comprometeram-se tais líderes com medidas fortes e práticas para reduzir a 5% o custo global médio de transferência de remessas e incrementar a inclusão financeira como uma prioridade. Nesse sentido, o marco da ação seria a inclusão. 164

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Os programas de segurança alimentar e nutrição teriam força para o crescimento, por meio da promoção do investimento em sistemas de alimentos, a ajudar a expansão da renda e de empregos com qualidade. Ao lado desses temas, o G20 da Austrália agregou um conceito fundamental: o fortalecimento das instituições globais. O G20 deve enfrentar os deságios das instituições econômicas globais que precisam trabalhar com mais eficácia, com representação adequada, além de refletir acerca da evolução da economia mundial. Compromissos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) precisam ser reais, fortes e representativos, baseados em quotas justas e recursos adequados. Em síntese, celebra o G20 um movimento mais ativo para aproximar os temas clássicos de financiamento e comércio internacional para os temas sociais mais amplos, no qual o emprego é um dos corações. Temas como a colaboração dos países no campo da energia é também prioridade, como bem sabemos disso no Brasil. Mercados de energia fortes e resistentes são elementos cruciais para o crescimento e a melhoria do emprego. O mesmo se pode dizer da eficiência energética necessária ao aumento das demandas oriundas do crescimento e do desenvolvimento sustentável. Ainda levou em conta o encontro do G20 os temas climáticos, apoiando uma ação forte para o desenvolvimento sustentável e a segurança para os negócios e investimentos. Apoiou também a força legal ao abrigo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas aplicável a todas as partes, durante a futura vigésima-primeira Conferência a realizar-se em Paris, no ano de 2015. O problema é como tornar vivos tão ambiciosos projetos. A governança econômica e financeira não caminha sem um conjunto de valores e de uma boa dose de confiança no argumento do outro. Também supõe a governança global uma maneira de mostrar como os objetivos são alcançados. A degradante corrupção orgânica entre governos e empresas internacionalizadas que é bem conhecida no Brasil, em Portugal, na Índia, na China, se reproduz em muitas empresas transnacionais do Sul global. A baixa transparência das empresas estatais, públicas ou privadas, no meio internacional, vem deixando envergonhada a cidadania de países como o nosso, membro do G20. O emprego e os negociadores da globalização difícil

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A difícil governança não é apenas um problema econômico. Ela está contaminada por processos geopolíticos e culturais dos grandes atores globais. Observemos os fatos difíceis. Os discursos da governança fácil já estão prontos. Esperamos ir à Antália, na Turquia, em novembro de 2015, com melhores notícias acerca da governança global. E, melhor ainda, nos índices de emprego, particularmente nos países centrais, mas também entre os nossos emergentes. Que o difícil arranjo desses países centrais e emergentes tenha força para reduzir as terríveis vulnerabilidades econômicas e sociais do mundo egoísta que temos. Oxalá!

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José Flávio Sombra Saraiva


IX. Homenagem & Mem贸ria


Autores Arnaldo Jordy

Deputado federal (PPS-PA) .

Marco Aurélio Nogueira

Cientista político e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) . Autor, dentre outros, de As Ruas e a Democracia (Fundação Astrojildo Pereira-FAP, 2013) .


O marxismo de Leandro Konder (1936-2014), ode ao pensamento crítico e à democracia Marco Aurélio Nogueira

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oderia um marxista, nesses tempos de crise de seu próprio campo teórico, analisar com isenção e eficácia a relação dos intelectuais com o marxismo? Se este marxista praticar um marxismo aberto ao novo, distante de dogmas e cristalizações doutrinárias, sem dúvida que sim. Se se chamasse Leandro Konder, a certeza seria ainda maior. Konder, que morreu neste 12 de novembro, aos 78 anos, foi uma ave rara no panorama intelectual brasileiro. Dono de vasta bagagem cultural e de amplo conhecimento de ciência e filosofia, foi um de nossos mais refinados marxistas, um pesquisador disciplinado e meticuloso, capaz de se debruçar tanto sobre grandes processos e questões abstratas quanto sobre detalhes aparentemente menores, com os quais compôs painéis históricos e perfis biográficos repletos de graça e rigor. Generoso, cordial e afetuoso por temperamento e convicção, foi um ativo escritor de livros. Ao longo da vida, publicou mais de duas dezenas deles, além de inúmeros artigos, ensaios e traduções. Reconhecido por sua fineza intelectual e por seu texto envolvente, Konder nunca fez concessões ao doutrinarismo e ao dogmatismo tão comuns no universo marxista e no campo comunista, no qual militou a vida inteira. Também não se dobrou ao academicismo. Como professor, não se cansou de descer do pedestal e de construir pontes entre o saber acumulado e a jovem intelectualidade, os homens de cultura, os militantes democráticos e socialistas. Não atuou como mero “divulgador: esteve sempre interes169


sado em resgatar os ângulos decisivos do marxismo, aqueles que melhor expressam o vigor e a originalidades das ideias de Marx e que acabaram por ser marginalizados pelo reducionismo “marxista-leninista” entranhado no imaginário dos partidos comunistas e de boa parte da esquerda, no Brasil e no mundo. Konder desejou, em suma, repor no centro do marxismo a dimensão dialética, naquilo que tem de reconhecimento da irredutibilidade do real ao saber, de questionamento permanente, de recuperação plena do conceito de práxis. Buscou resgatar tudo isso à luz dos temas de hoje, sem deixar de lado episódios menosprezados, autores “malditos” ou polêmicas correntes. Pôs-se a tarefa de convidar seus leitores e ouvintes a despir-se de dogmas e preconceitos, alçar voo e acompanhá-lo numa viagem ao cerne de debate político-cultural da modernidade. Leandro possuía ainda outra característica distintiva: não se levou exageradamente a sério o tempo inteiro, como gostava de dizer. Havia nele, em doses fartas, um delicioso senso de humor que suavizava a firmeza da crítica e humanizava a exposição, recheando-as de detalhes e boutades que funcionavam como travas de sustentação da narrativa e sempre revelavam algo mais do personagem ou do assunto em foco. Como se não bastasse, a verve de Konder ajudou-o também a demonstrar que um marxista não é necessariamente um chato. “Importante mesmo – reconheceu certa vez – é ser intelectual marxista e preservar o senso de humor”. Não era gratuita sua admiração pelo Barão de Itararé,o corrosivo Aparício Torelly, o primeiro dos nossos “humoristas da democracia”, ao qual dedicou um saborosíssimo livrinho em 1983. Todos estes traços estiveram presentes – com peso diferenciado – na extensa bibliografia de Leandro Konder, na qual se integram ensaios sobre grandes pensadores (Lukács, Hegel, Marx, Benjamin), estética, problemas filosóficos e temas políticos, com seguidas incursões pela história brasileira, vista pelo ângulo da cultura, dos intelectuais marxistas e do movimento comunista. Em 1991, no livro Intelectuais Brasileiros e Marxismo, Konder analisou o encontro de certos intelectuais com o pensamento de Marx e com a prática política nele inspirada. A hipótese era que o marxismo, no Brasil, “antes de ser trabalhado no nível dos conceitos, foi vivido e traduzido em ação por numerosos ativistas políticos, militantes, batalhadores”, regra geral associados às lutas do movimento operário e do PCB, principal difusor das ideias de Marx no Brasil. Uma história do marxismo no Brasil, ponde170

Marco Aurélio Nogueira


rava Konder, precisaria ir além da apreensão de aspectos exteriores, meramente relacionais; precisaria “examinar a representação da realidade em que tais lutadores se baseavam para agir”. Descobrir-se-ia, assim, o estatuto do marxismo por eles assimilado, sua maior ou menor rigidez doutrinária, sua eventual ausência de molejo dialético e dimensão filosófica. Num certo sentido, foi essa a perspectiva buscada em A Derrota da Dialética (1987), no qual investigou a recepção das ideias de Marx no Brasil até os anos trinta. Leandro sempre se preocupou em decifrar duas formas típicas de pensamento: a mais “espontânea” e a mais elaborada, o pensamento instrumentalizado para a prática política e o pensamento dedicado a construções teóricas mais ambiciosas, que procuram “ultrapassar os limites das intuições e percepções empíricas que, com frequência, atendem às necessidades imediatas dos abnegados militantes”. Nunca se propôs a abordar o tema da influência do marxismo na cultura brasileira em geral, o que tornaria ampla demais a relação dos personagens a serem considerados. Dialogou com intelectuais de distinta trajetória e formação (Astrojildo Pereira, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Nelson Werneck Sodré, Antonio Candido, Sérgio Paulo Rouanet, Roberto Schwarz, José Guilherme Merquior, entre outros), que, cada um a seu modo, entraram em contato com o marxismo e com ele dialogaram. Alguns “aderiram entusiasticamente aos princípios do marxismo; outros lhe reconheceram aspectos estimulantes e trataram de assimilá-los; outros, ainda, prestaram-lhe a homenagem de discutir com ele, recusando-o de maneira global, mas frequentando-o como interlocutor incômodo porém útil, ao qual se volta sempre para o exercício da discórdia”. Konder nos ajudou, assim, a entender como e porque o marxismo, no Brasil, ainda que sem conseguir se completar como matriz permanente de grandes criações, funcionou como importante polo de atração e referência da intelectualidade, a ela fornecendo estímulo para uma melhor consideração da questão social e parâmetros para a superação das tendências individualistas e corporativas quase sempre inevitáveis na vida cultural. Leandro também foi decisivo para que muitas pessoas compreendessem que há muita coisa envelhecida e superada em Marx e o marxismo encontra-se em crise profunda, mas Marx ainda não é carta fora do baralho e, em certos aspectos, pulsa O marxismo de Leandro Konder

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com vitalidade. Seu primoroso livro O futuro da filosofia da práxis. O pensamento de Marx no século XXI, publicado em 1992, é revelador de um modo de pensar. Está lá, com todas as letras, o princípio que norteou sua atuação: O pensamento que provém de Marx e que, mal ou bem, atravessou o século XX combatendo, não tem nenhuma chance de sobreviver refugiado em universidades ou em institutos científicos; e também não tem nenhuma possibilidade de resistir à autodissolução se renunciar ao rigor teórico, realizar um sacrificium intellectus, abandonar as exigências da reflexão e tornarse instrumento de alguma seita.

Marx foi “um pensador do século XIX”. Comparados com os nossos, seus horizontes eram limitados. Havia nele traços fortes de “eurocentrismo”, a questão da democracia e de seu valor universal não merecia maior atenção, estavam ausentes ou rebaixados, entre outros, os temas relativos à dignidade da pessoa humana, à autonomização dos indivíduos, ao pluripartidarismo e à participação das massas na vida pública e no controle do Estado. Além do mais, a perspectiva de Marx foi literalmente saqueada pela prática partidária comunista ao longo do século XX, ficando reduzida em sua complexidade, engessada e atrofiada em diversos pontos. Ao menos por isso, os textos de Marx não podem ser convertidos em doutrina fechada, uma espécie de cataplasma universal pronto para ser “aplicado” nas feridas abertas pelo capitalismo. Em Marx, enfatizava Konder, “não existe nenhum anabolizante para os atletas do socialismo revolucionário atravessarem em tempo recorde a tempestade da crise atual”. Há, isto sim, um convite à crítica permanente e à revisão. Além do mais, não havia e não há porque santificar Marx e vê-lo como que pairando acima de sua própria época e de seus limites. “O fato de ter sido um desmistificador genial dos fenômenos típicos de uma esfera decisiva da atividade alienada (a esfera da produção e da apropriação) – escreveu Leandro – não assegurava a Marx uma consciência isenta de ‘alienação’ na esfera da vida familiar e da moral privada”. Konder jamais se fechou para as diversas correntes da filosofia e do pensamento. Foi o marxista que todos deveriam tentar ser: afável, não sectário, modesto, nada professoral, sempre disposto a ouvir e a se reformular. O “seu” Marx estava aliviado das cristalizações enrijecidas pelo tempo e a manipulação intensiva; era um pensador carregado de força sugestiva, capaz de iluminar muitas 172

Marco Aurélio Nogueira


das perplexidades com que nos deparamos na sociedade atual: a degradação do trabalho, o caráter dilacerado da comunidade humana, a mercantilização galopante da vida social, o esvaziamento dos valores, a perda de potência das grandes utopias e da ideia de socialismo. Em um de seus últimos livros (Em torno de Marx, de 2010), Leandro fez questão de valorizar o Marx filósofo, cuja contribuição à construção do conhecimento na cultura do Ocidente não teria sido plenamente aproveitada. Reiterou o convite à reflexão crítica e autocrítica, como se estivesse a repisar o terreno do qual jamais se afastou: Os cientistas erram. Não só eles: todos nós erramos. E é errando e corrigindo o erro que se aprende. Na esperança de diminuir seus erros, os homens aprendem a pensar mais criticamente e, por extensão, mais autocriticamente. O exercício do diálogo abre espaço para conhecimentos novos e ajuda a evitar que se percam conhecimentos desmistificadores.

A morte de Leandro Konder retirou da cultura brasileira um de seus personagens mais ativos, gentis e generosos. Um grande intelectual, um marxista que jamais se fechou em dogmatismos, um democrata. Seu trabalho ajudou a formar muitas gerações de marxistas não sectários, democráticos e pluralistas. Fomos muito amigos. Nos últimos anos não o encontrei mais, e me lamento muito por isso. Carregarei esta culpa daqui para frente. Tentei algumas vezes, não consegui. Tudo ficou difícil. Em 1988, Leandro revisou com esmero uma tradução do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, que eu havia preparado para a Editora Vozes, cotejando-a rigorosamente com o original alemão. Fez o trabalho como amigo, interessado exclusivamente no valor da edição. Tive de convencê-lo a compartilhar comigo a autoria da tradução. Em 2004, redigiu a quarta capa de meu livro Um Estado para a sociedade civil. Foi um acontecimento para mim. Jamais o esquecerei, por isto, por ter sido ele quem foi, pelas coisas que fizemos juntos, por sua importância na minha formação e por sempre ter sido um exemplo a seguir.

Todas as lágrimas, lembranças e homenagens a ele serão poucas.

O marxismo de Leandro Konder

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Os 90 anos da Coluna Prestes Arnaldo Jordy

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o início da década de 20 do século passado, a República, embora de proclamação recente, dava sinais de exaustão. Daí a inquietação social que se ia manifestando e de que o chamado movimento tenentista foi o modelo mais solidamente perceptível. Eram tenentes do Exército, de uma força militar que fugia por completo à origem nobiliárquica da Marinha e que, por isso mesmo, melhor estariam representando os anseios de nossa população. E os tenentes em especial, já que, em seu conjunto, respondiam, à época, por 60% do contingente de oficiais.

As propostas, ainda que difusas, já conseguiam exibir algumas urgências sociais absolutamente não atendidas pela engrenagem política de então. Daí seu desespero, seu quixotismo, este exemplarmente exibido com o conhecido movimento dos 18 do Forte, quando 17 militares e um civil abandonam o quartel, sob severo bombardeio da Fortaleza de São João, e saem pela areia, como se isto bastasse a sublevar toda a nação e, ao mesmo tempo, vencer os batalhões das Forças Armadas e das polícias civil e militar. Exatamente, no entanto, que é que pretendiam? O Brasil na primeira década do século passado, não seria uma ilha de prazeres tropicais. E, ainda que em pleno vigor, nossa primeira Constituição republicana estava longe, bem longe de ter atendidas suas disposições. E dificilmente o conseguiria. Afinal, não poderiam votar, seja, não teriam condições de eleger seus representantes, por todo o país, nem os analfabetos, nem as mulheres. Aliás, nem os soldados e os padres. Isto é, mais de 90% da população. Assim que as decisões eram adotadas por uma elite essencialmente rural, para quem o progresso e suas modernidades estavam longe de ser entendidos como prioridade. Daí porque até mesmo a definição dessas prioridades se perder a meio de considerações que estariam de fato, estavam – distante da realidade em que se vivia. E era o conhecimento dessa realidade que, de fato, faltava a nossos tenentes.

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Pois é dentro desse mesmo espírito que se rebela a guarnição de Santo Ângelo, nos pampas gaúchos, de onde sai a coluna que, liderada pelo tenente Luís Carlos Prestes, começa a percorrer o sertão mais agreste do Brasil, dando início ao que foi o mais completo conjunto de lições para saber o que era a nação brasileira. Uma questão lógica. Para mudar o que é antigo é preciso saber o que é exatamente esse arcaísmo, mas, ainda, o que é o novo, já que este decorre daquele. Era o que se fazia necessário e, se possível, urgente. Nossos tenentes, no entanto, aferravam-se à urgente derrubada do governo, que queriam entender como atendimento às urgências do país. Alguns anos antes, Euclides da Cunha já nos oferecia um exemplo a ser dos mais considerados no particular. Vamos vê-lo. Como jornalista do jornal Estado de S .Paulo, foi ao Nordeste para analisar – e, sobretudo, condenar – a sedição dos fanáticos seguidores de Antônio Conselheiro. Nessas áreas onde a pobreza gera o desespero e a crendice se faz rebelião, não era incomum que outros fanáticos desfilassem pelo agreste a anunciar novos tempos, aqueles em que a miséria não existiria, isto já sendo razão mais que suficiente para que se acreditasse na divindade de sua pregação. Lá, dando de frente com as condições de vida daquela gente sem outro horizonte, viu-se na contingência de transformar sua reportagem num libelo e, junto a isso, numa obra-prima que, até hoje, é peça indispensável a quem pretenda conhecer nossa formação social. Euclides da Cunha, séculos depois de Cabral, também descobria o Brasil. Pois os comandados de Prestes esbarram nessa mesma miséria, nesse desespero, nesse céu sem horizonte, na violência do coronelato e de seus jagunços, nas falsas promessas dos milagreiros que por ali pululavam. E passavam a entender que a República a ser conhecida como Velha precisava de profundas transformações para fazer frente aos desafios que o futuro nos estava colocando no caminho. Este me parece um ponto sobre o qual mais nos detemos. A mitologia política nacional, no caso fomentada por nós, comunistas, pretendeu estribar-se no heroísmo inconteste de Prestes para transformá-lo, desde logo, em paladino das lutas populares, o que, vale a pena dizer a bem da verdade, somente viria a acontecer alguns anos depois.

Os 90 anos da Coluna Prestes

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A Coluna cortou o Brasil sertanejo sem sequer levantar uma só das posições que passariam a compor o ideário e o programa dos que, sob a liderança do Partidão, pretendiam já não mais a simples deposição de um dignitário, mas, sim, uma autêntica revolução. Em resumo: a marcha da Coluna foi um magnífico aprendizado. E deu a seus líderes a ideia de que nossas carências e nossas urgências não estavam em quem se sentava na cadeira presidencial no Palácio do Catete, mas, sim, e essencialmente, no enfrentamento das condições que medievalizavam a vida de nossa gente a mais humilde. Daí que, nesse como que curso superior de Brasil, nesses tantos caminhos de muitos e muitos mil quilômetros percorridos Brasil adentro, esse aprendizado se solidifica e se simboliza na figura de seu comandante, Prestes. Prestes, antes de mais nada, comprova que as lições lhe foram bastantes, a ele, a seus comandados e, posteriormente, a nosso povo, para entender de que forma se fariam as mudanças em atendimento a nossas urgências. Por isso mesmo, se transformou em líder de uma luta que, em novos rumos, ainda prossegue e, como antes, em busca de decisões sociais e políticas que os garantam o futuro que a Coluna aprendeu ser necessário, diante do que viu ao rasgar as entranhas do miserável sertão brasileiro. O movimento tenentista esteve seguramente representado pela Coluna Prestes, que refletiu as angústias de nossa terra e nosso povo e, ali, sertão adentro, aprendeu que o Brasil teria que avançar. E, sobretudo, como o faria. Tanto que a revolta de 30 já simbolizava tais mudanças, enterrando, de uma vez por todas, aquilo que se chamou de República Velha, com um acervo imensurável de desserviços prestados ao país. Desde o governo provisório, imediatamente depois de sua chegada ao poder, os tenentes estiveram firmemente representados pelos interventores que ocuparam o poder em muitos estados do país, o mesmo ocorrendo pouco depois, com a implantação do Estado Novo. Eram mudanças. Tímidas que o fossem, mas já significavam um salto qualitativo que a ditadura ensombreceu, é certo, mas não impediu que seguissem adiante. A Coluna Prestes nos traz esta grande lição, aquela que indica o povo como elemento chave de qualquer mudança social, o mesmo povo que escolhe suas lideranças e define suas prioridades. 176

Arnaldo Jordy


X. Resenha


Autores César Benjamin

Cientista político, jornalista, editor da Contraponto e colunista da Folha de S.Paulo.

Marco Antônio Franklin de Matos

Mestre em Teoria e Crítica Literária pela PUC-SP e coordenador educacional na rede privada de ensino .

Marcus Oliveira

Mestrando em História e Cultura Política pela Unesp/Franca e bolsista Capes .


O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva Marco Antônio Franklin de Matos

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publicação recente desta coletânea de ensaios sobre comunistas brasileiros, cultura política e produção cultural, organizada a partir de um colóquio realizado no Departamento de História da FFLCH/USP, em outubro de 2011, nos trouxe um debate extremamente rico a respeito da atuação dos comunistas na batalha das ideias travada em nosso País nos últimos anos. Tal participação, algumas vezes sem brilho e outras com singular originalidade, transcende os limites da atuação política do Partido Comunista Brasileiro (PCB), embora tenha este partido como referencial e ponto de sustentação. O alcance dessa participação, de resto, é reconhecido pelos autores do livro. Na apresentação da coletânea, os organizadores destacam o caráter específico de suas reflexões, situando-as muito além da produção acadêmica tradicional (que se reporta sempre às instituições partidárias e às lideranças do comunismo, bem como à repressão política que sofreram ao longo do tempo) e definem com rara felicidade o objetivo da coletânea: A análise de fatores culturais como valores, crenças, normas e representações ajuda a esclarecer e a compreender as múltiplas facetas do político, notadamente a origem de certas formas de ação e de comportamento na esfera pública. [...] E o projeto comunista engendrou uma cultura política das mais sólidas e complexas, produto da mescla entre elementos nacionais e internacionais, resultando em um conjunto de valores, convicções e representações que alimentou o debate político e a atuação de intelectuais, artistas e produtores culturais (p. 11).

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No primeiro ensaio do livro, Rodrigo Patto Sá Motta segue a mesma linha de raciocínio ao afirmar que essa definição é útil para explicar melhor a duração do fenômeno comunista e sua capacidade de transcender a esfera do meramente partidário. É interessante lembrar que Sá Motta apresenta em seu ensaio os fundamentos do conceito de “cultura comunista” adotado em suas reflexões. Podemos discordar de tal conceito, mas é necessário compreendê-lo, pois ele serve de fio condutor para as análises da coletânea. O autor nos esclarece que o conceito surgiu depois que alguns cientistas sociais formularam a hipótese de que as democracias estáveis exigem cidadãos com valores e políticas internalizados, ou seja, a presença do que ele chama de “cultura política”, que mobiliza crenças, sentimentos e tradições. A partir de tal definição, ao longo de seu instigante ensaio, Motta nos dá muitos exemplos práticos em que tal mobilização de “crenças, sentimentos e tradições” aparece no discurso e na prática dos comunistas brasileiros, citando a disciplina férrea dos militantes de esquerda, sua fé absoluta no partido e, acima de tudo, o culto à personalidade que caracterizava a ação e o discurso esquerdistas na primeira metade do século XX; no caso brasileiro, tal culto se referia às personalidades de Lenin, Stalin e de Luiz Carlos Prestes. Motta chega a dizer que tal culto, contrariando as posições materialistas dos comunistas, levou à sacralização de líderes e instituições, criou sua própria liturgia, bem como seus textos dogmáticos (“o marxismo-leninismo”), dando origem a uma nova religião, com seus devotos fiéis tão desprovidos de senso crítico quanto os adeptos das religiões tradicionais. É evidente que tal análise só pode referir-se ao fenômeno até agora chamado pelos estudiosos de “stalinismo”, que dominou de maneira intensa o movimento comunista internacional a partir da hegemonia da União Soviética sobre as atividades e o pensamento da esquerda. O stalinismo, como tal, não pode explicar a amplitude da influência da cultura comunista sobre amplos setores da intelectualidade e sobre as massas urbanas e rurais, situação muito bem definida por Sá Motta em suas avaliações. Nelas chega a mostrar que mesmo o campo entre comunismo e religiosidade precisa ser melhor investigado, pois muitos católicos conseguiram de maneira criativa driblar os conflitos históricos do PCB com a Igreja Católica e conciliar os dois sistemas de crenças “em aparência inconciliáveis” (p. 33).

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Ora, sabemos que ao longo da história da hegemonia stalinista, houve vigorosos movimentos contrários a tal tendência dentro da cultura comunista, começando pelas posições antiburocráticas de Trotski, passando pela chamada escola “austromarxista” e culminando nas posições independentes do Partido Comunista Italiano. Que se pense na presença, mesmo no auge do dogmatismo soviético, de vozes autênticas e eficazes, como Antonio Gramsci e Gyorgy Lukács, que se levantaram contra tal domínio. No Brasil, a obra de Lukács, traduzida e divulgada por intelectuais de peso como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, também contribuiu para romper as barreiras do dogmatismo stalinista e abrir a prática dos comunistas para uma ação verdadeiramente transformadora. Formou-se, então, aos poucos, uma escola de pensamento (particularmente durante o período da resistência ao golpe de 64) que Raimundo Santos, em O marxismo de Armênio Guedes, chamou de “esquerda positiva”, tomando de empréstimo o conceito de Santiago Dantas. Santos aplicou o conceito de Dantas às conquistas que o pensamento comunista incorporou ao seu arsenal, a democracia política, o pluralismo cultural, a liberdade de expressão, etc., como fundamentos da transformação social. Não é casual que Raimundo Santos use tal conceito na apresentação a um livro que reúne textos de Armênio Guedes, expoente e pioneiro de tal pensamento renovador em nosso país. Ora, a riqueza do pensamento de esquerda, claramente não se enquadra nos limites das definições recolhidas por Sá Motta, ainda que elas sejam verdadeiras e façam parte da história do comunismo em nosso país. A importância da coletânea de ensaios que estamos analisando aparece justamente no pluralismo de suas intervenções: para além dos limites da chamada cultura comunista (que, num primeiro momento, esgota-se no dogmatismo stalinista), outros autores irão colocar em destaque ações e criações de intelectuais comunistas, ligados ou não ao PCB, que testemunharão o que dissemos sobre os caminhos da “esquerda positiva” no Brasil, particularmente no campo cultural. Já no segundo ensaio, assinado por Paula Elise Ferreira Soares, encontramos uma sugestiva análise das representações do camponês brasileiro realizadas por Candido Portinari, em cuja obra podemos constatar uma superação dos estreitos limites da cultura comunista entendida como subproduto do dogmatismo stalinista. Apesar do artista de Brodósqui ter sido alçado à O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva

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condição de artista modelo pela direção do Partido Comunista Brasileiro, não é exagero afirmar que suas representações, embora de cunho realista, estão a léguas de distância da estética “marxista-leninista” dominante no período de Stalin. Apesar de Ferreira Soares não realçar suficientemente a desvinculação da obra de Portinari do dogmatismo stalinista, fica claro que sua prática artística transcendeu os limites da época; o trabalhador refigurado em proporções gigantescas na obra de Portinari, por si só, cria uma dimensão nova da realidade social aos olhos do observador e tal dimensão se inscreve no campo da arte, distante de quaisquer simplificações dirigistas. Tal situação, segundo a autora do ensaio, reaparece de forma nítida quando da publicação do livro Zé Brasil, de Monteiro Lobato, com ilustrações de Portinari. Nas reflexões de Paula Elise, pois, vemos a obra de Portinari, embora ainda ligada à práxis social e ao objetivo de transformação da realidade brasileira próprio da ação política do PCB, como uma realização artística plena, livre das injunções do “realismo socialista”. Ao longo da coletânea, observaremos outras análises multifacetadas de obras compostas por comunistas que, sem cortar seus laços com o Partido Comunista Brasileiro, faziam de suas criações objetos estéticos distantes dos cânones do stalinismo e, portanto, do que os autores de Comunistas brasileiros tão bem definiram como “cultura comunista”, aludindo tão somente aos limites estreitos do dogmatismo “marxista-leninista”. Outro dos ensaístas, Reinaldo Cardenuto, assina uma bela reflexão sobre a dramaturgia comunista na televisão nos anos 70, destacando as contribuições de Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Pontes e Vianinha para a programação da Rede Globo de Televisão. É interessante observar que Cardenuto compreende que àquela altura da situação política no Brasil, marcada pelo predomínio do AI-5 e no auge do regime ditatorial, os intelectuais comunistas já se serviam de influências outras que não as divulgadas pela direção partidária. Discorrendo sobre um importante “quase manifesto” (a expressão é de Cardenuto) escrito por Ferreira Gullar na época, nosso ensaísta assim se expressa: Um dos pensadores centrais do PCB, nome respeitado entre os ideólogos da esquerda, Gullar partiu, nesse texto, da leitura dos filósofos Walter Benjamin e Georg Lukács para construir o elogio a uma arte dialética, engajada, que percebe a irreversibilidade da cultura de massa e não teme a realidade produtiva da idade industrial” (p. 88).

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O ensaísta compreende o movimento dos intelectuais comunistas da época no sentido de superar o dogmatismo e de inserirse na chamada cultura de massa para usá-la como instrumento de crítica à realidade social da época. Não importa para os fins de nossa análise se Reinaldo Cardenuto não acredita no sucesso de tal empreitada, chamada por ele de “teoria da brecha”, pois partia da ideia de que os meios de comunicação de massa (no caso, a Rede Globo), propiciariam sempre “brechas” para que obras de arte, mesmo conformadas a tais meios, pudessem oferecer leituras críticas e enriquecedoras ao público televisivo. Fica claro que Cardenuto se baseia na “dialética negativa” de Adorno para impugnar o objetivo dos comunistas de abrir brechas na cultura industrial de massa, enquanto que tais artistas se sustentavam na teoria do “realismo crítico” de Lukács, propondo uma arte voltada para a defesa da humanitas contra todas as formas de opressão e de alienação sofridas pela humanidade como um todo ao longo da História. O ensaísta observa, no entanto, que Paulo Pontes e Vianinha conseguiram romper com a tradição “marxista e totalizante do nacional-popular” (tradição própria dos Centros Populares de Cultura criados antes do golpe de 1964) e erguer narrativas com sentido crítico profundo e que atingiram altos níveis de assimilação popular, como as adaptações de Vianinha para os Casos Especiais da Globo, com destaque para Turma, doce turma e Rasga coração. Embora refratário às possibilidades da “teoria da brecha” e vendo nas representações de Vianinha elementos de romantismo e de adaptação à indústria cultural, Cardenuto é imparcial o suficiente para apontar a importância das experiências fundamentadas nas teorias de Ferreira Gullar e vê na representação de Medeia, de Vianinha, o embrião para a realização de uma das peças mais significativas do teatro brasileiro em 1975, a Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Indo um pouco além das posições de Reinaldo Cardenuto, vemos no trabalho desenvolvido pelos dramaturgos comunistas a contribuição valiosa que deram, como artistas, à elaboração do arsenal ideológico que Santiago Dantas chamou de “esquerda positiva” Esta teve influência decisiva na derrota do regime militar, engrossando as fileiras do então MDB e fazendo da transição democrática o objetivo da união entre o movimento de massas de contestação à ditadura e a luta institucional simbolizada na então denominada “frente democrática”. Apenas a título de sugestão reflexiva: não poderíamos encontrar nítidas semelhanças entre a “teoria da brecha” e a estraO PCB: do dogmatismo à esquerda positiva

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tégia adotada pelo PCB de desgaste da ditadura militar por meio de todos os instrumentos legais à disposição, inclusive das eleições parlamentares, então estigmatizadas pela ultraesquerda como simplesmente rituais burgueses de encenação? Em outro dos ensaios, “Por uma dramaturgia engajada”, a experiência original dos dramaturgos comunistas na década de 70 é analisada com muita propriedade por Igor Sacramento. Em suas reflexões, o ensaísta desenvolve a tese de que Dias Gomes, em seus trabalhos na Rede Globo, longe de simplesmente adaptar-se passivamente à cultura de massa, tornou-se um “mediador cultural” entre a mídia e o campo político. Analisando as criações de Dias Gomes para a Rede Globo, o ensaísta reforça o que já dissemos sobre a ruptura dos dramaturgos comunistas com os dogmas da política cultural jdavonista (referência a Jdanov, responsável pela cultura na época de Stalin): Esse era um objetivo compartilhado pelo PCB e demais simpatizantes, especialmente nos anos de 1960, quando os dogmas do realismo socialista de matriz jdanovista foram substituídos pelo realismo crítico lukacsiano. [...] Nessa época, Lukács se tornou o ideólogo dessa geração (p. 110).

Embora Igor Sacramento não faça a distinção suficiente entre o dogmatismo e a posição de Lukács sobre arte (posição que ganhou contornos definitivos em sua Estética), é importante destacar que ele compreendeu a influência lukacsiana sobre a dramaturgia comunista da época, particularmente nas criações de Dias Gomes. Por considerar a televisão como um importante espaço a ser ocupado pelas forças de esquerda, o dramaturgo afirma em citação destacada por Sacramento: “Muitas vezes, o fato de aceitarmos as regras do jogo não importa em abrir mão da liberdade de expressão, mas num desafio” (p. 113). Em outra passagem realçada por Sacramento, Gomes nos dá sua carta de princípios máxima ao dizer que, se o teatro não pode transformar o mundo, ele pode, sim, nos oferecer a consciência de que tal transformação é necessária. Sacramento compreende com muita argúcia a posição de Gomes vendo nela não uma “total contradição” e sim um “deslocamento”, isto é, uma posição diferente das habituais no sentido de emprestar ao autor a inédita colocação de “mediador social” entre a mídia e a política. No ensaio em questão, o autor destaca as grandes contribuições de Dias à televisão da época, como O bem amado, Saramandaia, Bandeira 2, O espigão, vendo em tais obras o realismo em 184

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seu sentido lukacsiano, “a representação da realidade como uma forma de conhecimento sobre a realidade” (p. 120). Destacando a polifonia estilística como uma das características essenciais das telenovelas, Sacramento ressalta que, no centro de tal polifonia, se encontra nas criações de Gomes o que já aparecia com destaque em seu teatro nacional-popular, o desejo firme de atingir as camadas populares por meio de representações estéticas de conteúdo crítico. Embora em algumas passagens, a nosso ver, reduza a permanência de Dias Gomes na Rede Globo a valores pessoais herdados da cultura comunista, como lealdade e disciplina (o que, notoriamente, é insuficiente para compreender o alcance político dessa permanência), o artigo de Sacramento elabora uma análise perspicaz sobre a produção televisiva do autor de O bem amado, citando também Lauro César Muniz, um dramaturgo não ligado diretamente ao PCB, mas próximo dele, cuja novela A escalada também se inseria no propósito comum aos comunistas de usar a televisão como instrumento de consciência política e social. Há vários outros ensaios muito interessantes nesse volume. Entre eles, “O bem amado e a censura”, em que Denise Rollemberg faz uma instigante análise das idiossincrasias dos censores na época da ditadura que, ao contrário do que pensam alguns, sabiam exatamente o que censurar nas obras, tomando sempre como norte a famigerada Lei de Segurança Nacional. No ensaio de Francisco Alambert, “A realidade tropical”, encontramos uma fina análise do Tropicalismo e de seus desdobramentos, sendo mostrado como tal movimento de contestação cultural, que se contrapôs ao CPC e a outras propostas da esquerda, acabou sendo incorporado pelo sistema dominante e transformou sua ênfase rebelde num discurso cosmopolita de adaptação à globalização e ao “pensamento único”. Eduardo José Tollendal, em “Arte revolucionária e forma revolucionária”, faz uma análise crítica do romance de José Godoy Garcia, O caminho de Trombas, escrito nos anos 60, destacando o compromisso do romance com a transformação da realidade social e criticando as posições formalistas que faziam da “despolitização” o único caminho possível para a obra de arte. (De resto, sabemos desde Brecht, que tal “despolitização” é, na verdade, uma autêntica politização realizada por aqueles que querem o fenômeno artístico a serviço da manutenção da ordem estabelecida.)

O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva

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Depois de uma fina análise do romance de Garcia, situando-o no epicentro da luta do camponês brasileiro pela reforma agrária apoiada pelo PCB, Tollendal nos mostra que a narrativa, apesar de todas as dificuldades em lidar com os preceitos rígidos da época sobre a arte de compromisso, consegue ser um autêntico romance realista. Ele destaca que o experimentalismo linguístico, dito de vanguarda, aparece continuamente no romance de Garcia, sugerindo que uma literatura comprometida não deve ser desprovida de criatividade nem de originalidade. O romance de Godoy Garcia, para o articulista, é uma justa fusão de duas formas romanescas, o realismo socialista sem dogmatismos e o “maravilhoso”, com todas as nuances de lirismo e de poeticidade. Nesse sentido, Tollendal vê no Caminho de Trombas uma “politização do gênero romanesco, acrescida do experimentalismo”, o que o torna participante de uma “tradição literária afortunada” que tem Jorge Amado como um de seus grandes representantes. É importante destacar também outro artigo inserido na coletânea, “A estranha derrota”, de Marcos Napolitano, no qual o autor analisa com sagacidade a situação do PCB durante a vigência do regime ditatorial. Segundo Napolitano, depois de lutar contra a ditadura se valendo de uma política “frentista” nos campos cultural e político, no momento de tirar proveito desta estratégia, o Partido já havia perdido sua influência na sociedade e na cultura. A “estranha derrota” caracteriza-se , segundo Napolitano, por uma situação paradoxal: “Ironicamente, quando veio para o PCB o tão almejado momento da legalidade,o Partido já não tinha o mesmo espaço de ação e influência que historicamente o caracterizara na área cultural” (p. 335). Tal diagnóstico apresentado por Napolitano coincide com outras avaliações semelhantes sobre a “estranha derrota”, destacando-se nesse aspecto as brilhantes análises de Luiz Werneck Vianna. Em nota de pé de página a seu ensaio, Marcos Napolitano cita nominalmente Werneck Vianna, Armênio Guedes, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Aloysio Nunes Ferreira como integrantes da “corrente renovadora” que, sob influência de Gramsci, tentou dar novos rumos ao PCB e acabou sendo derrotada na luta interna por setores ligados ao aparelho e às concepções oportunistas e dogmáticas. Nesse sentido, a “estranha derrota” se explicaria de maneira mais clara: o Partido afastou de seu horizonte a corrente ideológica que poderia livrá-lo do passado histórico de isolamento dentro da sociedade civil brasileira. 186

Marco Antônio Franklin de Matos


Não podemos ainda deixar de falar sobre outros ensaios dignos de atenção e de debate, como a narrativa de Miriam Hermeto sobre o Teatro Casa Grande em que a autora discorre sobre a gênese e o desenvolvimento da ação cultural de um grupo de artistas e intelectuais, ligados ao PCB, que se reuniam para discutir temas da época. Faziam parte deste grupo figuras de destaque, como Paulo Pontes, Luiz Werneck Vianna, Ferreira Gullar, Chico Buarque, Antonio Houaiss, Zuenir Ventura, entre outros. Reunindo ensaios tão instigantes, o livro ergue-se como um grande mosaico de posições divergentes e complementares, pois o todo de sua elaboração desmente os próprios pressupostos da introdução ao analisar o fenômeno comunista de maneira ampla e pluralista, o que é, certamente, seu maior mérito. A nós, engajados no aprofundamento da frágil democracia vigente no Brasil, continuamente ameaçada por populismos, messianismos e concepções ultrapassadas, resta a certeza de que estamos diante de uma importante reflexão sobre os caminhos e descaminhos do pensamento comunista no Brasil. Infelizmente, não temos espaço para analisar todos os ensaios contidos na coletânea, marcados por fina investigação e por objetivos metodológicos bem traçados. Embora discordando de algumas posições dos autores, cremos poder afirmar que o livro cumpre seu propósito ao traçar uma visão pluralista e multifacetada da chamada cultura comunista, pois a sucessão de reflexões coloca em evidência a evolução do pensamento comunista na linha da renovação da esquerda e na valorização da “socialização da política”, fundamento de qualquer democracia verdadeira. Referências SANTOS, Raimundo (Org.). O marxismo político de Armênio Guedes . Brasília: Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2012. PINASSI, Maria Orlanda; LESSA, Sérgio (Orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.

o0o Sobre a obra: Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural . Marcos Napolitano; Rodrigo Czajka; Rodrigo Patto Sá Motta (Orgs.). Belo Horizonte: UFMG, 2013, 362p.

O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva

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Spinoza: teologia, filosofia e política César Benjamin

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ensadores importantes costumam manter laços profundos com seus respectivos povos. Pascal é francês. Fichte é alemão. Dostoiévski é russo. Cada um deles expressa elementos étnicos, históricos, políticos e culturais específicos, claramente discerníveis. Spinoza, não. Era português, com raízes católicas, porque seus pais emigraram nessa condição e porque aprendeu a língua portuguesa na infância. Era judeu por sua ascendência, por ter sido acolhido na comunidade judaica da Holanda e por ter recebido educação rabínica. Era holandês porque nasceu em Amsterdã e morreu em Haia.

Se quisermos fixar sua origem, devemos enfatizar que era marrano. Nação e religião, para ele, não foram fatos da vida, mas questões a serem enfrentadas. Não teve sequer uma língua materna que sentisse como genuinamente sua. o0o Os antepassados judeus de Spinoza viveram na atual Espanha desde a época do Império Romano. Ao longo do tempo, em busca de proteção, converteram-se ao cristianismo, mas retornaram ao judaísmo depois que o Islã conquistou a maior parte da região no ano 711 e lhes devolveu, por sete séculos, liberdade de culto. A situação mudou, gradativamente, com a progressiva reconquista dos territórios pelos cristãos. A partir de 1492, expulsos os árabes, os reis católicos Fernando e Isabel começaram a construir a unidade nacional da Espanha moderna por meio da religião, impondo aos judeus uma nova conversão ou o exílio. Em seguida, Portugal fez o mesmo. Os cristãos-novos, mantidos sob suspeição, passaram a ser chamados, pejorativamente, de marranos. Nas gerações seguintes, por medo da Inquisição, por espírito empreendedor ou por nostalgia do judaísmo, muitos partiram para Amsterdã, a grande metrópole

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da época, onde não havia perseguição: a primeira constituição dos Países Baixos, promulgada em 1579, garantia liberdade de culto. o0o Os antepassados diretos de Spinoza, como seu nome indica, eram originários da cidade castelhana de Espinosa de los Monteros. Emigraram para Portugal em 1492 e converteram-se ao catolicismo em 1498. O pai dele nasceu cerca de cem anos depois na aldeia portuguesa de Vidigueira, mas já estava em Amsterdã em 1616. Lá, em 1632, Baruch Spinoza nasceu. Recebeu esmerada educação religiosa, passando a dominar com erudição a cultura judaica. Estudou profundamente a Bíblia e seus comentadores. Seu talento logo foi percebido, e ele se tornou a grande esperança das autoridades da sinagoga. Surpreendentemente, porém, buscou um caminho próprio, de uma forma que prenunciava o nascimento da era moderna: o jovem exigia que a tradição fosse submetida ao teste do seu juízo e da sua razão pessoais. Recusava-se a aceitar verdades ou mandamentos que não fossem compatíveis com sua própria consciência, orientada pelas diretrizes da razão universal. E fez-se crítico: as ordenações do judaísmo pareciam-lhes arbitrárias e meramente históricas, sem relação com as leis de Deus. Estabelecido o impasse, foi excomungado em 1656, com 24 anos de idade, num processo traumático para ambos os lados.

A sentença de excomunhão foi duríssima: Banimos, expulsamos, condenamos e maldizemos Baruch Spinoza [...]. Maldito seja ele de dia e maldito seja de noite. Maldito seja ele ao dormir e maldito seja ao levantar. Maldito seja ele ao sair e maldito seja ao entrar. Que o Altíssimo jamais o perdoe. Que o Altíssimo faça arderem sobre esse homem Sua ira e Seu desfavor, e que lance sobre ele todas as maldições escritas no Livro da Lei. Que seu nome seja destruído sob os céus e que, para sua desgraça, ele seja separado de todas as tribos de Israel, com tudo o que é amaldiçoado no Livro da Lei. [...] Certificai-vos de que nenhum de vós se dirija a ele, nem de viva voz nem por escrito; que nenhum de vós lhe conceda nenhum favor; que nenhum de vós permaneça sob o mesmo teto que ele; que ninguém fique a uma distância de menos de quatro côvados dele, e que ninguém leia nada que ele tenha escrito ou transcrito.

o0o Spinoza: teologia, filosofia e política

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Expulso do judaísmo, Spinoza mudou-se para uma aldeia remota, onde durante alguns anos encontrou abrigo em uma seita protestante minoritária, uma comunidade religiosa silenciosa e sem clero, que praticava uma severa pureza moral. Mas também entre os cristãos enfrentou resistências. Furioso porque Spinoza adotara o nome Benedictus, tradução latina do hebraico Baruch, o teólogo Christian Kortholt escreveu: Ele mais deveria ter-se chamado Maledictus, pois, de acordo com a maldição divina no primeiro livro de Moisés, a terra espinhosa [Spinoza terra] nunca produziu homem mais amaldiçoado que esse Spinoza, cuja obra é salpicada de inúmeros espinhos [spinis]. Primeiro o homem foi judeu, mas, excomungado pela sinagoga, finalmente, por meio de não sei que intrigas e ardis, infiltrou-se entre os cristãos e passou a se chamar pelo nome deles.

O teólogo exagerava. Apesar de suas amizades, Spinoza não se filiou a nenhuma outra religião, contrariando a forma tradicional de inserção das pessoas na sociedade. Todos pertenciam a grupos – corporações, igrejas, guildas – que faziam a mediação com a entidade política mais ampla, o Estado. Em uma época em que ainda não se reconheciam indivíduos livres, ele optou por uma vida independente, simples, pacata e recolhida, dedicada à filosofia, sem poderes, sem cargos, sem atividade pública, sem aderir a uma comunidade específica, sem acumular bens. Já dominava diversas línguas, inclusive o latim, e conhecia praticamente toda a cultura humanista e científica então disponível. Aprendeu o ofício de polir lentes ópticas, ocupação que parece havê-lo atraído por lhe propiciar a oportunidade de pensar continuamente, sozinho, em silêncio. o0o

De todas as acusações que recebeu, a mais dolorosa foi a de ateísmo, pois era um homem reconhecidamente embriagado pela ideia de Deus. Sempre reiterou que acompanhava as religiões no princípio do amor e da obediência, e as considerava necessárias, mas recusava o antropomorfismo das representações humanizadas da divindade. Lançou-se, por isso, a criar uma doutrina original, fonte dos seus dissabores. Ela está expressa em sua obra-prima, a Ética demonstrada à maneira dos geômetras, publicada postumamente. É ali que propõe a sua teologia da imanência. 190

César Benjamin


Para existir, tudo o que nos cerca depende de uma causa externa. Isso lança o pensamento no abismo de uma regressão ao infinito, quando pretende explicar o Universo: cada coisa remete a outra coisa, indefinidamente, sem que se consiga estabelecer um ponto de partida ou de chegada. O Universo só se torna inteligível se concebemos, na origem, algo que seja causa de si mesmo, que tenha em si o seu fundamento, algo cuja essência pressupõe a própria existência. É o que Spinoza chama de substância: “Por substância entendo o que é em si e se concebe por si; aquilo cujo conceito, para ser formado, não requer o conceito de outra coisa”. Como a substância existe necessariamente, ela é eterna. Como é o ser entendido, pura e simplesmente, como ser, ela é indeterminada. Como é concebida como existente por si, não conhece nenhum limite, ou seja, é infinita. Como seu conceito “não requer o conceito de outra coisa”, é una, pois, se houvesse uma pluralidade delas, o conceito de cada uma remeteria de algum modo – mesmo que por negação – ao conceito das demais. O nosso espírito, porém, não retrocede naturalmente à origem das coisas e, sendo finito, só concebe objetos finitos. Conhece ideias particulares, não a totalidade. Não vê o Universo, mas corpos singulares, coisas isoladas. Por isso, tudo o que conseguimos perceber da substância una e total são alguns de seus atributos. Nossa experiência do dia a dia conduz a essa visão fragmentada, enquanto a experiência específica de Deus, para Spinoza, é a da unidade do mundo. Se a substância do mundo é una, o ser supremo não é um ser transcendente, como dizem o judaísmo e o cristianismo. Ele é o ser de todo ser, inerente ao mundo. O filósofo propõe nada menos que a imanência de Deus, que se confunde com o próprio Universo. As leis de Deus não estão na Bíblia, são as leis da natureza. Na equivalência mais famosa que formulou – Deus é Natureza –, a realidade adquire um estatuto divino, o que representa uma rejeição das religiões tradicionais muito mais profunda do que o ateísmo vulgar. Compreende-se a sua excomunhão.

o0o Spinoza viu que ocorreria uma irremediável cisão na cultura se religião e ciência se separassem. Foi um homem de ciência em seu tempo – matemático, físico, químico, médico –, mas sabia que as ciênSpinoza: teologia, filosofia e política

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cias também devem buscar a felicidade suprema, que só a união com Deus pode oferecer. Nunca renunciou aos fins espirituais da mística religiosa, mas considerou que só a razão é capaz de atingi-los. Reconhecia três tipos de conhecimento: a imaginatio [imaginação], que é o conhecimento confuso, adquirido pela percepção sensorial elementar, por associação, por ouvir dizer e processos afins; a ratio [razão], o conhecimento das leis universais da natureza e da razão; e, enfim, acima de todos, a scientia intuitiva [conhecimento intuitivo], uma apreensão sinóptica das essências e de uma cadeia imanente de causas. Nela, os saberes se fundem. A ratio, que todos nós conhecemos, é apenas o grau inferior da razão, incapaz de transformar a personalidade do indivíduo, de revolucionar sua vida e de produzir o amor intelectual a Deus. A scientia intuitiva, o grau mais elevado, deve conduzir à beatitude, à eternidade e ao amor: enquanto o Deus transcendente manifestase na revelação, o Deus imanente manifesta-se na intuição. Assim, a razão deixa de ser meramente analítica e discursiva. Passa a buscar não só conhecimento, mas também os supremos objetivos éticos e espirituais, tradicionalmente associados às religiões. o0o A ênfase de Spinoza nas virtudes da razão, como se vê, era perfeitamente coerente com sua religiosidade. Mas ele sabia que a grande maioria dos homens jamais alcançará a ratio nem, muito menos, a scientia intuitiva. Permanecerá sujeita à imaginatio e à psicologia das massas, com conflitos, discórdias, fanatismo e violência. Por isso, além da teologia e da filosofia, refletiu também sobre a política, pois era preciso filosofar sobre a multidão. Buscou maneiras racionais de engendrar condutas socialmente benéficas por meio de mecanismos mentais e institucionais que transformassem a imaginação em uma imitação exterior da razão, usando o poder do Estado e as religiões populares como veículos de um processo civilizatório. Sua teoria da política está em dois textos, o Tratado teológico -político, publicado anonimamente em 1670, e o Tratado político, que ficou inacabado. Neles, estuda três formas de governo – a monarquia, a aristocracia e a democracia –, insistindo em que cada uma delas enfrenta perigos específicos: o abuso da monarquia é a tirania; o abuso da aristocracia é a oligarquia; o abuso da democracia é a desordem. Para cada uma delas, propõe medidas corretivas. 192

César Benjamin


Considera que o Estado é um corpo soberano, independente de qualquer outra autoridade normativa, no qual o cidadão ou súdito deve ser reconhecido por sua identidade individual e não por qualquer qualidade coletiva adquirida. Defende que o indivíduo subordine-se rigorosamente à soberania do Estado, mas goze de completa liberdade de consciência e de expressão. Os decretos do Estado, ele dizia, devem limitar-se aos atos exteriores de cada um, pois a ação estatal é impotente diante da faculdade subjetiva de julgar: é impossível “fazer amar o que se detesta ou detestar o que se ama”. Sendo impossível, isso é também ilegítimo, pois – eis uma ideia forte em Spinoza – não há direito sem poder. O Estado pode se fazer obedecer, mas não pode alterar as subjetividades. Age sobre a conduta, mas não domina a consciência. Ignora os sentimentos íntimos, de modo que o cidadão, mesmo forçado a obedecer à lei, continua, em espírito, soberano para aprová-la ou desaprová-la. Por isso, a vida moral e intelectual deve estar isenta da ingerência e da jurisdição estatal: O fim do Estado não é transformar os homens razoáveis em animais ou em máquinas, mas, ao contrário, fazer com que seu espírito e seu corpo cumpram em paz as suas funções, façam uso da razão livre, sem rivalidades de ódio, de cólera ou de astúcia, sem violências injustas. O fim do Estado é a liberdade.

o0o Spinoza morreu de tuberculose em 21 de fevereiro de 1677, em Haia, com 44 anos, na presença de um só amigo. Estava no sótão em que vivia. Em dezembro do mesmo ano, publicaram-se em Amsterdã suas obras póstumas, escritas em latim e só depois de sua morte traduzidas para o holandês. Todas aparecem agora em português, mais a correspondência do filósofo e a biografia escrita por um contemporâneo, em edição da Perspectiva, em quatro volumes, organizada por J. Guinsburg, Newton Cunha e Roberto Romano – nomes que dispensam apresentação e elogios. Só podemos lhes agradecer, mais uma vez.

o0o Sobre a obra: Spinoza Obra Completa IV . J. Guinsburg; Newton Cunha; Roberto Romano (Orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2014, 560p. Spinoza: teologia, filosofia e política

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A revolução irreformável

Marcus Oliveira

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as últimas semanas de agosto de 2014 foi lançada entre nós, a propósito da trajetória do comunismo no século passado, um livro – destinado a se tornar referência – do historiador italiano Silvio Pons, vice-diretor da Fundação Instituto Gramsci. A obra procura traçar, em uma análise de fôlego pouco comum, a história do comunismo internacional. Nessa análise, Pons detecta elementos centrais da cultura política comunista, demonstrando como os comunistas aderiram dogmaticamente a esses elementos, tornando-se incapazes de se adequarem a novos contextos históricos. Com isso, a necessidade da leitura de Pons torna-se evidente. Suas reflexões, ao explicitar essa revolução irreformável, evidenciam a necessidade de profunda revisão e reforma da cultura política das esquerdas, tornando-a adequada para os desafios e possibilidades do século XXI.

O livro é resultado de um intenso processo de pesquisas desenvolvidas por Pons desde o início dos anos 1990. Para compor sua análise, Pons consultou fontes de importância ímpar, tendo tido acesso a uma série de documentos soviéticos, além de ter consultado arquivos relevantes dos partidos comunistas europeus. Assim, possuindo em mãos esse imenso corpo documental, Silvio Pons procurou traçar integralmente a história do comunismo internacional.

Em relação à historiografia produzida sobre o tema, a obra pretende superar determinadas análises que compreendem ascensão e queda do comunismo internacional unicamente a partir de fatores estruturais. Nessa perspectiva, tanto o surgimento quanto o declínio do Estado soviético estariam conectados a crises estruturais. A insuficiência desse tipo de análise, na visão de Pons, reside no rebaixamento da função das ideologias e dos sujeitos do processo histórico. Analisar o comunismo internacional, segundo Pons, significa situá-lo historicamente no interior de um processo radicalmente aberto, avesso a qualquer pretensão de inevitabilidade, perceben194


do-o simultaneamente como uma realidade e uma mitologia capaz de influenciar a política mundial. Nesse sentido, as análises do autor são capazes de abarcar um tempo longo, sem perder de vista o tempo curto e a dinâmica dos acontecimentos, valorizando o papel dos mais diversos sujeitos na construção do comunismo. Portanto, as reflexões do autor apontam para o processo de construção e desmantelamento do comunismo internacional. A compreensão desse importante fenômeno que atravessou o século XX, na perspectiva de Pons, passa pelo nexo indissociável entre revolução e guerra. Para o autor, a revolução bolchevique e seus desdobramentos são marcados pelo momento histórico originário, a Primeira Guerra Mundial. Nesse nexo, a figura de Lenin é fundamental. A teoria do imperialismo aponta para a necessidade da revolução internacional em razão das contradições inerentes a esse sistema. Para Pons, Lenin diverge de Marx em suas análises acerca do caráter internacional do capitalismo. Enquanto Marx se preocupa com a mundialização da produção da economia capitalista, o cerne do problema de Lenin reside na perspectiva catastrófica gerada por esse mesmo desenvolvimento. Para Lenin, as contradições gestadas pelo imperialismo terminariam por produzir graves conflitos bélicos mundiais, semelhantes àqueles que possibilitaram a eclosão da Revolução de Outubro. Partindo dessa elaboração de Lenin, Pons aponta para um elemento na cultura comunista que não foi suficientemente analisado e observado pela historiografia. Ele afirma que esse catastrofismo, inaugurado por Lenin, é um dos componentes mais fundamentais na organização desta cultura política. A perspectiva de catástrofe próxima orientará o internacionalismo bolchevique em todo o seu percurso. Nesse sentido, o autor toma a experiência da Primeira Guerra Mundial como terreno histórico originário da cultura comunista, apontando que tal experiência se estrutura como um dogma, não passível de ser questionado ou reformado mesmo nos momentos mais críticos, servindo como o elemento central de legitimação e construção do Estado soviético sob o domínio de Stalin. Nesses termos, a construção do socialismo em um só país, empreendida por Stalin, não significa o abandono da perspectiva internacionalista e catastrófica. Essa estratégia representa, pelo contrário, uma forma de adequação da perspectiva internacionalista ao novo contexto, no qual as esperadas revoluções europeias A revolução irreformável

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não ocorreram, fazendo com que o socialismo soviético se mantivesse isolado. Diante disso, o Estado assume a característica de sujeito da revolução mundial. Esse incrível fortalecimento do Estado soviético é também conduzido pela expectativa da catástrofe. A URSS, considerada uma ilha circundada pelo capitalismo, aguardava a emergência de outro conflito bélico de proporções mundiais. Assim, era necessário fortalecer o Estado a partir da ideia da segurança nacional. É essa psicose da guerra a justificativa dos expurgos promovidos durante o Grande Terror staliniano. Nesse sentido, Pons consegue comprovar e levar adiante as notas de Gramsci acerca da presença da “estadolatria” na URSS, demonstrando que a construção do Estado soviético se ancora mais na repressão do que na produção do consenso a partir da sociedade civil. Internacionalmente, essa política de idolatria ao Estado soviético e seu líder termina por gerar posturas monolíticas no movimento comunista internacional. Expurgando-se as divergências, sobretudo as trotskistas, os partidos comunistas europeus puderam alinhar-se aos dogmas da cultura política bolchevique, independentemente da existência da Internacional Comunista (Komintern). A Segunda Guerra Mundial aparece como confirmação das teses de Stalin acerca da inevitabilidade do conflito mundial e do confronto final entre capitalismo e socialismo. A vitória sobre os nazistas, apesar de inesperada e surpreendente, altera o nexo originário entre guerra e revolução. Enquanto, no fim da Primeira Guerra, os comunistas se engajaram na possibilidade de revoluções na Europa, ao fim da Segunda Guerra essa possibilidade se encontra fora de questão. No segundo pós-guerra, o Estado soviético transforma a revolução mundial em uma expansão territorial, avançando com o Exército Vermelho por outros territórios, sobretudo do Leste Europeu. A construção do bipolarismo se encontra conectada a essa expansão do Estado soviético. Mesmo com o fim da Segunda Guerra, os soviéticos não abandonaram a perspectiva da catástrofe próxima. O contexto desse período é compreendido a partir da teoria dos dois campos. Haveria o campo imperialista e reacionário, que seria combatido pelo campo anti-imperialista e democrático. Para os soviéticos, esses dois campos se enfrentariam inevitavelmente na disputa pela hegemonia. Em virtude disso, era necessário tornar a URSS uma superpotência mundial. 196

Marcus Oliveira


A supremacia da URSS também se dá dentro do movimento comunista internacional. Segundo Pons, a criação do Kominform representa tal supremacia. Stalin, por meio desse órgão, procurava controlar a fidelidade dos partidos comunistas à cultura política bolchevique. Além da ruptura com a Iugoslávia de Tito em 1948, há a emergência da revolução chinesa de 1949. Stalin, na análise de Pons, não se interessava decisivamente pela revolução na Ásia, chegando inclusive a não desejar o surgimento do comunismo na China. Todavia, nesse momento, apesar das divergências, a China consegue tornar-se um Estado revolucionário sob a proteção de Moscou. A ruptura decisiva somente se daria no período Khruschev. Estabelecendo um balanço de Stalin, Pons é categórico. O legado de Stalin, apesar da vitória sobre os nazistas e do desenvolvimento da potência soviética, foi a “psicologia de guerra e o Estado de segurança total, simbolizado pelos milhares de quilômetros de arame farpado que cobriam as fronteiras da URSS e dos outros países comunistas” (PONS, 2014, p. 359). Mesmo Khruschev, no projeto de desestalinização desenvolvido a partir do célebre XX Congresso do PCUS, não foi capaz de promover a reforma da cultura política comunista e do legado de Stalin. Para Pons, o relatório de Khruschev procurava separar a figura de Stalin do Estado soviético, sem, por outro lado, prever uma reorientação dos comunistas. Deste modo, os limites da política de Khruschev se evidenciam no trágico episódio da invasão húngara em 1956. Além de demonstrar os limites de Khruschev, a invasão da Hungria revela a fragilidade do império soviético construído por Stalin. Com o sufocamento da proposta de renovação húngara, torna-se ainda mais evidente que a manutenção da estrutura de domínio soviético sobre outros Estados poderia somente ser conservada a partir do autoritarismo do Estado. Além disso, as frágeis bases consensuais da URSS, internacionalmente construídas em torno do mito de uma proposta de modernidade alternativa anticapitalista, começam a se desmontar, causando a ruptura de diversos intelectuais com o comunismo. A crise deflagrada pela invasão de 1956 se torna mais aguda com o cisma sino-soviético de 1962. Khruschev promoveu certo recuo na cultura soviética da catástrofe, lançando uma estratégia de “coexistência pacífica”, respeitados os limites soviéticos no contexto da guerra fria. Mao Zedong, líder chinês, considerou tal A revolução irreformável

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proposta como um abandono da estratégia de revolução mundial, criticando duramente o papel da URSS como Estado-guia na condução da revolução mundial. Assim, diante do cisma, a China passou a considerar-se como o real Estado revolucionário. Na análise de Pons, o conflito entre Moscou e Beijing é crucial para a compreensão da proposta de revolução mundial dos comunistas. A ruptura assinala, definitivamente, o fim da unidade do movimento comunista internacional. Consolidada a ruptura, os chineses se encontravam livres para desenvolver sua política centrada no nexo entre revolução e descolonização do terceiro mundo, nexo que jamais havia sido aceito pelos soviéticos. Todavia, a grande crise de legitimação do comunismo internacional ocorre em 1968. A repressão na Tcheco-Eslováquia e os movimentos de Maio de 68 assinalam a crítica ao autoritarismo e aos projetos de engajamento promovidos até então. Nesse momento, os jovens que se voltavam contra os valores da modernidade capitalista ocidental não mais aderiam ao projeto comunista. Assim, essa crise de legitimação desnuda o processo de crise da mitologia soviética entre as novas gerações, que não mais consideravam a URSS como um projeto válido de modernidade alternativa anticapitalista. Portanto, desde a metade dos anos 1950 a URSS sofria diversos abalos em sua estrutura. Mas tão forte quanto os abalos era o apego dos dirigentes soviéticos aos dogmas de sua cultura política. Mesmo após a grande crise de legitimidade de 1968, os soviéticos adentram os anos 1970 crendo na clara possibilidade da revolução mundial, baseados em sua visão dicotômica e esquemática do mundo. A crise do capitalismo finalmente havia chegado, e a URSS ampliava sua influência sobre a Ásia e Oriente Médio. Todavia, aquilo que parecia sua vitória escondia, na verdade, seu grave declínio. Os próprios Estados ligados ao comunismo soviético não eram capazes de prosperar, entrando em sérios conflitos entre si mesmos, como no caso de Vietnã e Camboja. No início dos anos 1980, os dirigentes comunistas não haviam percebido que o mundo bipolar se tornara multipolar. Além disso, por essa ausência de realismo, os soviéticos assistem à recuperação dos países do Ocidente e do Oriente com as reformas de mercado capitaneadas por Reagan. Assim, Gorbachev assume um Estado mergulhado em profunda crise, levada adiante pela incapacidade reformadora de uma gerontocracia formada nas bases do stalinismo. 198

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O novo modo de pensar de Gorbachev, na análise de Pons, jamais rejeitou o papel da URSS como líder da revolução mundial. Nesse ponto, Gorbachev era tão bolchevique quanto qualquer outro dirigente. Todavia, era necessário propor reformas internas na URSS para que o Estado pudesse retomar com mais força seu papel no cenário global. No entanto, a tentativa de reforma é incapaz de conter a avalanche da crise. Nesse sentido, a queda do Muro de Berlim é emblemática. A recusa de Gorbachev em reprimir as revoltas ocorridas na Alemanha Oriental demonstra com limpidez, e de forma definitiva, a ausência de legitimidade e consenso da URSS. Em pouco tempo, os alemães orientais, quando se viram distantes da ameaça de repressão armada, derrubaram o símbolo maior da visão bipolar, dicotômica e catastrófica dos soviéticos, gerando, em enorme efeito dominó, a queda dos Estados ligados à URSS. Portanto, a crise terminal ocorre exatamente quando desaparece o que sustentava a condição soviética no cenário geopolítico da Europa centro-oriental. Observando essas reflexões acerca da história do comunismo internacional, podemos perceber que Pons detecta determinados elementos centrais e essenciais da cultura política comunista. Tais elementos – a teoria catastrófica do imperialismo de Lenin, amalgamada à centralidade do Estado imperial soviético – conduzem a política soviética até sua derradeira crise. Com isso, o autor é capaz de perceber uma revolução que se cristaliza no tempo, extremamente apegada a suas origens e a seu terreno histórico originário. Incapaz de perceber os movimentos históricos e políticos, os soviéticos transformam a história em teleologia com fim determinado, elevando-a à categoria de mito. E, como todos os mitos, tal teleologia jamais poderia ser questionada, sob pena de profunda desorganização social e política. A reflexão de Pons é fundamental para um pensamento de esquerda preocupado com a história e com as condições do século XXI. No prefácio brasileiro, Daniel Aarão Reis Filho aponta que as análises de Pons são importantes para a reconstrução da utopia socialista em nosso tempo. Entretanto, tais análises parecem conduzir para o caminho oposto, e sua contribuição maior reside exatamente nesse ponto. A utopia socialista, em Pons, aparece como um mito, incapaz de observar a realidade e reformar-se, restando uma peça alheia aos novos tempos. Nessa perspectiva, a história do comunismo internacional de Pons contribui para as esquerdas do século XXI no sentido de apontar a necessidade de A revolução irreformável

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uma revisão histórica profunda da cultura política comunista. Retomando o diagnóstico gramsciano dos anos 1930, Pons parece propor a necessidade de uma inversão nos termos daquela cultura, reconhecendo a primazia do consenso sobre a coerção e da realidade histórica sobre os mitos. o0o Sobre a obra: A revolução global . História do comunismo internacional (1917-1991), de Silvio Pons. Rio de Janeiro: Contraponto; Brasília: Fundação Astrojildo Pereira (FAP), 2014.

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