Revista Olhar nº28 (Ano XV / Jan-Jun 2013)

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 15. Número 28 (Jan-Jun/2013). São Carlos: UFSCar, 2013. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)


ANO 15 – NÚMERO 28 – JAN-JUN/2013 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


Revista Olhar Ano 15 – Número 28 – Jan-Jun/2013

Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Júlio César de Rose CONSELHO EDITORIAL Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Bento Prado Neto – DFMC (UFSCar) Clarice Cohn – DA (UFSCar) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Lucia Williams – DPSI (UFSCar) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Rejane Rocha – DL (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Suzana Reck Miranda – DAC (UFSCar) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Conselho Consultivo Ana Paula dos Santos Martins Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Benedito Nunes (UFPa) in memoriam Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (FGV) Cibele Rizek (USP – SC) Débora M. Pinto (UFSCar) Diléa Z. Manfio (UNESP – Assis) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Fernão Ramos (Unicamp) Flavio Loureiro Chaves (UFRS) Franklin Leopoldo e Silva (USP) Gilmar de Carvalho (UFC)

Haroldo de Campos (in memoriam) Irene Machado (USP) Isabel Limongi Batista (UFPR) Ismail Xavier (USP) Jerusa Pires Ferreira (USP/PUC) João Carlos Salles (UFBa) Jorge de Almeida (USP) José Euclimar X. de Menezes (UC – BA) José Leon Crochik (USP) Lucíola Paixão Santos (UFMG) Luís Cláudio Figueiredo (PUC) Luís Roncari (USP) Luiz R. Monzani (Unicamp) Manoel Carlos Mendonça Filho (UFSE) Marcius Freire (Unicamp) Marcos S. Nobre (Unicamp/Cebrap) Maria Aracy Lopes da Silva (in memoriam) Maria das Graças de Souza (USP) Maria de Lourdes Siqueira (UFBa) Maria Helena Pires Martins (USP) Maria Irma Adler (Unicamp) Maria Lúcia Cacciola (USP) Maria Magdalena Cunha Mendonça Maria Ribeiro do Valle (UNESP – Araraquara) Maria Sílvia Carvalho Franco (USP/ Unicamp) Marilena S. Chauí (USP) Mauro Pommer (UFSC) Nara Maria Guazelli Bernardes (PUC – RS) Newton Bignotto (UFMG) Oswaldo Giacóia Jr. (Unicamp) Oswaldo Truzzi (UFSCar) Paulo Micelli (Unicamp) Renato Mezan (PUC/Sedes) Roaleno Ribeiro Amâncio Costa (Fac. de Belas-Artes – Salvador) Roberto Romano (Unicamp) Rubens Machado (USP) Saulo de Freitas (UFJF) Sérgio A. Franco Fernandes (UFRB) Toshie C. Nishio (UFSCar) Urânia Tourinho Peres (SPsiBa) Zélia Amador de Deus (UFPa) Consultores Internacionais Aleksandra Jablonska (UNAM – UPN – México) Catherine L. Benamou (University of Michigan – USA)

Esther Jean Marteson (Londres) Jorge Mészáros (Sociologia – Inglaterra) José Serralheiro (Página da Educação – Portugal) Sônia Stella Araújo Oliveira (Universidad Autônoma del Estado de Morelos – Cuernavaca/México) Vania Schittenhelm (pesquisadora – Londres) Assessores Márcia Patrizio dos Santos Mark Julian Cass (in memoriam) Massao Hayashi Jornalista responsável Hugo Leonardo Castilho dos Reis Equipe Técnica Redator-Assistente: Hugo Leonardo Castilho dos Reis Projeto Gráfico: Vítor Massola Gonzales Lopes Editoração e Arte Final: Vítor Massola Gonzales Lopes Capa: Rafael Chimicatti Impressão: Departamento de Produção Gráfica – UFSCar Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte. Permuta e solicitação de assinaturas: CECH/UFSCar – Universidade Federal de São Carlos


Editorial

N

ós, editores e conselheiros, dedicamos este número da revista Olhar ao querido Prof. Dr. Mark Julian Cass, que não está mais entre nós. Julian, além do brilhantismo intelectual, foi colaborador deste periódico e companheiro permanente dos colegas da UFSCar sempre que sua ajuda, compreensão e apoio foram necessários: sem alarde e sem interesse particular investido; com a sensibilidade que lhe era peculiar. Que fique registrado aqui nosso adeus coletivo, carinhoso e cheio de saudades! Noite (j. monzani)

na madrugada um murmúrio doce, quente, aquoso apita vento ou canto o que dá no mesmo no verso de ser sendo. Josette Monzani Júlio Cesar De Rose (editores)

Capa: Marcon Rodrigues

48 anos, sul de Minas Gerais E-mail: <mrr.2010@hotmail.com>


Sumário DOSSIÊ I COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS 9

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Apresentação Léa Silveira

Crítica à autonomia do poder político em Agostinho Luiz Marcos da Silva Filho

A realeza cristã em Vicente de Beauvais (séc. XIII) André L. Pereira Miatello

Ockham leitor da Política de Aristóteles Carlos Eduardo de Oliveira

Kant e a imaginação: imaginando um outro Kant? Fernando Costa Mattos

Kant, Fichte e a Revolução Francesa João Geraldo Martins da Cunha

Poder, política e verdade em Michel Foucault: notas sobre as implicações práticas do discurso André Constantino Yazbek

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Sem nome não sei de ti Carlos Rosa

La casada infiel (A casada infiel) Federico Garcia Lorca Tradução de Guilherme Mansur


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Realismo Milagroso: Espinosa, Deleuze, e Luz Silenciosa de Carlos Reygadas Niels Niessen

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Direito à comunicação: atualidade do debate histórico como bandeira de luta pela democratização Chalini Torquato Gonçalves de Barros

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Las diversas repercusiones en los espectadores argentinos en relación a diversos dispositivos: a propósito de la imagen del rostro del Che Guevara Lic. Jimena Cecilia Trombetta

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Estruturas (in)visíveis: o conteúdo e a forma em Zelig, de Woody Allen André Rui Graça

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Sosa Luna Yamanik Colegio Antonio José Sucre Erik Diesel

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Os malditos da vida humana: la Rochefoucauld e seu antimoralismo Magdalena Mendonça

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Poemas Juan Toro Castillo

Poética y procesos de creación video-cinematográfica brasileña en la contemporaneidad Angélica Marisol Mora Vázquez


DOSSIÊ

I COLÓQUIO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS


APRESENTAÇÃO

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iente da importância do debate e da variação de perspectivas intelectuais para a formação do estudante e do professor, a área de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras decidiu realizar anualmente um colóquio e uma aula magna. Os textos ora coligidos foram apresentados no primeiro desses colóquios, cujo tema foi “Filosofia e Política”. A ocasião congregou professores da casa e convidados em torno de um tratamento do assunto que envolveu os períodos medieval, moderno e contemporâneo. Passo agora a uma breve apresentação de cada um desses textos. Inicialmente, o Professor da UFLA, Luiz Marcos da Silva Filho, descortina na reflexão agostiniana fatores que delineiam a origem da teocracia cristã, institucionalizada a partir do século VI. É pela defesa da existência, na condição de queda, da libido como figura da vontade que implica o emprego do livre-arbítrio na direção de um divórcio em relação a Deus, que Agostinho procura sustentar a necessidade do exercício de repressão e de imposição de mecanismos de correção e disciplina, mediante o qual o poder político deve corresponder a uma espécie de terapêutica das almas. O desenvolvimento do argumento se depara, assim, com um paradoxo, aparente, na ideia de que o castigo a que o homem é submetido por desobedecer a Deus é algo que tanto mais favorece a desobediência. O autor mostra que a consequência da estratégia de denúncia de distanciamento entre querer e poder é a fundamentação da definição de “povo”, não mais a partir de um critério moral, mas a partir da própria vontade, trazendo como correlato uma desnaturalização da política. Na sequência, o Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, André Miatello, apresenta alguns aspectos da reflexão política de Vicente de Beauvais, reflexão que, segundo o autor, localiza-se em território distinto do aristotélico. O objetivo de Miatello não é perscrutar origens da monarquia absolutista na obra no frade dominicano da Baixa


Idade Média – embora não deixe de indicar obras em que foi empreendido o percurso que parte das chamadas monarquias medievais para chegar ao regime absolutista monárquico que distinguiu a história política da Europa a partir do século XV –, mas destacar por que veios o preceito de conciliação à fé cristã não destitui de racionalidade a reflexão que a toma em consideração ao eleger por objeto o exercício do poder. Miatello defende que é possível encontrar, na obra de Beauvais, elementos para sustentar que a relativização da autonomia da política não corresponde, a contrapelo do resultado verificado em Agostinho – ao estabelecimento de uma equivalência entre política e teocracia. Já o terceiro texto, diferentemente do segundo, explora a relação entre Aristóteles e um pensador medievo. Tal relação não é, no entanto, ressaltada senão para mostrar o quanto o relato que Guilherme de Ockham oferece da Política de Aristóteles é já, e inevitavelmente, mais do que relato, revelando-se ocasião para a manifestação de um posicionamento próprio, especialmente naquilo que diz respeito à construção de estratégias de argumentação. Tomando como fio condutor essa hipótese de leitura e explorando as características próprias a cada um dos três tipos de principados – despótico, real e político –, bem como o menor ou maior valor, do ponto de vista da ideia de perfeição, a ser atribuído à vila, à cidade, ao reino etc.; Carlos Oliveira, Professor da Universidade Federal de São Carlos, mostra que aquilo que Ockham procura fazer é explicitar os fundamentos de um regime monárquico. O autor se posiciona contra uma leitura de Ockham que se arrisca a ser reducionista na medida em que circunscreve o estabelecimento de um fundamento racional para a monarquia papal como objetivo de sua discussão da Política e ainda na medida em que não chega a divisar que a distinção por ele operada, via linguagem aristotélica, entre governo para o bem comum e governo para o bem privado se subordina à necessidade de mostrar que o governo para o bem comum comporta, em si mesmo, diversas possibilidades e que a eleição de uma dentre elas deve ponderar determinadas condições capazes de informar por que uma forma é preferível às demais. Em seguida, Fernando Mattos, Professor da Universidade Federal do ABC, desenvolve uma argumentação voltada para a defesa da existência, na filosofia kantiana, de um papel a ser desempenhado pela faculdade da imaginação na razão prática. Sem deixar de pontuar que Kant afirmara expressamente que apenas o entendimento atua na aplicação da lei moral aos objetos da natureza para a constituição do juízo prático, Fernando Mattos alega, no entanto, que a referência a uma operação de síntese entre virtude e felicidade na determinação do conceito de sumo bem convoca uma reflexão a respeito do espaço que a imaginação poderia aí ocupar uma vez que se encontra delineada, na razão teórica, como faculdade responsável pela síntese em geral. As proposições metafísicas que participam da razão prática como seus postulados, apesar de serem incapazes de engendrar conhecimento, não deixam de ser proposições teóricas, diz o autor; sendo-lhes por isso mesmo inescapável o caráter sintético, implicam, ipso facto, a incidência da imaginação. Fernando Mattos problematiza possíveis consequências dessa hipótese tomando como ponto de partida leituras a ela afins, em particular aquelas de M. Heidegger e de H. Arendt. 10

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Elementos da defesa transcendental dos direitos humanos empreendida por Fichte são abordados por João Cunha, Professor da Universidade Federal de Lavras, sob o leitmotiv do juízo a respeito do direito de revolução. Tendo pontos em comum com Kant – a adoção da tarefa de mostrar como a razão pode determinar por inteiro a liberdade e como esta pode fundamentar o juízo político à luz da consideração do contrato social como Ideia reguladora (e não como fato) – e retirando daí seu ponto de partida e sua inspiração, Fichte alcança, relativamente a Kant e a esse respeito, um veredicto contrário, pois, enquanto este reputa ilegítimo tal direito na proporção em que a revolução equivaleria a romper com o caráter publicizável da ação no âmbito do direito público, para Fichte o direito à revolução é inalienável porque o mundo mesmo não guarda outro sentido senão aquele que converge para a efetivação da “liberdade cosmológica” como sua finalidade. Que a relação entre uma constituição – por mais que vise à liberdade como destinação humana – e o reino dos fins seja sempre assintótica, isto é, por mais que a reflexão transcendental indique o lugar de ancoragem da lei moral mas não o modo de sua realização, isso, para Fichte, não põe em xeque o direito de revolução; tem, na verdade, um efeito contrário porque não permitirá situar nenhum estado de coisas como imutável, nenhuma constituição desprovida de espaço para um esforço a mais. André Yazbek, também Professor da UFLA, fecha o dossiê com um texto que, situando A ordem do discurso como interface entre arqueologia e genealogia, discute as feições que M. Foucault destina à problematização da ideia de verdade, informando, de saída, a dimensão à qual se dirige o exercício mediante o qual este avança a tarefa crítica. Pois que, sob pena de enredamento no irracionalismo, não se trata de situar como alvo a noção de validade proposicional – não é no nível interno ao discurso, bem entendido, que se tece o conluio entre aquilo que opõe o verdadeiro ao falso e aquilo que se expressa como violência –, mas de, suspendendo de certo modo esse registro da questão, procurar demarcar e denunciar, talvez em sua sombra ou a contraluz, mecanismos que se valem do exercício do poder para a organização do discurso de modo que tal organização, então compreendida como regime de verdade, desempenhe função maior na determinação de identidades e no desenho de exclusões institucionais. André Yazbek direciona sua argumentação para encerrar o artigo com uma indicação de qual seria o papel do intelectual numa perspectiva foucaultiana. Segue-se, assim, a primeira produção bibliográfica coletiva oriunda da equipe de Filosofia da UFLA. Sendo esse o caso, convém aqui dizer algo a respeito de seu perfil e de seu projeto. A Universidade Federal de Lavras, que abriga uma tradição centenária na área de Ciências Agrárias, tendo, além disso, já se consolidado em diversas outras áreas de conhecimento, até recentemente não contava, no entanto, com a área de Ciências Humanas. A ocasião efetiva para alterar esse cenário se deu no contexto do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), quando a instituição elaborou um projeto que envolvia a redefinição curricular de todos os seus cursos

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no sentido de inserir um grupo de disciplinas obrigatórias cuja maior parte pertencia à área de humanas. Tal projeto ensejou a contratação de um grupo de professores que logo encontrou caminhos para propor a criação de novos cursos de graduação, com o que sua atuação seria ampliada para além do núcleo básico de disciplinas de serviço, trazendo como consequência a necessidade de abraçar, nos mais diversos aspectos, um outro tipo de uma inserção institucional. No caso da Filosofia, a opção foi por propor um curso de licenciatura cuja chave central é a aposta em uma estreita conexão de mão dupla entre Filosofia e história da Filosofia (o conhecimento filosófico não podendo prescindir de sua história; a história da Filosofia sendo, em si mesma, filosófica) não apenas no que concerne à formação do estudante, mas também no que diz respeito ao futuro exercício da docência no Ensino Médio. Localizamos, assim, no horizonte de nosso projeto, a perspectiva de que a prática docente em Filosofia no Ensino Médio não seja pautada por um espontaneísmo que, em nome de um suposto didatismo, abrisse mão do conhecimento propriamente filosófico ou o relegasse a segundo plano. À luz da apresentação do eixo que guiou nossa lida com algo que pode bem adequadamente e em amplo sentido, acredito, ser chamado de kαιρός, encerro essa apresentação endereçando uma palavra de agradecimento tanto aos Profs. Josette Monzani e Julio César de Rose, por convidarem a equipe de Filosofia da UFLA para colaborar com a Revista Olhar e acolher o dossiê, quanto aos autores que o compuseram e ainda a todos os colegas que apoiam, mediante palavras e gestos, o projeto de realização do Curso de Filosofia da UFLA. Esse apoio é, para nós, sinônimo de aposta renovada em um lugar onde o afeto pode – no sentido da legitimidade – vincular-se à res publica. Léa Silveira

Professora do Departamento de Ciências Humanas da UFLA

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CRÍTICA À AUTONOMIA DO PODER POLÍTICO EM AGOSTINHO LUIZ MARCOS DA SILVA FILHO*

Resumo: N’A cidade de Deus, Agostinho apresenta ambivalente concepção de política, pois a política adquire ou positividade ou negatividade conforme a identidade ou a contradição de uma civitas ou res publica consigo mesma. Mais precisamente, a cidade celeste, que guarda dois modos de existência, um na história, outro na eternidade, conquista progressivamente identidade na medida em que na história há processo coerente dela em direção a seu modo de existência por excelência, na eternidade; já a cidade terrena existe na história em contradição e conflito, ao tornar-se escrava da própria libido de dominação, de maneira que sua história é de progressiva danação e perda de ser. Uma cidade guarda, pois, estatuto político a despeito de sua orientação ou de sua desorientação moral. Além do mais, o fundamento da política agostiniana não é nem a natureza, nem a razão. Assim, em declarada ruptura com a reflexão política ciceroniana, Agostinho empreende uma desnaturalização da política e fundamenta-a em certo conceito de vontade. PALAVRAS-CHAVE: POLÍTICA, MORAL, HISTÓRIA, VONTADE Critique to the autonomy of political power in Augustine Abstract: In the City of God, Augustine shows an ambivalent conception of politics, because the politics acquires positivity or negativity according to the identity or contradiction of a civitas or res publica with itself. More precisely, the celestial city, which has two modes of existence, one in the history, other in the eternity, progressively conquers identity as in history succeeds a coherent process towards its genuine mode of existence, in eternity. On the other hand, the earthly city exists in the history in contradiction and conflict in becoming slave of its own libidinousness of dominance so that its history is one of a progressive damnation and lost of being. Therefore a city holds political statute in despite of its moral orientation or disorientation. Moreover, the Augustinian foundation of politics is neither the nature nor the reason. Thus, notably against Cicero, Augustine enterprises a denaturalization of politics and founds it in a certain concept of will. KEYSWORDS: POLITICS, MORALS, HISTORY, WILL


P

ara tratar da crítica à autonomia do poder político em Agostinho, apresentaremos, em princípio, a definição de “república” e de “povo” que Agostinho elabora n’A cidade de Deus contra as definições que Cícero dispõe em Da república. O que mais nos importará sobretudo na definição de “povo” é o fato de ela ser destituída de critério moral para conferir estatuto político a uma multitudo, a um conjunto de inumeráveis seres racionais. O expediente de Agostinho para destituir de critério moral a sua definição de populus é fundamentá-la na “vontade”. O fundamento de uma res publica é certo conceito de “vontade” e não a “razão” ou a “natureza”, como se dava em Cícero. Isso significa que Agostinho empreende uma desnaturalização da política, de forma que concede que civitates não fundamentadas moralmente ou, se preferirmos, fundamentadas na perversão da natureza humana possam guardar o mesmo status político de uma cidade moralmente orientada. Por conseguinte, tanto a ordenada “república celeste” quanto a desordenada “república terrena” são “repúblicas”. A desnaturalização da política, todavia, não se dá em função de um divórcio entre “política” e “moral” que procure conceder positividade à “política”. Ao contrário, Agostinho confere estatuto político também a uma república moralmente desorientada para demarcar a negatividade da autonomia da “política”. A bem de compreender isso, seremos conduzidos ao segundo momento de nossa exposição, no qual examinaremos que conceito de “vontade” Agostinho elabora para conceder a possibilidade de uma política estremada da moral. Veremos, assim, que, em Agostinho, “vontade” é não uma faculdade da alma, mas sua própria substância, junto com a “inteligência” e a “memória”. A “vontade”, bem entendida na filosofia agostiniana, é a “vontade livre”, o “livre-arbítrio”, a partir do qual o homem guarda a liberdade de se apartar de Deus e de ter a soberba pretensão de idealmente buscar a autarkéia. Assim, o que move a soberba pretensão humana de autarkéia, e nisto se revela sobretudo um acerto de contas de Agostinho com o estoicismo, é a “vontade”, mais precisamente uma figura da “vontade” que o autor chama de “libido de dominação” (dominandi libido) ou, como muitas traduções, “desejo de domínio”. Então, no momento em que trataremos do conceito agostiniano de “vontade”, de “livrearbítrio” e de “liberdade”, o exame da “libido” esclarecerá por que a “vontade” é a substância da alma e por que “libido”, como desejo de não mais desejar a Deus, mas de desejar ser Deus, isto é, desejar a dominação das criaturas, significa o uso do livre-arbítrio por parte do homem para divorciar-se de Deus e de si mesmo, de sua própria natureza. Para Agostinho, a fundação da história e de certa política apartada da moral reside no movimento da “vontade” que torna o homem escravo da “libido”. Desse modo, a crítica agostiniana ao ideal notadamente estoico de autarkéia é a um só tempo crítica à autonomia da política. Por fim, no terceiro e último momento de nossa exposição, reavaliaremos, em desacordo com as leituras de Carlyle, McIlwain, Adams1 e O’Donovan, o significado da

1 “‘Whether St. Augustine realized the enormous significance of what he was saying may be doubted; this definition [CD XIX, 24] is indeed practically the definition of Cicero, but with the element of law and justice left out, and no more

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ausência de “valor moral”2 na definição agostiniana de “povo” no interior de um projeto de crítica à autonomia do poder político e de construção de uma forma de governo com traços teocráticos, na qual o “poder político”, com seus instrumentos coercitivos de “correção” e “disciplina”, seja instrumento da moral.

*** Comecemos então a examinar a definição de “povo” de Agostinho. “Povo é o conjunto de inumeráveis seres racionais associado pela concorde comunhão de coisas que amam”.3 Nessa definição, o “amor” ou a “vontade” é o liame fundamental para um conjunto de seres racionais constituir “povo”. Isso quer dizer que o amor pode ser orientado para qualquer finalidade, seja para Deus, seja para a dominação imperial: se for um desejo compartilhado, é o bastante para que um conjunto de homens adquira o estatuto político de “povo”. Eis por que imediatamente a seguir Agostinho diz que, segundo sua definição,4 “o povo romano é povo, e sua res, sem dúvida, república”.5 O mesmo é possível dizer dos atenienses e de Atenas, bem como dos homens de outras regiões da Grécia; deve-se ainda estender a definição para o Egito, para a primeira Babilônia dos assírios, para todo e qualquer conjunto de cidadãos que compartilhem o desejo, que orientem toda a sua existência para os mesmos fins e edifiquem instituições em função disso. Assim, com tal definição, Agostinho pretende dar conta de todos os gêneros de amor que um conjunto de homens possa guardar, e o que se adquire é propriamente o traço de definição, de universalidade, para populus. Afinal, uma definição de “povo” fundamentada na “razão” e na “natureza”, como se dá em Cícero, não é definição, porque é carente de universalidade. Com efeito, nem todos os “povos” cumprem os critérios de “razão” nem

fundamental difference could well be imagined, for Cicero’s whole conception of the State turns upon this principle, that it is a means for attaining and preserving justice.’ [‘St. Augustine and the City of God’, The Social and Political Ideas of Some Great Mediaeval Thinkers, ed. F. J. C. Hearnshaw, p. 50.]”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Value of Civil Society”, p. 172. McIlwain, por sua vez, supõe que a definição agostiniana seria mera variante da ciceroniana, devendo ser lida como “simply a rhetorical device”. ADAMS, J. D. Op. cit., p. 173. Adams se refere à seguinte obra de McIlwain: The Growth of Political Thought in the West, from the Greeks to the End of the Middle Ages. O artigo de Adams é estudo extremamente informativo no que concerne à literatura crítica que, no século XX, interpretou a definição agostiniana de populus. 2 “moral value”. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Value of Civil Society”. In: DONNELLY, D. F. The City of God: a Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995; p. 171. 3 “Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus”. AUGUSTINUS. De ciuitate dei, XIX, xxiv. Na ausência de menção, todas as traduções são de nossa responsabilidade. 4 “Secundum istam definitionem nostram”. AUGUSTINUS. Op. cit., loc. cit. 5 “Romanus populus populus est et res eius sine dubitatione res publica.”. Ibid., loc. cit. Obviamente, a redefinição de populus redefine o sentido de res publica, a despeito de os termos da definição desta não se alterar(em): res publica res populi. Tanto Cícero quanto Agostinho definem res publica como “coisa do povo”, mas o sentido de “república” varia conforme a definição de “povo”.

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realizam a natureza humana, a humanitas, a partir dos quais Cícero, em ambiência do médio estoicismo,6 elabora sua definição.7 Em outras palavras, a definição agostiniana voluntarista de populus confere à política, em contraposição à ciceroniana, a possibilidade de autonomia, precisamente porque nela não há critério moral para delimitar qual conjunto de seres racionais constitui “povo” e qual não constitui. Porém, não nos enganemos, como já apontamos, ao estremar “política” de “moral”, ao realizar a desnaturalização da política, Agostinho não pretende, como talvez Maquiavel pretenda, conceder positividade à “política”. Ao contrário, Agostinho confere estatuto político também a uma república moralmente desorientada para demarcar a negatividade da autonomia da “política”. Toda a análise política de Agostinho, toda a análise pormenorizada da História de Roma, realizada nos cinco primeiros livros d’A cidade de Deus, está a serviço da moral. Tanto é que, imediatamente após a apresentação de sua definição de “povo”, Agostinho afirma com todas as letras que não se trata de estimar todos os povos apenas por serem “povos” e terem edificado “repúblicas”, pois, “para ver o que é cada povo, é preciso examinar as coisas amadas”, e um povo será “tanto melhor quanto melhores as coisas que o unirem, e tanto pior quanto piores forem”.8 O critério de delimitação, não político, mas moral, para surpresa do leitor, é precisamente a virtude. Um povo será melhor do que outro na medida em que for virtuoso, em que for justo. Não à toa, Agostinho diz que os romanos, os atenienses, os egípcios, os assírios e outros constituem “povos”, sim, mas não conhecem a verdadeira justiça, porque não amam a Deus em comunhão e, desobedientes ao Criador, não permitem que a alma e a razão imperem retamente sobre o corpo e os vícios,9 e, para Agostinho, o vício dos vícios, o vício gerador de todos os outros vícios, é a “libido”. A surpresa, para leitor desavisado, é verificar que Agostinho, imediatamente após estremar “política” de “moral”, lança mão da virtude da “justiça”, como critério moral, para julgar a excelência dos povos, o que significa que o 6 A leitura de um Cícero estoico, sem dúvida, é polêmica. Defendemo-la, porém, a partir de Barros, Grimal, Revelli, Watson, entre outros. Watson, por exemplo, diz que “the leading proponent of the importance of the development of a law for all men is Cicero. And the main source for the ideas of Cicero on this matter was Stoic philosophy”. WATSON. “The Natural Law and Stoicism”. In: LONG, A. A. Problems in Stoicism. London: The Athlone Press, 1996, p. 225. No mundo romano, Agostinho, por exemplo, compreendia Cícero, antes de tudo, próximo do estoicismo: “Cicero in pluribus fuisse Stoicum quam veterem Academicum vult videri.”. AUGUSTINUS (1955). De civitate dei, XIX, iii, 2. 7 “[…] populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus.”. CICERO. De re publica, I, xxv, 39. No livro III do diálogo, Cícero esclarece que o conceito de ius presente na definição de populus se refere ao direito natural, pois há identidade entre lex, ratio e natura: “[…] est quidem vera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna, quae vocet ad officium iubendo, vetando a fraude deterreat, quae tamen neque probos frustra iubet aut vetat, nec improbos iubendo aut vetando movet. Huic legi nec obrogari fas est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari potest, nec vero aut per senatum aut per populum solvi hac lege possumus, neque est quaerendus explanator aut interpres eius alius [Sexto Aelius], nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et [ut] sempiterna et immutabilis continebit, unusque erit communis quasi magister et imperator omnium deus: ille legis huius inventor, disceptator, lator; cui qui non parebit, ipse se fugiet, ac naturam hominis aspernatur hoc ipso luet maximas poenas”. CICERO. De re publica, III, xxii, 33. 8 “[…] profecto, ut videatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda, quae diligit. […] tanto utique melior, quanto in melioribus, tantoque deterior, quanto est in deterioribus concors.”. AUGUSTINUS. Op. cit., XIX, xxiv. 9 “Generaliter quippe civitas impiorum, cui non imperat Deus oboedienti sibi, ut sacrificium non offerat nisi tantummodo sibi, et per hoc in illa et animus corpori ratioque vitiis recte ac fideliter imperet, caret iustitiae veritate.”. Ibid., XIX, xxiv.

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expediente de desnaturalização da política, o expediente de conferir estatuto político a “povos” constituídos por homens com a natureza fraturada, permite a Agostinho realizar crítica moral ainda mais refinada e severa da tradição pagã e de “repúblicas” que não dispõem seu aparato político e militar de “correção” e “disciplina” a serviço da orientação moral da Igreja.10 O esboço da forma de governo da “teocracia” não é, porém, tão simples. Vimos que “povo” para Agostinho é uma multidão de seres racionais associados por um desejo em comum. Qual é então a legitimidade de regime de governo que recorra a instrumentos de coerção e até mesmo a violência física para reprimir práticas orientadas por desejos libidinosos? O desejo que um conjunto de homens deve compartilhar para constituir “povo” não é desejo que cada cidadão tem e compartilha a partir de vontade livre, a partir do livre-arbítrio? Se sim, qual a legitimidade de república e de regime de governo em que os cidadãos que constituem “povo” apenas o constituem porque seus desejos são orientados para o mesmo fim a partir de instrumentos coercitivos de “correção” e “disciplina”? Essas dificuldades nos encaminham para o segundo momento de nossa exposição. Afinal, para responder, temos de compreender melhor o fundamento voluntarista de “povo” por meio de estudo dos conceitos de “vontade”, “livre-arbítrio” e “liberdade”. Uma passagem das Confissões é esclarecedora: Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, mas para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir tua doçura, doçura que não engana, feliz e segura, e quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade.11

O que impulsiona Agostinho em busca daquele fundamento por meio de uma inspeção da memória e de si mesmo é o amor ao amor de Deus. Infelizmente, não nos toca examinar aqui as razões metafísicas de Agostinho para, com base em Paulo, definir Deus como amor e explicar por que o amor é o conceito explicativo da dinâmica entre Deus e a criação. Em linhas gerais, Deus é amor porque, como de Deus nada se predica, mas tudo que é atribuído a Ele é a sua própria substância, como Agostinho bem mostra nas Confissões, IV, 10 Cf. De ciuitate dei, XIX, xvi; XIX, xvii; Sermões 13, 302; Epístolas 133, 134, 153, e todo o material referente à controvérsia donatista. Segundo Dawson, “Augustine was the originator of the mediaeval theocratic ideal”. DAWSON, C. “St. Augustine and his Age”, apud PARKER, Th.-M. “St. Augustine and the Conception of Unitary Sovereignty”, p. 951. 11 “Recordari volo transactas foeditates meas et carnales corruptiones animae meae, non quod eas amem, sed ut amem te, Deus meus. Amore amoris tui facio istuc, recolens vias meas nequissimas in amaritudine recogitationis meae, ut tu dulcescas mihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura, et colligens me a dispersione, in qua frustatim discissus sum, dum ab uno te aversus in multa evanui.”. AUGUSTINUS. Confessionum, II, i, 1. (Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. Grifo nosso.)

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16, ao explicitar a impotência das categorias aristotélicas para investigar Deus, então o amor de Deus permite dizer que a própria substância de Deus é amor, isto é, “vontade”. Como Deus teria criado o homem a sua imagem e semelhança, a substância do homem também é “vontade”. Então, por natureza, o homem aspira a Deus, por natureza a participação do homem com o Ser supremo se dá também pela “vontade”, pelo desejo do fundamento. A “vontade”, como liame entre o Criador e a criatura racional, é a “vontade ordenada”, mas essa “vontade” é livre, e o fato de ela ser livre não é um mal; pelo contrário, é um bem que eleva em perfeição a criatura racional, acima das irracionais.12 O que pode ser um mal, e nisto consiste o “mal moral” em Agostinho, é o uso que o homem pode fazer da liberdade. O abuso da liberdade, para Agostinho, consistiu no divórcio do homem com Deus, consistiu na ruptura da participação ontológica no Ser supremo que o primeiro homem, Adão, realizou ao recusar seu posto de criatura e ter tido a soberba pretensão de tornar-se Deus. Ao aspirar deixar de aspirar ao fundamento, a consequência inevitável para o homem é a queda em condição fraturada. Que exatamente se encontra fraturado no homem em sua condição pecaminosa? O homem todo se encontra fraturado: sua substância, a “vontade”, a “inteligência” e a “memória”. O que se instaura no homem é o conflito interior, conflito dele consigo mesmo, “rixa interior” — como diz Agostinho no livro VIII das Confissões —, cuja expressão é o conflito exterior, conflitos civis e bélicos. Uma vez que o homem se encontra apartado do Ser, a consequência do conflito é a aniquilação, o não-ser, que para o homem individual se apresenta como a “morte”. A “rixa interior”, o conflito do homem consigo mesmo, é conflito da “vontade” contra ela mesma, e essa figura da “vontade”, mais precisamente da “contravontade”,13 chama-se “libido”. Segundo Sennelart, “é na dramaturgia do pecado original, e na grandiosa encenação agostiniana da sedução, do sexo e da morte, que devemos buscar os fundamentos de sua teologia política”.14 A reflexão — antes de dramaturgia e encenação — agostiniana sobre a sedução, o sexo e a morte encontra-se nos livros XIII e XIV d’A cidade de Deus, nos quais há definição da “libido” como desejo sexual, originário de todas as outras libidos, entre as quais a “libido de dominação” (dominandi libido), em contexto de exegese do relato bíblico do pecado original. N’A cidade de Deus, XIII, xiii, e em XIV, xvii, Agostinho examina diretamente a primeira contradição exterior que sucedeu ao homem após a falta original de Adão e Eva e que foi motivo de vergonha. Logo após a primeira falta os primeiros homens se envergonharam de estar nus, mas a vergonha não foi da nudez em si, porquanto antes da queda Adão e Eva já estavam nus e não se envergonhavam de si mesmos. A vergonha, quando surge, relaciona-se ao que a nudez passa a revelar: desacordo do homem consigo mesmo.

12 Cf. AUGUSTINUS. De libero arbitrio, II, xviii, 49; GILSON, É. Introdução ao estudo de santo Agostinho, p. 277. 13 Cf. NOVAES, M. “Vontade e contravontade”. In: NOVAES, A. (org.). O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 59-76. 14 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 73.

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Trata-se de vergonha consequente do movimento carnal que surge nos homens, com a natureza cindida.15 Antes de pecar, Adão e Eva viviam nus e tinham os órgãos genitais, mas não se envergonhavam de si mesmos e do movimento daqueles porque não havia a libido.16 O que Agostinho quer dizer é que antes do pecado, com a natureza íntegra, os órgãos genitais eram submissos, obedeciam à vontade e não se rebelavam contra a castidade. Apenas se movimentavam se o homem quisesse que se movimentassem, como qualquer outra parte do corpo,17 e a geração poderia unir homem e mulher corporalmente sem libido. Dessa forma, após o pecado e com a transgressão da natureza, o primeiro movimento desordenado, porque ordenado não pela vontade, mas pela contravontade, experimentado pelo homem é o movimento carnal. Tão logo se levou a efeito a transgressão do preceito, desamparados da graça de Deus, [os primeiros homens] envergonharam-se da nudez de seus corpos. Por isso cobriram suas vergonhas com folhas de figueira, as primeiras, talvez, que se lhes depararam em meio à perturbação. Tais membros já os tinham antes, mas não eram vergonhosos. Sentiram, pois, novo movimento em sua carne desobediente, como castigo devido à desobediência. Comprazida no uso desordenado da própria liberdade, desdenhando servir a Deus, a alma viu-se despojada da primeira sujeição do corpo e, por haver livremente abandonado o Senhor superior, não mantinha submisso o servo inferior nem mantinha submissa a si mesma a carne, como teria podido manter sempre se houvesse permanecido submissa a Deus. A carne começou, então, a desejar contra o espírito. Nesse combate nascemos, arrastando o gérmen de morte e trazendo em nossos membros e em nossa viciada natureza a alternativa de luta e vitória da primeira prevaricação.18 15 “A vergonha (pudor) suscitada pelo despertar no homem da libido indica, não a descoberta de sua nudez, mas a perda de seu poder sobre seus órgãos sexuais”. SENELLART, M. Op. cit., p. 88. 16 “Merito huius libidinis maxime pudet, merito et ipsa membra, quae suo quodam, ut ita dixerim, iure, non omnimodo ad arbitrium nostrum movet aut non movet, pudenda dicuntur, quod ante peccatum hominis non fuerunt. Nam sicut scriptum est: Nudi erant, et non confundebantur (Gn 2, 25), non quod eis sua nuditas esset incognita, sed turpis nuditas nondum erat, quia nondum libido membra illa praeter arbitrium commovebat, nondum ad hominis inoboedientiam redarguendam sua inoboedientia caro quodammodo testimonium perhibebat”. AUGUSTINUS. De civitate dei, XIV, xvii. 17 “Et ideo illae nuptiae dignae felicitate paradisi, si peccatum non fuisset, et diligendam prolem gignerent et pudendam libidinem non haberent. Sed quomodo id fieri posset, nunc non est quo demonstretur exemplo. Nec ideo tamen incredibile debet videri etiam illud unum sine ista libidine voluntati potuisse servire, cui tot membra nunc serviunt. An vero manus et pedes movemus, cum volumus, ad ea, quae his membris agenda sunt, sine ullo renisu, tanta facilitate, quanta et in nobis et in aliis videmus, maxime in artificibus quorumque operum corporalium, ubi ad exercendam infirmiorem tardioremque naturam agilior accessit industria; et non credimus ad opus generationis filiorum, si libido non fuisset, quae peccato inoboedientiae retributa est, oboedienter hominibus ad voluntatis nutum similiter ut cetera potuisse illa membra servire?”. Id. De ciuitate dei, XIV, xxiii, 2. Cf. Ibid., XIV, xxiv, 1-2. 18 “Nam postea quam praecepti facta trasgressio est, confestim gratia deserente divina de corporum suorum nuditate confusi sunt. Unde etiam foliis ficulneis, quae forte a perturbatis prima comperta sunt, pudenda texerunt; quae prius eadem

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A “libido”, assim, faz que o homem se envergonhe do que se tornou porque, posto ele em contradição e conflito consigo mesmo, expressa perda de identidade, “‘doença da alma’ (Confissões, VIII, ix, 21) cujo sintoma geral, que ele [Agostinho] descreve com uma precisão clínica, consiste na insubmissão dos órgãos sexuais”.19 Mais precisamente, a insubmissão dos membros expressa o divórcio entre o querer e o poder. Após o uso ilegítimo, após o abuso da liberdade, o livre-arbítrio da vontade deixa de ser livre, isto é, perde a liberdade de fazer o bem, e o homem torna-se condenado ao vício, escravo da “libido”.20 Afinal, “que se retribuiu como pena ao pecado da desobediência senão a desobediência?”21 A desobediência de si mesmo contra si mesmo é a consequência contraproducente do desejo do homem de ordenar-se a si mesmo no cosmo. Aqui compreendemos melhor em que consistiu a primeira vontade má. Ao pretender ordenar-se, o ser humano instaura desordem em si mesmo que é, por assim dizer, abertura para sucessão de desordens, decorrentes da primeira. A fratura original era inevitável e, por isso, foi acontecimento justo e merecido, na medida em que o “apetite de celsitude perversa”, a “soberba”, ousou querer o que não pode por natureza, a saber, “desertar o princípio a que o ânimo deve estar unido e fazer-se de certa maneira princípio para si e sê-lo”.22 Desse modo, uma vez que o homem não quis o que podia, a queda foi precisamente em condição em que, de forma viciada, quer o que não pode. É verdade que por natureza o homem não podia tudo, mas nele havia identidade porque apenas “queria o que podia e, assim, podia tudo o que queria”.23 Eis por que pode haver identidade mesmo em criatura carente de plenitude de ser. A natureza do homem, sabidamente, é mutável, ainda que imortal, mas guarda identidade em função de adequação entre aquilo que o homem quer e aquilo que pode querer. Isso não quer dizer, por consequência, que por natureza não suceda no homem conquista permanente de identidade. Como dinâmica ou processo membra erant, sed pudenda non erant. Senserunt ergo novum motum inoboedientis carnis suae, tamquam reciprocam poenam inoboedientiae suae. Iam quippe anima libertate in perversum propria delectata et Deo dedignata servire pristino corporis servitio destituebatur, et quia superiorem dominum suo arbitrio deseruerat, inferiorem famulum ad suum arbitrium non tenebat, nec omni modo habebat subditam carnem, sicut semper habere potuisset, si Deo subdita ipsa mansisset. Tunc ergo coepit caro concupiscere adversus spiritum, cum qua controversia nati sumus, trahentes originem mortis et in membris nostris vitiataque natura contentionem eius sive victoriam de prima praevaricatione gestantes.”. Ibid., XIII, xiii. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.) 19 SENELLART, M. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo, p. 85. 20 “[…] o pecado original, ‘tentativa orgulhosa de Adão de estabelecer seu próprio governo autônomo’, marca o começo da servidão do homem”. SENELLART. Op. cit., p. 73. Se aqui coubesse, poderíamos mostrar que a exegese do relato do pecado original no livro XIV d’A cidade de Deus se dá, a um só tempo, como crítica da pretensão de autarkéia, seja de Adão, seja de algum sábio estoico, seja de qualquer outro homem ou filósofo que pretenda alcançar por si mesmo a perfeição. 21 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?” AUGUSTINUS. De ciuitate dei, XIV, xv, 2. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa.) 22 “Initium enim omnis peccati superbia est (Eclo 10, 13/15). Quid est autem superbia nisi perversae celsitudinis appetitus? Perversa enim est celsitudo deserto eo, cui debet animus inhaerere, principio sibi quodammodo fieri atque esse principium.”. Ibid., XIV, xiii. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo nosso para demarcar a citação.) 23 “Nam quae hominis est alia miseria nisi adversus eum ipsum inoboedientia eius ipsius, ut, quoniam noluit quod potuit, quod non potest velit? In paradiso enim etiamsi non omnia poterat ante peccatum, quidquid tamen non poterat, non volebat, et ideo poterat omnia quae volebat”. Ibid., XIV, xv. (Tradução de Oscar Paes Leme com modificação nossa. Grifo nosso para demarcar a citação.)

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em direção ao Ser, a progressiva aquisição de identidade ou de ser ou de semelhança da imagem divina não se realiza por meio da obtenção de identidade continuamente maior entre querer e poder e diminuição de qualquer alteridade entre ambos. É certo que com conquista de ser o santo se torna, como um atleta, capaz de feitos cada vez mais gloriosos,24 mas o alargamento do poder ocorre em simultaneidade e em unidade com o do querer, que é progressivamente maior vontade e poder não do homem, mas de Deus no homem que se dissolve n’Ele.25 Por que, afinal, há fundo comum entre a libido sexual e a libido, por assim dizer, política, a “libido de dominação”? Ora, a libido consiste na perversão do desejo pelo fundamento, na perversão do desejo a Deus, o único que deve ser desejado por si mesmo. Desejar alguma coisa por si mesma, na filosofia agostiniana, tem nome, e esse nome é “gozar” ou “fruir”, ambas traduções legítimas de frui, que significa gozar, fruir, alguma coisa por si mesma, opondo-se a uti, “usar”. A libido sexual deseja outra criatura por si mesma, de forma que, por isso, todas as outras modalidades de “libido” são libidos porque desejam o “gozo”. A “libido de dominação”, que impulsionou, por exemplo, o Império Romano, deseja toda a criação por si mesma, e, não à toa, a análise agostiniana do fundo comum entre as várias classes de libido explicita que elas podem guardar expressão conjuntamente. A História de Roma é testemunho histórico da consonância entre elas. Afinal, desde a fundação de Roma, em que houve o rapto das sabinas,26 encontramos exemplos de conciliação de várias classes de libido em um projeto comum. O evento histórico de conjugação de libidos examinado por Agostinho com mais vagar refere-se, todavia, à queda (excidium) de Roma, em que os invasores desejavam a um só tempo e ao menos a dominação da cidade, a subjugação sexual das mulheres e a conquista de ouro e prata.27 A partir disso, já nos encaminhando para o terceiro e último momento de nossa exposição, precisamos resgatar a questão da desobediência como consequência da própria desobediência.28 A desobediência da vontade que se volta contra si mesma, como vimos, é o descompasso entre querer e poder. O homem por si mesmo não mais pode estabelecer governo de si, governo dos próprios desejos desordenados. É a partir desse diagnóstico da condição humana que Agostinho procura justificar a legitimidade do poder repressivo. A

24 “[…] athletam Christi, doctum ab illo, unctum de illo (Gl 1, 12), crucifixum cum illo (Gl 2, 19), gloriosum in illo”. Ibid., XIV, ix, 2. A referência é a Paulo. 25 “[…] cupientem dissolvi et esse cum Christo”. Ibid., loc. cit. Muito provavelmente se trata de citação indireta da Epistola aos Filipenses 1, 23. 26 “Ex hoc iure ac bono credo raptas Sabinas. Quid enim iustius et melius quam filias alienas fraude spectaculi inductas non a parentibus accipi, sed vi, ut quisque poterat, auferri? Nam si inique facerent Sabini negare postulatas, quanto fuit iniquius rapere non datas! iustius autem bellum cum ea gente geri potuit, quae filias suas ad matrimonium conregionalibus et confinalibus suis negasset petitas, quam cum ea, quae repetebat ablatas. Illud ergo potius fieret; ibi Mars filium suum pugnantem iuvaret, ut coniugiorum negatorum armis ulcisceretur iniuriam, et eo modo ad feminas, quas voluerat, perveniret. Aliquo enim fortasse iure belli iniuste negatas iuste victor auferret; nullo autem iure pacis non datas rapuit et iniustum bellum cum earum parentibus iuste suscensentibus gessit.”. Ibid., II, xvii. 27 Cf. Ibid., I, i-xxxvi. 28 “[…] in illius peccati poena quid inoboedientiae nisi inoboedientia retributa est?”. Ibid., XIV, xv, 2.

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“incapacidade [de o homem] obedecer-se a si mesmo, da qual a libido é o sintoma: tal é, para Agostinho, a condição decaída do homem que justifica o uso da coerção”.29 Para retomar a definição voluntarista de “povo” e explicitar o significado da “vontade” como fundamento da política, o expediente de conferir estatuto exclusivamente político, não moral, a “povos” e “repúblicas” orientados pela “libido de dominação” que os cidadãos compartilham permite a Agostinho empreender severa crítica à autonomia do poder político, consequência do desejo de autonomia, de autossuficiência, de cada cidadão, que, como a cidade terrena, ao pretender dominar a criação é ele mesmo dominado pela própria libido de dominação.30 Tal desapreço por uma “política” estremada da “moral”, por sua vez, é ocasião para Agostinho pretender legitimar uma estrutura de poder, no caso a estrutura de poder imperial de Roma, que esteja a serviço da orientação moral da Igreja para estabelecer a coesão de desejos ordenados na sociedade. Agostinho defendeu a visão de que as estruturas de autoridade que davam coesão à sociedade leiga poderiam ser convocadas para dar apoio à igreja católica: os imperadores deveriam comandar seus súditos, os senhores de terras, seus lavradores (açoitando-os, quando necessário), e os chefes de família, suas mulheres e filhos, a fim de trazê-los de volta para a unidade da igreja católica.31

Para Agostinho, a repressão dos desejos desordenados e a vigilância dos corpos é, portanto, poder de coerção terapêutico necessário para os cidadãos, destituídos, como vimos, da identidade entre querer e poder.32 Afinal, a disciplina dos corpos e da carne, que se rebelam em cada um dos cidadãos e os tornam ameaça social se não forem reprimidos, guarda o propósito de limitar o poder político para fim não político, mas moral, isto é, guarda o propósito de usar o poder político com a finalidade de uma “medicina das almas”.33 Está aí disposta a base para forma de governo inédita até então na história, a teocracia cristã, que se institucionalizaria como forma de governo da Igreja sobre os

29 SENELLART, M. Op. cit., p. 88. 30 “Unde etiam de terrena civitate, quae cum dominari adpetit, etsi populi serviant, ipsa ei dominandi libido dominatur, non est praetereundum silentio quidquid dicere suscepti huius operis ratio postulat si facultas datur.”: “Por isso, também a respeito da cidade terrena –, que, com o desejo de dominar, e não obstante povos sejam seus escravos, é dominada pela própria libido de dominação –, não deixarei passar em silêncio tudo aquilo que o plano desta obra exigir e a minha capacidade permitir dizer”. AUGUSTINUS. De ciuitate dei, Praefatio. 31 Peter Brown. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 327. Sobre a legitimidade da coerção e da violência física quando bem orientada, cf. AUGUSTINUS. De ciuitate dei, XIX, xiv. 32 “O poder não é mais a consequência de uma vontade que obedece, mas o meio de coagi-la a obedecer. Se bastava a Adão querer o bem para exercer seu poder, é preciso que os homens submetam-se a um poder para serem capazes de bem querer. Desse modo Agostinho apaga o limite […] entre a autoridade espiritual e a coerção secular”. SENELLART, M. Op. cit., p. 88. (Grifo do autor.) 33 Cf. SENELLART, M. Op. cit., p. 89.

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reinos a partir do século VI, com Gregório Magno, em larga medida por meio do resgate da teorização política agostiniana.

Bibliografia AUGUSTINUS. Confessionum libri tredecim. Patrologia Latina Tomus 32. Turnhout: Brepols, 1992. ______. De civitate Dei contra paganos libri viginti duo. Patrologia Latina Tomus 41. Turnhout: Brepols, 1983. ______. De civitate Dei (Libri I-X). Corpus Christianorum Series Latina XLVII. Turnhout: Brepols, 1955. ______. De civitate Dei (Libri XI-XXII). Corpus Christianorum Series Latina XLVIII. Turnhout: Brepols, 1955. ______. De libero arbitrio libri tres. Patrologia Latina Tomus 32. Turnhout: Brepols, 1992. ______. A cidade de Deus. (contra os pagãos). Petrópolis: Vozes, 2002. 2 volumes. Trad.: O. P. Leme. ______. Confissões. São Paulo: Paulus, 2002. Trad.: M. L. J. Amarante. CICERO. De re publica. Leipzig: Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, 1964. ______. Da república. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Trad.: A. Cisneiros. Col. Os Pensadores. ADAMS, J. D. “Augustine’s Definitions of Populus and the Value of Civil Society”. In: DONNELLY, D. F. The City of God: a Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995, p. 171-82. BARROS, A. R. “O estoicismo moral de Cícero: virtudes e deveres para homens comuns”. Phrónesis, Vol. 8, N. 2. Julho, 2006. BROWN, P. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. GILSON, E. Introdução ao estudo de santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial/Paulus, 2006. Trad.: C. N. A. Ayoub. GRIMAL, P. Cicéron. France: Librairie Arthème Fayard, 1986. MUNIER, Ch. “L’influence de saint Augustin sur la législation ecclésiastique de son temps”. In: FUX, P.-Y.; ROESSLI, J.-M.; WERMELINGER, O. Augustinus Afer (Saint Augustin: africanité et universalité. Actes du colloque international Alger-Annaba, 1-7 avril 2001). Fribourg: Éditions Universitaires Fribourg Suisse, 2003. NOVAES, M. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Paulus/ Discurso Editorial, 2009. ______. “Vontade e contravontade”. In: NOVAES, A. O avesso da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 59-76. O’DONOVAN, O. “Augustine’s City of God XIX and Western Political Thought”. In: DONNELLY, D. F. The City of God: a Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995, p. 135-49.

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Luiz Marcos da Silva Filho é professor de Filosofia Medieval da Universidade Federal de Lavras.


A realeza cristã em Vicente de Beauvais (séc. XIII) ANDRÉ L. PEREIRA MIATELLO*

Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir a ideia de realeza defendida pelo dominicano Vicente de Beauvais em sua obra De morali principis institutione; analisamos principalmente os capítulos V e VI, nos quais Vicente tenta explicar, por um lado, por que um Deus bom pode permitir o governo de maus reis e, provando-se que maus reis são instrumentos providenciais, como é que eles podem ser recompensados. O retrato do mau rei, proposto por Vicente, pode ser interpretado inversamente como traços do bom rei: apesar de exercer um poder estruturalmente negativo, já que nasceu do pecado (ambitio potestatis), o rei pode e deve colaborar com Deus na economia da salvação assumindo um ministério sobre as almas na forma de um rei-pastor. PALAVRAS-CHAVE: MONARQUIA CRISTÃ, PODER POLÍTICO, PASTORADO RÉGIO Christian kingship in Vincente of Beauvais (XIIIth century) Abstract: This article aims to discuss the idea of kingship defended by the Dominican Vincent of Beauvais in his work De morali principis institutione; we analyze especially Chapters V and VI, in which Vincent tries to explain, first, why a good God can allow the government of a bad king and, proving that bad kings are providential instruments, how they can be rewarded. The portrait of the bad king, proposed by Vincent, can be interpreted inversely as traces of the good king: despite exercising a power structurally negative, since it was born in sin (ambitio potestatis), the king can and must cooperate with God in the economy of salvation assuming a ministry of the souls in the form of a shepherd-king. KEYWORDS: CHRISTIAN MONARCHY, POLITICAL POWER, ROYAL PASTORATE

Introdução Ao propor como tema de discussão alguns aspectos do pensamento político de Vicente de Beauvais, importante erudito do séc. XIII ocidental – mais propriamente aquilo que pensava sobre os fundamentos e os limites da ideia de poder, de modo particular, o


poder régio ou principesco –, pretendo circunscrever um conjunto de conceitos relativos ao governo dos homens que, do ponto de vista aqui adotado, esteve na base de práticas de poder e que nasceu da observação e experiência de estruturas sociais concretas e para servir a estas mesmas estruturas. E nem podia ser diferente, pois o referido autor organizou sua obra de tal forma que, pela sua leitura, os destinatários originais da mensagem, isto é, os reis de França e Navarra, bem como seus filhos e cortesãos, pudessem lançar mão de conselhos de ação e exemplos de conduta. A despeito dos referenciais históricos aqui evocados, é minha intenção problematizar as considerações políticas vicentinas à luz das auctoritates que ele próprio elegeu como base de sua argumentação e, a partir desse procedimento, inseri-lo na discussão contemporânea em torno do poder e do governo na Baixa Idade Média. É provável que os Études sur Vincent de Beauvais, théologien, philosophe, encyclopédiste, de J.-B. Bourgeat, publicados em 1856, tenham sido a primeira investigação moderna sobre Vicente de Beauvais. Apesar disso, só muito recentemente é que a crítica começou a fazer das obras vicentinas um assunto de estudo, reservando-lhe um destacado posto na história da educação, como se pode ver em Astrik Ladislas Gabriel (1956) ou em John Ellis Bourne (1960); no que se refere aos aspectos políticos de sua produção, os estudos são ainda mais recentes, datando, por exemplo, do colóquio de Montreal, em abril de 1988, cujo conjunto de comunicações foi publicado com o título: Vincent de Beauvais. Intentions et réceptions d’une oeuvre encyclopédique au Moyen Âge, em 1990. Nesse volume, destacamse os artigos de Elizabeth Brown (Vincent de Beauvais and the reditus regni francorum ad stirpem Caroli imperatoris), de Mireille Schmidt-Chazan (L’idée d’Empire dans le Speculum historiale de Vincent de Beauvais) e, principalmente de Robert J. Schneider (Vincent of Beauvais’ Opus universale de statu principis: a reconstruction of its History and Contents), que é, também, o editor de uma das mais recentes publicações críticas da maior obra política de Vicente, o De morali principis institutione. (SCHNEIDER, 1995)1 Muito mais recentemente ainda, encontra-se a obra de Javier Vergara (La educación política en la Edad Media: el Tractatus de morali principis institutione de Vicente de Beauvais, una apuesta prehumanista de la politica), publicado em 2010. A relativa juventude dos estudos sobre Vicente de Beauvais contrasta com o já tradicional interesse pelos estudos monárquicos no âmbito da história do pensamento político e das instituições medievais. Ora, é justamente no domínio de uma certa tendência teleológica de se estudar a política e as instituições políticas, que predomina desde o século XIX, que a obra de Vicente de Beauvais parece ter algo a dizer. Em que pesem as muitas abordagens e métodos utilizados pelos estudiosos das instituições políticas, os trabalhos sobre as monarquias ditas medievais geralmente foram feitos tendo em vista a monarquia do Estado absolutista e, como parte de uma leitura teleológica, os críticos olharam para a 1 Para este artigo, utilizei a edição crítica estabelecida por Carmen de Acuña (2008) e publicada na Biblioteca de Autores Cristianos de Madri.

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Baixa Idade Média a fim de encontrar ali as raízes do absolutismo monárquico que marcou boa parte da história dos Estados europeus a partir do séc. XV. Tal maneira de interpretar pode ser vista, por exemplo, nas obras de José Antonio Maravall (1986) Adeline Rucquoi (1987), Jacques Le Goff (1996) e Jean-Philippe Genet (1998); este último autor, aliás, publicou, em 2003, a La genèse de l’État moderne, que teria começado, justamente, no século XIII. Genet inicia seu livro evocando o que ele chamou de “o primado da guerra”, uma vez que, segundo ele, o Estado moderno procede do feudalismo, sistema político-social movido pela guerra: assim, para organizar as batalhas, os reis precisavam do apoio de seus vassalos que, reunidos em assembleia junto de seu rei, permitiram a emergência de um novo tipo de Estado. Sem querer invalidar os trabalhos aqui apontados, minha abordagem pretende ser um pouco diferente; não é minha intenção procurar as origens do Estado moderno, nem mesmo as origens da monarquia medieval. Espero discutir alguns aspectos do pensamento político do frade dominicano Vicente de Beauvais, que lidou de perto com a prática do poder monárquico na corte de Luís IX, rei de França. A inspiração para estas reflexões veio da metodologia e das discussões de Yves Sassier (2002), que, ao estudar a “realeza e a ideologia na Idade Média”, preferiu interpretar o pensamento político medieval a partir de sua relação com os referenciais políticos da Antiguidade Tardia, ou o Baixo Império, como ele chama o período. Segundo Sassier, o conteúdo das ideias políticas dos autores medievais não prenuncia aquelas do Estado dito moderno, mas, ao contrário, aponta para as convicções político-religiosas do Israel bíblico e do Império romano: assim, ao invés de olhar para a frente, o futuro do Estado, Sassier convida a olhar para trás, para o passado greco-romano e judaico-cristão porque constituem os marcos incontornáveis do exercício do poder durante o período medieval. Em se tratando do século XIII, a questão é bastante delicada e talvez por isso Sassier tenha circunscrito seu trabalho até o século XII. Ora, por várias razões, o século de Vicente de Beauvais pode ser tomado como momento importante de inflexão do pensamento e da história política: por um lado, temos a recém-fundada universidade de Paris e o desenvolvimento e consolidação do método escolástico, cujos mestres também foram autores de obras políticas de grande envergadura, como a Eruditio regum et principum (1259), de Gilberto de Tournai, sucessor de Boaventura de Bagnoregio na cátedra de teologia de Paris, o De regno (c.1266), de Tomás de Aquino, o De regimine principum (c.1280), de Egídio de Roma e o De morali principis institutione (1263), de Vicente de Beauvais; por outro lado, temos o crescimento da universidade de Bolonha e o incremento dos estudos sobre o direito, canônico e civil. É no século XIII que também vários reinos se afirmam a partir de um cariz nacional e seus reis, a despeito do imperador romano-germânico, reivindicam o poder exclusivo dentro de seus reinos (rex imperator in regno suo), levando a uma primeira reflexão sobre a noção de soberania: também nesse campo os autores como Gilberto de Tournai, Vicente de Beauvais e Tomás de Aquino deram forte contribuição, como o caso particular da obra vicentina nos serve de indício.

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No campo da teologia, da filosofia e do direito, houve um visível aumento de interesse pela reflexão sobre a função dos reis, sobre os critérios de governo, sobre a realidade do reino, suas instituições e sua natureza. A motivação pode ter tido várias causas, mas, dentre elas, há que se destacar o peso que as traduções das obras políticas de Aristóteles, iniciadas por Guilherme de Moerbecke, em 1260, exerceram sobre os leitores da língua latina, marcando assim outra inflexão de relevo no campo das indagações políticas. Os comentários escolásticos à obra de Aristóteles provocaram um profundo abalo no pensamento político cristão sobretudo porque, a partir da base conceitual aristotélica, tornou-se possível pensar o poder temporal como autônomo em relação ao poder espiritual e assim foi possível atribuir legitimidade própria à ciência política (scientia civilis). O caminho aberto pela redescoberta da política aristotélica e pelo pressuposto de que o poder de governar dado aos reis não vem da Igreja, mas diretamente de Deus, inspirou a Monarquia de Dante Alighieri e o Brevilóquio sobre o principado tirânico, de Guilherme de Ockham; mas são obras do século XIV e talvez por isso os historiadores acima citados tenham estudado a instituição monárquica medieval como origem do absolutismo moderno. Vicente de Beauvais não foi tão longe. Para ele, a matéria política constituía sim uma ciência civil mas, apesar de conhecer a obra de Aristóteles, concebeu o poder e o governo dos reinos segundo outras bases teóricas, como espero mostrar neste texto. O pensamento político vicentino é devedor daquela característica comum que, de certa forma, aproximava as mais diversas interpretações sobre a política, como a platônica e ciceroniana, e os mais variados regimes de governo, como os reinos federados, o império romanogermânico, as monarquias ditas feudais, o reino papal, as repúblicas urbanas, as cidades comunais, os principados. Refiro-me à fé cristã e à instituição que lhe sustenta, a Igreja. No que se refere à fé e à Igreja, devemos lembrar que não lidamos com um monolito estanque: aquilo que os primeiros cristãos chamavam de depositum fidei contou historicamente com um largo processo de revelação em que a gradativa inteligibilidade do mistério deu origem à história dos dogmas e que, de alguma maneira, sincronizava o passado e o presente, ou seja, a ecclesia cristã primitiva e a societas christiana ou a res publica christianorum, do século XIII. Correndo o risco de parecer superficial e evasivo, insisto em dizer que os reinos, a começar pelo Império romano, no século IV, quando aceitaram a fé cristã e permitiram a influência da Igreja, começaram a agir politicamente segundo os pressupostos do depositum fidei, o que provocou uma considerável mudança de perspectiva nos modos de se conceber a vida social e a natureza da própria sociedade. De todas as mudanças de paradigma que ocorreram ao longo dos cinco primeiros séculos, vou destacar apenas uma: por mais divinizado que o Império romano pudesse ter sido, por mais que ele se considerasse protegido pelos deuses, acreditava-se que sua própria existência e realidade eram estruturas autossuficientes e autônomas, formando uma realidade absoluta; disso nasceu a visão civilizatória que levou os romanos a acreditar que ocupavam o ponto mais elevado na escala de perfeição política e cultural. 28

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A adoção do cristianismo lentamente minou as bases desse sistema; autores como Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona apresentam uma concepção da civitas romana ou dos reinos ditos bárbaros como expressões provisórias ou temporais da vida social de homens que eram, no fundo, peregrinos e estrangeiros, não mais cidadãos no sentido estrito: enquanto o antigo Império romano baseava-se na tradicional noção republicana de cidadania, o novo Império romano cristão, nascido da conversão de Constantino e Teodósio, precisou admitir a recente noção bíblica de paroikia, ou, em latim, peregrinatio: em outras palavras, aquilo que para os antigos romanos significava a vida fora da civitas [a peregrinatio] e, portanto, longe de uma comunidade de direitos, tornou-se contraditoriamente a única – ou a mais patente – condição de vida política: os reinos inevitavelmente se tornaram estruturas relativas. A relatividade das instituições humanas favoreceu a projeção de paradigmas extratemporais sobre as realidades históricas esvaziando de sentido implícito as comunidades políticas; doravante, o reino de Deus passou a ser a medida dos reinos dos homens; os vínculos sociais prescindiram do sangue, da cultura, da etnia, da nação, da língua e reivindicaram a identidade da fé. Os reinos deixaram de representar o ponto máximo da organização da vida humana para se tornar uma condição para que a vida humana alcançasse o máximo de sua existência num plano extraterreno, no além: daí falarmos que a política, na Idade Média, possuía um forte cariz escatológico. Pensando em termos de política romana, o cristianismo esvaziou o significado do poder público, do governo e das prerrogativas da administração dos reinos; talvez por isso, sobretudo a partir do século XVIII, os filósofos oriundos da burguesia refutaram o sistema político cristão, considerando-o uma aberração completa; mas pensando em termos de política cristã, o cristianismo deu novo significado ao poder, às relações sociais e ao governo: a chave da equação é que foi mudada, pois a vida política foi posposta à vida da alma, a qual deveria presidir toda a existência humana. Se isso estiver correto, temos um indício de resposta sobre por que os pensadores do medievo compuseram tão poucos tratados propriamente políticos e muitos tratados ascéticos. Na grande maioria dos casos, a reflexão política medieval, exceção seja feita aos séculos XIII em diante, aparece indiretamente em obras de cunho historiográfico, pastoral e teológico: em uma Vida de santo, em um sermão, em uma crônica, em um tratado dogmático. Para boa parte dos historiadores contemporâneos, influenciados pelo liberalismo iluminista, política é a modalidade principal de existência humana, é o jeito específico que os homens têm de interagir entre si, de maneira ordenada. A política, como tal, comporta a definição e a atribuição de papéis sociais voltados para a ordenação da vida comunitária e esses papéis fazem referência a uma manifestação particular de convivência chamada Estado. Desse ponto de vista, a realidade do Estado constitui o locus privilegiado da vida social e, por isso, pensa-se que seja onipresente e, mais ainda, racional, isto é, explicável e inteligível por si, por suas próprias categorias, sem referência a nenhuma instância trans-

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cendental. Desde o século XVI, os politólogos falam em “razão de Estado” para designar essa existência empírica, absoluta e incontornável chamada Estado. Visto por esse ângulo, muitos eruditos afirmaram que na Idade Média não existia Estado, já que a noção genérica e territorialmente indefinida de cristandade diluiria os laços racionais do Estado. E como entre a não razão e a desrazão o caminho é curto, os eruditos começaram a ver na política medieval apenas o seu aspecto sagrado e supersticioso, o que, de certa forma, parece explícito ao notarmos que os primeiros trabalhos do século XX que se voltaram para o tema da política medieval privilegiaram os aspectos mágicos da realeza, como Os reis taumaturgos (1927), de Marc Bloch, influenciado pela antropologia de James Frazer. Mas, uma coisa é relacionar a realeza dos monarcas medievais ao poder de Deus, outra coisa é dizer que os monarcas eram dotados de um poder mágico: a visão da historiografia, nesse sentido, tendeu a frisar as supostas características folclóricas das sociedades medievais, submetendo estas sociedades aos ditames e pressupostos da razão de Estado. Penso que não deve ser sem propósito que Marc Bloch escolheu pesquisar o caráter miraculoso dos reis, que era, por assim dizer, uma crença heterodoxa, isto é, não contemplada pelos tratados políticos e teológicos do período: procurou-se estudar as concepções “germânicas” do poder monárquico, entendendo por “germânico” o contrário da cultura política romana, isto é, expressão de crenças mágicas e míticas. Quando o historiador parte desse pressuposto corre o risco de fazer uma grave acusação ao passado, mesmo que indiretamente: se os pensadores medievais diminuíram o significado autônomo do político, consequentemente despiram de racionalidade o exercício do poder e as estruturas políticas; eles, então, revestiram de magia (leia-se religião) aquilo que nada teria a ver com religião. Surge daqui a crença de que a política medieval só tinha uma expressão, a teocracia. Admitindo a premissa de que o Ocidente laico e supostamente democrático crê que as leis civis são totalmente independentes de qualquer lei religiosa, os críticos costumam associar as leis religiosas ao fanatismo e até ao terrorismo: teocracia não só perdeu referência à razão, como passou a ser uma desrazão, um absurdo em termos. Ora, Michel Senellart (2006) adverte sobre a ineficácia de se estudar história política a partir das ausências de certos conceitos e instituições num dado período e região. Fugindo de uma história da institucionalização do Estado e sua gradativa burocratização ou aparelhamento júridico e militar, Senellart tenta responder como um conceito aparentemente não político (como regimen) entrou para a linguagem política medieval e moldou as práticas políticas: no âmbito do vocabulário político medieval, a presença de regimen (traduzido por governo) nos mostra que o ato de governar precede ao Estado e que governo é um exercício político e não um órgão ou entidade; governo também não supõe um aparelho de Estado e não tem um sentido burocrático-administrativo ligado a um poder central, estabelecido por um acordo jurídico; também se pode dizer que governo não é dominação e que possui uma multiplicidade de fins, não só aqueles considerados públicos; governar é um exercício que extrapola os aspectos judiciais, contratuais e militares: 30

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no limite, não se reduz ao âmbito do poder. Governar é verbo que define relações entre pessoas, não entre pessoas e coisas, como território, estruturas de poder, órgãos públicos: os pensadores políticos da Idade Média entendiam o governo como uma arte ordenada segundo pressupostos morais, pedagógicos, espirituais e técnicos, já que governar supõe conduzir pessoas naquilo que elas têm de especificamente humano, ou seja, sua dimensão imanente e transcendente. Se partirmos dos referenciais teóricos mobilizados pelos pensadores medievais, particularmente Vicente de Beauvais, verificaremos o quanto o cristianismo, como bem explica Ernest Cassirer, em O mito do Estado (2003), reelaborou e transformou o arcabouço filosófico/político da Antiguidade, aceitando seus termos, sem aceitar suas premissas. A questão de uma teocracia é aqui assunto menor, pois trata-se de identificar o núcleo gerador de sentido não só ao discurso político propriamente dito, mas à vida social efetiva. As teorias políticas de Vicente de Beauvais, como o leitor poderá verificar, o distanciaram de seu confrade Tomás de Aquino que, no De regno, escrito pela mesma época do De morali principis institutione, deu à noção de res publica um sentido natural de convívio entre os homens, uma etapa propedêutica na procura humana pela felicidade. No entanto, esse distanciamento, além de apontar para a diversidade conceitual no seio da Ordem dominicana, nos mostra o quanto ambos os autores lidavam de maneiras diferentes com as autoridades da cultura política greco-romana, partindo das mesmas referências bíblicas. Assim, o que vemos se descortinar aos nossos olhos não é o predomínio de um dogmatismo religioso ou clerical, que teria gerado a teocracia na Idade Média; ao contrário, vemos que tais pensadores queriam encontrar a conciliação dos argumentos da razão com o depositum fidei, uma vez que, em âmbito cristão, pensar a política deixou de ser um exercício de busca por uma sociedade perfeita, como vemos na tradição platônica e, de certa forma, ciceroniana, mas a tentativa de sanear a sociedade defeituosa que se experimentava todos os dias. Todas essas questões ficarão mais elucidadas ao lançarmos um olhar mais detido nos argumentos mobilizados por Vicente de Beauvais, em seu tratado sobre a educação dos príncipes.

Vicente de Beauvais e a política É provável que os críticos e especialistas do pensamento filosófico medieval não considerem o frade dominicano Vicente de Beauvais entre aqueles que mereceriam o epíteto de filósofos;2 talvez o principal motivo desse juízo decorra da própria apresentação que Vicente faz de si, em seus livros, ao se denominar lector et compilator, isto é, um professor/ preceptor e um compilador de temas eruditos, muitos dos quais relativos ao âmbito da 2 O fato de nem mesmo Étienne Gilson, em seu A filosofia na Idade Média (1995), sequer mencionar, salvo engano, o nome de Vicente de Beauvais, é sintomático dessa negação.

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filosofia. Ora, o gosto enciclopédico e o acúmulo de referências alheias parecem ter sido levados em conta ao negar a Vicente um pensamento próprio e autêntico. Pode-se supor que a expressão compilator, usada pelo dito frade, fosse apenas um gesto de modéstia e uma declaração de humildade, já que sua vasta obra nada tem de humilde. Não se trata de afirmar ou negar o estatuto de filósofo a este pensador do século XIII, mas de superar o estereótipo e indagar dele o que pensava da política. No que tange a este aspecto, não ficaremos decepcionados: Vicente ofereceu uma importante contribuição ao pensamento político medieval ao escrever o De morali principis institutione, obra que propunha dissertar sobre a natureza e a função dos reis, a ética dos governantes e os critérios do bom governo. Como parte de uma tendência do período, esta obra nasceu de uma demanda muito precisa, qual seja, a sua nomeação como pregador e professor da corte de Luís IX, rei de França, na abadia régia de Royaumont, em 1247. A extensa e intensa convivência com os membros do séquito real, a necessidade de lidar com a educação dos príncipes e cortesãos, o mister de pregar diante dos maiorais do reino e ainda ter de aconselhar o monarca colocaram Vicente no foco da atenção do rei Luís e de sua esposa, Margarida da Provença, que lhe pediram para escrever uma obra para a educação de seus filhos, os príncipes da Francia. Na verdade, o que estava em jogo não era uma teorização da política ou uma consideração ideal da ação política, mas a proposição de atitudes muito concretas relativas ao projeto político que Vicente, na esteira dos pensadores de sua Ordem religiosa, concebia como idôneo para o reino da França e, no limite, para todo reino cristão. Ora, a proximidade entre a Ordem dominicana e a casa régia capetíngia vinha de longa data; Luís IX e seus correligionários encontraram na escola teológica dos frades Pregadores, fundada em Paris, um impressionante apoio ideológico que foi retribuído por meio de uma evidente colaboração régia na fundação de novos conventos. Se levarmos em conta que, por volta de 1260, o dominicano Tomás de Aquino escreveu o De regno ao rei de Chipre, Hugo II de Lusignan, cuja linhagem possuía estreitos vínculos com os capetíngios, e que nesse momento a ilha de Chipre contatava com quarenta e seis conventos dominicanos, enquanto todo o Oriente Médio só tinha dezoito, podemos ter uma ideia de como a aliança com a monarquia podia ser interessante para os frades de São Domingos. Parece-me certo que os dominicanos não estavam em busca de algumas vantagens econômicas; como frades Pregadores, sabiam que o ofício de pregar exigia que todos os ambientes da vida social fossem de algum modo tocados pela pregação e, no limite, transformados pela ética da penitência. A obra de Vicente de Beauvais decorre desse pressuposto que ele declara no prólogo do De morali principis institutione: ele esperava educar os reis, mas também oferecer a seus confrades de Ordem um conteúdo abalizado para lidarem com os poderes terrenos segundo a lógica ascética que possuíam. Com relação a isso, acredito que os frades dominicanos não se diferenciavam muito de seus colegas franciscanos que, seja na universidade de Paris, como professores, ou nas cortes régias, como preceptores e conselheiros, ou nas cidades comunais, como pregadores e pacificadores, souberam forjar uma linguagem política que conciliou os “instrumentos comunicativos, 32

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as tipologias textuais, oratórias e conceituais bastante variadas e conectadas entre si” (EVANGELISTI, 2002, p. 315) para propor, no âmbito da política, uma resposta satisfatória aos apelos da pregação que constituía a natureza mesma das duas Ordens mendicantes. Esses religiosos, aproveitando-se ao máximo do patrimônio de conhecimento que as recém-fundadas universidades custodiavam, foram os principais artífices da tradução, no plano teórico e prático, do sentido antigo de civitas para o sentido cristão, (ARTIFONI, 1994, p. 159) oferecendo às instituições medievais e, hoje, à história do pensamento político, um vocabulário bastante desenvolvido e denso que nos ajuda a entender a política no séc. XIII. Nesse processo de tradução cultural, alguns conceitos foram particularmente evidenciados, como o de justiça, lei natural, governo; outros surgiram de uma secular convivência entre a res publica romana e a ecclesia cristã, como o governo pastoral e o voluntarismo político. Observemos essas questões mais de perto.

Vicente de Beauvais e a realeza cristã: uma análise dos capítulos V e VI do ‘De morali principis institutione’ Vicente de Beauvais começa seu tratado partindo da negatividade da política e, por extensão de sentido, da vida social. A república é negativa na medida em que ela é consequência de um desvio de conduta que aconteceu logo que os primeiros homens foram criados por Deus e que pôs fim à igualdade natural dos homens. Por amarem aquilo que não lhes pertencia, os primeiros pais subverteram sua condição e, iguais que eram, tornaram-se rivais porque passaram a disputar o poder. A monarquia, portanto, foi inaugurada quando os homens foram tomados pela ambição de dominar (ambitio potestatis), o que coincide com a perversão da vida social ou o fim do tempo em que a natureza estava em seus eixos e os homens eram iguais. Em sentido cristão, a história da queda prefigura, ao inverso, a história do reerguimento ou da salvação. A monarquia, como todo poder terreno, não conhece origens positivas, mas a providência a adaptou como forma temporária de ajudar os homens no estágio da vida histórica. Os reis existem como instrumentos de Deus para distribuir a justiça e para impedir que a ambição de dominar impossibilite o convívio dos homens. No capítulo V, Vicente tenta resolver a seguinte questão: se Deus é a fonte de todo o poder e Deus é bom, como pode haver governadores maus? Como se pode observar, o Pregador está diante de uma possível incoerência do sistema explicativo cristão e seu papel é dirimir, justamente, qualquer possível ocasião de incoerência. Para tanto, ele dá duas respostas: a primeira se refere ao caráter pessoal do governante: o príncipe é homem e, como homem descende de Adão, o que faz com que ele tenha um defeito congênito na vontade da alma: esta é depravada e é a vontade depravada que quer as coisas ruins e erradas. O poder, em si, pode ser bom, mas se o governante tiver uma vontade ambígua, será um mau governante.

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A segunda resposta depende da primeira, e se refere ao caráter coletivo do reino: não é só o governante que pode ter uma vontade má e perversa, mas também o seu povo; como o sentido coletivo depende da natureza individual de cada pessoa, concebida como um membro de um corpo, membros ruins provocam a ruína de todo o corpo social. Eis o resultado da aplicação da metáfora organicista de sociedade: a cabeça pode ser boa, mas se os braços ou pernas ou rins ou fígado forem ruins, também a cabeça sofrerá a consequência das doenças. Assim, homens bons podem se tornar maus governantes; eles podem ficar piores quando se tornam reis de homens maus; donde o ditado greco-romano e judeu-cristão de que o povo tem o governante que merece. Ora, esse raciocínio já havia aparecido antes, quando Vicente explicava por que os homens, iguais por natureza, ficaram desiguais depois do pecado: há uma ordem no mérito (os melhores governam os piores) e uma ordem no demérito (os piores acabam piorando os melhores): o mérito supõe a recompensa, o demérito, a punição. No fundo, a questão continua sendo a do pecado original: internamente desordenados, os homens fazem o mundo todo se desordenar, inclusive os reinos; Vicente já prepara, no capítulo V, a continuação da resposta dada no capítulo VI: Deus só pode dar coisas boas, mas há pessoas que merecem receber o mal; então, é preciso que haja um intermediário entre o Bem e o mal para dar a cada um o que lhe é devido. Assim, o mau governante é a forma que a providência divina encontrou para castigar os maus. Neste ponto, Vicente se vale de uma longa citação de Santo Agostinho (De diversis quaestionibus octoginta tribus liber unus), da qual destaco a seguinte passagem: “Lex naturalis transcripta est in animam rationalem” (“a lei natural foi transcrita na alma racional”), na qual “alma racional” é sinônimo do próprio gênero humano. Em termos agostinianos, a lei natural é a lei que não depende de nenhum legislador humano, que não foi feita por assembleias constituintes e, por isso, não está escrita em livro algum; está escrita na natureza, isto é, na criação, porque seu autor é Deus e Deus se dá a conhecer pela sua criação; esta lei natural é acessível aos homens porque ela está inscrita nas consciências; em outras palavras, todo homem, pelo fato de ser homem, é capaz de distinguir o bem do mal mesmo que seja um analfabeto e mesmo que viva isolado. É no Comentário ao salmo 57 que Agostinho destrincha a questão: é lei natural aquilo que se diz: “não faças ao outro aquilo que não queres que te façam”; segundo Agostinho, este preceito já era verdadeiro muito antes de ser escrito na bíblia; e por que precisou ser escrito? Porque os homens deixaram de ouvir a própria consciência. Por quê? Porque, depois do pecado, o homem exteriorizou-se, fugiu de si mesmo; Agostinho escreve no comentário ao salmo: “não digo que não estivesse escrita nos corações, mas tu eras um fugitivo de teu próprio coração”. Dito de outro modo, o homem que não ouve a voz de sua consciência erra; e ao errar torna-se merecedor de castigo porque Deus dá a cada um o que merecem suas obras: está aqui a justificativa proposta por Vicente de Beauvais para explicar a maldade de certos reis.

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Toda essa argumentação sobre a função teológica do mau governante permite que, à contra-luz e como num espelho, possamos vislumbrar os traços do bom governante: no entendimento vicentino, o bom governante é aquele que faculta ao súdito ouvir a voz da própria consciência, isto é, respeitar a lei natural, a fim de agir corretamente. Ora, levar o súdito a ouvir a consciência não era propriamente um atributo régio, muito menos político, que não lida com a dimensão interior dos cidadãos, mas com os mecanismos da sociabilidade: tal procedimento, portanto, não é originário da experiência histórica greco-romana, mas do Israel bíblico que invocava um Deus-pastor e, de bom ou mau grado, atribuía aos reis uma espécie de pastorado. A dinâmica ascética cristã, sobretudo em contexto monástico, maximizou a compreensão de governo, enquanto governo pastoral, pois tratava-se de ajudar a alma-ovelha a encontrar a melhor pastagem, isto é, o estilo de vida mais conveniente à sua condição: o abade, como líder de um rebanho de monges, ou então o bispo, como líder de uma comunidade de cristãos, dirigia a consciência ou a interioridade de seus filhos espirituais, normatizando seus afetos e suas ações em âmbito comunitário. A transposição da compreensão monástica de governo das almas para o governo dos súditos não demorou muito e já vemos delineadas as referências mestras em obras como as de Gregório Magno, Isidoro de Sevilha, Jonas de Órleans, Bernardo de Claraval, João de Salisbury, Vicente de Beauvais, entre outros. Desse ponto de vista, o bom governante é o rei-pastor. Michel Foucault (2003) e Michel Senellart (2006) mostram que o governo pastoral se exerce sobre pessoas, não sobre coisas, como território ou instituições; é nesse sentido que Vicente de Beauvais confirma os pressupostos do pastorado régio: tanto o bom quanto o mau rei exercem seu ofício sobre pessoas! No sentido individual e coletivo. É aqui que a autoridade de Agostinho retorna, pela evocação do Livro das Oitenta e três questões (De diversis quaestionibus octoginta tribus liber unus): Agostinho discorre sobre alguém que faz um pacto de paz com seu inimigo e depois descumpre o pacto; ele enganou e, portanto, merece ser enganado; quem vai enganá-lo? Deus? Não, Deus é incapaz de enganar. Um homem justo? Não, o homem justo não volta atrás do que disse. É preciso que haja um homem traidor, um mentiroso, um homem escravo de suas paixões, internamente desordenado que já não saiba mais distinguir o bem do mal. Esse homem será como o carrasco que executa a sentença de morte que ninguém quer executar, apesar de a condenação ter sido justa. Vicente de Beauvais se apropria da citação de Agostinho, que nada tem a ver com a questão dos maus reis, e a transpõe para a análise da realeza; os maus reis existem para castigar os homens maus. O capítulo VI tem também um grande problema para resolver: se os reis maus são instrumentos de Deus para fazer justiça, merecem eles a recompensa? A questão é séria, pois Vicente afirmara que cada um recebe aquilo que merece. Nesse caso, Vicente precisou estabelecer uma diferença entre intenção [intentio] e ação [actio]: a ação pode ser meritória, mas se foi feita com má intenção, aquele que agiu mal perde completamente seu mérito; Vicente toma o exemplo bíblico do rei Senaquerib que, aliás, é uma história complicada.

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Segundo o capítulo dez do Livro de Isaías, Deus usou Senaquerib, rei da Assíria, como uma vara ou bastão para castigar o povo de Israel que se afastara da justiça (opressão de órfãos e viúvas, confisco de bens dos fracos e pobres, etc.): esta foi a interpretação do profeta; na verdade, Senaquerib não tinha a menor ideia da vontade do Deus de Israel; ele invadiu o país por volta de 701 a.C. para dominá-lo e saqueá-lo; não o fez para obedecer a Deus, mas para satisfazer sua ganância; nesse caso, a intenção de Senaquerib era dominar, sua ação foi destruir, portanto, houve uma má intenção e uma má ação; por isso ele merece o castigo (enquanto executor de má ação com má intenção). Ora, aqui reside um ponto complicado da filosofia judaico-cristã da história: há uma providência que tudo conhece e tudo sabe, mas essa mesma providência também concedeu a cada homem o livre arbítrio, pelo qual o querer divino não anula o querer humano; enquanto detentor de livre arbítrio, Senaquerib agiu mal e pagou por isso, mas Deus, enquanto providência, usou o rei como um vara: a vara não sabe o que pensa o seu manipulador e, por isso, apesar de imperfeita, a vara pode ser usada de maneira perfeita. Além disso, Senaquerib, Nabucodonosor ou o faraó do Egito, que foram reis opressores de Israel, só foram reis por causa da vontade divina, fazendo valer a autoridade evangélica que afirmava que “não há poder que não tenha vindo de Deus”. Se a fonte do poder é boa, mesmo que a ação do príncipe seja má e feita com má intenção, ele pode colaborar com o projeto de Deus de salvar os seus eleitos. Esse projeto divino de salvação diz respeito a cada homem, em particular, e a todos, coletivamente (omnes et singulatim, como encontramos no texto de Michel Foucault): Deus cuida de um homem chamado José do mesmo jeito que cuida de Jerusalém e que cuida de Israel e que cuida do Oriente, da Ásia, do mundo inteiro; se ele perdoa os pecados de um pecador, perdoa também os pecados da cidade, do reino, do mundo; se concede um anjo da guarda a cada homem, o concede a cada cidade e a cada reino; se ele pode usar um homem como instrumento, pode usar também uma cidade e um reino para fazer o bem, ainda que esses instrumentos não saibam a intenção oculta de Deus. Assim, apesar de instâncias negativas, o reino e o rei adquirem significado positivo quando vistos sub specie aeternitatis: esse é o caminho tomado por Vicente para discorrer sobre um tema que, para ele, era tanto mais urgente quanto mais premente. Ao negar positividade às estruturas e procedimentos políticos, o frade Pregador não invalidava a participação régia ou estatal naquilo que era fundamentalmente positivo, a vida das almas. Não sem razão, escreveu ele, no capítulo IX: “de nossa parte, ao contrário, não falamos todas essas coisas para reprovar ou repreender o poder [dos reis]. Pois, como disse aquele sábio: ‘Deus não despreza os poderosos porque ele mesmo é poderoso’. Em verdade, queremos dissuadir os homens de seu apetite ou amor pelo poder”.3 Desse modo, o ministério 3 Nos autem non ideo hec omnia inculcavimus ut potestatem reprobemus aut reprehendamus. Nam, ut ait quidem sapiens: Deus potentes non abicit cum et ipse sit potens [Jó 36, 5]. Verum homines eius appetitu vel amore deterrere intendimus (…). (VICENTE DE BEAUVAIS, 2008:86)

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sobre as almas, que faz o rei se tornar um pastor, lhe reserva um posto muito superior, porque mais antigo. O poder não pode ser amado porque é terreno, e é terreno no sentido de que passou a existir na ordem terrena, isto é, na ordem temporal ou no mundo após o pecado: esse mundo irá desaparecer. Reservando ao rei um papel junto às consciências (e junto às almas), Vicente de Beauvais reafirma a tradicional sobreposição de auctoritas [autoridade] e potestas [poder]: a primeira permanece porque está ligada ao princípio fundante, Deus. O segundo é transitório porque surgiu em consequência do afastamento do princípio fundante: potestas é aquela operação coercitiva que visa ordenar a sociedade em vista da auctoritas, como Vicente expõe nos capítulos V e VI. Desse ponto de vista, a autoridade está na Igreja, o poder, no reino; a primeira é eterna, o segundo perecível; amar o poder terreno é como se apaixonar por um desenho nas nuvens. Se a autoridade está na Igreja, é ela que deve restaurar a ordem temporal, incluindo aí os males da corte, os defeitos do poder régio: a ecclesia [igreja], entendida em seu sentido espiritual e místico, é aquela sociedade em que a charitas [o amor] não sofreu a depravação da ambitio [do desejo descontrolado]; por isso, a ecclesia é a restauradora por excelência e o rei é um ministro dela. Se temos visto que Vicente é um grande agostiniano, pois para ele o fruto do pecado é a exteriorização do homem que impede que ele se veja como é, percebemos também que o dominicano acrescenta à lógica de Agostinho o tema da máscara, que encontramos em Sêneca. O homem exterior usa uma máscara para aparecer, na frente dos outros, diferente do que é; o homem interior, ao contrário, não precisa de máscara, nem de fantasia ou roupas requintadas; o homem interior, como vimos, não precisa nem mesmo das leis positivas, pois ele sempre é capaz de ouvir a voz da consciência; já o homem exterior, “é um fugitivo do próprio coração”: daí que precisa da potestas, isto é, da coerção física. A meu ver, Vicente de Beauvais vai gradativamente conferindo um novo sentido à dinâmica de fundação da res publica que, uma vez tendo sido fundada, não desaparece mais. O novo sentido é mais propriamente uma transposição, pois Vicente desencarna a res publica, da mesma forma que desencarna o rei. Em Vicente de Beauvais, o pregador e o politólogo deram-se as mãos para sustentar as práticas de governo de Luís IX, rei de França, cultuado como rei santo, defensor da cristandade latina, inclusive no Oriente. O discurso do frade, além de isentar a bíblia de contradições, procurava justificar e legitimar os maus reis da dinastia merovíngia e carolíngia, de cuja linhagem Vicente acredita que vieram os reis capetíngios, como Luís IX. Podemos também dizer que Vicente justificava e legitimava as ações belicosas do rei santo, em suas muitas campanhas de cruzada. Não à toa, Vicente recorre a Graciano para dizer que o derramamento de sangue causado pelas guerras, quando é diretamente um mandato divino e quando claramente se faz para cumprir a justiça divina é uma ação sem culpa. Enfim, a obra política de Vicente de Beauvais se insere naquela perspectiva ética antiga, ressignificada pela tradição cristã e, no século XIII, novamente interpretada tendo em vista um tipo de realeza que já não aceita mais ser vista como instrumento da justiça divina e espera

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também governar segundo as conveniências e os interesses da experiência social, como podemos encontrar no Dialogus inter regem Henricum II et Abbatem Bonaevallensem, de Petro de Blois. Se é certo dizer que as premissas políticas de Vicente de Beauvais indicam um plano discursivo prestes a ser abandonado, talvez não consigamos entender por que suas obras foram intensamente lidas e copiadas sobretudo a partir do século XIV e, com a invenção da imprensa, no séc. XV, receberam ainda mais divulgação e notoriedade.

Bibliografia ARTIFONI, Enrico. “Retorica e organizzazione del linguaggio politico nel duecento italiano”. In: CAMMAROSSANO, Paolo (org.). Le forme della propaganda politica nel due e trecento. Roma: École Française de Rome, 1994. p. 157-182. BOUGEAT, J.-B. Études sur Vincent de Beauvais, théologien, philosophe, encyclopédiste. Paris: A. Durand Librairie, 1856. BOURNE, John Ellis. The educational thought of Vincent of Beauvais. Harvard University Press, 1960. CASSIRER, Ernest. O mito do Estado. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Códex, 2003. EVANGELISTI, Paolo. “I pauperes Christi e i linguaggi dominativi. I francescani come protagonisti della costruzione della testualità politica e dell’organizzazione del consenso nel bassomedioevo (Gilbert de Tournai, Paolino da Venezia, Francesc Eiximenis)”. In: La propaganda politica nel Basso Medioevo (Atti del XXXVIII Convegno storico internazionale, Todi, 14-17 ottobre 2001). Spoleto: CISAM, 2002. p. 315-392. FOUCAULT, Michel. ‘“Omnes et singulatim’: uma crítica da Razão política”. In: DA MOTTA, Manoel Barros (org.). Michel Foucault estratégia, poder-saber. Coleção Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 355-385. GABRIEL, Astrik Ladislas. The educational ideas of Vincent of Beauvais. University of Notre Dame, 1956. GENET, Jean-Philippe. “Saint Louis: roi politique”. In: Médiévales. Vol. 34, 1998. p. 25-34. ______. La genèse de l’État moderne: culture et société politique en Angleterre. Paris: PUF, 2003. GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LE GOFF, Jacques. Saint Louis. Paris: Gallimard, 1996. MARAVALL. Estado moderno y mentalidad social. Madri: Alianza Editorial, 1986. vol. 1. PAULMIER-FOUCART, M.; LUSIGNAN, S.; NADEAU, A. (org.). Vincent de Beauvais: intentions et réceptions d’une oeuvre encyclopédique au Moyen Âge. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1990. RUCQUOI, Adeline. Génesis medieval del Estado Moderno: Castilla y Navarra (1250-1370). Valladolid: Ambito, 1987. SASSIER, Yves. Royauté et idéologie au Moyen Âge. Paris: Armand Colin, 2002.

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André L. Pereira Miatello é professor de História Medieval da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: < andremiatello@gmail.com>.

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Ockham leitor da

Política de Aristóteles

CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA*

Resumo: O artigo trata do relato feito por Guilherme de Ockham sobre a distinção, proposta na Política de Aristóteles, de três comunidades que são o ponto de partida da análise sobre as formas “temperadas” e “corrompidas” de governo (“policiae”) segundo as quais a cidade (“civitas”) pode ser governada. É também proposta uma análise que visa destacar algumas das particularidades da leitura ockhamiana deste tema. PALAVRAS-CHAVE: GUILHERME DE OCKHAM, POLÍTICA, ARISTÓTELES, CIDADE (“CIVITAS”), FORMAS DE GOVERNO (“POLICIAE”) Ockham reader of Aristotle’s Politics Abstract: This paper deals with William of Ockham’s exposition of the distinction between three “communities” which are the starting points of the analysis of the main “temperate” and “corrupted” types of government or “constitutions” (“policiae”) of the City (“civitas”) in Aristotle’s Politics. An analysis which shows more accurately some of the particularities on the Ockhamian interpretation of this subject is also proposed. KEYWORDS: WILLIAM OF OCKHAM, POLITICS, ARISTOTLE, CITY (“CIVITAS”), CONSTITUTION (“POLICIA”)

É já bastante conhecida dos estudos sobre a filosofia medieval a narrativa segundo a qual a trajetória intelectual de Guilherme de Ockham (ca. 1228-1347) acabou, levada pela somatória de uma série de acasos, cindida em duas fases bem demarcadas. A primeira selou-se dedicada à elaboração das bases de seu “nominalismo”, por meio da redação de seus trabalhos filosóficos e teológicos. A segunda foi forçosamente voltada à “polêmica” que Ockham sustentou contra o Papado, na qual foram redigidos todos os seus escritos políticos. Em comum para a história posterior, as duas fases deixaram para leitores e intérpretes da obra ockhamiana a dificuldade de bem julgar os limites e as especificidades de sua proposta. Mais particularmente no que diz respeito às obras políticas, ainda em 1974, McGrade (2002, p. 28 ss.) aponta a variedade e discrepância das leituras que propuseram caracterizar


essas obras desde como o retrato de um laicista que, por meio de suas polêmicas com o papado, “destruiu a ordem social medieval”; ou, no exato oposto, de um teólogo, antes que interessado, exasperado com questões políticas às quais se voltou apenas quando as circunstâncias o obrigaram e, ainda assim, apenas do ponto de vista de sua teologia, até como a descrição de uma figura tão multifacetada que, ao mesmo tempo em que permite enxergar seu autor como um “expoente de ideias clássicas e modernas como equidade, utilidade pública e razão de estado”, mostra-o como um “reverente defensor da tradição medieval”. É fato, porém, que é também bastante recente seja o acesso a versões mais confiáveis das obras ockhamianas, seja a própria descoberta do rol completo dessas obras. Basta lembrar que as obras filosóficas e teológicas, correspondentes à primeira fase da vida de Ockham, foram apresentadas em sua totalidade numa edição “crítica”, que se propôs distinguir obras originais de duvidosas e “espúrias”, apenas no final da década de 1980. Já os escritos políticos sequer foram ainda totalmente editados. Natural, portanto, a dificuldade de avaliar uma obra que, ainda hoje, não está completamente acessível. No que diz respeito, estreitando um pouco mais a nossa consideração, ao tema que nos propomos expor, há ainda que se julgar a melhor abordagem dos textos a serem considerados. Afinal, segundo uma leitura que até há pouco não parece ter sido contestada (proposta por Boehner, 1943, p. 466 s. e corroborada, por exemplo, em Ghisalberti, 1997, p. 2721 e Souza, 2002, p. 11 s.), o leitor deve ainda separar os escritos políticos de Ockham em ao menos dois grupos: o primeiro contendo aqueles que claramente desvelam o pensamento ockhamiano e o segundo aqueles outros que não passariam “de meras discussões do problema sem revelar a opinião pessoal do autor”. Entre esses últimos, estaria o Dialogus, o principal objeto de nossa análise, além das Oito questões sobre o poder do Papa. Dado que a descrição que caracteriza essa divisão não seja isenta de dificuldades, talvez seja proveitoso tomar como ponto de partida a descrição oferecida em Shogimen, 2007, p. 159: de um lado, há os escritos polêmicos de Ockham que contêm afirmações mais enfáticas, uma crítica direta e se pretendem uma espécie de alerta sobre o perigo potencial das posições combatidas, correspondentes ao primeiro grupo há pouco mencionado. De outro lado, estão os escritos mais sistemáticos e abrangentes, tais como o Dialogus, descrito por Shogimen como uma “discussão enciclopédica” e “impessoal do poder papal na forma de um diálogo entre Mestre e Discípulo”, ou melhor, entre professor e aluno. Restaria ver, portanto, se a diferença relatada pode acarretar qualquer dificuldade para a identificação da posição de Ockham nos textos pertencentes a esse segundo grupo, como por vezes se pretende sugerir, ou se não seria, antes, nada mais do que a simples constatação da diversidade de estilos na composição das obras analisadas. Ou seja, é preciso verificar se o

1 Na tradução apontada do texto de Ghisalberti é, porém, evidente a omissão de uma negação que dá sentido à exposição. Assim, à página 272, deve-se ler: “… Os primeiros dois [isto é, o Dialogus e as Oito questões sobre o poder do Papa] não contém uma exposição direta do pensamento do autor …”.

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caráter “impessoal” e “enciclopédico” da exposição pode nos oferecer algo mais do que a simples coleção de um amontoado de opiniões…

*** A seção do Dialogus que iremos tratar aqui é um trecho da única parte desta obra que veio a lume como resultado da edição crítica atualmente capitaneada pelo Comitê de Textos Medievais da Academia Britânica, e foi publicada apenas em 2011. Há, porém, uma tradução dessa seção para o inglês, (OCKHAM, 1995, p. 117-207) baseada numa versão prévia da edição do texto latino agora publicada. O trecho (3.1 Dial. II)2 trata dos modos de governo. O valor do texto escolhido para o presente artigo baseia-se no fato de que ele apresenta a única análise, da qual se tem conhecimento, em que Ockham se dedica mais extensamente à apresentação do texto da Política de Aristóteles, concentrada mais detidamente nos capítulos 3 a 8 do trecho indicado, mas, ainda assim, retomada em várias passagens de todo o livro II.3 Ali, a exposição do texto aristotélico é proposta como uma espécie de preparação necessária para a discussão do governo da Igreja. Aproximando da discussão dos textos bíblicos e próprios do direito canônico os princípios da filosofia aristotélica, uma apresentação geral da Política de Aristóteles aparece como necessária para o esclarecimento dos vários termos gregos (e, portanto, propositadamente colocados como “exteriores” ao debate eclesial) que vão circunstancialmente se fazendo presentes ao debate. De acordo com o relato atribuído ao discípulo, a exposição do significado dessas palavras se faz necessária especialmente porque participam da discussão pessoas que são “apenas juristas e outros que não tiveram nenhum contato com a filosofia moral”. (OCKHAM, 2011, p. 171; 3.1 Dial. II, 3) A estratégia adotada, porém, é facilmente percebida. Antes que preencher lacunas ou prestar auxílio a um eventual desconhecimento da filosofia de Aristóteles, a exposição proposta visa dar vez a uma discussão que possa pôr a claro as próprias bases segundo as quais Ockham entende tanto a filosofia aristotélica, quanto, num ajuste ainda mais amplo, mostrar em que sentido deve ser interpretado até mesmo o que é proposto de acordo com a tradição, os escritos e as leis pertinentes ao que é próprio da cultura eclesial. Dado o texto, o interesse do leitor tenta ser provocado pelo próprio modo em que a questão é apresentada. Afinal, segundo o mote proposto pelo discípulo, “dado que ele [Aristóteles] tenha tratado em vários lugares sobre essa matéria e que se repute que tenha procedido sensatamente muitas vezes, não será oferecida [por meio da exposição] uma 2 A referência remete à localização do texto independentemente da edição e/ou tradução empregada. Assim, por exemplo, “3.1 Dial. II, 4” deve ser lida: “Dialogus, Parte 3, Tratado 1, Livro II, capítulo 4”. Sempre que conveniente, apontaremos a edição latina seguindo essa indicação mais geral. 3 “Referências explícitas à Política de Aristóteles são encontradas nos capítulos 2, 6, 7, 9 10, 13, 17 e 19; e à Ética Nicomaquéia nos capítulos 1, 2, 6, 8, 13 e 20.” (Shogimen, 2007, p. 177, n. 111)

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pequena oportunidade aos estudiosos de entender quem, e de que modo, entre os católicos, deve governar aos outros, tanto no que diz respeito ao espiritual, como no que diz respeito ao temporal.” (ibidem, p. 172. O grifo é nosso) Em outras palavras, Ockham parece indicar desde o início da discussão, ao menos enquanto hipótese e ainda que pela personagem do aluno, a possibilidade da análise de vários tipos de governo para a Igreja Católica. Hipótese que acabará se convertendo numa possibilidade de fato, por meio da proposta de ao menos dois modelos, que, sob certas circunstâncias, poderiam ser intercambiados de acordo com as necessidades históricas: o pontificado (descrito como um “principado semelhante ao principado real”, ou seja, a monarquia) e o governo (sc. “principatum”) aristocrático (vide, especialmente, Ockham, 2011, p. 203-209; 3.1 Dial. II, 20. Para um resumo da posição de Ockham nesse trecho, vide Kilcullen, 1999, p. 314 s.) Além disso, a formulação apresentada aponta a oportunidade de se discutir não só o modo de governo segundo o qual os católicos devem ser regidos, mas inclusive de se pôr em xeque o próprio perfil de quem deve governá-los. Saliente-se, ainda, que, apesar da referência ao espiritual e ao temporal, trata-se aqui de uma análise exclusiva do poder Papal, sem que seja colocada em questão a importância – ou a extensão – do poder secular. A exposição de Ockham toma como ponto de partida principalmente os livros I, III e IV da Política de Aristóteles. Os assuntos tratados são basicamente dois: a formação da cidade e as principais formas de governo e suas degenerações. Exatamente porque se trata de uma exposição bastante sucinta, chamam a atenção os pontos escolhidos por Ockham para serem enfatizados. Vejamos, ainda que resumidamente, quais são eles.

1. O natural e justo. A constituição da casa e a distinção dos principados despótico, real e político Em 3.1 Dial. II, 3, (OCKHAM, 2011, p. 172 ss.) respondendo ao apelo feito pelo “discípulo”, Ockham propõe-se a fazer um apanhado (“recitabo”) do que seria a “intenção de Aristóteles segundo a opinião de alguns, embora nem todos concordem em tudo”. (ibidem, p. 172) A fórmula segundo a qual se vê proposta a exposição é conhecida de outras passagens do texto ockhamiano. Sua pretensão, porém, não é exatamente a de indicar alguma forma de descompromisso do autor com o relatado, como pode parecer à primeira vista. Tal como Ockham já teria anunciado no prólogo desse mesmo texto do Dialogus (em trecho, aliás, que daria as razões do caráter “não polêmico” segundo o qual a obra foi propositadamente elaborada), tal estratégia visaria antes fazer com que “a convicção que nasce da exposição seja devida à evidência intelectual e não à autoridade.” (vide ESTÊVÃO, 1995, p. 5 s.) As vantagens dessa estratégia já haviam sido anunciadas ainda mais explicitamente por Ockham no Prólogo de seu Comentário para a Física de Aristóteles:

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Na realidade, se bem que o Filósofo, graças ao auxílio divino, tenha descoberto muitas e grandes coisas, misturou, levado pela fraqueza humana, alguns erros com a verdade. Portanto, ninguém me atribua as concepções que eu referir, pois que não procurarei expor o meu parecer de acordo com a verdade católica, mas o que esse filósofo aprovou ou o que acho que deveria aprovar segundo seus princípios. Sem perigo espiritual, podem-se imputar ao pensamento de alguém coisas diversas e até contrárias, desde que não seja um autor da Sagrada Escritura. Nem constitui depravação um erro nessa matéria. Ao contrário, em tal interpretação cada um conserva sem risco a liberdade do juízo. (OCKHAM, 1973, p. 341. Os grifos são nossos.)

Portanto, parece óbvio que, mesmo se as opiniões apresentadas, ainda que em linhas gerais, puderem ser consideradas bastante aceites,4 há que se ponderar (aliás, como o próprio Ockham parece insistir) que não há como não ver na exposição proposta o reflexo do que venha a ser a opinião do próprio expositor. Afinal, por mais que se pretenda um relator fiel da opinião alheia, o próprio autor não escapa de confessar que seu relato contém tanto aquilo que declaradamente disse o Filósofo quanto aquilo que ele, relator, julga que Aristóteles deveria ter dito. Consequentemente, antes que uma declaração de isenção, trata-se de uma declaração de interesses: o relato não visa um ajuste daquilo que diz Aristóteles com o que é defendido pela fé católica, mas, antes, uma exposição tanto do que é dito pelo Filósofo como, quando necessário, daquilo que o relator entende que seria sua posição. Em suma, o óbvio: não há exposição sem interpretação. Mais importante que os “pontos comuns” com outros autores, portanto, é a devida avaliação da estratégia seguida por Ockham em sua exposição. Ockham inicia sua exposição do texto aristotélico lembrando que Aristóteles propõe “três comunidades nas quais alguém (ou alguns) deve (ou devem) governar [sc. “principari”] aos outros.” (OCKHAM, 2011, p. 172) Trata-se da conhecida distinção proposta por Aristóteles entre a casa, (tratada por Ockham ainda em 3.1 Dial. II, 3) a vila (3.1 Dial. II, 4) e a cidade. (3.1 Dial. II, 5) Logo de partida, Ockham aponta que a casa abarcaria ainda outras três “combinações, comunidades ou conjugações”: a relação entre o esposo e a esposa, chamada por Aristóteles de “nupcial”, a relação entre o pai e o filho, que pode ser chamada de “paterna”, mas que, no vocabulário empregado por Aristóteles seria chamada de “celmostina”, ou seja, “formativa dos filhos” (“factiva filiorum”), e, por fim, a relação entre o senhor e o escravo, chamada por Aristóteles de “despótica”. O cuidado com a apresentação exata dos vocábulos, que, aliás, já havia sido anunciado como a principal tarefa dessa exposição, dá vez à apresentação do que parece ser a base 4 Shogimen, 2007, p. 177 s., por exemplo, afirma que, em linhas gerais (“although their reasons varied”), a interpretação visada por Ockham compartilha a de vários pensadores políticos da escolástica, apontando até mesmo pontos comuns às exposições de Ockham e de Tomás de Aquino.

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de um dos principais temas do capítulo: a explicação do sentido de dominium, termo que aparece na descrição da relação existente entre o senhor (“dominus”) e o escravo.5 Logo após alcunhar a relação entre o senhor e o escravo de despótica, tal como, no mais, o faz o próprio Aristóteles, Ockham propõe uma importante observação: Aristóteles chama a terceira [combinação, entre o senhor e o escravo,] de “despótica”, isto é, senhorial [ou dominativa]; com efeito, “déspota” é o mesmo que “senhor”, e o principado despótico é o principado senhorial [“dominativo” ou “de domínio”: “principatus dominativus”]. (OCKHAM, 2011, p. 172. O grifo é nosso)

O objetivo dessa observação/paráfrase é declarado logo em seguida: a palavra “domínio” (/“senhorio”) e seus cognatos têm acepções equívocas no seu emprego na “filosofia natural e moral, bem como nas ciências legais e na fala vulgar, a qual é frequentemente empregada pelas Divinas Escrituras.” (Grifo nosso) Uma vez apontada a relação entre o termo “déspota”, oriundo do grego, e o termo “senhor” (“dominus”), Ockham defende ser importante saber que, no contexto que nos interessa, isto é, na análise política, o termo “senhor” pode ser encontrado na Política de Aristóteles em ao menos dois sentidos diversos. No primeiro deles, “senhor” não poderia ser identificado com o que Aristóteles chama de “déspota”, nem o principado no qual ele “governa” (“principatur”) seria chamado por Aristóteles de “despótico”. Nesse sentido, “senhor” é aquele que domina os sujeitados (literalmente, sujeitos) livres “não principalmente segundo o que é útil para si, mas principalmente segundo o que é útil para os súditos”. (OCKHAM, 2011, p. 172) No segundo sentido, “senhor” pode ser identificado com o que Aristóteles chama de déspota, e seu principado, com o principado despótico. Trata-se do senhor “com respeito aos sujeitados não livres, mas servos, que são posses do senhor tal como outras coisas temporais são chamadas a posse de alguém”: Tal déspota, assim como possui outras coisas em vista do que é útil para si e não do que é útil para elas, assim governa os servos principalmente em vista do que é útil para si e não principalmente em vista do que é útil para os servos (apesar de frequentemente, segundo Aristóteles, o que é conveniente para o servo o ser também para o senhor). (ibidem, p. 173)

A distinção entre os dois sentidos de domínio se mostra importante principalmente quando se constata que, na Política, o domínio é atribuído ao rei. Segundo Ockham, 5 Note-se que o termo latino “dominus” e seus cognatos podem tanto ser vertidos pelos cognatos de domínio como pelos cognatos de senhorio, em português.

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embora possa ser encontrado no texto aristotélico que o rei é o senhor daqueles que são sujeitados a ele, jamais se deve considerar que o rei seja chamado de despótico ou que o principado real seja confundido com o despótico. E se considerarmos mais atentamente o texto de Ockham, veremos que essa confusão entre o despotismo e o senhorio do rei parece poder se dar por duas razões. Uma é a equivocidade já apontada do termo “dominium” e de seus cognatos. Outra, ainda não mencionada, é a identificação que, segundo Ockham, pode ocorrer entre o principado despótico e o principado tirânico (lembre-se que a tirania, para Aristóteles, é uma degeneração da monarquia. Consequentemente, o tirano não é senão uma degeneração da figura do rei.). Ockham relata que o principado tirânico às vezes é chamado de despótico em razão de uma grande semelhança existente entre esses dois tipos de principado, mas essa identificação tomaria o principado despótico num sentido inadequado. Assim, para traçar melhor a diferença entre os dois principados, Ockham retoma a caracterização da relação de senhorio própria do principado despótico. Em sua interpretação, Aristóteles teria considerado que são servos de modo justo “tanto aqueles que carecem de razão de modo que não sabem reger a si mesmos, ainda que sejam robustos de corpo a ponto de poder se dedicar a outros (os quais, segundo Aristóteles, são ditos serem naturalmente servos), quanto aqueles que são servos segundo a lei justa, porque são aprisionados na guerra justa ou são, de algum outro modo, feitos servos de outros”. (Ockham, 2011, p. 173)

Nessa caracterização, Ockham declaradamente pretende destacar um único ponto: a característica do principado despótico é a justiça segundo a qual se dá a sujeição do servo. “Desse modo, o principado despótico, que se dá unicamente a respeito de tais servos, tanto é justo como lícito e bom”. Por outro lado, o principado tirânico caracteriza-se por ser “injusto, ilícito e mal; donde, também segundo Aristóteles, a tirania é uma péssima forma de política [sc. “pessima policia”].” (vide Ockham, ibidem, p. 173). Vistas as características do principado (/governo) despótico ou “senhorial”, Ockham passa à análise da caracterização de outro tipo de principado, próprio da relação entre pai e filhos. Trata-se do principado paterno, que governa os filhos enquanto livres, ou seja, não como servos. Aqui, a atenção de Ockham se voltará ao esclarecimento da qualificação atribuída por Aristóteles a esse tipo de principado. Com efeito, diferenciando-o do principado despótico, é facilmente constatável que Aristóteles teria, várias vezes no primeiro livro da Política, dado ao governo dos filhos “enquanto livres” o nome de principado real (isto é, régio). O problema visto por Ockham quanto a isso é o de que a relação entre pai e filhos não parece contemplar todos os aspectos que permitem a caracterização do principado real senão sob circunstâncias muito específicas. Em outras palavras, na interpretação de 46

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Ockham, o principado real parece ter um caráter diverso daquilo que é próprio ao principado paterno, “uma vez que o principado real não se dá senão a respeito da cidade ou do reino (que é maior que a cidade e no mais das vezes engloba muitas cidades)”. A princípio, esse “caráter” não parece estar baseado em nada mais que uma relação quantitativa. Apenas se diria que o pai governa os filhos regiamente quando a casa na qual se dá o principado não fizer parte de uma vila, uma cidade ou um reino, ou seja, “quando a casa não for parte de uma comunidade mais perfeita”; sendo que “perfeita” não é tomada inicialmente noutro sentido que o de “mais completa”, ou seja, em suma, maior. O exemplo dado para ilustrar tal principado é o dos governos de Adão e de Noé, que só poderiam ter sido chamados de régios enquanto eles governaram seus filhos antes destes terem constituído suas próprias casas. Ainda assim, ressalta Ockham, esse tipo de “governo”, ou, retomando mais fielmente o termo latino, “principado”, não poderia ser chamado de real se tomássemos esse último termo numa acepção estrita. Mas, ainda que, em certo sentido, falsa, Ockham aponta que não é sem motivo que o próprio Aristóteles propõe essa identificação entre o principado paterno e o real: de fato, existe uma “grande semelhança [do principado paterno] com o principado real considerado estritamente”. Ou seja, Ockham denuncia estar na base dessa confusão um jogo de definições próprio daquele que distingue definições latas de estritas. Afinal, se o principado paterno não pode ser considerado um principado real quando tomada uma acepção estrita do que venha a ser um principado real, é exatamente porque o principado paterno é muito semelhante ao principado real tomado nesta acepção estrita que costuma ocorrer a identificação entre os dois. Falta, portanto, pôr às claras a medida segundo a qual será possível aferir essa diferença. Ockham o faz propondo um segundo critério, que desta vez nada tem de quantitativo, na classificação do principado real. Segundo esse novo critério, que Ockham alega poder ser encontrado no capítulo 15 do terceiro livro da Política de Aristóteles, apenas pode ser chamado, de modo mais adequado e autêntico, de “rei” aquele que governa “a todos os livres – principalmente em razão do que é útil para os sujeitados – segundo a sua vontade, não segundo a lei”: o rei não tem de se submeter à lei.Assim, quando a casa não faz parte de uma comunidade mais perfeita, o pai governa os filhos “de acordo com o que é útil para eles”. Caracteriza esse governo o fato de que ele se dá de acordo com a vontade do próprio pai, não segundo uma lei, donde a possibilidade desse governo ser em certo sentido chamado de principado real. No entanto, e aqui segue a razão de toda a dificuldade envolvida, quando a casa faz parte de uma comunidade mais perfeita, ainda que governe os filhos “de acordo com o que é útil para eles”, nem sempre o pai poderá fazê-lo de acordo com sua própria vontade, por exemplo, impondo ao delito cometido pelos filhos o castigo que achar mais conveniente, mas terá de aceitar e seguir o que a eles for imposto por aquele que rege ou a vila, ou a cidade, ou o reino. (cf. OCKHAM, 2011, p. 174) Neste sentido, o principado paterno diz menos respeito ao principado régio que àquela primeira definição de “senhorio” (“dominium”), segundo a qual é senhor “aquele que domina os sujeitados

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livres não principalmente segundo o que é útil para si, mas principalmente segundo o que é útil para eles”. A última relação analisada é a existente entre o esposo e a esposa, na qual será proposta uma curiosa definição de natureza. Inicialmente, Ockham se preocupa em traçar a especificidade dessa relação. Em primeiro lugar, afirma que a relação entre o esposo e a esposa não pode ser caracterizada como despótica porque a esposa não é serva do esposo. Depois, acrescenta que essa relação também não pode ser caracterizada como real, tanto porque o esposo não deve governar a esposa segundo a vontade dele, mas deve fazê-lo segundo “a lei do matrimônio”, como porque o esposo “não tem tanto poder sobre a esposa quanto tem o pai sobre os filhos”. Isso observado, a descrição do que é próprio ao principado do esposo para com a esposa é dada numa sentença breve: “quando a sua casa não é parte de uma comunidade mais perfeita, o esposo então governa a esposa pelo principado político.” (vide OCKHAM, 2011, p. 174) A alusão às dificuldades de interpretação apresentadas quando da identificação do poder paterno e real não parece poder ser negligenciada aqui. Em suma, de modo semelhante àquele descrito na relação entre o principado paterno e o real, o principado do esposo para a esposa parece guardar certas características comuns às do principado político, embora não possa ser confundido com ele. A semelhança entre os dois estaria no fato de que o principado político é definido por Ockham como o principado em que os que governam “sobressaem-se, segundo a virtude e a sabedoria, aos que são sujeitados a si”, (fórmula praticamente idêntica à que propõe o melhor tipo de governo aristocrático: cf. 3.1 Dial. II, 7)6 enquanto o principado do esposo para a esposa seria definido como aquele em que “naturalmente o esposo ultrapassa a esposa segundo a sabedoria e a virtude – a não ser que algo aconteça contra a natureza, conforme Aristóteles em Política I, cap. 10,7 assim como acontece com os homens afeminados”. (OCKHAM, 2011, p. 174. O grifo é nosso.) Se, de um lado, a principal diferença entre o principado nupcial e o político não parece ir além de um dado meramente quantitativo (o principado político é relativo a mais sujeitados que o principado nupcial) unido à caracterização específica da “lei matrimonial”, por outro, chama a atenção a admissão do papel da natureza como fiadora da validade de tal principado: é ela que garante a própria justiça do principado. Estendendo essa característica para todos os tipos de principado relatados, Ockham afirma que se a natureza falhar para o governante, nenhum principado sob seu comando será naturalmente justo, seja ele nupcial, paterno ou despótico. Em contrapartida, se a natureza não

6 A caracterização da relação entre esposo e esposa como aristocrática é literalmente proposta por Aristóteles na Ética Nicomaquéia: (Aristótes, 1959, p. 413 s. [VIII, 12, 1160b 33 – 11161a 1]) “A comunidade do marido e de sua mulher parece ser de tipo aristocrático (o marido exercendo a autoridade em razão da dignidade de seu sexo, e nas matérias em que a mão de um homem deve se fazer sentir; mas os trabalhos que convêm a uma mulher, ele os abandona). Quando o marido estende sua dominação sobre todas as coisas, ele transforma a comunidade conjugal em oligarquia (dado que ele age desse modo violando aquilo que cabe a cada casal, e não em virtude de sua superioridade).” 7 Mais exatamente: cap. 12, 1259b 1-3.

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falta ao esposo, pai ou déspota, seus principados são naturais: “isto é, provenientes não da instituição humana, mas da razão natural”. (OCKHAM, ibidem. O grifo é nosso.) Também merecem atenção tanto o modo segundo o qual a natureza do homem é descrita como superior à da mulher como o exemplo que ilustra o caso do homem que possui uma natureza “falha”. Quanto ao primeiro ponto, facilmente se percebe que a leitura proposta por Ockham diverge ligeiramente do que é encontrado em certas traduções mais recentes da Política de Aristóteles. Na tradução inglesa, por exemplo, encontramos a seguinte lição, repetida, com poucas nuances, em várias outras traduções contemporâneas:8 Pois embora possa haver exceções para a ordem da natureza, o homem é, por natureza, mais apto para o comando [sc. “fitter for command”] que a mulher, assim como o mais velho e maduro é superior ao jovem e mais imaturo. (ARISTÓTELES, 1952, p. 22; 1259b 1-4. O grifo é nosso.)

Mas essa lição não parece corresponder exatamente àquela que foi tomada pelos comentários medievais, que seguem a tradução (completa) de Guilherme de Moerbeke9 – à qual, diga-se, não se sabe se Ockham teve acesso direto – que traz a seguinte versão para o trecho que acabamos de citar: Com efeito, o macho é por natureza mais preeminente que a fêmea, a não ser que se dê de outro modo contra a natureza, bem como o mais velho e perfeito o é que o mais novo e imperfeito. (ARISTÓTELES, 1872, p. 49. O grifo é nosso)

A principal diferença parece estar no fato de que “preeminente”, ou melhor, o termo latino “principalior”, empregado originalmente por Moerbeke e que tentamos traduzir por aquela palavra, abarca um campo semântico maior do que o sugerido pelas traduções lembradas.10 “Principalior” é um comparativo que remete tanto à significação de superioridade, como também aponta, pela própria raiz da palavra, uma relação com o que é 8 Por exemplo, além de Aristóteles1952, também 1984, 1985, 1993, 2008. 9 É de Moerbeke a primeira tradução da Política de Aristóteles para o latim. Ele foi responsável pela elaboração de duas versões: a primeira, incompleta, data de 1264 e contém apenas os dois primeiros livros. A segunda, completa, data de aproximadamente 1269. 10 No que diz respeito às traduções latinas imediatamente sequentes à de Moerbeke, a tradução de Leonardo Bruni, de 1437, adota nesse trecho a mesma solução da versão medieval, apesar de omitir a cláusula “por natureza” (cf. a tradução de Bruni em Alberto Magno, 1891, p. 70). Provavelmente, o primeiro a propor uma tradução do trecho em pauta mais assemelhada à encontrada nas versões contemporâneas foi Joaquim Perion, que traduziu a Política aristotélica em torno do ano de 1540. Em sua versão, vê-se uma solução perifrástica para a tradução do termo em questão: “Pois o macho é por natureza mais apto ao principado que a fêmea, …” – “Nam et mas ad prinpatum aptior est natura, quam foemina …” (Aristóteles, 1557, livro I, cap. 8. Grifo nosso.), no que é seguido, pouco depois, em 1585, por Denys Lambin: “… pois o macho é por natureza mais apto para obter o principado que a fêmea, …” – “Nam et mas ad principatum obtinendum aptior est quam foemina, natura …”. (Aristóteles, 1810, p. 400. O grifo é nosso.)

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próprio do príncipe ou soberano. Assim, na tradução latina, a relação da palavra com a ideia de comando, que parece ser a principal sugerida por traduções mais recentes,11 não é senão um dos aspectos contemplados pelo termo. Ao afirmar que “o esposo naturalmente ultrapassa [sc. “excedit”] a esposa segundo a sabedoria e a virtude”, Ockham decide interpretar a “preeminência natural” do texto aristotélico como uma superioridade no sentido intelectual e moral, sem envolver diretamente nessa consideração os aspectos relativos a uma possível “dignidade de ofício” (como sugere, por exemplo, o texto citado da Ética) ou mesmo seu caráter prático. Porém, ainda assim, ao fazer isso ele não parece afastar-se do que, de fato, era uma interpretação corrente do texto, que já havia sido proposta, por exemplo, por Alberto Magno em seu Comentário para a Política de Aristóteles (aliás, o primeiro comentário medieval dedicado a esse livro aristotélico). Comentando a passagem destacada do texto aristotélico, Alberto teria escrito: E [Aristóteles] acrescenta a razão dos governos [nupcial e paterno], ao dizer: com efeito, o macho é por natureza, isto é, naturalmente, mais preeminente que a fêmea. E uma vez que alguém pode propor a objeção de que alguma mulher é mais sábia e corajosa que o homem, prossegue com o acréscimo: a não ser que de fato se dê de outro modo contra a natureza, a saber, que o homem regrida e a mulher progrida: mas isso é contra a ordem da natureza. Com efeito, é da natureza da mulher o ter conceitos inconstantes, em razão da umidade; ora, do homem, em razão da compleição contrária, é o ter concepções firmes”. (ALBERTO MAGNO, 1891, p. 75)

Também a ilustração do caso do homem que possui uma natureza “falha” pode facilmente ser recuperada, por exemplo, no comentário de Tomás de Aquino. A respeito do mesmo trecho do texto aristotélico, Tomás escreve: Manifesta, em terceiro lugar, que os dois principados [nupcial e paterno] se deem segundo a natureza, uma vez que sempre o que é mais preeminente [sc. “principalius”] quanto à natureza, governa [sc. “principatur”], como se concluiu acima. Ora, o macho é naturalmente mais preeminente que a fêmea, a não ser que algo aconteça contra a natureza, assim como nos homens afeminados: e, semelhantemente, o pai é naturalmente mais preeminente que o filho, assim como o mais velho ao mais novo e assim como o perfeito ao 11 Em suas “notas explicativas” para o texto grego da Política de Aristóteles, Newman, 1887, p. 210, por exemplo, defende que o trecho em pauta deve ser entendido assim: “Aristóteles sustenta que embora no geral e como aquele que comanda o homem seja superior à mulher, há, contudo, tarefas que ela pode executar melhor do que ele, e isso deve ser levado em conta quando se determina a posição da esposa na casa.” (O grifo é nosso.)

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imperfeito; portanto, naturalmente o macho governa a fêmea e o pai os filhos.” (TOMÁS DE AQUINO, 1971, I, l. 10, n. 2. O grifo é nosso.)

Mas ainda que seja possível tomar as interpretações avançadas por Ockham como leituras já correntes em sua época, chama a atenção o fato de que ele tenha reduzido a interpretação da natureza a uma operação racional que independe da vontade. Excluída a vontade, a razão segue ao que é naturalmente mais perfeito em si mesmo. Como visto, a perfeição do homem consiste na sabedoria e na virtude. Sua imperfeição, na ausência delas. Nesse sentido, a imperfeição que é própria à mulher e da qual o “homem efeminado” compartilha, de acordo com essa interpretação, não é outra senão a impossibilidade de alcançar a sabedoria e a virtude. Reduzidas as diferenças desse modo, Ockham tira proveito de algo que aparece no texto de Alberto como uma hipótese aparentemente absurda e sequer é mencionado por Tomás: a possibilidade de se considerar uma mulher mais sábia que um homem sem que isso tenha de ser visto, como sugere Alberto, como algo contrário à natureza, ou, até mesmo, sem que isso tenha de ser considerado como relacionado apenas àquilo que pretensamente “convém à mulher”, como sugere o texto da própria Ética Nicomaquéia. Essa possibilidade aparece noutra seção de seu Dialogus, como pode ser visto aqui: Discípulo: […] diga brevemente por que se diz que as mulheres não devem absolutamente ser excluídas, contra a vontade delas, do concílio geral. Mestre: Diga-se que isso se dá em razão da unidade da fé dos homens e das mulheres, que diz respeito a todos e na qual não há macho e fêmea, assim como conforme o Apóstolo na Epístola aos Gálatas, cap. 3 [vers. 28], no novo homem ‘não há macho e fêmea’. Por isso, quando a sabedoria, a bondade ou a potência da mulher for necessária para a discussão da fé, que é maximamente discutida no concílio geral, cumpriria não excluir a mulher do concílio geral. (OCKHAM, 2012, p. 12; 1 Dial. VI, 85)

Portanto, dado o que é ensinado pela fé cristã, a mulher (cristã) pode desde já ser considerada, se não mais, ao menos tão sábia e virtuosa quanto o homem, podendo também ela sobressair-se em matéria de “sabedoria, santidade, potência e virtude”. (vide OCKHAM, ibidem, p. 51; 1 Dial. VI, 94) Voltando à exposição do texto aristotélico, parece interessante destacar que, postas as coisas deste modo, a principal tese defendida por Ockham nessa primeira aproximação da Política de Aristóteles não é senão a de que o fundamento que confere justiça ao poder exercido pelo governante na Política não é outro que a excelência ou maior perfeição intelectual e moral daquele que governa. Sem esta excelência, ainda que preenchendo a todos os outros requisitos mencionados, o governo, seja ele despótico, paterno ou nupcial, seria em si mesmo injusto.

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Ockham encerra esta primeira parte da discussão apontando que os modos de governo considerados dizem respeito ao governo da casa, isto é, à “economia”, no sentido em que o termo é empregado por Aristóteles. A observação, mais uma vez, se deve a um uso diverso do termo por parte do vocabulário eclesial: no direito canônico, “ecônomo” é aquele que cuida do governo eclesiástico, administrando as coisas que dizem respeito aos “cânones”, também chamado de “preposto”. Mais uma vez, é notável que a importância da distinção esteja na proposta de se evitar uma possível confusão que poderia surgir da ignorância da diferença de relações pressupostas entre governantes e governados nos dois casos, divergência que ilustra mais uma vez que embora o discurso eclesiástico (isto é, dos “juristas”, do “direito canônico”) e o aristotélico possam convergir no que diz respeito aos termos empregados, são frequentemente diversos em seus significados.

2. O “sensato” e a “ordem” como conceitos fundamentais. A definição de vila e de cidade: Em 3.1 Dial. II, 4 Ockham se ocupa, num capítulo bem curto, do segundo tipo de comunidade mencionado por Aristóteles na Política, que é a vila. Mais uma vez, é o conceito de perfeição entendida como quantidade o critério tomado por Ockham para caracterizar a distinção da vila seja com relação a casa, seja com relação à própria cidade. A vila é mais perfeita que a casa “porque é composta de muitas casas como se de partes”. Mas, seguindo o mesmo critério quantitativo, ainda que pela via oposta, a vila não pode ser considerada tão perfeita quanto a cidade ou uma comunidade ainda superior “que compreenda muitas vilas, circunvizinhanças ou cidades”. (OCKHAM, 2011, p. 175) No entanto, o ponto principal ao qual Ockham mais dedica sua atenção nesse capítulo é a descrição do melhor tipo de governo para a vila. E a inflexão da descrição gira em torno do que é apresentado como mais “racional/razoável” ou “sensato”: “racionabile”. Segundo Ockham, quando a vila compõe-se de descendentes de um parente comum ainda vivo (sc. “processit ex uno parente superstite”), é sensato que seja regida por ele segundo a vontade, não segundo a lei no que diz respeito àqueles que descendem dele, se a natureza nele não falha, tal como os filhos são regidos pelo pai. Quanto às esposas das quais não é parente, é sensato que governe politicamente, porque a razão exige que conserve a lei do matrimônio, segundo a qual o esposo e a esposa são julgados muitas vezes como iguais. No entanto, se a multidão das casas da vila não descende de um parente comum, é sensato que seja governada por algum regime semelhante àquele pelo qual a cidade é governada. (OCKHAM, 2011, p. 175. O grifo é nosso.)

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Em suma, vê-se que, nessa descrição, Ockham insiste claramente na valorização de uma forma monárquica de governo: sempre que possível, o governo segundo a vontade deve ser preferido ao governo segundo qualquer lei. Também parece interessante o fato de que essa preferência deve ser buscada mesmo sendo óbvio que, na vila, esse governo segundo a vontade jamais poderá ser aplicado a todos os seus habitantes. Afinal, note-se que o governo do “patriarca” apenas pode ser realizado desse modo para aqueles que são seus descendentes. Donde se destacar uma importante nuança a reger esse critério de preferência e que depois será valiosa inclusive para mostrar que o governo monárquico, embora preferido, não se constitui numa escolha irrevogável nem incontornável; (cf. 3.1 Dial. II, 19; OCKHAM, 2011, p. 203, especialmente.) a saber, o sensato ou razoável. Note-se que quando a comunidade pode ser regida pelo parente do qual todos descendem, tomá-lo como regente é uma escolha sensata por duas razões: porque ele pode regê-los segundo sua vontade “no que diz respeito àqueles que descendem dele” e pelo fato de que se supõe que esse governante governe com “sabedoria e virtude”: se a natureza nele não falha. Quando a natureza falha, isto é, quando esse possível governante não é mais sábio e virtuoso que aqueles que a ele estão sujeitos, o mais sensato, ainda que menos desejável “por si”, então, não pode ser senão adotar o mesmo tipo de governo mais adequado àqueles que não têm nenhum parentesco comum, ou seja, “algum regime semelhante àquele pelo qual a cidade é governada”. A cidade, tema de 3.1 Dial. II, 4, (OCKHAM 2011, p. 175 s.) é assim definida por Ockham: A terceira comunidade, composta de várias vilas, é chamada ‘cidade’, dita por Aristóteles, em Política I [1, 1252a 5], ser preeminentíssima [sc. “principalissimam”] entre todas as comunidades. (OCKHAM, ibidem, p. 175)

No texto citado da Política, segundo a tradução de Moerbeke,12 Aristóteles põe a preeminência da cidade ligada à preeminência do bem. Segundo os comentários de Alberto Magno e de Tomás de Aquino para este trecho, fica claro, porém, que nem a máxima preeminência da cidade é derivada dessa preeminência do bem, nem se dá o contrário. O nexo entre a cidade e o bem superlativamente preeminentes se dá em razão da própria preeminência de ambos. Tomás de Aquino, por exemplo, assim explica essa relação:

12 Aristóteles, 1872, p. 1 [I, 1, 1252a 1-7]: “Dado que vemos toda cidade existindo como certa comunidade e toda comunidade instituída para algum bem (com efeito, vê-se que em virtude do bem dela, todos fazem tudo), é manifesto que todos presumem algum bem; ora, maximamente o preeminentíssimo de todos a maximamente preeminente de todas e que abarca a todas as outras. Ora, essa é a que é chamada de cidade e de participação [communicatio] política.” – “Quoniam omnem civitatem videmus communitatem quandam existentem et omnem communitatem boni alicuius gratia institutam (eius enim quod videtur boni gratia omnia operantur omnes), manifestum quod omnes quidem bonum aliquod coniecturant, maxime autem principalissimi omnium omnium maxime principalis et omnes alias circumplectens, haec autem est quae vocatur civitas et communicatio politica”.

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Depois, quando diz ora, maximamente, mostra que aquele bem para o qual a cidade está ordenada é preeminentíssimo entre todos os bens humanos, por tal razão: se toda comunidade está ordenada para o bem, é necessário que aquela comunidade que é maximamente preeminente, seja maximamente conectiva do bem que, entre todos os bens humanos, é preeminentíssimo. […] Ora, é manifesto que a cidade inclui todas as outras comunidades, pois tanto a casa como a vila estão compreendidas sob a cidade. É assim que a própria comunidade política é a comunidade preeminentíssima. […]. (TOMÁS, 1971, I, l. 1, n. 3)

Ou seja, a cidade apenas pode ser considerada preeminentíssima porque é a mais ampla de todas as comunidades. A explicação, no que toca a essa tese principal, é a mesma de Alberto Magno. Ockham, no entanto, nem faz inicialmente qualquer referência à ligação entre a cidade e o bem nem parece ancorar a explicação da preeminência máxima da cidade em sua amplitude quando comparada a outras comunidades. Sua explicação do emprego desse superlativo como a principal marca da distinção entre a cidade e outros tipos de comunidades se dá do seguinte modo: O que se diz [a saber, que a cidade é “a mais preeminente entre todas as comunidades”] tem a verdade a respeito da comunidade dos que habitam juntos, não a respeito da comunidade dos que habitam em lugares distantes e em várias cidades, a qual é reino ou ducado, cada um dos quais pode ser chamado ‘comunidade’ porque diz respeito àqueles que juntos têm muitos em comum e são regidos por um governante; e muito do que é dito sobre a cidade deve ser proporcionalmente entendido sobre o reino e qualquer comunidade que circunscreva várias cidades. (OCKHAM, 2011, p. 175)

Assim, ainda que muitas das características próprias da cidade possam ser atribuídas ao reino ou ao ducado, a (mais ampla) preeminência que é a distintiva da cidade se dá graças ao fato de seus habitantes viverem em conjunto num mesmo lugar. É importante notar que será a essa característica própria da cidade (e não do reino ou do ducado) que Ockham associará a ordenação relativa ao regime político (sc. “policia”) adotado pela cidade: “a cidade é a multidão dos cidadãos que habitam a cidade; a organização deles é chamada de ‘policia’ [sc. “regime político”].”. A ordem é a característica fundamental para a constituição da cidade: “sem ordem não há cidade”. Como consequência disso, Ockham sustenta que apenas poderá ser chamada de cidade aquela que possuir “um governante ou governantes e sujeitados”. E assim como se sugere que possa haver mais de um tipo

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de organização no que diz respeito ao governo escolhido, Ockham destaca que na cidade mais perfeita também há diversidade entre súditos/sujeitados: com efeito, alguns são súditos enquanto servos ou assalariados, ou ainda banausi. (Ora, são chamados de ‘banausi’ aqueles que, trabalhando manualmente ou corporalmente, maculam seu corpo com seu trabalho, e, na cidade que emprega uma policia temperada e sensata, não são propriamente cidadãos.). Outros são súditos na cidade de modo que participam de algum modo do governo, pois, embora não governem, atingem de algum modo o governo, pois são chamados para o juízo e a deliberação ou elegem o governante ou mesmo os eleitores do governante. (ibidem, p. 175 s.)

Desse modo, a ordenação da cidade comporta, além de tipos diversos de príncipes/ governantes, tipos diversos de súditos, que passam desde aqueles que apenas prestam serviços, remunerados ou não, salubres ou não (os últimos sendo aqueles que sequer são considerados cidadãos nos regimes “temperados e sensatos”), até aqueles que têm algum poder de decisão quanto aos rumos da ordenação da cidade. Também parece interessante destacar que o caráter quantitativo da perfeição é, pela primeira vez, relegado a um plano secundário: certamente, segundo o critério quantitativo, o ducado e o reino são mais perfeitos que a cidade porque maiores, mas, segundo Ockham, isso não seria suficiente para fazê-los mais preeminentes que a cidade. Desta vez o critério para a excelência é o modo de organização da communitas, segundo o qual, para a máxima preeminência, é requerido que seus habitantes vivam conjuntamente num mesmo lugar. O último esclarecimento que Ockham pretende prestar de um termo mais ligado ao que é próprio da cidade é a apresentação do significado de policernia, palavra que, provavelmente, não é senão uma reprodução equivocada – saída talvez da pena do próprio Ockham – da transliteração de πολίτευμα (politeuma ou, no latim do XIV, policeuma) e que, de acordo com o termo grego original, tal como empregado na Política, significa algo como “a autoridade suprema” (NEWMAN, 1902, p. 185) ou, num sentido mais geral, “governo”. Segundo Ockham, “policernia” tem ao menos três significados diversos: O governante [sc. “principans”] na cidade às vezes é chamado por Aristóteles de ‘policernia’. Ora, segundo alguns, policernia tem três significados: com efeito, significa, em primeiro lugar, a imposição da ordem da policia [isto é, do “regime político”]; em segundo lugar, aquele que impõe a ordem; em terceiro, significa a própria ordem imposta, que é a policia. E, assim, policernia num de seus significados é o mesmo que o senhor e o governante na cidade. (ibidem, p. 176)

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Dois pontos merecem ser destacados no trecho citado. O primeiro, a afirmação de que a ordem da cidade não é outra coisa que seu “regime político”, policia. O outro, a identificação proposta, ainda que condicionalmente, por Ockham entre o termo grego policernia, tomado no sentido de governante, com o senhor e o “principans in civitate”. Com a insistência da fórmula “o governante na cidade”, Ockham parece não fazer mais que retomar uma ideia que já havia sido anunciada quando da distinção entre o principado régio e o principado paterno. Em sentido estrito, o principado paterno é menos um governo (“principatus”) que um domínio (“dominium”), e o pai, menos um governador (“principans”) que um senhorio (“dominans” ou “dominus”). Como se viu, o ponto principal da diferença entre esses dois tipos de “comando” era a possibilidade daquele que tem súditos sob si poder ou não agir segundo sua vontade. No entanto, se até agora se insistiu nas diferenças entre o poder paterno e poder régio, sempre na intenção de limitar o que é próprio do primeiro, na discussão a seguir Ockham mostrará um sentido de domínio que, embora seja completamente adequado ao pai, não pode ser assumido pelo governante da cidade, sobre o qual será possível dizer que tem o domínio de algo apenas em certo sentido (“quodammodo”). O conceito de “ordem” também será retomado, desta vez, como base de outro conceito, que apontamos ter sido inicialmente negligenciado na exposição de Ockham: o “bem”, ou melhor, o “bem comum”. Trata-se do início da análise das três formas (ou regimes) de governo: a monarquia (3.1 Dial. II, 6), a aristocracia (3.1 Dial. II, 7) e a timocracia (3.1 Dial. II, 8).

3. As formas de governo – o “bem comum” e a justiça como bases da “policia”: Ockham começa sua descrição das formas de governo ou policiae separando-as em duas espécies “primeiras”: o principado “temperado e reto” e, seu antagonista, o principado “viciado e transgressor”. (OCKHAM, 2011, p. 176-179; 3.1 Dial. II, 6) Será como um dos pilares dessa análise que a noção de bem, que apontamos ter sido negligenciada quando da exposição do que é característico da cidade, aparecerá apresentada sob a noção de “bem comum”. No entanto, ainda que o conceito de “bem comum” seja fundamental para a distinção entre a boa e a má policia, (veja-se SHOGIMEN, 2007, p. 177) não é ele o principal assunto visado por toda essa exposição da opinião de Aristóteles. Segundo determinada leitura, o ponto principal da exposição ockhamiana do texto aristotélico estaria em distinguir a boa forma de governo daquela própria seja ao principado tirânico, seja ao principado despótico. Nesse sentido, “o uso feito por Ockham da linguagem aristotélica serve para distinguir claramente entre o governo para o bem comum e o governo para o bem privado”, além de fornecer “um fundamento racional para a monarquia papal.” (cf. SHOGIMEN, loc. cit.) Essa, porém, corre o risco de ser uma descrição reducionista da proposta ockhamiana. Afinal, o objetivo de Ockham parece mais 56

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amplo, senão outro: o debate do texto aristotélico não serve exatamente para propor um fundamento racional para a monarquia papal. Serve, antes, e entre outras coisas, para pôr a claro quais são os fundamentos de uma monarquia (o que é algo bem diverso). Também, e principalmente, para dar vez à consideração da possibilidade de haver outros tipos excelentes de governo, que, dadas certas circunstâncias, podem ser uma melhor opção à monarquia inclusive para a Igreja, ainda que, nesse último caso, essa possibilidade seja vista claramente como uma exceção que deve ser abandonada, em favor da monarquia, assim que possível (essa, com efeito, é a discussão que se dá especialmente em 3.1 Dial. II, 18-20). Assim, o uso da linguagem aristotélica serve não só para distinguir “o governo para o bem comum” do “governo para o bem privado”, mas, também e principalmente, para mostrar tanto a existência de diversas formas de governo em vista do bem comum, como as condições sob as quais qual dessas formas deve ser preferida às outras. Voltando à exposição do texto ockhamiano, temos, de início, uma apresentação que visa defender a tese de que há duas espécies básicas de formas de governo (policia). Na formulação de Ockham, “toda policia ou é temperada e reta, ou é viciada e transgressora”. Sua descrição começa frisando novamente a divisão entre “governantes” e “governados”, e, ainda, promove – sem, aparentemente, tirar proveito disso nessa exposição do texto aristotélico – o que pode ser visto como uma aproximação entre o léxico até então empregado e aquele próprio ao vocabulário eclesial. Assim como há duas espécies primeiras de policia, afirma, há também duas espécies primeiras de principados, prelazias, assim como de príncipes (ou melhor, “governadores”: “principancium”), prelados e reitores. Em seguida, propõe a descrição que associa o principado ao bem comum: todo principado ou é preeminentemente ordenado ao bem, ou seja, traz consigo [sc. “conferens”] o comum, a saber, do governador ou dos governados e também dos sujeitados, ou não está ordenado para o bem comum. Se for ordenado para o bem comum, é então um principado temperado e reto. Se não for ordenado ao bem comum, é um principado viciado e transgressor, porque é a corrupção de um principado temperado, reto e, ainda, justo. Portanto, toda policia ou é temperada e reta, ou é viciada e transgressora. (OCKHAM, 2011, p. 176)

Nessa descrição, a inserção da temática do bem comum não faz qualquer menção à preeminência do bem, ignorando a discussão tal qual arquitetada no começo da Política que, como já foi apontado, ata a preeminência do bem àquela da cidade. O “bem comum” aparece principalmente como o critério que separa boas formas de governo de formas corrompidas. É interessante lembrar aqui que a associação do “bem comum” ao bem preeminentíssimo visado pela cidade sai da forja de Tomás de Aquino. Propondo uma aproximação da análise do texto da Política com o que é discutido no texto da Ética, Tomás

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defende que o bem comum “é maior e mais divino do que o bem de um”. (TOMÁS, 1971, loc. cit.) E tal como se vê em seu Comentário para a Ética Nicomaquéia, tal bem é chamado de comum não só porque é de muitos e não apenas do indivíduo, mas também, e principalmente, na medida em que é o mesmo para todos. (TOMÁS, 1969, p. 9, I, l. 2, n. 11-12) A interpretação de Ockham, porém, parece não herdar da invenção de Tomás nada além da associação entre o bem comum e a cidade. Afinal, logo após propor o bem comum como critério de distinção entre as formas de governo e a caracterização do principado temperado e reto como justo, Ockham passa imediatamente à apresentação das formas retas de governo, destacando que elas se dividem em três formas principais e, ainda, que essas formas não se misturam. A primeira e mais preeminente dentre elas, a monarquia, é assim descrita por Ockham: A primeira é quando o governante [sc. “principans”] é único, e é chamada de monarquia real, na qual um único domina em razão do bem comum e não preeminentemente em razão da própria vontade e do que traz consigo [sc. “propter propriam voluntatem et conferens”]. (OCKHAM, 2011, p. 176. O grifo é nosso.)

Apesar do que acabamos de ver afirmado, como, aliás, já foi apontado quando da discussão acerca do poder paterno, Ockham insistirá logo em seguida que caracteriza a melhor forma de monarquia que o governante possa governar antes segundo a sua própria vontade que segundo a lei. Desta vez, porém, Ockham se dedica a explicar um pouco melhor o alcance dessa afirmação, permitindo-nos entender de que maneira ela continua válida mesmo quando tem-se em conta que o bem comum deve sobrepor-se à vontade: Diz-se que governa e reina segundo sua vontade e não segundo a lei aquele que reina em razão do bem comum de todos e não é restringido por nenhuma lei humana meramente positiva ou relativa ao costume, mas está acima de todas as leis deste modo, embora seja restringido pelas leis naturais. E, por isso, tal rei não tem de jurar, nem prometer, observar quaisquer leis ou costumes introduzidos pelo homem, embora seja conveniente que jure observar as leis naturais a favor da utilidade comum e que visará, em tudo que diz respeito ao principado assumido, o bem comum e não o privado. (Ockham, 2011, p. 176.)

A vontade do governante é, portanto, soberana principalmente quanto àquilo que é uma instituição humana. Ou seja, sua primazia não é absoluta, uma vez que ela tem de se submeter àquilo que é próprio da lei natural. Assim, duas coisas sobrepõem-se à vontade do governante: a natureza e o bem comum, sobre o qual Ockham afirma que esse governante 58

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tem a plenitude de poder. No entanto, ao fazê-lo, Ockham também pondera que ainda que o governante tenha a plenitude de poder com relação ao que diz respeito ao bem comum, ele não a tem no que diz respeito ao bem privado. É por meio desse mote que Ockham propõe, pela primeira vez, que esse tipo de governo seja algo diverso do principado tirânico, seu oposto. No entanto, dessa vez, limita-se a reiterar a tese já enunciada como critério geral da distinção entre os governos “temperados” e os governos “corrompidos”: o principado real “é segundo o bem comum, mas o principado tirânico não é segundo o bem comum”. Numa primeira aproximação, Ockham prefere estender-se mais na diferença entre o principado real e o despótico, que, a partir desse momento do texto, sempre aparecerá associado ao principado tirânico, ainda que o primeiro desses dois últimos, lembre-se, seja em si mesma uma forma justa de governo. Inicialmente, Ockham aparenta não propor aqui nenhum elemento novo para essa descrição, uma vez que não faz mais que retomar a exposição segundo a qual, no principado despótico, o senhor pode governar visando o seu bem próprio. No entanto, dois passos dados nessa descrição chamam a atenção. Um deles é uma espécie de reformulação que sugere uma interpretação mais “estrita” da definição tal como dada anteriormente. Se em 3.1 Dial. II, 3 (OCKHAM, 2011, p. 173) viu-se a defesa de que o déspota poderia governar os servos principalmente em vista do que é útil para si e não principalmente em vista do que é útil para eles, “apesar de frequentemente, segundo Aristóteles, o que é conveniente para o servo o ser também para o senhor”, dessa vez a vinculação do governo despótico com o bem comum aparece como algo incontornável: … no principado despótico, o governante tem tanto domínio que pode empregar seus servos e quaisquer outros bens que pertençam a seu principado não apenas segundo o bem comum, mas também segundo o bem próprio, contanto que em nada atente contra a lei divina ou natural; (…). (OCKHAM, 2011, p. 177. O grifo é nosso)

Assim, ainda que o déspota possa governar seus servos “principalmente em vista do que é útil para si”, ele não poderá, porém, fazê-lo de modo a ir contra o bem comum, o qual inclui a seus próprios servos. Consequentemente, a principal característica desse principado acaba reduzida ao fato de que o governante pode empregar os servos segundo seu interesse, o que jamais poderá ser feito no principado real. E na mesma passagem citada, é possível ver também o que é próprio do “segundo” passo antes mencionado. Nele vê-se que Ockham amplia um pouco mais a ideia já trabalhada de que a justiça desse principado obedece a um limite natural, ao afirmar que, no principado despótico, o senhor pode governar segundo seu bem próprio “contanto que em nada atente contra a lei divina ou natural”. Como característica da ação sábia e virtuosa aparece, portanto, o respeito à lei natural. Assim caracterizado o principado despótico, Ockham mostra que a principal diferença entre ele e o principado real não é senão o fato de que, além de não poder se servir

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de seus súditos segundo seus interesses pessoais, o principado régio tem sob seu comando homens que “não são servos, mas gozam da liberdade natural”: Porque diz respeito à liberdade natural que nenhum livre possa ser empregado segundo a vontade daquele que emprega, mas não é contra a liberdade natural que alguém livre seja sensatamente empregado para o bem comum, visto que qualquer um tenha de preferir o bem comum ao privado. (OCKHAM, 2011, p. 177)

Apesar de, aqui, a liberdade natural não parecer ser nada mais que contraponto à servidão natural, o tema da natureza aparecerá ainda uma vez na definição do principado régio indicando algo que pode ser visto como o limite que levará ou não à adoção dessa policia. Sumarizando as características que devem pertencer ao monarca, Ockham propõe uma descrição que parece apontar ainda a base daquilo que compõe o bem comum: Segundo Aristóteles, ninguém é digno de tal reino a não ser que sobressaia [sc. “superexcellat”] em sabedoria e virtude e em todos os bens, tanto do corpo, quanto da alma, quanto também dos bens exteriores, a saber, em amigos e divícias; com efeito, de outro modo é de se temer que ele se converta em tirano. Donde também deve ter bens próprios, ou por si ou pela concessão daqueles aos quais está à frente, para que não se aproprie de quaisquer bens dos livres nem os aceite de qualquer modo, a não ser que isso reclame uma utilidade evidente ou manifesta necessidade. (OCKHAM, 2011, p. 178. O grifo é nosso.)

Também desta vez, a consideração do bem jamais aparece relacionada à consideração de um bem único ou preeminente. Como bem aponta a ressalva, há que se temer que, sem que no governante sobressaia a sabedoria, a virtude e os bens, ele passe de monarca a tirano, ou seja, ele troque o bem comum pelo bem privado. Desse modo, “comum” e “privado” são qualificações que dependem antes daquilo a que está voltada a vontade do governante que a uma caracterização própria do bem ao qual qualificam. Quando o governante se usa de seus governados principalmente em vista do que é bom para si, volta-se ao bem “privado”; quando, porém, se vale de seus súditos tendo em vista “trazer o que é comum”, (cf. OCKHAM, 2011, p. 176) volta-se, então, ao bem “comum”. Por outro lado, vêse ainda o tema da natureza, relacionada ao que é intelectual e moral, voltar à tona desta vez também como critério para a validação do principado real: aquele que não se sobressai em sabedoria e virtude não é digno do principado real. Em outras palavras, está posta a condição que dará base à necessidade de outros tipos de principado.

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Para encerrar a discussão a respeito da monarquia, Ockham escolhe ainda a via do contraste para mostrar em que se baseia a caracterização de um principado como temperado, reto e, consequentemente, justo. O principado tirânico é uma transgressão do principado real e uma policia transgressora e viciada na medida em que o tirano “não visa o bem dos súditos, a não ser por acidente, mas visa preeminentemente o bem próprio, seja ele também bom para os outros ou seja para eles um mal.” (OCKHAM, 2011, p. 179) Um principado pode ser considerado tirânico tanto quando o tirano domina seus súditos contra a vontade deles, como quando eles se deixam dominar voluntariamente. Ockham relata que esse último tipo de sujeição à dominação, isto é, a sujeição voluntária, pode se dar quando alguém se faz tirano após conquistar a opinião popular não como seu governante, mas como um “adulador” ou “demagogo”. Isso acontece quando o demagogo tem êxito em instigar o povo a fazer algo que acredite ser bom para si, quando isso, obviamente, não é o caso. Segundo Ockham, uma vez que a caracterização deste tipo de tirania, na qual as pessoas se deixam voluntariamente governar por alguém que visa antes o bem próprio que o bem comum seja muito semelhante àquela que é própria do principado despótico, Aristóteles às vezes chama o principado tirânico de despótico, mas non tamen tyrannys proprie est despotia: “mas a tirania não é propriamente uma forma de governo despótica”. Mais uma vez, tem-se um caso em que a “confusão” de nomenclaturas apenas pode se dar sob circunstâncias muito específicas. O principado tirânico não pode ser adequadamente chamado de despótico, mesmo quando os governados são voluntariamente a ele sujeitados, seja porque o tirano pode governar a outros de modo que aquilo que é bem para ele é um mal para os governados, seja porque a sujeição dos governados se dá por logro, ou seja, eles não são servos de um modo justo. A exposição ockhamiana sobre a aristocracia e a timocracia, ainda que apresentada bem mais sucintamente que aquela sobre a monarquia, guarda, porém, os mesmos elementos que até agora se mostraram essenciais para o debate. O bem comum e, no caso da aristocracia, a natureza serão elementos decisivos para a defesa da constituição “temperada” destas formas de governo. A exposição do contraponto destes regimes, a saber, a oligarquia para a aristocracia e a democracia para a timocracia, aparece mais uma vez como a oportunidade de esclarecer ainda mais precisamente a caracterização dos regimes. Em suma, são expostas novamente as características próprias de governos que possam ser considerados justos e temperados ao mesmo tempo em que se mostra porque os regimes que lhes são opostos podem ser considerados depravações e injustos. Vê-se, assim, que, muito distante de propor um trabalho que possa se ver reduzido a não mais que um amontoado de opiniões, a exposição ockhamiana, antes que a isenção, propõe a necessidade de se observar a elaboração de uma estrutura na qual é possível perceber claramente a insistência na elucidação de quais são e de como estão encadeados os conceitos e argumentos envolvidos numa discussão. No caso dessa exposição da Política de Aristóteles, mais do que o levantamento de critérios para a boa distinção do governo para o bem comum daquele direcionado para o bem particular, tem-se a denúncia das

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inúmeras confusões que podem ser armadas quando aqueles que se propõem a uma discussão ignoram (deliberadamente ou não) o contexto e a base argumentativa segundo os quais os conceitos empregados são propostos. Por outro lado, por mais que o relatado expresse a “opinião de alguns, embora nem todos concordem em tudo”, isso não se reflete em qualquer inconsistência para o relato. No final, a falsa isenção de Ockham bem poderia ter sido formulada de um modo bem diverso: “recitarei o que entendo ser a intenção de Aristóteles, quanto a isso, segundo a minha opinião que, em certas ocasiões, se assemelha à opinião de alguns…”. Como se viu, a própria coerência segundo a qual são expostas as opiniões de Aristóteles, acaba por denunciar contra o que, ou contra quem, se dá a discordância de alguns…

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Carlos Eduardo de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências do CECH/UFSCar.

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KANT E A IMAGINAÇÃO imaginando um outro Kant?

FERNANDO COSTA MATTOS*

Resumo: Começando por apresentar algumas diferentes leituras sobre o papel da imaginação na filosofia kantiana, em especial aquelas de Martin Heidegger e Hannah Arendt, este artigo pretende discutir em que medida esse papel seria desempenhado também no âmbito prático dessa filosofia, em particular na Crítica da razão prática. Embora Kant não seja explícito a respeito disso, os postulados da razão prática pura são então tomados como um caso especial em que isto ocorreria. PALAVRAS-CHAVE: KANT, IMAGINAÇÃO, HEIDEGGER, POSTULADOS DA RAZÃO PRÁTICA Kant and Imagination: Imagining Another Kant? Abstract: Starting with the presentation of some different interpretations of the role played by the faculty of imagination in Kant’s philosophy, particularly those of Martin Heidegger and Hannah Arendt, this paper aims to discuss if such a role would be displayed also in the practical field, specially in the Critique of Practical Reason. Although Kant is not explicit about it, the postulates of pure practical reason are then taken as a special case in which this would happen. KEYWORDS: KANT, IMAGINATION, HEIDEGGER, POSTULATES OF PRACTICAL REASON

I. A imaginação em Kant: diferentes leituras A questão do lugar ocupado pela imaginação (Einbildungskraft) no sistema kantiano é, como se sabe, das mais controversas entre os comentadores. Bastante conhecida – e não menos polêmica – é a leitura de Martin Heidegger, para quem a imaginação, sendo a raiz comum aos dois grandes troncos do conhecimento humano – entendimento e sensibilidade


–,1 constituiria, através do esquematismo, o fundamento do próprio pensar. Nos termos de seu principal texto sobre Kant (Kant e o problema da metafísica, de 1929), este esquematismo puro, que se funda na imaginação transcendental, constitui justamente o ser originário do entendimento, a “substância eu penso” etc. Como uma representação imaginativa espontânea, a aparente realização do entendimento puro no pensamento das unidades é um ato puro fundamental da imaginação transcendental.2

Não à toa, Heidegger se baseia sobretudo na primeira edição da Crítica da razão pura para sustentar sua interpretação, já que em tal edição, em particular na sua versão da “Dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento”, a imaginação é tratada com muito maior destaque do que o seria na segunda edição do livro. É bem verdade que o próprio Heidegger procura explicar esse “recuo” de Kant mostrando que ele não teria alterado o lugar da imaginação no sistema de nossas faculdades cognitivas: a modificação no tratamento se deveria antes a uma opção por deixar em segundo plano esse tão obscuro tema, concentrando-se preferencialmente no que seria fundamental para o conhecimento objetivo do mundo (aquilo que, nos termos heideggerianos, constituiria o conhecimento ôntico da realidade, por oposição ao ontológico, responsável por tratar da constituição subjetiva do Dasein humano). Seja como for, o fato é que a interpretação heideggeriana confere à imaginação um estatuto extremamente privilegiado. Insurgindo-se contra a maior parte das leituras até então existentes, muito particularmente aquela dos neokantianos de Marburg – com quem, na figura de Cassirer, Heidegger se defrontara no célebre encontro de Davos (um dos motes para a elaboração de seu livro) –,3 tal interpretação propõe pensar a compreensão kantiana da subjetividade como uma “fundamentação da metafísica (Grundlegung der Metaphysik)”, de tal modo que a imaginação, nossa faculdade de sintetizar representações no tempo, demarcaria o horizonte de possibilidades que são constitutivas de nosso existir finito no mundo, i.e. de nosso Da-sein.

1 Heidegger se baseia na famosa passagem da “Introdução” à Crítica da razão pura: “…there are two stems of human cognition, which may perhaps arise from a common but to us unknown root, namely sensibility and understanding, through the first of which objects are given to us, but through the second of which they are thought.” (KrV, A 16/ B 29) Há um razoável consenso, entre os intérpretes de Kant, quanto a ser a imaginação essa raiz comum aos dois troncos. Quanto a este ponto, vale consultar o artigo de Dieter Henrich “On the Unity of Subjectivity” (in: HENRICH, D. The Unity of Reason. Cambridge: Harvard University Press, 1994). 2 HEIDEGGER, M. Kant und das Problem der Metaphysik. In: Gesammtausgabe, I.Abteilung, Band 3. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1991, p. 151. 3 No prefácio à sua primeira edição, o próprio Heidegger se refere às conferências ministradas em Davos como preparatórias para o livro. Cf. HEIDEGGER, Kant und das Problem der Metaphysik, p. XVI.

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Descabendo descer aqui às minúcias da intepretação heideggeriana de Kant,4 o que importa sublinhar por ora é a função atribuída à imaginação no interior dessa “ontologia fundamental” que, segundo Heidegger, seria firmada por Kant na Critique of Pure Reason. Não se trata, note-se bem, de dizer que a imaginação é a faculdade principal na elaboração do conhecimento científico, pois esta é, de fato, uma função específica do entendimento, em conjunção com a sensibilidade; trata-se antes de mostrar que, sendo ela a raiz comum, o termo mediador, entre tais faculdades de conhecimento, é nela que devemos buscar a chave para compreender de modo essencial (ontologicamente) as estruturas do nosso mundo, i.e. do mundo tal como constituído a partir da nossa perspectiva racional, humana e finita (no interior da qual o conhecimento científico é apenas uma, dentre várias possibilidades). Heidegger não é o único intérprete de Kant a situar a imaginação em uma posição privilegiada, mas os demais a fazê-lo seguem uma direção exegética bastante distinta. Um bom exemplo, que se tornou referência a partir dos anos 1970, é a leitura sugerida por Hannah Arendt, que toma por base não tanto a primeira, mas sobretudo a terceira Crítica kantiana (a Crítica da faculdade do juízo), e que, longe de pretender rediscutir o fundamento último da filosofia crítica, ou o seu lugar na história da metafísica ocidental, parece antes buscar inspiração em alguns conceitos-chave da KU – notadamente os de sensus communis e juízo reflexionante, nos quais a imaginação exerce uma função fundante – para repensar a filosofia política kantiana, ou, talvez mais decididamente, pensar a política à luz da filosofia de Kant. Tomemos, a título de exemplo, a seguinte passagem de suas Lectures on Kant’s Political Philosophy: O pensamento crítico só é possível onde os pontos de vista de todos estejam abertos ao exame. Assim, o pensamento crítico, embora uma atividade solitária, não se aparta de ‘todos os outros’. Ele continua, de fato, a ser feito isoladamente, mas, por força da imaginação, ele torna os outros presentes e, assim, opera num espaço que é potencialmente público, aberto para todos os lados; em outras palavras, ele adota a posição do cidadão mundial kantiano. Pensar com uma mentalidade ampliada significa treinar a própria imaginação para sair fazendo visitas.5

Como se vê, a imaginação exerce aí um papel essencial. Mas é um papel inteiramente diverso daquele que exercia na leitura de Heidegger: estabelecidas as bases do conhecimento teórico na Crítica da razão pura, trata-se agora – seja na terceira Crítica, seja nos textos políticos “menores” – de explorar possíveis desdobramentos de nosso pensamento 4 Para um esclarecimento razoavelmente detalhado dessa interpretação, vale conferir um estudo recente de fôlego: REBERNIK, P. Heidegger interprete di Kant. Finitezza e fondazione della metafisica. Pisa: Edizioni ETS, 2006. 5 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992, p. 43.

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em âmbitos cuja problemática não se deixa resolver na chave científica daquela primeira obra. Se precisamos “sair” de nosso próprio ponto de vista (um ponto de vista que tem caráter constitutivo no juízo determinante)6 para, colocando-nos no ponto de vista do outro, assim considerar assuntos que são do interesse da coletividade (um movimento que, para ela, seria constitutivo do juízo reflexionante político), então é preciso que a imaginação entre em cena com uma de suas mais, digamos, “tradicionais” funções – a de deslocar-nos mentalmente para uma posição imaginária, distinta da que efetivamente ocupamos. É claro que isso se articula diretamente com o modo como a imaginação atua no juízo reflexionante estético, bastante explorado por Arendt – e por tantos outros que, por assim dizer, seguiram o seu exemplo.7 Com efeito, a ideia de que um certo tipo de juízo se construa em um livre jogo de entendimento e imaginação, como propõe a Crítica da faculdade de julgar quanto a isso, é bastante inspiradora no sentido de pensar estruturas de pensamento que, embora desprovidas de uma objetividade stricto sensu, não deixem por isso de repousar em uma “objetividade” derivada, explicável em termos de uma intersubjetividade que seria mais ou menos implícita, mais ou menos negociável (em sentido político). No limite, a leitura proposta por Arendt consiste em um desdobramento dessa descoberta – concernente, a princípio, apenas ao juízo estético – para outros âmbitos do pensamento, muito particularmente a política. O caminho mais natural, portanto, para quem se decidisse a pensar o papel da imaginação na filosofia prática de Kant, seria seguir os passos de Hannah Arendt e, retrospectivamente,8 trazer elementos da Crítica da faculdade de julgar, ou mesmo dos opúsculos de filosofia política (Ideia de uma história universal…, O que é o esclarecimento?, O que significa orientar-se no pensamento etc), para o interior da própria Crítica da razão prática, tentando mitigar a força da conhecida afirmação, feita nesta, segundo a qual a imaginação não teria qualquer função no juízo prático.9 Há algo de simples e, ao mesmo 6 Poder-se-ia argumentar que a intersubjetividade, e mesmo a capacidade de nos colocarmos no ponto de vista do outro, é fundamental para qualquer tipo de juízo, inclusive o determinante. Onora O’Neill, por exemplo, sugere algo nessa direção. Mesmo admitindo essa possibilidade, contudo, seria necessário reconhecer uma diferença substancial no grau de importância da intersubjetividade – e da imaginação – para os dois tipos de juízo (a menos que se voltasse à chave heideggeriana, que não é o caso nem com O’Neill nem com Arendt). Cf. O’NEILL, O. Constructions of Reason. Explorations of Kant’s Practical Philosophy. Cambridge: C.U.P., 1989. 7 Seguindo Daniel T. Peres, um kantiano brasileiro que se tem dedicado ao tema da imaginação no âmbito da filosofia prática, valeria lembrar os nomes de Cornelius Castoriadis, Alain Renaut e François Lyotard, além do recente trabalho de Jane Kneller, que já se tornou uma referência nos estudos sobre a imaginação em Kant: KNELLER, J. Kant and the Power of Imagination. Cambridge: C.U.P., 2007. Cf. PERES, D. “Imaginação e razão prática”. In: Analytica. Rio de janeiro, vol.12, n.1, 2008, p.99-130. 8 Como diz o mesmo Peres, “qualquer interpretação da relação entre imaginação e razão prática em Kant, mesmo correndo o risco da leitura retrospectiva, isto é, lançar luz sobre o conjunto da obra crítica a partir de uma perspectiva que se apresenta apenas em 1790, se vê obrigada a partir da Crítica da faculdade de julgar. Melhor uma leitura retrospectiva, mas que tenha suporte textual, do que apelar para um sentido profundo não-pensado, onde a não exatidão é o único resultado a que se pode chegar.” (Idem, p. 103) Como se pode notar, Peres alude aqui às leituras de perfil heideggeriano, em particular àquela de Bernard Freydberg, que mencionaremos a seguir. 9 KpV, Ak.V, 69: “… a lei moral não possui nenhuma outra faculdade de conhecimento que mediasse a aplicação da mesma a objetos da natureza, a não ser o entendimento (não a imaginação); o qual pode atribuir a uma ideia da razão não um esquema da sensibilidade, mas uma lei”. As citações de Kant são traduzidas diretamente do alemão, com

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tempo, promissor no argumento: tomando por base a noção de “validade exemplar”, tal como descrita por Kant no § 76 da KU (a propósito do juízo reflexionante teleológico), trata-se de encontrar em ações humanas exemplos reveladores de regras gerais (máximas) efetivamente compatíveis com a lei moral.10 Embora isso não afete, naturalmente, os fundamentos mesmos do imperativo categórico, que seriam estritamente racionais (e, portanto, independentes da atuação da imaginação), trata-se de uma chave interessante para pensar as aplicações desse imperativo à realidade, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista da humanidade e de sua história (ponto de vista adotado por Kant em textos como a Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita e À paz perpétua). Se pensarmos na própria Fundamentação da metafísica dos costumes, em particular nos exemplos extraídos da sabedoria moral popular nas primeiras seções do livro, seria possível detectar um tal procedimento – o “juízo político”, como quer Arendt – em pleno funcionamento. O próprio Kant não se cansará de afirmar que os exemplos não podem exercer qualquer função na fundamentação da moralidade, servindo tão somente para indicar (de facto), ao filósofo que os interpreta, quais seriam as suas condições de possibilidade (de juris). Mas aqui já não se trataria, como dissemos, de fundamentar a moral nos exemplos, mas de tomá-los justamente como signos, por assim dizer, de regras universais sem as quais o ser humano sequer poderia considerar-se um ser moral. E isto valeria a fortiori para o domínio da filosofia política, em que eventos como a Revolução Francesa exercem, nos conhecidos termos em que o próprio Kant trata do assunto, esse papel de signo na indicação de um possível progresso moral da espécie.11 Desse ponto de vista, também os postulados da razão prática, outro ponto importante da filosofia moral kantiana quando se trata de pensar a aplicação da lei moral ao mundo, poderiam ser lidos como elementos de uma visão politicamente engajada da história – forjada no contexto do juízo político – voltada simplesmente a reforçar as possibilidades de ação instauradas pela lei moral enquanto imperativo categórico do direito. Deus e a imortalidade da alma não seriam, pois, muito mais do que hipóteses auxiliares para reforçar a convicção no progresso das instituições humanas, cujo desenho ficaria a cargo da imaginação enquanto faculdade ativa no estabelecimento do juízo político (satisfazendose o anseio de autores como Castoriadis, que se queixavam de um certo déficit imaginativo na filosofia política kantiana).12 Mas a verdade é que leituras assim, ao radicalizar o elemento político da filosofia kantiana, tendem a dar pouca atenção ao tema dos postulados, sobretudo em função de consulta à tradução de Valério Rohden para a Martins Fontes: KANT, I. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 10 ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy, p. 84. 11 Um ponto de vista que é adotado por Kant em textos como, por exemplo, Ideia de uma história universal e À paz perpétua. 12 Cf. CASTORIADIS, C. “The greek polis and the creation of democracy”. In: ______. Philosophy, Politics, Autonomy. Essays on Political Philosophy. New York, Oxford: Oxford University Press, 1991, p.81-123. Citado por PERES, D., op. cit., p. 101.

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sua proximidade semântica com a tradição metafísica. Desde a época de Kant, como se sabe, não foram poucas as acusações de que ele teria “voltado atrás” em relação ao viés progressista da Crítica da razão pura, reacomodando as velhas ideias metafísicas sob uma nova roupagem (o assim chamado “conhecimento prático”) sem mudar-lhes o essencial.13 Insistir no próprio tema dos postulados, desse ponto de vista, seria contraproducente, já que se gastaria muita tinta para tão somente explicar por que, apesar das aparências, eles não teriam nada que ver com a tradição metafísica cristã (um vínculo que, em geral, costuma ser visto como prejudicial à perspectiva de um progresso político da humanidade).14 Mas a questão que talvez caiba fazer, nesse ponto, é justamente sobre o quanto de ruptura haveria realmente em Kant, no que diz respeito à visão de mundo que, segundo ele, seria mais adequada às necessidades da razão (Bedürfnisse der Vernunft) quando nos lançamos a pensar o futuro a partir da lei moral. Gottfried Martin, por exemplo, sugere haver uma importante continuidade, no pensamento de Kant, em relação à tradição escolástica, podendo-se enxergar no quadro conceitual kantiano novas “determinações” do ser do homem, do ser do mundo, do ser de Deus. A novidade, nesse caso, consistiria menos no esvaziamento de sentido das velhas noções metafísicas do que na sua abordagem por um viés rigorosamente humano, i.e. através do ponto de vista que seria constitutivo do nosso modo de ver o mundo (desde as formas subjetivas da sensibilidade, espaço e tempo, até as ideias da razão, passando pelas categorias do entendimento que nos habilitam a pensar os objetos que intuímos).15 Pensar Deus ou a alma, desse ponto de vista, significa atender a uma necessidade que temos, em função da incompletude de nosso conhecimento empírico da realidade (atribuível talvez à nossa essencial finitude), de ir além dos limites da experiência sensível. Mas este “ir além” não teria qualquer significação (Bedeutung) se não envolvesse aquele poder de síntese com que a imaginação articula noções (atribuindo um predicado a um sujeito, por exemplo). É inevitável, em outras palavras, que imaginemos Deus e a alma ao pensá-los, e isto é algo que só podemos fazer sensificando (versinnlichen) tais noções, i.e. atribuindo-lhes propriedades que conhecemos da realidade sensível. E, se os esforços de 13 Desenvolvi uma breve reflexão sobre esse tema do “conhecimento prático” em um artigo publicado nas atas do X.International Kant Congress, de 2005. Cf. MATTOS, F. “Kant’s practical knowledge as a result of the connection between speculative metaphysics and rational faith.” In: TERRA, R., RUFFING, M. et. al. Recht und Frieden in der Philosophie Kants. Akten des X. Internationalen Kant-Kongress. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008, vol. 3, p.259-268. Trata-se de uma reflexão desenvolvida a partir de minha dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo em 2001. Cf. MATTOS, F. Conhecimento prático e metafísica especulativa em Kant. Dissertação de Mestrado, 117 páginas. São Paulo: Depto. de Filosofia da USP, 2001. 14 Não nos esqueçamos, contudo, dos bons trabalhos que, a seu tempo, julgaram necessário insistir nesse ponto. Um caso exemplar é o de Lewis W. Beck, que, em seu clássico comentário à Crítica da razão prática, se esforça para demontrar a inexistência de qualquer vínculo entre a doutrina dos postulados e a fundamentação da moralidade, que seria estritamente racional. Beck chega a lamentar que Kant tenha tratado desses velhos temas. Cf. BECK, L.W. A Commentary on Kant’s Critique of Practical Reason, p. 236. Outro importante nome a ser lembrado, no contexto europeu continental, é o de Gérard Lebrun, que, em seu Kant et la Fin de la Métaphysique, também se esforça por mostrar que os “velhos conceitos” – como Deus e alma – já não se referem a objeto algum, constituindo antes uma “radioscopia de significações”. Cf. LEBRUN, G. Kant et la Fin de la Métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 263. 15 Cf. MARTIN, G. Immanuel Kant. Ontologie und Wissenschaftstheorie. Berlim: W.de Gruyter, 1969.

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Kant na “Dialética” da primeira Crítica são no sentido de evitar esse equívoco, que seria nocivo para o conhecimento teórico do mundo, ele adotará uma outra postura em relação a eles na “Dialética” da segunda Crítica, reconhecendo a importância que possuem, mesmo enquanto meras hipóteses (que, insistamos, nada significariam sem a sua sensificação pela imaginação), para satisfazer uma outra espécie de necessidade (não mais teórica, mas prática) de nossa razão. Percebe-se desde logo – qualquer leitor acostumado à linguagem de Kant se apressará em denunciá-lo – que os nossos termos destoam aqui da lição kantiana: além de, como dito anteriormente, Kant expressamente destituir a imaginação de qualquer função no juízo prático, ele também não parece conceder espaço para esta faculdade nas “Antinomias” da primeira Crítica, muito menos na “Dialética” da segunda. Que, além disso, os enunciados dos postulados possam ser tomados como base para “determinar” (mesmo entre aspas!) o ser do homem ou de Deus, como quer Martin, isto é algo que parece, à primeira vista, contrariar não apenas a letra, mas também o espírito da filosofia kantiana. Ainda assim, gostaríamos de insistir um pouco nessa chave, de inspiração claramente heideggeriana, para, acompanhando o já mencionado Bernard Freydberg,16 verificar se a doutrina dos postulados não resultaria aí mais atraente, sem ferirmos por isto o essencial da filosofia kantiana.

II. Imaginando a imaginação na Crítica da Razão Prática Comecemos, agora, pelas palavras do próprio Kant. Após abrir a “Dialética da razão pura prática” com um curto – e bastante genérico – capítulo sobre a “dialética da razão pura em geral”, Kant logo especifica a dialética da razão prática como uma dialética “na determinação do conceito de sumo bem” e, em seguida, começa a explicar, de maneira bastante precisa, o cerne da questão que constitui “a antinomia da razão prática”: No sumo bem, que é prático para nós, isto é, efetivamente realizável por nossa vontade, virtude e felicidade são pensadas como necessariamente ligadas, de modo que uma não pode ser admitida pela razão prática pura sem que a outra também lhe pertença. Agora, essa ligação (como qualquer outra) é ou analítica ou sintética. Como esta, no entanto, não pode ser analítica (como acaba de ser mostrado), ela tem de ser pensada sinteticamente, e, mais especificamente, como conexão da causa com o efeito, já que diz respeito a um bem prático, i.e., àquilo que é possível por meio de uma ação.17 16 FREYDBERG, B. Imagination in Kant’s ‘Critique of Practical Reason’. Indianapolis: Indiana University Press, 2005. 17 KpV, Ak.V, 113.

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O primeiro ponto a sublinhar, nesse trecho que inicia “a antinomia da razão prática”, é a menção ao elemento sintético que faz parte, necessariamente, dessa ligação entre virtude e felicidade que, por seu turno, constitui a questão central da antinomia. Ora! Se nos recordarmos que a imaginação, como “função cega mas indispensável da alma, sem a qual jamais teríamos conhecimento algum”, é a faculdade responsável pela “síntese em geral”, então isto já seria um primeiro motivo para reconhecer a sua presença aqui, muito embora só temomenos consciência dela muito raramente.18 Mesmo em se tratando de uma presença indireta, por assim dizer, ela serviria como uma primeira e mais geral justificativa – aqui e em quaisquer outros juízos sintéticos na Crítica da razão pura – para a tese forte de Freydberg, para quem “a imaginação perpassa a Crítica da razão prática como um fio condutor oculto e silencioso”.19 É evidente que ela não poderia operar na superfície, já que se trata de uma problemática que aparece apenas no nível conceitual, onde se mostra a aparente contradição entre os âmbitos teórico (o conhecimento empírico do mundo, em que o ser humano se mostra inclinado a seguir seus impulsos na busca da felicidade) e prático (a lei moral através qual o ser humano se mostra capaz de agir segundo uma outra causalidade que não a natural). Mas a solução dessa problemática, passando por uma conexão sintética a princípio impossível, terá de envolver a imaginação de algum modo. Retomemos então os termos de Kant, que, após comentar a impossibilidade de uma implicação linear entre os dois pólos – seja da virtude pela felicidade, seja desta por aquela –, sinaliza para uma aparente falta de solução no horizonte: Uma vez, porém, que a promoção do sumo bem, cujo conceito contém tal ligação, é a priori um objeto necessário de nossa vontade, e é inseparavelmente interconectado à lei moral, a impossibilidade do primeiro tem de provar a falsidade da última. Se, portanto, o sumo bem é impossível segundo regras práticas, então também a lei moral, que nos ordena promovê-lo, tem de ser fantasiosa, direcionada a fins imaginários vazios e, portanto, falsa em si mesma.20

Embora, em princípio, a não realizabilidade do sumo bem não afetasse, como vimos insistindo, a fundamentação da moralidade,21 aqui Kant parece indicar que, se ele não for 18 Estamos parafraseando a célebre passagem de B 103: “A síntese em geral é, como veremos mais à frente, o mero efeito da imaginação, uma função cega mas indispensável da alma, sem a qual jamais teríamos conhecimento algum, mas da qual raramente tomamos consciência” (KrV, A 78, B 103). 19 FREYDBERG, op. cit., p. 3. 20 KpV, Ak.V, 114. 21 Este é um ponto fundamental para Beck: “nós não nos devemos deixar enganar, como eu acredito que Kant se enganou, pensando que a sua possibilidade (do sumo bem) é diretamente necessária à moralidade, ou que nós temos o dever moral de promovê-lo, como se fosse um dever distinto do nosso dever tal como determinado pela mera forma (e não pelo conteúdo ou objeto) da lei moral”. BECK, L., op. cit., p. 245.

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realizável, esta última se revelaria quimérica, pondo a perder o projeto crítico como um todo (se levamos a sério as tantas afirmações de Kant, inclusive aqui, a respeito de um primado da prática na filosofia). E o mais curioso, nesse ponto, é a expressão escolhida por Kant para caracterizar o que seria da lei moral em sendo esse o caso (em sendo não factível o sumo bem): ela estaria direcionada a “fins imaginários vazios” (leere eingebildete Zwecke). O fato de Kant caracterizar os fins morais como “imaginários”, ou mesmo “imaginados” (que seria talvez a tradução mais precisa), não implica que os fins morais não possam ser imaginados: o que eles não podem é ser vazios, tal como seriam se o sumo bem não fosse realizável no mundo. Se eles forem imaginados (como têm de ser, se são sintéticos) e plenos de sentido – que é o que caberá mostrar na “superação crítica da antinomia” –, então eles representarão o trabalho conjunto de nossas faculdades mentais na organização intelectual-imaginativa do mundo, que é talvez, no fim das contas, o objeto mais geral da filosofia crítica kantiana. Não à toa, é de um paralelo com a antinomia da razão especulativa que Kant parte para, agora, elaborar a “superação crítica da antinomia da razão prática”, indicando a necessidade de recorrer novamente à distinção entre fenômeno e coisa em si: Na antinomia da razão pura especulativa há uma contradição semelhante entre necessidade natural e liberdade na causalidade dos eventos no mundo. Ela foi superada provando-se que não há qualquer contradição real quando os eventos, e mesmo o mundo em que ocorrem, são considerados (que, aliás, é como devem sêlo) somente como fenômenos; pois um mesmo ser que age tem, como fenômeno (mesmo para seu próprio sentido interno), uma causalidade no mundo sensível que é sempre conforme ao mecanismo da natureza, mas pode também, no que diz respeito ao mesmo evento, na medida em que a pessoa que age se considera ao mesmo tempo como noumenon (como pura inteligência, em sua existência não determinável segundo o tempo), conter um fundamento de determinação daquela causalidade segundo leis da natureza que é, ele próprio, livre de todas as leis da natureza.22

A explicação é similar à que Kant havia dado na terceira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes: assim como, lá, o “círculo vicioso” se deixava solucionar desse modo, aqui é a aparente contradição da antinomia que desaparece quando nos damos conta de que, em não se tomando o mundo sensível como a realidade em sentido absoluto (já que é tão somente a realidade fenomênica), podemos considerar-nos não apenas como seres sensíveis, determinados pela causalidade da natureza, mas também, enquanto noumena, como seres inteligíveis capazes de agir segundo uma causalidade que é “livre de todas as 22 KpV, Ak.V, 114.

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leis da natureza”. E o que deve chamar-nos particularmente a atenção, no presente contexto, é esse movimento do “pensar” pelo qual nos situamos ora no ponto de vista do fenômeno, ora no da coisa em si: fazendo lembrar aquele movimento da imaginação, tão caro a Hannah Arendt, pelo qual nos situamos no ponto de vista do outro, isto nos leva a indagar se também aqui o papel da imaginação, mesmo implícito, não seria da maior importância. É justamente isso o que sugere Bernard Freydberg, lembrando sempre que a razão não poderia ser capaz, sem o auxílio da imaginação, de efetuar as sínteses ou criar as imagens que são necessárias para que efetivamente nos consideremos quer do ponto de vista sensível (em que só nos conhecemos como fenômenos graças às sínteses operadas pela imaginação na sensibilidade), quer do ponto de vista inteligível (em que só podemos pensar-nos como coisas em si quando, por analogia com o mundo sensível, imaginamos um mundo inteligível até onde seja exigido pela lei moral para a realização de seus fins). É assim que, desde esse primeiro “ponto de apoio” no não-sensível – que é, em última instância, o próprio conceito de liberdade operando ativamente em nossa mente –, começamos a formar (bilden, einbilden) um desenho do mundo inteligível que, embora “imaginário” ou “imaginado” (eingebildet), deixa de ser vazio na medida em que, segundo os conhecidos termos do segundo prefácio à Crítica da razão pura, de 1787 (quando Kant, tendo já escrito a Fundamentação, tinha em mira a Crítica da razão prática) , o preenchemos com “dados práticos”, i.e. com sínteses da imaginação que são não apenas autorizadas, mas exigidas pela nossa moralidade quando se trata de pensar a aplicação do imperativo categórico ao mundo. É por isso que a liberdade, mesmo sem receber uma seção com esse título no livro (como a imortalidade da alma e a existência de Deus), constitui o primeiro postulado da razão prática: é ela, enquanto a chave que permite abrir esse outro ponto de vista, quem fornece a solução para a antinomia da razão prática, tornando compatíveis a necessidade natural, que é própria ao mundo sensível (fenomênico), e a factibilidade, em princípio, do sumo bem comandado pela lei moral (vista agora como fundante de nosso eu inteligível). E é justamente essa compatibilidade, tornada possível pela liberdade, que abrirá as portas para os dois outros postulados (que correspondem àquilo que não está a nosso alcance no mundo, mas que é necessário para conservar nossa esperança na realização da lei moral), conforme os termos que fecham a “superação crítica da antinomia da razão prática”: Uma vez, porém, que a possibilidade de tal ligação do incondicionado à sua condição pertence inteiramente à relação supra-sensível das coisas e não pode ser dada de modo algum segundo as leis do mundo sensível, e apesar de as consequências práticas dessa ideia, as ações que visam à efetivação do sumo bem, pertencerem ao mundo sensível, buscaremos apresentar os fundamentos daquela possibilidade, primeiramente no que diz respeito àquilo que está imediatamente em nosso poder, e então, em segundo lugar, naquilo

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que não está em nosso poder, mas que a razão nos oferece como complemento para a nossa incapacidade relativamente à possibilidade do sumo bem (necessário segundo princípios práticos).23

Os termos aqui empregados por Kant parecem reforçar o vínculo, apontado por Heidegger no contexto teórico e explorado por Freydberg no contexto prático, entre, de um lado, o modo como a razão pensa (imagina) o supra-sensível e, de outro, a finitude enquanto seu elemento constitutivo, já que constitutivo do Dasein humano. Trata-se, com efeito, de um “complemento para a nossa incapacidade” quanto a realizar o sumo bem no mundo, uma meta que nós mesmos nos colocamos desde o ponto de vista inteligível (através da lei moral). Assim como o nosso entendimento, no contexto teórico, imprimia ao mundo natural a necessidade e a universalidade que, em nossa finitude básica (demarcada pela sensibilidade), não éramos capazes de assegurar (vide o modo como Hume formulara o problema da causalidade), a razão tratará agora de assegurar ao mundo (em geral) um curso moral que, enquanto seres sensíveis finitos, não somos capazes de assegurar: as ideias de alma e Deus, que apareciam como hipóteses reguladoras no contexto teórico, recebem um acréscimo predicativo (a alma é imortal e Deus é o autor moral do mundo)24 e se convertem em postulados cuja “dignidade”, na medida em que neles acreditemos, não é nem um centímetro menor que aquela do saber teórico.25 Essa é, aliás, uma possível razão para Kant introduzir uma seção sobre o primado da prática entre a “superação crítica da antinomia” e as seções que tratarão especificamente dos postulados da imortalidade da alma e da existência de Deus: é preciso reforçar a hierarquia existente, quando temos em vista a nossa existência em geral (e não apenas a sua dimensão cognitiva), entre a razão prática, que nos dá um sentido e um rumo para viver, e a razão teórica, cuja atividade não poderia ser considerada um fim em si mesmo, mas tem antes de subordinar-se àquela. Ao deixar isso claro, Kant prepara o terreno para estabelecer, como postulados, as tais conexões sintéticas que, a partir da liberdade, reforçarão o vínculo entre virtude e felicidade nos termos de um progresso infinito da espécie humana: Esse progresso infinito só é possível, no entanto, sob a pressuposição de uma duração infinita da existência e da personalidade do mesmo ser racional (que é chamada de imortalidade da alma). Logo, o sumo bem só é possível, do ponto de vista prático, sob a pressuposição da imortalidade da alma; esta, portanto, sendo 23 KpV, Ak.V, 119 (grifo meu). 24 Cf. MATTOS, F. “Kant’s practical knowledge as a result of the connection between speculative metaphysics and rational faith”, p. 263 e ss. 25 Quanto a isso, veja-se, por exemplo, o texto O que significa orientar-se no pensamento?, Ak.VIII, p. 140: “Nós chamamos de ‘postulado da razão’, ao contrário, a fé racional que, do ponto de vista prático, apóia-se sobre a necessidade de usar a razão na vida moral. Não como se isto fosse um ato do entendimento capaz de satisfazer às exigências lógicas da certeza, mas porque esse assentimento não tem menos dignidade do que qualquer saber”.

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inseparavelmente ligada à lei moral, é um postulado da razão pura prática (pelo qual entendo uma proposição teórica, não demonstrável enquanto tal, que é inexoravelmente inerente a uma lei prática incondicionada a priori).26

Contra aqueles que propõem interpretar a imortalidade da alma como uma continuidade indefinida da espécie humana, essa passagem mostra tratar-se de uma suposição relativa ao “mesmo ser racional” (dasselbe vernünftige Wesen) e, na sequência, indica que o seu vínculo com a lei moral é “inseparável” (unzertrennlich). É evidente que tal suposição não pode constituir conhecimento no sentido estrito do termo (este é um ganho, por assim dizer, de que a filosofia crítica nunca voltou atrás), mas a sua natureza é de uma proposição teórica (portanto sintética) e, nesta medida, envolve a participação da imaginação. E o que confere legitimidade a ela – outro ponto que a passagem citada deixa claro – é esse vínculo com a lei moral, que a torna o resultado não de uma arbitrariedade subjetiva individual (como seria o caso em produtos da imaginação leere eingebildete), mas de “uma lei prática indondicionada”, a mesma lei que tem de conduzir também, tão desinteressadamente como antes (a partir de uma simples razão imparcial), à possibilidade do segundo elemento do sumo bem, a saber, a felicidade adequada àquela moralidade, ou seja, a suposição da existência de uma causa adequada a esse efeito; em outras palavras, [ela tem de conduzir] a postular a existência de Deus como necessariamente pertencente à possibilidade do sumo bem (que, como objeto de nossa vontade, está necessariamente ligado è legislação moral da razão pura).27

A existência de Deus vem completar, assim, o conjunto de três postulados que, correspondentes às ideias com que a razão especulativa buscara solucionar as suas próprias aparentes contradições (os paralogismos, as antinomias e o ideal de completude), permitem firmar uma “visão moral do mundo” (para usar os pejorativos termos de Hegel sem qualquer conotação pejorativa!) em que a liberdade passa a ser vista como convergente, num futuro hipotético (daí a sua realização constituir uma tarefa infinita), com a realidade empírica, uma realidade em que o ser racional não podia, em princípio, reconhecer-se plenamente, visto não ser, no fim das contas, mais do que o conjunto de possibilidades estabelecido pela estrita conjunção de sensibilidade e entendimento.28 Não se trata, natu26 KpV, Ak.V, 122. 27 KpV, Ak.V, 124. 28 Ao comentar os postulados em seu conjunto, na seção intitulada “Of the postulates of Pure Practical Reason in general”, Kant assim os sintetiza: “These postulates are those of immortality, freedom positively considered (as the causality of a being so far as he belongs to the intelligible world), and the existence of God. The first results from the practically necessary condition of a duration adequate to the complete fulfillment of the moral law; the second from the necessary supposition of independence of

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ralmente, de acreditar num Deus carregado de predicados, tal como as diferentes religiões o pintam: trata-se de conceber tão somente um “autor moral do mundo” que, além de conferir completude hipotética à nossa percepção do mundo (que, enquanto percepção, é limitada pela sensibilidade, i.e. pela nossa finitude), possa também indicar um rumo moral para o mundo, i.e. direcioná-lo para uma realização progressiva (embora interminável) dessa lei moral que, segundo a nossa própria “autocompreensão” (dissecada por Kant em sua analítica do Dasein humano, como diria Heidegger), é constitutiva de nosso ser (um factum da razão, nos termos da própria Crítica da razão prática). Que essa autocompreensão não implique uma ampliação de nosso conhecimento do mundo é o que Kant não se cansa de frisar. Mas ele também insiste no elemento sintético, de unificação (Vereinigung), que está presente nesse movimento pelo qual nossa mente (via imaginação), tendo sempre na lei moral o seu fio condutor, amplia nosso “conhecimento” “do ponto de vista prático”: Mas o nosso conhecimento é efetivamente ampliado, desse modo, pela razão prática pura? E aquilo que era transcendente para a razão especulativa é imanente na prática? Certamente sim, mas apenas do ponto de vista prático (in praktischer Absicht). Pois, de fato, não conhecemos desse modo, quanto ao que sejam em si mesmos, nem a natureza de nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o ser supremo, mas apenas unificamos (vereinigt) os seus conceitos no conceito prático do sumo bem como objeto de nossa vontade; e o fizemos inteiramente a priori pela da razão pura, ainda que apenas através da lei moral e em relação ao objeto que ela ordena.29

Como dito anteriormente, a grande questão suscitada por esse “truque” de Kant, com que ele “revalida”, por assim dizer, os conceitos clássicos da metafísica (Deus, liberdade e alma como bases dos três ramos da metaphysica specialis), diz respeito ao quanto ele comprometeria a integridade de sua filosofia enquanto crítica. Ora! Se a primeira parte da metafísica – a ontologia – se ocupa das nossas faculdades mentais, isto significa que ela é, antes de tudo, uma ontologia do ser humano: é o sentido em que Heidegger a considera uma (re-)fundação da metafísica como analítica da finitude humana. E é justamente nisto que estaria a sua radicalidade crítica: solapando as bases do que costumava ser uma ontologia do mundo, ela se cinge ao ponto de vista humano (“demasiado humano”, diria Nietzsche) para investigar os horizontes de possibilidade oferecidos a nós enquanto se-

the sensible world, and of the faculty of determining one’s will according to the law of an intelligible world, that is, of freedom; the third from the necessary condition of the existence of the summum bonum in such an intelligible world, by the supposition of the supreme independent good, that is, the existence of God.” (KpV, Ak.V, 132) 29 KpV, Ak.V, 133.

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res finitos, inscritos numa temporalidade que, em nós, manifesta-se no poder de nossa imaginação (devendo-se enfatizar, quanto a isso, o kraft de Einbildungskraft). Desse ponto de vista, as possibilidades descortinadas pelo conhecimento científico para a nossa interpretação do mundo são apenas uma parte do conjunto total de possibilidades descobertas por Kant em nossa subjetividade: a parte que corresponde à conjunção do entendimento com a sensibilidade em sínteses que articulam dados sensíveis com conceitos intelectuais. O valor desse saber (Wissen) está, para Kant, em ser ele, enquanto modalidade de assentimento, tanto subjetiva como objetivamente suficiente (zureichend), ao passo que a fé racional (vernünftiges Glauben), tipo de assentimento que se prenderá aos postulados da razão prática, seria suficiente apenas subjetivamente. Ora! Se, insistindo na leitura heideggeriana, nos lembrarmos que o material empregado pela imaginação é sempre sensível, tudo o que ela faz, ao ligar predicados às ideias da razão, é deixar de lado o fio condutor do entendimento (que, ligado aos objetos, levaria a um primado da teoria) e adotar o fio da razão prática, que impõe um certo modo de combinar esse material adequado àquela nossa autocompreensão como seres essencialmente morais (tudo isso no interior de uma mesma ontologia da subjetividade humana). E esse outro “modo de combinar”, insistamos, nada tem de arbitrário (a insuficiência subjetiva, própria à opinião (Opinion), é que indicaria a arbitrariedade), mas é antes uma necessidade (Bedürfnis) de um ponto de vista absolutamente necessário (notwendig), e justifica sua pressuposição não apenas como hipótese permitida, mas como um postulado do ponto de vista prático; e, admitindo-se que a lei moral pura enquanto comando (não enquanto regra da prudência) obriga inexoravelmente a qualquer um, o homem justo (Rechtschaffene) pode perfeitamente dizer: ‘eu quero que exista um Deus, que minha existência neste mundo seja, mesmo fora da conexão natural, uma existência em um mundo inteligível puro, e que, enfim, mesmo minha duração seja infinita – eu insisto nisso e não deixo que me privem dessa fé. Pois este é o único caso em que meu interesse, pelo fato de não me ser permitido relaxá-lo, determina inevitavelmente o meu juízo sem dar atenção a sofismas, por menos que eu estivesse em condições de responder-lhes ou opor-lhes outras mais plausíveis.’30

Não seria exagerado dizer, a esta altura (segundo a interpretação que vimos sugerindo), que é assim que funciona, segundo Kant, a imaginação do homem justo. Embora o entendimento, cuja função é aplicar conceitos aos dados sensíveis, jamais pudesse autorizar semelhantes afirmações, a sua imaginação, guiada pela lei moral – e pelo interesse 30 KpV, Ak.V, 143.

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que esta lei desperta em nós –, estabelece conexões para além do sensível (ou do sensível enquanto conceptualizado pelo entendimento, i.e. do conhecimento empírico) que lhe permitem conservar a esperança de que esse interesse moral, e o agir conforme a ele, não sejam em vão. Isto não diz nada sobre o mundo, como Kant não se cansa de afirmar, mas diz muito sobre nós mesmos, seres finitos que se percebem existindo nesse mundo, que são nesse mundo (in-der-Welt-sind) sem compreendê-lo muito bem. E assim se poderia, talvez, entender melhor a tão citada frase de Kant, ao final dessa mesma Crítica da razão prática, segundo a qual “duas coisas enchem a mente de admiração e veneração sempre novas e crescentes, quanto mais frequente e persistentemente a reflexão se ocupa delas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim”.31

*** A interpretação aqui sugerida não é, por certo, das mais ortodoxas. Ao insistir na importância da imaginação, corremos sempre o risco de imaginar demais. O próprio Freydberg, cujas teses foram bastante inspiradoras para nossa reflexão, parece ir longe demais ao falar em um “primado da imaginação” na filosofia kantiana.32 Um pouco mais comedidos, por assim dizer, procuramos insistir sempre no fato de que, ao ir além do sensível, a imaginação (e com ela o pensamento, a mente) opera sob o comando da lei moral, portanto sob um primado da razão prática – ponto em que Kant é particularmente incisivo. De qualquer forma, procuramos mostrar que, constitutiva do nosso pensar desde o âmbito teórico, a imaginação também tem de possuir uma função reconhecida no âmbito prático, em particular no que diz respeito aos postulados da razão prática: imortalidade da alma, liberdade e existência de Deus. Com isso, a filosofia moral kantiana adquire, de fato, uma coloração menos cinzenta (como propõe Freydberg),33 mas não chega a desviar-se de seu núcleo racionalista e universalista, nem de sua inscrição em uma ontologia da finitude que, se bem compreendida, pode oferecer muito mais possibilidades ao ser humano do que uma mera teoria do conhecimento (Cassirer) ou uma filosofia moral centrada somente na política (Hannah Arendt).

Referências bibliográficas ARENDT, H. Lectures on Kant’s Political Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

31 KpV, Ak.V, 161. 32 Cf. FREYDBERG, op. cit., p. 105: “Mas, como a imaginação conduz todas as sínteses e, portanto, toda a atividade racional, o primado da prática é, no fim das contas,… o primado da imaginação”. 33 Id., p. 22: “… a exposição da imaginação no coração da filosofia prática de Kant pode servir para fazer com que essa filosofia – muitas vezes caracterizada como sem alegria e, ao menos parcialmente, inadequada à nossa natureza – apareça numa luz mais amistosa”.

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Fernando Costa Mattos é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Federal do ABC.

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Kant, Fichte e a Revolução Francesa JOÃO GERALDO MARTINS DA CUNHA*

Resumo: À luz do debate entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein, este artigo pretende medir as diferenças entre os juízos políticos de Kant e Fichte quanto ao direito de Revolução. Além disso, também pretende mostrar que, muito embora muitos fatores tenham contribuído para que o “reino dos fins” chegasse à Terra, as análises tanto especulativas quanto políticas de Fichte podem ser lidas como uma importante defesa da liberdade e libertação do homem. Isso para concluir que o direito de revolução em Fichte pode significar uma defesa dos direitos humanos. PALAVRAS-CHAVE: KANT, FICHTE, REVOLUÇÃO, LIBERDADE, DIREITOS HUMANOS Kant, Fichte and the French Revolution Abstract: Considering the contest between Rosa Luxemburg and E. Bernstein, this paper aims at appreciating the differences between the political judgments of Kant and Fichte on the right of revolution. Furthermore, it also aims to show that, although many factors have contributed for the “kingdom of ends” coming to Earth, Fichte´s speculative analysis as well as the political ones can be read as an important defense of freedom and liberation of man. It concludes that the right of revolution in Fichte can mean a defense of human rights. KEYWORDS: KANT, FICHTE, REVOLUTION, FREEDOM, HUMAN RIGHTS

1. Socialismo moral Quando Rosa Luxemburgo chegou a Berlim, E. Bernstein – então uma liderança importante no SPD (Sozialistische Partei Deutschland) – havia publicado alguns artigos defendendo que o socialismo poderia ser alcançado mediante uma série de reformas graduais dentro do próprio capitalismo. Entre setembro de 1898 e abril de 1899, Rosa Luxemburgo responde às teses de Bernstein em escritos que depois seriam editados sob o


título: Reforma ou Revolução.1 Seu argumento básico, nestes textos, consistia em mostrar que o “revisionismo” de Bernstein significava um abandono dos princípios do socialismo científico, pois, com suas teses, ele deixava de pensar a contradição (Widerspruch) básica entre capital e trabalho ao sugerir, ao invés disso, uma “acomodação” (Anpassung) do capitalismo às exigências socialistas. Para Bernstein, a economia capitalista, apoiada em um sistema de crédito, meios de comunicação e organizações patronais, não caminhava em direção a uma anarquia; análise que o levou a rejeitar a “teoria do colapso” (Zusammenbruchstheorie) do capitalismo. Rosa Luxemburgo problematizou a análise de Bernstein na medida em que esta ia de encontro à tese fundamental do socialismo científico – que “pregava” a necessidade da descoberta de “pontos de partida para a realização do socialismo nas relações econômicas da sociedade capitalista”. Nesta medida, sua crítica defendia que a teoria da acomodação de Bernstein pretendia fundar o socialismo no “conhecimento puro” (reine Erkenntnis) e, que por isso mesmo, não passava da retomada de uma “fundação do socialismo mediante um conceito moral de justiça” (die Begründung des Sozialismus durch moralische Gerechtigkeitsbegriffe), em vez de fundá-lo na luta contra o modo de produção. Mas, se estas teorias (morais) do socialismo foram “verdadeiras” em seu tempo, segundo Rosa Luxemburgo, sua retomada seria um retorno aos “chinelos gastos da burguesia”. Assim, naquele momento, impunha fortemente o seguinte dilema: ou o “revisionismo” de Bernstein era correto e, então, a transformação socialista da sociedade era uma utopia; ou o socialismo não era uma utopia e, então, a teoria da acomodação estava errada. Rosa Luxemburgo declarava, na época, em tom dramático: “That is the question”. Enquanto isso, do outro lado do Reno, Jean Jaurès defendia a sua tese latina (secundária), De primis socialismi germanici lineamentis apud Lutherum, Kant, Fichte e Hegel (1891). Nela, destacava a existência de uma linha de continuidade no pensamento alemão de Lutero a Marx e Lassalle, cujo traço característico seria uma certa idéia de liberdade, “não como uma abstrata faculdade de poder escolher entre contrários, como uma hipotética independência de cada cidadão tomado individualmente, mas como a verdadeira base da igualdade dos homens e de sua comunicação”.2 Assim, segundo ele, enquanto os franceses têm o hábito de pensar “cada vontade abstrata e isolada da ordem dos fatos”, os alemães (desde Lutero!) vinculam a “vontade individual à ordem universal das coisas divinas e humanas”.3 Como os alemães sobrepõem a liberdade civil e a lei civil, “confundem a liberdade moral com o dever”, laboram com uma concepção de liberdade que “em economia política se tornará o socialismo”.4 Por conseguinte, ainda segundo Jean Jaurès, a Reforma e seus desdobramentos vão impregnar o gênio alemão de tal modo que, enquan1 Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke, vol.1, Dietz Verlag, Berlin, 1982, p. 369-445. As citações foram retiradas da versão eletrônica www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1899/sozrefrev/index.htm, autorizada pelo editor. 2 Jean Jaurès, Les orgines du socialisme allemand, trad. Adrien Veber, Paris, Les Écrivans Réunis, 1927, p. 13-4. 3 Idem, p. 22. 4 Por isso, já em Lutero, encontramos a idéia de que a “fecundação do dinheiro é uma coisa contra a natureza”, idem, p. 27.

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to os franceses opõem a razão e a fé, a liberdade individual e a força coletiva, os alemães vão conjugar “a religião cristã com a razão” e afirmar “que a liberdade de cada um só pode ser estabelecida e garantida graças ao poder e direito do Estado”.5 É segundo este traçado geral que J. Jaurès apresenta as teses de Kant e Fichte sobre a autoridade política. Assim, enquanto Bossuet, segundo J. Jaurès, ainda definia “o rei como Deus ele mesmo sobre a terra”, Kant e Fichte se alinhavam a uma concepção moderna do poder segundo a qual, “várias vontades fracas fazem uma vontade forte” (quiçá socialista!).6 Desta maneira, o pacto social seria constituído por um contrato que “existe na razão, mas não no tempo”. Pelo fato de que todos os poderes existentes se apóiam sobre a base dissimulada do contrato, Kant teria deduzido que a rebelião contra estes poderes é sempre um crime, “pois material e moralmente a potência dirigente retira sua origem de alguma forma do povo”.7 Em todo caso, a rebelião seria um suicídio uma vez que o poder político não reside na justaposição de vontades individuais, mas numa “vontade íntima e racional”. Se Kant de alguma forma “conciliou o individualismo e o socialismo”, segundo J. Jaurès, por conta deste modo “alemão” de pensar a liberdade e a vontade, Fichte teria conciliado “a anarquia e o socialismo”, na medida mesma em que não separou a economia da política.8 Mutatis mutandis, cerca de cem anos antes das publicações de Bernstein, Rosa Luxemburgo e Jean Jaurès, o debate filosófico e político motivado pela Revolução Francesa opunha dois importantes filósofos alemães: Kant e Fichte. Embora suas filosofias práticas de fato estejam em certa linha de continuidade – como afirma, em termos gerais, a tese de Jaurès –, elas se afastam significativamente em 1793 no que diz respeito à reforma ou à revolução da sociedade em vista da possível realização do conceito de “reino dos fins”. Entendo que as diferenças entre Kant e Fichte no plano jus-filosófico do direito de revolução não impede que ambos estejam, de certo modo, a uma mesma distância do debate posterior entre Rosa Luxemburgo e E. Bernstein. Assim, entre a virada do século XIX e a virada do século XX, tem lugar a reforma na idéia de revolução. Tanto o “revisionismo” de Bernstein, quanto a “teoria do colapso” do capitalismo, defendida por Rosa Luxemburgo, supõem que o “reino dos fins” – como formação social e política justa – está num futuro, mais próximo ou mais distante, da história humana; ao passo que as posições de Kant e Fichte afirmam, respectivamente, ou que a rebelião é um crime, ou que o direito de revolução é um direito inalienável do homem. De qualquer maneira, é sempre um posicionamento político em nome de uma idéia reguladora da história – no sentido preciso que Kant atribui a esse termo.9

5 Idem, p. 35. 6 Idem, p. 42. 7 Idem, p. 46. 8 Idem, p. 51 e 53. 9 Neste sentido é sintomática a leitura de L. Goldmann, segundo a qual (diante da questão, há algum meio para o homem empírico atingir o incondicionado, o soberano bem?), “Em seus principais representantes, Fichte, Schelling e Hegel, do mesmo modo que em ‘seu herdeiro materialista’, Marx, o idealismo alemão foi uma tentativa de responder

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É bem verdade que a avaliação da relação entre o pensamento alemão e a Revolução Francesa, pelo menos para certa tradição (de Rosa Luxemburgo e Jean Jaurès e mesmo de Jacques Droz) gira em torno da clássica afirmação de Marx e Engels, segundo a qual os burgueses alemães, presos aos seus mesquinhos interesses locais, ficaram entre seu provincianismo econômico e sua presunção cosmopolita.10 No juízo de Droz, que apenas ratifica a afirmação geral de Rosa Luxemburgo acerca do “socialismo moral”, a Revolução aparecia como um fato metafísico e, quando os alemães encararam os princípios da liberdade e igualdade, fizeram-no no plano ético e não no da política efetiva.11 Mais ainda, escritos como as Beiträge de Fichte, as Cartas estéticas de Schiller (entre outros), “demonstram a impotência da intelectualidade alemã em apreender o conteúdo da Revolução Francesa e plasmá-lo na vida, limitando-a tão-somente à esfera do pensamento”.12 E para expressar a nostalgia de uma geração que foi incapaz de formar uma pátria terrestre, Droz cita Hölderlin: “Alemães, convertei-os em gregos e obtereis uma pátria alemã”. Neste cenário, até que ponto o juízo político de Fichte não contribuiu para a transformação do “socialismo moral” em “socialismo científico”? Em que medida suas análises, tanto especulativas quanto políticas, permitiram que o “reino dos fins” chegasse à Terra? Eis as questões de fundo deste trabalho. Mais especificamente, gostaria apenas de tentar mostrar que o juízo moral desempenha um papel importante nos posicionamentos políticos de Kant e Fichte frente aos eventos revolucionários.

2. O juízo político de Kant No primeiro e no segundo apêndices ao opúsculo sobre a paz perpétua, Kant se pergunta exatamente sobre a discrepância e a harmonia, respectivamente, entre a moral e a política. Em consonância com a filosofia da história de outros escritos, também em À Paz perpétua, Kant articula liberdade e finalidade. A natureza, em “cujo curso mecânico transparece com evidência uma finalidade”,13 serve de garantia da paz. No entanto, a tese fundamental da Idéia em 1784 de que o problema político, “a administração universal do direito”, só poderia ser resolvido por último – por conta do egoísmo próprio ao homem – será significativamente deslocada. De fato, uma constituição republicana, “única perfeitamente adequada ao direito”, é também a mais difícil a ser realizada, a tal ponto que se positivamente a essa questão”, Origem da dialética, a comunidade humana e o universo em Kant, Trad. Haroldo Santiago, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p.251. 10 Marx & Engels, Die Deutsche Ideologie, – I. Feuerbach, in: Werke, vol. 3, Berlim, Dietz Verlag, 1958, p. 177. 11 J. Droz, L’Allemagne et La Révolution Francaise, p. 9, apud, Ricardo R. Terra, Passagens, estudos sobre a filosofia de Kant, Rio de Janeiro, UFRJ, 2003, p. 102. 12 J. Droz, La formación de la unidad alemana, 1789-1871, trad. Miguel L. Remedios, Barcelona, Ed. Vincens-vives, 1973, p. 28. 13 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, BA p. 47. As obras de Kant serão citadas a partir da edição Werke in Zehn Bänden, Weischedel, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983. As citações de Fichte serão feitas a partir da edição Fichtes Werke, Berlim: Walter de Gruyter & CO., 1971.

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afirma que esse estado de anjos (Staat von Engels) não poderia ser realizado pelos homens com suas tendências egoístas (sebstsüchtigen Neigungen). O que é bastante razoável, na medida em que o que é mais próximo ao direito é também mais próximo da moral, pois o direito está fundado na moral. Por esta razão, em 1784, Kant dizia, então, que se tratava do último problema que o homem poderia resolver. Agora, onze anos mais tarde (1795/6), Kant separa o problema político da organização do Estado do problema ético de realização de uma comunidade moral, o reino dos fins. Com esta separação, o problema do estabelecimento do Estado pode ser resolvido mesmo “por um povo de demônios”, pois “não se trata do aperfeiçoamento moral do homem”.14 Trata-se, antes, da separação entre a constituição legal, “unidade distributiva da vontade de todos”, que, por si mesma, não leva à paz perpétua, e a comunidade moral, “unidade coletiva das vontades unidas”.15 Mas isso não significa que a doutrina política não deva estar submetida aos parâmetros morais, pois, enquanto os fins perseguidos na primeira são condicionados, o dever moral se põe de modo absoluto. É esta idéia que está na base da dicotomia entre o político moral (moralischen Politiker), que assume os princípios da prudência política de modo que possam coexistir com a moral, e o moralista político (politischen Moralisten), que forja uma moral útil às suas conveniências. Definindo a política em termos de prudência, Kant não exclui a possibilidade de pensá-la sob a insígnia moral, pois “O Deus-máximo da moral (Grenzgott der Moral) não recua perante Júpiter, o Deus-máximo do poder (Grenzgott der Gewalt)”.16 Isso significa que a prudência depende do destino, depende de um conhecimento da série das causas antecedentes, segundo o mecanismo natural, mecanismo tão amplo que a razão não está em condições de determinar com certeza o resultado feliz ou não das ações; enquanto aquilo que é determinado moralmente o é de modo absoluto, incondicional. Caso não houvesse a lei moral, uma legislação pela liberdade, mas apenas o mecanismo da natureza, então realmente a sabedoria prática (praktische Weisheit) seria restrita à prudência política e, o conceito do direito, “um pensamento sem conteúdo”.17 Como a liberdade enquanto autonomia e razão prática está aqui pressuposta, seguem-se as acusações de Kant aos moralistas políticos. Dessa forma, para o moralista político, o problema do direito é um problema técnico (Kunstaufgabe/ problema technicum), enquanto que para o político moral é um problema moral (sittliche Aufgabe/ problema morale).18 14 Ibid., B62/A61ss. Segundo Philonenko, teria sido a proximidade com o pensamento reacionário de Rehberg – que afirma, contra Rousseau, a necessidade de uma autoridade estatal que possa corrigir a fraqueza humana – o motivo pelo qual Kant teria separado os temas em 1795/6. Philonenko, Théorie et Praxis dans la pensée morale et politique de Kant et Fichte em 1793, Paris, Vrin, 1976, p. 27-30. O que pode ser justificado, pois em duas ocasiões Kant, em À Paz Perpétua, faz questão de argumentar, mantendo a tese de que a revolução é sempre ilegítima (crime), contra a possibilidade de restauração, B78/A73 e B103/A97. 15 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B73/A68. 16 Ibid., B73/A68. 17 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B76/A70-1. 18 Comentando a distinção de Kant, E. Kouvélakis, Philosophie et révolution, p. 37, afirma: “O ato de fundação da política faz apelo a um elemento que a abole e procura, simultaneamente, um sentido totalizante”. E conclui: “Mas é precisamente sobre este ponto que a indeterminação efetiva do critério proposto aparece mais claramente. A categoria que permitiu fundar na razão a via das reformas pelo alto, aquela do ‘político moral’, é, com efeito, a que servirá igualmente

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Muito embora o conteúdo do direito (a ser executado pela política) seja moral, como quer o Fichte em 1793, e a política não possa ser pensada em termos meramente técnicos – como queria Rehberg, seguindo Burke –, o direito de revolução não pode ser justificado.19 Kant transpõe uma das formulações do imperativo categórico para o plano do direito público. Desta forma, define o que chama de “fórmula transcendental do direito público”, indicando como exatamente a moral deve servir de parâmetro em política.20 A fórmula é fundada na publicidade: “São injustas todas as ações que se referem ao direito de outros homens, cujas máximas não se harmonizam com a publicidade”.21 Com este princípio, ético e jurídico, podemos responder à questão que Fichte se propõe enfrentar nas Beiträge: é legítimo o direito de revolução? Resposta de Kant: a máxima que anima os revoltosos contraria o princípio da publicidade e, portanto, é ilegítima. Além disso, é preciso afirmar que o poder constituído – mesmo pela força – é um “poder supremo irresistível” (die unwiderstehliche Obergewalt). Assim, embora Kant se recuse assimilar a política e a prudência – o que faria, no limite, da política uma questão técnica –, não deixa de evocar um princípio moral para a política. Eis como devemos entender a distinção, presente no Apêndice de À paz Perpétua, entre o moralista político e o político moral.

*** Analisando a crítica de Kant à doutrina tradicional da prudência (de Aristóteles e Cícero por intermédio de Wolff, Tomásio e Gracian), P. Aubenque apresenta o seguinte comentário: Para lutar contra o que chama de um “mal-entendido repleto de inconvenientes”, Kant não fará outra coisa senão esvaziar a filosofia prática tradicional: a arte política, a economia política, a economia doméstica, a arte das relações com o outro, a dietética (tanto da alma quanto do corpo) e, por fim, “a teoria geral da felicidade”, tudo que contém, em suma, apenas regras de habilidade é atribuído à filosofia teórica. Um campo virgem se abre, então, à filosofia prática: para justificar tanto a ditadura da virtude de Robespierre quanto sua ‘retificação’ thermidoriana. (…) Os adversários reacionários das Luzes não são certamente os únicos ‘moralistas políticos’; o próprio dos preceitos morais é precisamente poder servir para a justificação de não importa qual política, a menos que se refira a uma legitimidade absolutista”. Argumento que pode ser estendido ao juízo político de Fichte. 19 M. Gueroult, Études sur Fichte, p. 199: “O que Kant recusa ao povo, ser juiz e parte ao mesmo tempo, Fichte recusa ao soberano”. 20 A referência a Fichte não é absolutamente certa, pois em 1795, J. B. Ehrard, médico e discípulo de Kant, publicou Über das Recht des Volks zu einer Revolution, na qual distingue a revolução da rebelião, defendendo a primeira e recusando a segunda. Inspirado em Kant, Ehrard sustenta o direito de revolução a partir da distinção entre: “poder legal” (rechtlich) e “poder legítimo” (rechtmäβig). Cf. Raulet, Aufklärung. Les Lumières allemandes, Paris, Flamarion, 1995, p. 376-380. 21 Kant, Zum ewigen Frieden, Werke, vol. 9, B98/A92.

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o dos princípios a priori que tornam possível, fora de todo cálculo de heteronomia, uma autodeterminação da vontade.22

Desta forma, a ruptura entre a prudência e a habilidade de um lado e a moralidade de outro, nesta crítica à doutrina tradicional da prudência, “contém in nuce a totalidade de sua filosofia prática”. Embora Kant tenha tentado aproximar os dois domínios, afirmando que, se o fim da política é dado pela moral, isto não exclui a lição, “de prudência”, de que não se deve realizar este fim “precipitadamente e com violência”; este esforço, no entanto, teria sido em vão: “Infelizmente, já era, sem dúvida, tarde demais em 1795 para que Kant pudesse tirar partido desse acréscimo à sua doutrina”. E seria tarde porque Kant teria dificuldade em articular “a pragmática à política, sem com isso alterar o conceito desta última”.23 Não cabe, nos limites deste trabalho, medir a verdade desta posição, mas de fato ela indica uma direção precisa: a delimitação da razão prática como “autodeterminação” da vontade – por exclusão de uma doutrina da prudência.24 Direção a ser herdada por Fichte quando tenta pensar o sentido da Revolução Francesa. O efeito desta “moralização da política” em Fichte pode ser visto a partir de um exemplo muito significativo que Aubenque retira de Aristóteles. Embora seu argumento vise diretamente Kant, por herança, pode ser estendido ao projeto de Fichte: O exemplo de Aristóteles teria podido lhe mostrar que a lei, tal como a régua de chumbo de Lesbos, que se adapta às sinuosidades da pedra, (E.N., V, 14, 1137b 29) tende a integrar em seus enunciados a possibilidade de sua própria exceção, razão pela qual ela não se preocupa com sua própria retidão, mas com sua utilidade para os homens.25

Em nota explicativa, Aubenque ainda acrescenta que Aristóteles teria mostrado a necessidade da equidade para “corrigir” a rigidez da justiça, pois, “do que é indeterminado, a regra também é indeterminada”. Contra esta indeterminação do juízo, Kant e Fichte se alinham para pensar uma determinação completa da liberdade pela forma da razão. O curioso, no entanto, é a distância que os separa quanto ao direito de revolução. 22 P. Aubenque, “A prudência em Kant”. In: A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 322. 23 Ibid., p. 338. 24 Uma análise contrária ao juízo de Aubenque é a que faz Ricardo R. Terra, “Determinação e Reflexão em À Paz Perpétua”, in: Passagens, estudos sobre a filosofia de Kant, p. 85-99. Ele procura mostrar que uma análise da filosofia política de Kant a partir da dicotomia entre juízos determinantes e reflexionantes evita a conclusão de Aubenque e, ao mesmo tempo, permite a incorporação da prudência nos esquemas conceituais do primeiro. Assim, como o juízo político é tanto reflexionante quanto determinante, podemos considerar as instituições “buscando sua máxima” e, então, determiná-las pela universalidade da lei (p. 98). De qualquer forma, as instituições são avaliadas “em função do sentido da história”; por conseguinte, no que concerne ao meu argumento, a política – no plano geral de sua consideração, e não de ações particulares – é focada pelo viés da história, como discurso sobre o sentido moral necessário da humanidade. 25 P. Aubenque, “A prudência em Kant”, p. 339.

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3. O juízo de Fichte Sob a questão “Um povo tem, em geral, o direito de mudar sua constituição política?”, (Cap. 1 das Beiträge) Fichte apresenta o tema da “aplicação” da lei moral aos eventos políticos; para tanto, introduz a relação de imanência entre dois conceitos chaves em sua argumentação: a destinação (Bestimmung) do homem e a própria liberdade. Na medida em que esses conceitos estão numa relação recíproca – algo que não podemos demonstrar aqui –, Fichte pretende extrair o caráter inalienável do direito de mudar a constituição (Staatsveränderungen), i.e., pretende legitimar o direito de revolução. Garantido esse direito, o juízo sobre a Revolução Francesa pode então ser “retificado”. Para dizer numa palavra, certo desnível entre a liberdade como “origem” e fundamento de nossa vida (consciência), nosso “eu”, e, de outro lado, a liberdade como liberdade total que plasma a realidade, a qual só pode ser pensada como destinação, faz com que o primeiro sentido de liberdade fundamente o direito de mudar as Constituições (como estruturações estatais) em nome da consumação da liberdade na segunda acepção, a “finalidade” subjacente ao sentido mesmo do “mundo”. Por isso, se ao final das contas, Fichte diverge inteiramente de Kant quanto ao direito de revolução, isso não impede que ambos concebam a liberdade – que torna o homem fim em si – como o fundamento do juízo político e, por isso mesmo, ele, o direito de revolução, deve ser vinculado ao sentido da história (Weltgeschichte) e não à história empírica (Historie) de Rehberg.26 Da premissa de que todas as sociedades civis (bürgerlische Gesellschaft), conforme ensina Rousseau, se fundam, “no tempo”, sobre um contrato,27 E. Rehberg sustenta, contra Rousseau, o seguinte. Como todas as constituições, como contratos originários, se fundam sobre o direito do mais forte, a desigualdade de direitos é parte estrutural das próprias sociedades humanas. Segundo Rehberg, é exatamente isso que os intérpretes revolucionários de Rousseau notadamente teriam ignorado ao exigir uma igualdade na “Declaração dos direitos do homem”. A “sabedoria histórica” de Rehberg reduz, para Fichte, o futuro ao passado e o possível ao real; para Kant, de outro lado, toma equivocadamente o contrato social como fato e não como Idéia. Se Fichte, de um lado, mantém-se kantiano porquanto pretende pensar o contrato a partir da lei moral e da liberdade; de outro lado, pelos deslocamentos que opera na equação kantiana entre liberdade e lei moral, pretende extrair um juízo político bastante inusitado aos olhos de Kant: o direito de revolução. O interessante no contratualismo de Fichte é que ele modifica significativamente a noção de “estado de natureza”: seu sentido é a própria lei moral como lei natural do homem.28 Da premissa de que a lei moral deve ser o ponto de apoio transcendental do juízo político (como ensina Kant nos Apêndices À Paz Perpétua), Fichte pretende inferir que ela 26 A. Philonenko, Théorie et Praxis, p. 98. 27 Fichte, Beiträge, SW, vol. 6, p. 80. 28 Mais abaixo vou retirar conseqüências importantes desta noção modificada de “estado de natureza”.

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é também a única fonte para a obrigatoriedade das leis positivas. Assim, é porque impomos a nós mesmos (como sujeito transcendental, bem entendido) uma lei positiva qualquer (estabelecemos um contrato), que ela é obrigatória para nós (como sujeitos empíricos): “é nossa vontade, é nossa resolução”. Caberá mostrar mais tarde que estas duas figuras do “eu” são coincidentes, que o sujeito racional em mim é condição mesma do meu “eu” como instância subjetiva e pessoal. O jogo da “determinação recíproca” da Doutrina-da-ciência é a chave para essa espinhosa questão na filosofia de Fichte. O roteiro de sua solução passa pelo reconhecimento recíproco das consciências, mas, nas Beiträge de 1793, Fichte não apresenta o modo pelo qual a reciprocidade intersubjetiva estrutura a consciência. De todo modo, dizer que não há um direito de revolução, no fundo, é declarar a imutabilidade das constituições políticas. Como a lei moral é o fundamento de legitimação destas constituições, para saber se há um direito de revolução, devemos saber se a “imutabilidade” está ou não de acordo com ela, ou, mais exatamente: “A imutabilidade de uma constituição política (Staatsverfassung) não é contrária a destinação (Bestimmung) que a lei moral designa ao homem?” A vinculação kantiana entre liberdade e finalidade direciona a resposta de Fichte. A “submissão da sensibilidade”29 é o primeiro ato de libertação de nosso eu; o segundo é a “cultura da sensibilidade”.30 Este duplo movimento, cuja condição de possibilidade é a lei moral, permite ao “eu” tomar-se em sua dimensão própria, i.e., livre. Por conseguinte, assume-se que toda conduta puramente passiva é contrária à cultura, uma vez pressuposta uma vontade autoponente como o verdadeiro conteúdo da liberdade. A cultura se produz (geschieht) como auto-atividade (Selbsttätigkeit) e tende à auto-atividade como seu fim (und zweck auf Selbsttätigkeit ab). Nenhum plano da cultura pode ser estabelecido que não seja dirigido para a liberdade e não dependa do uso da liberdade.31 De onde podemos concluir que a imutabilidade de uma Constituição, de uma ordem contratual positiva, é contrária ao fundamento que a alimenta; inversamente, toda mudança na direção da libertação do homem decorre da própria lei moral. Como, por outro lado, esta mesma lei é único ponto de apoio possível para o juízo (político), a partida parece decidida em favor dos revolucionários. Em suma, a Revolução Francesa é legítima porque toda revolução funda-se num direito, sob a condição de ser uma “mudança em direção à liberdade”, i.e., ser conforme ao Imperativo moral, ponto de apoio transcendental para a Destinação do homem como liberdade. Neste sentido, há uma influência decisiva de Kant no que diz respeito ao plano geral das Beiträge. Assim como Kant (no escrito sobre teoria e prática) define o direito em função da moral, também aqui, Fichte supõe um dever incondicional na base da vida

29 O genitivo deve ser entendido em sentido “objetivo”, i.e., trata-se de submeter a sensibilidade e não de ser, obviamente, submetido por ela. 30 Fichte, op. cit., p. 87-8. 31 Fichte, Beiträge, SW, vol. 6, p 89.

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espiritual e, por conseguinte, do contrato político.32 Desta forma, a retificação do juízo público sobre a Revolução Francesa depende do deslocamento da consciência empírica para a consciência moral, i.e., o juízo público sobre o direito de revolução não deve pressupor o cidadão (que é parte de um contrato civil), mas o homem. O escopo da história do homem é a determinação completa da vida espiritual pela lei moral: eis a interpretação própria de Fichte do vínculo crítico entre liberdade e finalidade. Porém, parece haver um ponto de vista sob o qual a razão talvez não esteja ao lado da revolução, ou pelo menos ao lado dos revolucionários franceses: aquele ponto de vista da “prudência” (nos termos de Kant) ou da “sabedoria” (nos termos de Fichte). Afinal, que a destinação do homem (Bestimmung) seja a liberdade, que a lei moral seja o fato (Faktum) mesmo da liberdade, que a liberdade seja a liberdade do “eu” (acréscimo sobre o qual Kant já não teria tanta certeza), não implica, pelo menos, não necessariamente, o juízo em favor do direito de revolução. Pois não foi exatamente este “amorfismo” político subjacente à idéia de liberdade como escopo, como finalidade abstrata da existência, o responsável pela Revolução ter desaguado no terreno pantanoso do Terror? Como dirá Hegel alguns anos mais tarde, lendo Kant pelas palavras de Fichte, querer a universalidade da lei é não querer nada e a negação de qualquer determinação no plano político configurou o Terror.33 A equação entre a Destinação do homem e a liberdade, identificadas a partir da lei moral, pode muito bem mostrar por que o juízo deve apoiar-se na lei moral (único ponto de apoio transcendental que pode regular o funcionamento do juízo político, se quisermos pensar um sentido racional para o domínio político), mas ainda não explica como ele deve apoiar-se. Para justificar o direito de revolução, portanto, Fichte argumenta que o contrato positivo só tem valor relativo e negativo: relativo a um princípio que lhe é transcendente, a lei moral; e negativo porque sua força obrigatória é meio para a obrigação mais fundamental da própria Destinação humana, a liberdade como escopo. Comprimida entre a liberdade transcendental e a liberdade cosmológica (o Faktum da lei e o escopo da Destinação humana), a liberdade política (direitos e deveres civis) é tão transitória quanto mais próxima destes pólos ela estiver. Assim, caso a liberdade como escopo fosse atingida, a lei universal da razão reuniria todos os homens numa perfeita harmonia de sentimentos e interesses e nenhuma outra lei (positiva) recairia sobre seus atos.34 O que não significa, bem entendido, que Fichte faça aqui a defesa de um anarquismo avant la lettre porque a liberdade cosmológica “não se realizará jamais…, não passa de um doce sonho”. E mesmo quando Fichte neutralizar o conceito incômodo de uma exterioridade efetiva ao “eu”, dizimando ao má-

32 Philonenko sustenta que outros kantianos, mais ortodoxos que Fichte, como T. Schmalz e G. Hufeland, vão na mesma direção de fundar o direito na lei moral, Théorie et práxis, p. 115. 33 Hegel, Phänomenologie des Geistes, Berlim/Frankfurt, Verlag Ullsteim, 1973, p.327-334, “Die absolute Freiheit und der Schreken”. 34 Ibid., p 102.

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ximo o maior empecilho aos desígnios da Destinação humana como liberdade (na W-L de 1794), a finitude de nossa razão ainda manterá o “Reino dos fins” como Idéia reguladora. Conclui-se mais do que se precisava contra Rehberg; não apenas a Revolução Francesa é legítima, como “nenhuma constituição política é imutável”: sendo uma má constituição, deve ser mudada necessariamente; sendo uma boa constituição, que não vai contra o escopo de toda constituição política, ela se muda a si mesma – “Uma lâmpada que se consome a si mesma, na medida em que esclarece”. A Destinação (Bestimmung) do homem como liberdade se apresenta como o horizonte no interior do qual as figurações políticas devem ser focadas, de tal forma que a lei moral, expressão mesma da liberdade (aquilo em nome do que o contrato político se estabelece), seria a curadora para a contratação em geral. Mudar um contrato que não é a expressão mais adequada da liberdade por outro mais próximo disto é reafirmar e repor o princípio mesmo do contrato a ser rompido. O que significa que, à visão da história como passado que de fato legitimaria certa ordem (Rehberg), antepõe-se outra para a qual o “direito não advém do tribunal da história” (Fichte). No entanto, ao mesmo tempo, a estratégia de Fichte também consiste em desvincular lei moral e liberdade, fazendo dessa última a esfera mais ampla da consciência, no interior da qual se configura tanto aquela da lei moral quanto aquela dos contratos em geral e do contrato político em particular. O juízo político sobre a Revolução Francesa pode até estar fundado, como indicará Rosa Luxemburgo um século mais tarde, no “conceito moral de justiça” (e, nessa medida, ser taxado de “idealista”), mas não podemos esquecer que, pelo menos no caso de Fichte, isso significou uma defesa (e não só contra Rehberg!), por assim dizer, transcendental, dos direitos humanos.

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João Geraldo Martins da Cunha é Professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Federal de Lavras.

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Poder, política e verdade em Michel Foucault NOTAS SOBRE AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DO DISCURSO

ANDRÉ CONSTANTINO YAZBEK*

o que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora? (Michel Foucault)

Resumo: A partir de uma breve caracterização da filosofia de Michel Foucault, este artigo pretende retraças as exigências políticas da correlação, postulada por seu pensamento, entre a manifestação da verdade e o exercício do poder. PALAVRAS-CHAVE: MICHEL FOUCAULT, PODER, VERDADE, AÇÃO INTELECTUAL Power, politics and truth in Michel Foucault: notes on the practical implications of speech Abstract: From a brief characterization of the Michel Foucault’ philosophy, this paper aims to retrace the political demands of the correlation, postulated by his thought, between the manifestation of the truth and the exercise of the power. KEYWORDS: MICHEL FOUCAULT, POWER, TRUTH, INTELLECTUAL ACTION

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om o intuito de evitar certas facilidades no trato com o pensamento de Michel Foucault, certas leituras apressadas que pretendem aprisioná-lo no registro cômodo de um irracionalista – um pensador cuja tarefa consistiria, ingenuamente, em um mero ataque à “imemorial” separação entre o verdadeiro e o falso –, gostaria de iniciar minha exposição explorando um trecho da aula inaugural pronunciada pelo filósofo no Collège de France em 1970, posteriormente publicada sob o título de A ordem do discurso: Certamente, se nos situarmos no nível de uma proposição, no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se nos situarmos em outra escala, se levantarmos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos de nossa


história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se.1

Esta citação demarca suficientemente bem o registro no qual Foucault opera suas análises discursivas. Para o filósofo, não se tratava de abordar os enunciados do ponto de vista de sua validade proposicional: no nível da proposição – é o que se lê acima –, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Sendo assim, é em “outra escala” que devemos situar o trabalho realizado por Michel Foucault: tomando o discurso a partir de suas condições de enunciação e circulação, tratava-se de explicitar os efeitos de exigência e coerção exercidos pela norma do verdadeiro nos domínios aos quais ela é aplicável.2 Por verdade, Foucault compreende “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados”.3 Enunciados que terão como seu correlato indispensável práticas sociais e institucionais diversas. Pelos motivos expostos acima, a tarefa a que Foucault se propõe demanda uma “nova” démarche – ou método – no trato com a análise discursiva, um procedimento que suspenda a questão acerca dos critérios de validade dos enunciados proposicionais para explicitar o discurso em seus efeitos práticos de exclusão e partilha, por vezes, exclusão e inclusão para fixar identidades. Em consequência, o objeto das investigações foucaultianas não é exatamente a ciência, mas sim o saber: o discurso (independentemente de seu grau de cientificidade e/ou validade) compreendido em sua materialidade mesma como prática regrada e cotidiana de ordenamento de nossa experiência.4 Um saber como o da medicina, por exemplo, constitui, na medida de seu desenvolvimento histórico, uma reorganização da experiência do homem não doente e por isso mesmo também uma definição do homem modelo. Seu discurso de “verdade objetiva” suscita práticas de efeito normativo que “não apenas a autoriza a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas também a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que se vive”.5 Aqui se joga, a um só tempo, tanto a arqueologia como a possibilidade de uma genealogia. 1 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996, p. 14. 2 “Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo caso”. Cf. FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 53. 3 FOUCAULT, Michel. “Verdade e poder”. In: MACHADO, Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 15. 4 Para Foucault, o saber constitui certo nível particular de discursos que se situam entre a “opinião” e o “conhecimento científico”; discursos “cujo corpo visível não é o discurso teórico ou científico, nem tampouco a literatura, mas uma prática cotidiana e regrada”. É nesta medida – enquanto “prática cotidiana e regrada“ –, que se pode afirmar que o saber é o campo de um ordenamento discursivo da experiência. C.f. FOUCAULT apud ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. Paris: Flammarion, 1989, p. 183. 5 FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. Paris: Quadrige/PUF, 2003, p. 35. Igualmente ingênua seria a percepção de que se trataria, aqui, de desqualificar a medicina per si, como se fosse o caso de simplesmente “abandoná-la”: “De

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Portanto – e seguindo-se a expressão utilizada em A ordem do discurso –, para Foucault era preciso fazer emergir esta vontade de verdade (ou de saber) que se dissimula no discurso verdadeiro, mostrar que suas operações coincidem com o desejo e o poder: Não há nada de espantoso nisto, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; visto que – isso a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar”.6

Nosso ordenamento discursivo não é um campo neutro e ausente de práticas de exercício do poder. Ora, se o discurso é aquilo pelo qual se luta, o poder do qual queremos nos apoderar, isso se deve não “apenas” ao fato de tratar-se de um embate pela ocupação do lugar de titularidade da enunciação, mas também porque é sobre um ordenamento político-discursivo de manifestação do verdadeiro que se apoiam e se reforçam suportes institucionais de exclusão. Assim, segundo Foucault, “não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘política’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos”.7 Reativar significa: é necessário a reatualização das regras fixadas pelo jogo de identidades, regras que tornam a colocar em marcha, em cada uma de nossas enunciações, a mesma política de verdade. Neste sentido, os controles discursivos e as regras de regularidades que os compõe não deixam de ser princípios de coerção; enquanto tais “não são inócuos, mas, em seus efeitos sociais, veiculam determinado exercício de poder.”8 Portanto, o discurso não é o elemento neutro no qual a política se desarma e se pacifica, mas um âmbito capaz de engendrar determinado exercício de poder normativo cuja peculiaridade – dirá o Foucault de Vigiar e punir – consiste no fato de que ele incide sobre o corpo dos indivíduos a partir de técnicas de vigilância constante e gestão de condutas que visam a torná-lo dócil e útil: um poder de tipo disciplinar.9 Mas já aqui estamos no perímetro da genealogia, e não mais no de uma arqueologia. Ocorre que a fronteira entre ambas é móvel: de uma uma vez por todas, este livro não é escrito por uma medicina contra uma outra, ou contra a medicina, por uma ausência de medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo que tenta extrair da espessura do discurso [médico] as condições de sua história”. C.f., Idem ibidem, p. XVIII. 6 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 10 (Grifo nosso). 7 Idem ibidem, p. 35. 8 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 13. 9 Para dar uma definição concisa do poder disciplinar – conceito que terá tratamento sistemático em Vigiar e punir, obra de 1975 –, digamos que se trata de uma modalidade de poder nascida entre fins do século XVIII e início do século XIX, e que será descrita por Foucault em termos de uma “tecnologia política do corpo” que consiste em: 1. uma “arte de distribuição dos espaços” nos quais estão os indivíduos; 2. na regulação de seus gestos; 3 na vigilância constante sobre eles. Cf. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975, p. 31.

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a outra, e naquilo que o Foucault de A ordem do discurso chamará de empreendimento crítico, “a diferença não é tanto de objeto ou de domínio, mas sim de ponto de ataque, de perspectiva”.10 Ou ainda: A formação regular do discurso pode integrar, sob certas condições e até certo ponto, os procedimentos do controle (é o que se passa, por exemplo, quando uma disciplina [no sentido de campo do saber] toma forma e estatuto de discurso científico); e, inversamente, as figuras do controle podem tomar corpo no interior de uma formação discursiva (assim, a crítica literária como discurso constitutivo do autor): de sorte que toda tarefa crítica, pondo em questão as instâncias do controle, deve analisar ao mesmo tempo as regularidades discursivas através das quais elas se formam; e toda descrição genealógica deve levar em conta os limites que interferem nas formações reais.11

Entre a crítica arqueológica e a descrição genealógica, um nexo fundamental: não há poder sem regime de verdade; não há verdade sem regime de poder. “A ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regimes’ de verdade”.12 Assim, é preciso reconhecer algo mais na apropriação e no uso social do discurso dito verdadeiro, é preciso reconhecer o âmbito de um “combate pela verdade”: Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, ainda uma vez, que por verdade não quero dizer o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e atribui-se ao verdadeiro efeitos específicos de poder; entendo-se também que não se trata de um combate em favor da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.13

No curso que Foucault dará no Collège de France no ano letivo de 1975-1976, intitulado Em defesa da sociedade, encontramos um complemento adequado para a devida compreensão desta menção a um “combate em torno do estatuto da verdade”. Nesta ocasião, Foucault apresentará seu programa genealógico como um esforço destinado a 10 11 12 13

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FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 66-67. Idem ibidem, p. 66. FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 15. FOUCAULT, Michel. “Intervista a Michel Foucault”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001, p. 159.

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“desassujeitar” os saberes, isto é, a torná-los capazes de levar adiante uma oposição efetiva contra a “ordem do saber”. Tratar-se-á, portanto, da genealogia entendida como uma anticiência: uma insurreição dos saberes locais, desqualificados e não legitimados, “contra a instância teórica e unitária que pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns”.14 De uma parte, portanto, é preciso considerar que nem todas as regiões do discurso estão igualmente dispostas e abertas a qualquer conjunto de objetos ou sujeitos.15 De outra, no entanto, se é possível opor à ordem do saber discursos marginais, dispersos, desqualificados é porque, afinal de contas, a todo poder corresponde um contra-poder.

*** Não seria demasiado reconhecer em A ordem do discurso – tomando-a de modo lateral, nos limites do tema aqui em foco – um momento de intersecção entre a conhecida arqueologia (dedicada ao modo de inserção discursiva dos diversos sujeitos na condição de objetos para um saber ordenador) e a genealogia nascente nos anos 1970 (atenta à maneira como estes mesmos sujeitos, informados pelo saber ordenador, tornam-se o lugar de exercício de um poder caracterizado por divisões normativas).16 Em todo caso, sabemos que ainda será necessário ao Foucault de A ordem do discurso uma maior clareza da tarefa genealógica, futuros reparos metodológicos, bem como de sua articulação com a arqueologia. Ainda assim, talvez se pudesse ao menos considerar certa antecipação de pesquisa futuras em alguns dos momentos da aula inaugural de Foucault: (…) suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. Em uma sociedade como a nossa conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar

14 FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: cours au Collège de France (1975-1976). Collection “Hautes Études”. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, p. 10. 15 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 37. Neste caso, Foucault está se referindo a um conjunto de procedimentos que consiste em “impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam”. C.f. Idem ibidem, p. 37-38. 16 Em A ordem do discurso, o tema da genealogia refere-se ao contexto específico de investigação de “como se formaram, através, apesar, ou com o apoio desses sistemas de coerção [discursivos] séries de discursos; qual foi a norma específica de cada uma e quais foram suas condições de aparecimento, de crescimento e de variação”. Cf. Idem ibidem, p. 60-61.

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de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.17

Dos princípios de interdição listados por Foucault em A ordem do discurso – tabu do objeto, ritual da circunstancia, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito –, um deles será considerado como um princípio central, posto que os reúne a todos e os coloca em marcha: a oposição do verdadeiro e do falso.18 Eis o que Foucault chama de vontade de verdade. Não obstante sua importância, a vontade de verdade é o procedimento de interdição do qual “menos se fala”, o que significa dizer que ele é o que melhor se dissimula; e ele o faz porque reúne práticas que efetivamente estão na base das relações de exclusão levadas a cabo através da normatividade discursiva. Portanto, é preciso “escavar sob os próprios pés” para explicitá-lo: Só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocála em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa [por exemplo] de justificar a interdição e definir a loucura; todos aqueles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem agora nos servir de sinais, ativos sem dúvida, para o trabalho de todo dia.19

A vontade de verdade, sua explicitação, é a tentativa foucaultiana de fazer emergir o cruzamento das formas modernas do saber com o nexo de articulação que dissimula seus efeitos de poder; um poder exercido por práticas que alimentam e são alimentadas pela ordem discursiva vigente. Se o poder é uma instância ligada ao discurso do saber, é porque a produção de exclusões determinadas (ainda que dispersas em uma rede de relações) deita raízes na dimensão institucional do discurso verdadeiro como elemento legitimador de práticas de assujeitamento. E se as figuras de Nietzsche, Artaud e Bataille aparecem neste momento em A ordem do discurso – como “sinais ativos” aos quais é preciso seguir para o “trabalho do dia a dia” –, é porque a experiência literária e trágica destes personagens formaram a contraparte, o contra-discurso face à “experiência positiva” da loucura na modernidade, ou seja, sua captura como doença mental. O que significa que tais discursos funcionaram como resistência ao aprisionamento da loucura pela razão, justamente: um contra-poder. Em História da loucura, por exemplo, Foucault identificará nas experiências transgressoras de Nietzsche, Artaud e Bataille, entre outros, o “reaparecimento da loucura 17 Idem ibidem, p. 9. 18 Idem ibidem, p. 13. 19 Idem ibidem, p. 20-21.

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no domínio da linguagem, de uma linguagem na qual lhe era permitido falar na primeira pessoa e enunciar /…/ alguma coisa que tivesse uma relação essencial com a verdade”.20 Aqui, é preciso também fazer atenção às datas. A ordem do discurso foi pronunciada em 1970. Como sabemos, é neste momento que Foucault se dirige de fato para as tarefas políticas (“É aqui que se inventa o Foucault que todo mundo conhece, aquele das manifestações e dos manifestos, das ‘lutas’ e da ‘crítica’”).21 No ano de 1971, por sua vez, Foucault será um dos fundadores do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), agrupamento cujo objetivo era o de dar forma a um tipo de luta contra o poder que pudesse denunciá-lo “lá onde ele se exerce sob outro nome – aquele da justiça, da técnica, do saber, da objetividade”.22 Anos depois, e como momento tributário da experiência de Foucault junto ao GIP, a publicação de Vigiar e punir em 1975, a primeira obra propriamente genealógica de Foucault. É também neste contexto que se deve considerar a aula inaugural de Foucault no Collège de France: nela, já está presente não apenas o prenúncio de investigações futuras – como já fizemos notar –, mas também a projeção da “tarefa do dia a dia”, compreendida como a luta para tornar visíveis os mecanismos discursivos dissimuladores do poder. E o que são os “sinais ativos” de Nietzsche, Artaud e Bataille, senão o exemplo de uma experiência de luta contra o poder no sentido de trazer à luz aquilo que pretende se impor como um dado natural, o discurso verdadeiro sobre a loucura? Não era preciso “contornar a vontade de verdade” para recolocá-la em questão contra a própria verdade? Afinal, o pensamento de Nietzsche não foi aquele cuja tarefa era a de “diagnosticar [o presente] e não mais a de buscar dizer uma verdade que seja válida para todos os tempos”?23 20 FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l’âge classique. Collection Tel. Paris: Gallimard, 2007, pp. 535-536. 21 ERIBON, Michel Foucault, op. cit., p. 222. Não à toa, Eribon menciona a “multidão” que teria sido atraída para a aula inaugural de Foucault dizendo que, para a crônica da época, ela se assemelhava a “delegações enviadas por maio de 1968”. C.f. Idem ibidem, p. 225. 22 FOUCAULT, Michel. “Préface à Enquête dans vingt prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001, pp. 1063-1064. Em artigo dedicado às posições intelectuais de Sartre e Foucault, Renato Janine Ribeiro resume de modo adequado o ineditismo da ação política proposta pelo GIP: “O GIP foi algo inédito, pelo menos na França (a Anistia Internacional tinha, no mundo afora, uma atuação que recobria alguns de seus aspectos e ultrapassava outros, mas sem a doutrinação francesa). Não defendia os presos políticos em particular, mas – sobretudo – os de direito comum. Ora, os intelectuais, franceses ao menos, podiam se interessar pelos presos, mas só para conferir sentido e destinação a sua luta; pois foi justamente o que Foucault se proibiu.” Cf. RIBEIRO, Renato Janine. “O intelectual e seu outro: Foucault e Sartre”. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Departamento de Sociologia, v. 7, ns. 1-2, out. 1995, p. 169-170. 23 FOUCAULT, Michel. “Qui êstes-vous,professeur Foucault?”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 634. O leitor atento já deve ter notado, aqui como em ouros lugares, o acento nietzschiano das considerações de Foucault, a começar pelo uso do termo genealogia, bem como vontade de verdade: “Que sentido teria nosso ser inteiro, senão o de que, em nós, aquela vontade de verdade teria tomado consciência de si mesma como problema? Neste tomar consciência de si da vontade de verdade vai, de agora em diante – disso não há dúvida nenhuma –, a moral ao fundo”. Cf. NIETZSCHE, F. “Para a genealogia da moral”. In: Obras incompletas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 331. Mas trata-se apenas de um acento: seriam necessárias diversas mediações para compreendermos a apropriação de Nietzsche feita por Foucault, algo do qual não podemos nos ocupar nesta exposição. Ao leitor interessado, cf. o belo artigo de Oswaldo Giacóia a esse respeito: GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Filosofia da Cultura e Escrita da Historia: notas sobre as relações entre os projetos de uma Genealogia da Cultura em Foucault e Nietzsche”. In: O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, v. 03, 1990, p. 24-50.

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Como veremos a seguir, para Foucault a questão da intervenção política era a de fazer crescer nossa intolerância às diversas manifestações do poder veiculadas pelo discurso verdadeiro – ou o saber –, torná-la uma intolerância ativa: “Tornemo-nos intolerantes a propósito das prisões, da justiça, do sistema hospitalar, da prática psiquiátrica, do serviço militar, etc, [instituições assentadas em práticas normativas de saber/poder]”.24 Não é isto um contra-poder? Ou uma contra vontade de saber?

*** Dados os elementos apresentados até o momento, e tomando a prática política (em sentido foucaultiano) como esta atividade de intolerância ativa ao poder, seria o caso de nos perguntarmos acerca do papel reservado ao intelectual na arena da intervenção social. Vejamos estas palavras significativas pronunciadas por Foucault: O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional da produção da verdade. Não se trata de libertar a verdade de todo o sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, sociais) no interior das quais ele funciona no momento.25

Constituir uma nova política da verdade – eis o centro de uma atividade intelectual não mais conformada às formas tradicionais de intervenção política. Esta tarefa – cujo objetivo seria o de desvincular o poder da verdade das formas hegemônicas atuais –, requer um tipo intelectual que não é mais o portador da verdade de seu tempo, posto que isto significaria repor em circulação a mesma “política de saber” que a ele caberia denunciar. Não 24 FOUCAULT, Michel. “Sur les prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1044. Como exemplo ilustrativo, que se tome as palavras do Foucault de Vigiar e punir, relativa aos mecanismos do poder disciplinar em sua generalidade: “A psicologia é encarregada de corrigir os rigores da escola, como a entrevista médica ou psiquiátrica é encarregada de retificar os efeitos da disciplina de trabalho. Mas não devemos nos enganar: essas técnicas apenas mandam os indivíduos de uma instância disciplinar à outra, e reproduzem, de uma forma concentrada, ou formalizada, o esquema de poder/saber próprio de toda disciplina”. FOUCAULT, Surveiller et punir, op. cit., p. 186. Sendo assim, “Devemos ainda nos admirar se a prisão se assemelha às fábricas, às escolas, às casernas, aos hospitais, e que todos eles se pareçam com as prisões?”. C.f. Idem ibidem, p. 187. 25 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14.

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se trata tampouco de “propor uma ideologia justa” ou libertar a verdade do jogo do poder, sob pena de desconsiderar o vinculo existente entre exercício do poder e a manifestação da verdade. Trata-se, ao contrário, da formação de um tipo de intelectual cuja atividade consistiria em denunciar as formas de exercício de poder e assujeitamento implicadas no trabalho da racionalidade dominante. Em lugar do intelectual universal, o intelectual específico, aquele que assinala seu engajamento em combates pontuais, locais, e não no campo do princípio de uma universalidade abstrata da qual ele seria portador: O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco à frente ou um pouco ao lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do “discurso”. É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local, regional /…/, não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso.26

A teoria como prática nos remete a um ponto importante da tarefa intelectual: não se trata tanto de possuir o saber do poder, mais sim de denunciar o poder do saber. Se a teoria é já uma prática – “local, regional” –, é porque as formas vinculantes do poder não são aquelas de uma unidade homogênea e facilmente identificável; se a intervenção política é pontual, isso ocorre não por deficiência da ação, mas pela exigência (ela própria genealógica) de que é preciso ferir o poder em seu exercício regrado e cotidiano, em seu registro capilar: lutas concernentes ao aparato judiciário, à medicina, à psiquiatria, à sexualidade. “Se faço as análise que faço”, dirá Foucault nos anos 1970, “não é porque há uma polêmica que eu gostaria de arbitrar, mas porque fui ligado a certos combates: medicina, psiquiatria, penalidade”.27 Trata-se, para este intelectual, de promover o desmascaramento da realidade política das relações entre e verdade e poder. Uma tal caracterização do trabalho intelectual, por sua vez, responde à analítica do poder desenvolvida por Foucault: todo saber é político, e já a arqueologia, ao não nos remeter a um sujeito fundador28, deve desdobrar-se no reconhecimento (genealógico) de que são as relações de poder que constituem os sujeitos como objetos do discurso verdadeiro, conformando-os aos esquadros do saber/poder. Em outros termos: a analítica foucaultiana do poder nos remete justamente às relações históricas da “forma sujeito” em sua articulação com as regras que instituem domínios de sujeição e objetivação dos indivíduos por 26 FOUCAULT, Michel. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: Dits et écrits I. 1954-1975, op. cit., p. 1176. 27 FOUCAULT, Michel. “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 29. 28 FOUCAULT, A ordem do discurso, op. cit., p. 46-49.

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meio dos mecanismos de poder veiculados pelo discurso verdadeiro (“o indivíduo é um produto do poder”, dirá Foucault).29 E se o intelectual deve se pronunciar a partir do lugar de fala que ocupa, é porque sua tarefa é aquela de luta e resistência contra um poder que pretende destinar a cada qual sua identidade e localidade fixas: afinal, nas identidades que ocupamos, e que nos são dadas como universais, necessárias e obrigatórias, “qual é a parte que é singular, contingente e devida a constrangimentos arbitrários?”30 Neste ponto, mesmo o discurso filosófico se vê implicado: “Há sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade, e como encontrá-la”.31 Feitas todas as contas, para Michel Foucault “a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade”.32 Poder, política e verdade – com efeito, é disto que se trata.

Bibliografia ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. Paris: Flammarion, 1989. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975. ______. “Verdade e poder”. In: MACHADO, Roberto (org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ______. L’usage des plaisirs. In: Histoire de la Sexualité, v. 2. Bibliothèque des Histoires. Paris: Gallimard, 1984. ______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. ______. Il faut défendre la société: cours au Collège de France (1975-1976). Collection “Hautes Études”. Paris: Gallimard/Seuil, 1997. ______. “Préface à Enquête dans vingt prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Sur les prisons”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Les intellectuels et le pouvoir”. In: Dits et écrits I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Intervista a Michel Foucault”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Préface”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Questions à Michel Foucault sur la géographie”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. 29 FOUCAULT, “Préface”. In: Dits et écrits II. 1976-1988, op. cit., p. 135. 30 FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Dits et écrits II. 1976-1988, op; cit., p. 1393. 31 FOUCAULT, Michel. L’usage des plaisirs. In: Histoire de la Sexualité, v. 2. Bibliothèque des Histoires. Paris: Gallimard, 1984, p. 15. 32 FOUCAULT, “Verdade e poder”, op. cit., p. 14 (Grifo nosso).

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______. “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. “Qu’est-ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001. ______. Naissance de la clinique. Paris: Quadrige/PUF, 2003. ______. Histoire de la folie à l’âge classique. Collection Tel. Paris: Gallimard, 2007. GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. “Filosofia da Cultura e Escrita da Historia: notas sobre as relações entre os projetos de uma Genealogia da Cultura em Foucault e Nietzsche”. In: O Que nos Faz Pensar, Rio de Janeiro, v. 03, 1990. NIETZSCHE, F. “Para a genealogia da moral”. In: Obras incompletas. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. RIBEIRO, Renato Janine. “O intelectual e seu outro: Foucault e Sartre”. In: Tempo Social: revista de sociologia da USP. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento de Sociologia, v. 7, ns. 1-2, out. 1995.

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André Constantino Yazbek é professor de Filosofia Contemporânea da Universidade Federal de Lavras.

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SEM NOME NÃO SEI DE TI CARLOS ROSA*

(o atrito entre rochas nas profundidades produz o Tsunami) , e o Tsunami sabe de desastres, não sou de atentar nos malabarismos da mídia, a natureza tem seu fluxo, homens não passam de pó na orla, a morte é do jogo, mas é a articulação camuflada e invisível nos sinistros que me interessa e me leva a fruir ; os pássaros, estes são eternos (melhor desligar a TV e sair à caça de alguma bala perdida) , assim também o sobrenadar litígios linguísticos, marcar caminhos no deserto, tanto faz o número de atalhos, quantos mais, melhor, é da regra multiplicidades, delírios e diferenças, e a morte estará sempre atrelada ao gozo, derradeiro orgasmo gerador das inquietudes que nos levam a Marte (depois, que mostrem os dentes todos os vulcões) , inferno e céu são produtos da insanidade incandescente, agonizam lentamente diante de bonecas infláveis e Santo Daime, nem Deus nem o Diabo sabe da vida, muito menos o homem além do que chama de ciência, o herói contemporâneo seria musculoso e reforçaria o peitoral e o deltoide exercitando-se com a cruz, Cristo neobarroco (o acaso e o caótico a roer infinitudes) , banalizada a morte, narcísea a humanidade, estes são tempos de consumo, um morrer maquiado com registros geográficos na pele, um casal de sabiás e a primavera florida são


minhas metamorfoses naturais, 1995 foi o ano em que uma metamorfose bacilar e outra no DNA levaram a árvore que criou Mille Plateaux e Anti-Oedipus (os simulacros não falam da mecânica visceral) , existem os periféricos, na maioria desempregados e jovens que inventam “hokundaimes”, figuras imaginárias de um mundo em guerra virtual, os exóticos como na série Narcissism de Jennifer Allen , as interferências naturais de Alex Hartley ou as esculturas neobarrocas de Tonny Cragg (alguém pensará que estou a vomitar referências por me achar) , apenas folheio Frieze, fotografia como estilo de vida, um entre tantos instrumentos de distração e manipulação conceitual, poderia fazê-lo com as revistas Caras e Cult, a pornografia de Zéfiro, sem possibilidade de consumo a periferia sonoriza ou lota as igrejas evangélicas (as mulheres e os homens desfilam em todos os ópios da vida) , a jovem africana em teste para modelo veste a pouca roupa com sua pele, quase nua, inversão do olhar, fotografias permitem devaneios circenses, as coxas carnosas e um olhar divorciado do corpo, de fundo a pele de um tigre em extinção, poderia ser a dela, eu nas duas cadeiras vazias, natureza morta não fosse o vento e o pássaro a ciscar distrações (não havendo indícios de morte violenta, enterrem o corpo sem mais) , são do homem burocracias e tecnocracias insalubres, atestar o óbito é ter a certeza absoluta do fim da carne, se arte é vida, a morte mais uma vez fica à mercê e órfã, caldo amorfo do caos, mas não estou aqui para armar palavras no vento, sou mais de rastros nas invisibilidades, das osmoses e rasuras nos desertos, como o urubu sobrevoo as carniças e o abstrato dos restos, vapor fruto da putrefação e desejoso de fogo, caçador de impertinências (o virtuoso na arte está em Bachelard e no lixo acumulado nas cooperativas) , identificar o escroto como escroto, o lixo como lixo, é obra do estruturalismo, Não fosse o cheiro, o lixo seria uma obra de arte, Maria Gabriela Llansol, o olhar das recicladoras no entorno souberam da sensibilidade de Paulo Bruscky, identificar o imponderável nos terços e nas rezas é como procurar a luz no silêncio e o ruído na escuridão (montei uma teia de aranha nos olhos e deixei-os vagar nas desoras das bibliotecas)

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, devemos captar os sons, atentar para o grafite, palavras sem mistérios sonoros e cromáticos não contemplam a plenitude, não haverá amor sem a estranheza a carregar o sentimento de raiva, é questão de matar ou avantajar-se na direção do abismo, a inquietude está na morte desde a origem (morrer é viajar na escuridão e na mudez, ser raiz) , no não lugar encontram-se as oportunidades aquosas, a alquimia dos sais, o olhar deve ter o viés da cegueira para acentuar a forma, o cheiro e a sonoridade do que invisível e inacabado, sem a fala de aprisionados no céu da boca, que o fluxo vaporiza através do arcabouço ósseo, como um rio (e vem de longe o pensar fruídos e osmóticos) , morrer é esse lançar-se e diluir-se nas águas, não é de profundidades aquosas o corpo, nem a alma de alturas, o dodecafônico dos reflexos vocais foram registrados nas pedras ou em livros, é do cupim criar estranhezas em linearidades e imagens, o tempo tem essa função no pensamento humano (nas ruas, o diálogo das fuligens adormecem borboletas) , há fissuras e canais na terra e no ar, está mais fácil alcançar Roma que o amor, as pulgas e os carrapatos sabem mais de nosso sangue que a ciência, a vulva esconde a essência que a orquídea apresenta sem temor ao inseto, é preciso avançar no emaranhado e abrir portas para sentir a cor, o sabor e o aroma do fruto procriador (de borboletas, sei apenas do agitar delicado de suas asas) , os destroços sabem da realidade de suicidas que se lançam no vazio e acolhidos pelo asfalto já não oxigenam a matriz, a casa da justiça sabe fazer lero-leros de palavras, São João da Cruz poetizou nas paredes da prisão, a perversidade reconhece as dobras da inocência e das letras (já não sei da água, do ar e do fogo) , se sei de algo é que mais não sei, o derradeiro sabe da ilusão de sua existência, em folha me encolho na dormência da noite, se verbo há deve ser delírio de vento, depois só o sonho sabe de falésias, falácias e cios… *

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Carlos Rosa é poeta e contista. E-mail: <meiotom@uol.com.br>.

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La casada infiel A casada infiel A Lydia Cabrera y a su negrita

Y que yo me la llevé al rio creyendo que era mozuela, pero tenía marido. Fue la noche de Santiago y casi por compromiso. Se apagaron los faroles y se encendieron los grillos. En las últimas esquinas toqué sus pechos dormidos, y se me abrieron de pronto como ramos de jacintos. El almidón de su enagua me sonaba en el oído, como una pieza de seda rasgada por diez cuchillos. Sin luz de plata en sus copas los árboles han crecido, y un horizonte de perros ladra muy lejos del río. Pasadas las zarzamoras, los juncos y los espinos, bajo su mata de pelo hice un hoyo sobre el limo. Yo me quité la corbata. Ella se quitó el vestido. Yo el cinturón con revólver. Ella sus cuatro corpiños. Ni nardos ni caracolas tienen un cutis tan fino, ni los cristales con luna relumbran con ese brillo. Sus muslos se me escapaban como peces sorprendidos, la mitad llenos de lumbre, la mitad llenos de frío.

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E eu que a levei ao rio achando que ainda era moça, mas ela tinha marido. Foi na noite de São Tiago e foi quase um compromisso. Os lampiões se apagaram e acenderam-se os grilos. Nas últimas esquinas toquei seus seios dormidos, e se abriram na hora como ramos de jacintos. A goma de sua anágua me soava nos ouvidos, como uma peça de seda rasgada por dez facas. Sem luz de prata nas copas as árvores cresceram, e um horizonte de cães ladra léguas do rio. Passadas as amoreiras, os juncos e os espinheiros, debaixo de sua vasta juba fiz um ninho sobre o limo. Eu me livrei da gravata. Ela se livrou do vestido. Eu o cinturão com revólver. Ela seus quatro corpetes. Nem nardos nem caracóis têm uma pele tão fina, nem a lua nos cristais brilha com esse brilho. Suas coxas me escapavam como peixes surpreendidos, metade cheios de lume, metade cheios de frio.

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Aquella noche corrí el mejor de los caminos, montado en potra de nácar sin bridas y sin estribos. No quiero decir, por hombre, las cosas que ella me dijo. La luz del entendimiento me hace ser muy comedido. Sucia de besos y arena, yo me la llevé del río. Con el aire se batían las espadas de los lírios. Me porté como quien soy. Como un gitano legítimo. La regalé un costurero grande de raso pajizo, y no quise enamorarme porque teniendo marido me dijo que era mozuela cuando la llevaba al río.

Aquela noite percorri o melhor dos caminhos, montado em potra de nácar sem rédeas e sem estribos. Não quero dizer, por honra, as coisas que ela me disse. A luz do entendimento me faz ser bem comedido. Suja de beijos e areia, levei-a embora do rio. Com o vento se batiam as espadas dos lírios. Portei-me como quem sou. Como um legítimo cigano. Dei-lhe uma cesta de costura grande de liso palhiço, e não quis cair de amores porque ela tendo marido me disse que ainda era moça quando eu a levava ao rio.

Federico Garcia Lorca Traduzido por Guilherme Mansur

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Guilherme Mansur é poeta, tradutor e artista gráfico. E-mail: <guimamba@gmail.com>.

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REALISMO MILAGROSO

Espinosa, Deleuze, e Luz Silenciosa de Carlos Reygadas1

NIELS NIESSEN* (Tradução de Hugo Castilho dos Reis e Josette Monzani. Revisão filosófica de Luiz Henrique1 Monzani)2 A tela não é um suporte, não como a tela da pintura; não há nada que suportar, nesse sentido. Ela retém a projeção, leve como luz. Stanley Cavell, The World Viewed3 O cristal é expressão. Expressão move-se do espelho à semente. Gilles Deleuze, Cinema 2: Imagem-tempo4

Um certo espírito5 Apenas ao representar o miraculoso pode a imagem cinematográfica conquistar a verdadeira imanência; isto é, tornar-se uma representação, com seu milagre imanente. Tal foi meu primeiro pensamento – e talvez exageradamente idealista – após ter assistido o filme Luz Silenciosa (Stellet Licht, 2007),6 de Carlos Reygadas, um desses raros filmes que podem ser vistos muitas vezes, mas sentido uma única vez. A ideia de milagre imanente eu trago de Alessia Ricciardi que, no artigo de 2007 “Immanent Miracles: from De Sica to Hardt and Negri”, desenvolveu o conceito a partir de sua leitura do filme Milagre em Milão (Miracolo a Milano, 1951)7 de Vittorio de Sica. No final deste filme – um dos muitos tidos como um marco do fim do neorrealismo italiano – Totó, o escolhido, guia os pobres da periferia de Milão para a terra prometida – onde “bom dia, realmente quer dizer bom dia” – por meio da concessão de seus poderes mágicos às vassouras dos varredores de rua da cidade. Ricciardi escreve, 1 Artigo originalmente publicado na revista Discourse, 33.1, Inverno de 2011, Wayne State University Press, Detroit, Michigan, p. 27-54. Republicado aqui com autorização do autor. 2 Hugo Reis é mestre pelo programa de Imagem e Som (UFSCar), pesquisador do cinema de Carlos Reygadas; Josette Monzani é profa. dos Mestrados em Imagem e Som e Estudos de Literatura da UFSCar. Luiz Henrique Monzani é doutorando em filosofia pela UFSCar e bolsista CAPES. 3 Cavell, Stanley. The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, edição ampliada, Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979, 24. 4 Deleuze, Gilles. Cinema 2: The Time-Image, trad. Hugh Tomlinson e Robert Galeta, London: Continuum, 2005, 72. No Brasil: DELEUZE, G. A imagem -tempo. Trad: Eloísa de Araujo Ribeiro. Revisão filosófica: Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. 5 Nota do autor: Gostaria de agradecer a Cesare Casarino e Adair Rounthwaite pelos comentários sobre versões anteriores deste ensaio. 6 Co-produção do México, França, Países Baixos e Alemanha. 7 Produção italiana.


Em última análise […] podemos dizer que Milagre em Milão representa alegoricamente, no vôo final dos pobres, a capacidade paradoxal do filme neorrealista de converter pessimismo em um ato de fé imanente, dado que um milagre só pode emergir de uma perspectiva contingente e imanente. Talvez essa seja a razão pela qual muitos críticos veem Milagre em Milão como o último filme neorrealista, como um tipo de apoteose da forma que tornou explícita as reivindicações do neorrealismo, não para com o realismo, mas para com a fé e a crença no mundo.8

Nesse ensaio, irei empregar o conceito paradoxal de milagre imanente para discutir as aspirações mágicas do cinema para redimir a realidade. Irei analisar as implicações do desejo do cinema de realizar o impossível e de revelar o mundo. O que é uma imagem que busca tornar-se una com seu objeto de representação? Como alguém reconhece este milagre pelo qual o cinema aspira a se tornar o mundo? E o milagroso, como sugere Ricciardi, implica necessariamente numa fuga da imanência e do realismo? São questões como essas que irei abordar ao longo de minha discussão sobre o filme Stellet Licht, o qual lerei seguindo a Ética, de Bento Espinosa (publicado postumamente em 1677). Entretanto, não irei tratar o filme de Reygadas como uma expressão direta da teoria da imanência de Espinosa, porque rotular Luz Silenciosa como um texto “espinosista”, excluiria outras interpretações mais místicas do filme. Tão pouco irei usar o elaborado tratado de Espinosa sobre as emoções como uma ferramenta analítica para dissecar o dilema moral do protagonista de Stellet Licht, um fazendeiro menonita – porque o problema de Johan é por demais clássico para isso: ele se apaixonou por outra mulher que não sua esposa, mãe de seus filhos. Mesmo assim, o filme de Reygadas compartilha um certo espírito com a filosofia de Espinosa. Não só seria um erro conceber Espinosa como um pensador secular, dado que ele se ofendeu ao ser chamado de ateísta,9 como ainda muitos de seus amigos e defensores eram menonitas.10 Portanto, sugiro que a milagrosa imagem-tempo que é o filme de Reygadas mostre-se relevante para a compreensão do terceiro tipo de conhecimento ou

8 Ricciardi, Alessia. Immanent Miracles: from De Sica to Hardt and Negri. Modern Language Notes 122, n. 5 (2007): 1138–65, citação em 1157. 9 Ver, por exemplo, Balibar, Étienne. Spinoza and Politics, trad. Peter Snowdon , London: Verso, 1998, 6. 10 Como Gilles Deleuze aponta em seu Spinoza: Practical Philosophy, trad. Robert Hurley, San Francisco: City Light Books, 1988, o Treatise on the Emendation of the Intellect (1632-77) de Espinosa, se inicia de maneira menonita, seguindo um itinerário espiritual. Além disso, durante sua vida, Espinosa fez amizade com vários menonitas, que também foram responsáveis pela publicação de alguns de seus livros após sua morte. No entanto, ao invés de ver as influências do panteísmo menonita na filosofia de Espinosa, Deleuze explica esse contato pelo fato de Espinosa ter sido atraído pela tolerância do círculo menonita. No Brasil, ambos os livros encontram-se publicados. Cf: DELEUZE, G. Espinosa. Filosofia prática. Trad. de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. Rev. téc: Eduardo D. Bezerra de Menezes. São Paulo: Escuta, 2002; e, SPINOSA, B. Tratado da correção do intelecto. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Homepage do grupo: <http://br.egroups.com/group/acropolis/>. Ainda pode ser consultada: ESPINOSA, B. Tratado da reforma da inteligência. Trad. e notas: Lívio Teixeira. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1966.

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intuição em Espinosa, especialmente em função da temporalidade que este conhecimento, este desenho do milagre imanente, envolve. O conceito de imagem-tempo é obviamente retirado dos dois livros Cinema de Deleuze, ambos interessados em imagens do tempo. Enquanto imagem-movimento, subtítulo de Cinema I (1983), refere-se a uma representação indireta do tempo, na qual o tempo é subjugado ao movimento, imagem-tempo, subtítulo de Cinema II (1985), apresenta uma imagem direta, imediata do tempo. Embora Deleuze deixe claro, desde o início de seu projeto, que “não se trata de uma história do cinema”, mas de “uma taxonomia, uma tentativa de classificação das imagens e dos signos”,11 existe ali, definitivamente, um fio histórico que percorre os dois volumes.12 Apesar de seus esforços para não apresentar a passagem da imagemmovimento para a imagem-tempo como um progresso, Deleuze também não esconde seu entusiasmo para com os filmes que conseguem realizar a promessa do cinema, uma imagem do tempo, mais diretamente. O tipo de imagem-tempo no qual o tempo puro se torna mais palpável é, sem dúvida, a imagem-cristal: “Este é o tempo, aquele que nós vemos no cristal […] Nós vemos no cristal a perpétua fundação do tempo, o tempo não cronológico, Cronos e não Cronos. Essa é a poderosa Vida não-orgânica que controla o mundo.”13 O tempo não-cronológico ou a eternidade - sendo também a temporalidade da intuição em Espinosa, a imagem do cristal e a imagem-cristal ajudarão a elucidar algumas das mais controversas, porque sem dúvida mais místicas, passagens da parte 5 da Ética. Além disso, os termos em que Deleuze, que pensa o cinema como expressão da subjetividade, discute a imagem-cristal diretamente ressoam algumas das passagens mais cruciais do seu Expressionism in Philosophy: Spinoza (Spinoza et le problème de l’expression, 1968). Essa ressonância torna ainda mais notável o fato de que o nome de Espinosa seja mencionado apenas duas vezes (em notas de rodapé) em todo o projeto Cinema.14 Pode Luz Silenciosa ser classificado como uma imagem-cristal? Eu diria que sim, embora este vislumbre do “tempo puro” opere de forma muito diferente daquele de O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais (L’Année dernière à Marienbad, 1961),15 por exemplo. Por ser citado de forma recorrente em Cinema 2, incluindo o capítulo sobre o cristal, o filme de Resnais torna-se o arquétipo da imagem-tempo. Mas, Stellet Licht não é apenas 11 Deleuze, Gilles. Cinema 1: The Movement Image, trad. Hugh Tomlinson e Barbara Habberjam, London: Continuum, 2005, xix. No Brasil: Imagem-Movimento. Trad: Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. 12 Deleuze apresenta essa transição de um cinema do movimento para um cinema do tempo como um processo que se dá de modo distinto em diferentes momentos e em diferentes lugares. Um fator constante é que esta transição é marcada por “uma crise da imagem-ação”, sendo essa imagem-ação indicativa de um tipo de cinema que se tornou dominante no período que se estende até a Segunda Guerra Mundial. Deleuze escreve em Cinema 1, “Foi antes de tudo na Itália que se deu a grande crise da imagem-ação. A data foi algo em torno de 1948, na Itália; 1958, na França; 1968, na Alemanha” (215). 13 Deleuze, Cinema 2, 79, ênfase no original. 14 A ausência de Espinosa é implicitamente compensada pelo fato de que os livros Cinema são em grande parte estruturados em torno da epistemologia de Henri Bergson, formulada em Matéria e Memória (Matière et mémoire, 1869). A teorização de Bergson sobre a relação entre o sujeito do conhecimento, da memória e do mundo – uma teorização segundo a qual o sujeito, entendido como o locus da experiência, seria uma imagem que, simultaneamente, é especial e totalmente imanente à imagem que é o mundo – é amplamente compatível com a teoria da imanência de Espinosa. 15 Produção França/Itália.

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um exemplo nesta dança entre cinema e filosofia; é um exemplo privilegiado. Além da proximidade espiritual entre seu realismo milagroso e o sistema de Espinosa, isto também se dá por outras duas razões. Primeiro, Stellet Licht, como irei argumentar, opera em dois registros simultaneamente, um realista e diacrônico, e outro milagroso e sincrônico. Ao fazer isso, ele não só produz uma imagem cristalina, mas também mostra a passagem do movimento para o tempo e da representação para a expressão. Em segundo lugar, o filme de Reygadas cita fortemente e, ao mesmo tempo vai além, de maneira significativa – em termos de produzir uma imagem-tempo milagrosa – do que A Palavra (Ordet, 1955),16 de Carl Dreyer. Dreyer é um dos poucos diretores que Deleuze discute tanto em relação à imagem-movimento quanto em relação à imagem-tempo. Em Cinema I, Deleuze descreve Dreyer como um diretor da imagem-tempo avant la lettre:17 Ao suprimir a perspectiva “atmosférica”, Dreyer produz o triunfo de uma perspectiva propriamente temporal ou até mesmo espiritual. Achatando a terceira dimensão, ele coloca o espaço bidimensional em relação imediata com o afeto, com uma quarta e quinta dimensão, Tempo e Espírito.18

As maneiras pelas quais Stellet Licht cita Ordet , que numa entrevista Reygadas chama de “um milagre do cinema”,19 são numerosas, incluindo elementos narrativos, mise-en-scène, diálogo, nomes dos personagens, ritmo e atmosfera. Stellet Licht certamente também é, parafraseando Deleuze, “o triunfo de uma perspectiva propriamente temporal ou até mesmo espiritual” – como foram os filmes anteriores de Reygadas, Japón (2002)20 e Batalha no Céu (Batalla en el cielo, 2005).21 Igualmente importantes, porém, são as diferenças entre os dois filmes. Ao contrário de Ordet, Luz Silenciosa é em cores, cuja importância não pode ser subestimada; Reygadas engendra “perspectivas atmosféricas” de paisagens pictóricas 16 Produção dinamarquesa. 17 Essa chegada anacrônica é parte do que compõe a imagem-tempo. Porque mesmo que a “alma do cinema” (Cinema 1, 210) tenha passado do movimento para o tempo no curso do século XX, simultaneamente, a imagem-tempo direta sempre esteve lá. Deleuze escreve em Cinema 2, “A imagem-tempo direta é o fantasma que sempre assombrou o cinema, mas coube ao cinema moderno dar corpo a este fantasma” (40). 18 Deleuze, Cinema 1, 110-11. Esta passagem é tomada de um trecho de Cinema 1, no qual Deleuze discute Dreyer em relação à imagem-afeto, o tipo de imagem-movimento que Deleuze associa ao close-up. Para Deleuze, a epítome da imagem-afeto é o filme de Dreyer, A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928). 19 Na mesma entrevista, Reygadas também fala sobre suas outras influências: “Eu gosto muito de Roberto Rossellini, dadas as condições em que ele teve que filmar, com tudo o que havia lá… Para mim, Dreyer também é grande. Ordet (1954) é um dos filmes mais emocionantes que eu já vi na minha vida, um milagre do cinema. Bresson também é um mestre, especialmente na forma como ele trabalha com não-atores e como usa o som. A Man Escaped (1956) é um favorito. Tarkovsky foi o que realmente abriu meus olhos. Quando vi seus filmes, percebi que a emoção poderia sair diretamente do som e da imagem e não necessariamente a partir da contação de histórias” (citado em Tiago de Luca, “Carnal Spirituality: the films of Carlos Reygadas”, Senses of Cinema 55 [2010], www.sensesofcinema.com/2010/featurearticles/carnal-spirituality-the-films-of-carlos-Reygadas-2 / # 2 [acesso em 18 de Dezembro 2010]). 20 México et al. 21 França et al.

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cinematográficas por todo o filme; e, mais importante, enquanto o milagre de Ordet aparece como um momento isolado, Stellet Licht é inteiramente feito de matéria milagrosa.

Luz silenciosa Do início ao fim do filme de Reygadas, o tempo está fora dos eixos. Stellet Licht é emoldurado por duas longas e lentas tomadas panorâmicas “aceleradas” do nascer e do pôr do sol, acompanhadas por sons da natureza: grilos, pássaros, uma vaca (figura 1). Através da ilusão de tempo real que esses longos planos criam, dificilmente se percebe que imagem/som, que tem um tempo normal, não está em sincronia. Entre estes dois planos se passa um “dia” cinematográfico com mais de duas horas de duração, ao longo do qual as estações mudam enquanto o tempo em si é levado a uma imobilidade.

Figura 1 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

A história se passa em uma comunidade menonita ao norte do México, e a maior parte do diálogo é em Plautdietsch, originalmente uma variedade baixo-prussiana do baixo-alemão oriental, com influências holandesas e frisianas. (Os espectadores com conhecimento de alemão, holandês ou dinamarquês serão capazes de compreender pedaços, embora essa não fosse a intenção de Reygadas).22 A maior parte do filme acompanha Johan (Cornelio Wall), um fazendeiro de meia-idade casado com Esther (Miriam Toews), com quem tem sete filhos. Porém, Johan agora ama Marianne (Maria Pankratz), sua “mulher 22 Numa entrevista com Reygadas publicada no jornal holandês de Volkskrant (Amsterdam) ele expõe sua intenção com a relação entre o Plautdietsch falado e as legendas, que nem sempre traduzem literalmente as palavras dos personagens: “Ninguém no cinema entende aquela linguagem, oferecendo a Reygadas a possibilidade de manipular as legendas de acordo com sua própria visão. ‘Dessa forma eu poderia manter o texto universal e neutro o tanto quanto possível’” (ver Bor Beekman, “Acteurs Schaden de Film”, Cinema.nl, www.cinema.nl/artikelen/3205063/acteurs-schaden-de-film [acesso em 1 Novembro 2009], tradução nossa). Em outras palavras, neste filme, os subtítulos não são simplesmente uma tradução do diálogo sobre a banda sonora, mas pertencem ao original e, nesse sentido, são parte integrante da imagem.

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natural”, tal como seu pai (Peter Wall) a chama durante uma discussão sobre o dilema moral em que o filho se encontra. Johan não sabe se o seu amor por Marianne é obra de Deus ou do Diabo, mas, como ele confessa ao pai: “Se isso é obra do diabo, eu sinto pena de mim mesmo. Verdadeiramente! Mas agora eu preciso saber quem é a mulher que devo amar”. “Eu não posso lhe dizer o que fazer”, seu pai responde, “mas eu sei que se você não agir rapidamente, você vai perder as duas”. Esther sabe sobre o amor de Johan por Marianne, porque ele foi honesto com ela, e sofre em silêncio. O ritmo do filme é lento, penosamente lento às vezes, filmado e produzido no que poderia ser chamado de estilo neorealista clássico: atores não-profissionais, filmagens em locação (na pequena cidade de Cuauhtémoc, Chihuahua), planos extremamente longos, pouco diálogo etc.23 Simultaneamente, porém, sob sua superfície minimalista, a história abriga uma tensão quase Lyncheana, que se torna mais palpável na sequência próxima ao fim, na qual Johan e Esther estão passando por uma tempestade na estrada. “Se lembra de quando nós amávamos viajar assim?” Esther interrompe seu silêncio. “Nós não parávamos de cantar. Estávamos sempre felizes […] Não importava como estava, estar ao seu lado já era o puro sentimento de estar viva. Eu fazia parte do mundo. Agora eu estou separada dele. […] Como eu queria que fosse tudo um sonho ruim”. Ela chama Marianne de “prostituta”, mas também sente pena dela. “Pobre Marianne”, diz ela. A cena contém várias sugestões para um iminente acidente de carro, mas, ao invés disso, Ester passa mal e Johan pára o veículo. Tendo desaparecido na chuva, Esther desaba. “Estou com frio, Johan”, diz ela para si mesma, enquanto seu vestido fica encharcado, antes que caia junto a uma árvore. Quando Johan vai à procura dela, ele a encontra inconsciente e, provavelmente, já morta. “Meu nome é Johan. Esta é minha esposa. Seu nome é Esther”, diz ele fora do quadro, num espanhol mal falado, a dois motoristas de caminhão. “O inimigo é implacável”, seu pai lhe diz enquanto se encontra ao lado do caixão de Esther. “Não é o Diabo ou qualquer outra pessoa. Sou eu”, Johan responde, e em seguida se ajoelha, não para rezar, mas para chorar. Stellet Licht parece se desdobrar como uma representação minimalista de um homem que vê todas as suas verdades despedaçadas e que toma consciência que sua culpa não é pré-determinada por forças transcendentais mas, em lugar disso, é completamente imanente ao seu próprio desejo. Em aparente contraste com o rígido sistema de crenças da comunidade que representa, o filme cria uma expectativa em sua audiência de um texto cinematográfico que simplesmente mostra e que é desprovido de qualquer profundidade simbólica ou espetacular. Esta é precisamente a razão pela qual seu desfecho milagroso funciona; quer dizer, produz um afeto no espectador, e, em retrospectiva revela a imagem 23 Demorou três anos para Reygadas estabelecer relações com a comunidade menonita do norte do México, retratada no filme, e que é também a comunidade à qual Cornelio Wall, que interpreta o papel de Johan, pertence. No Canadá, em outra comunidade menonita, Reygadas encontrou Miriam Toews, que interpreta Ester. Maria Pankratz (Marianne), que é de origem alemã-casaquistã, ele só descobriu depois de ter alugado um apartamento em Amsterdam e procurado comunidades de agricultores holandeses e alemães (ver Beekman, “Acteurs Schaden de Film”).

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do filme, ambas, a matéria cinematográfica e seu produto, imersa no poder divino extraído da tela preta com a qual o filme inicia. Somente através dos grilos na trilha sonora a tela preta revelou-se ser a noite. No final do filme, quando esta negritude retorna, não só a crença de Johan, mas também a crença do espectador no mundo foi despedaçada, dado que ele já não mais sabe a que está assistindo ou a que esteve assistindo. Stellet Licht não se limita meramente a representar um milagre; isto é, a mostrar seus efeitos. Ao invés disso, torna-se o próprio milagre. O leitor que ainda não assistiu ao filme de Reygadas (ou a Ordet, de Dreyer) deve estar avisado que os parágrafos seguintes irão “prejudicar” a experiência da primeira fruição de Stellet Licht, porque, como eu já disse, seu milagre só funciona uma vez. “Eu daria tudo para voltar no tempo… voltar para as coisas como elas costumavam ser”, Johan diz a Marianne do lado de fora de sua casa, na qual o corpo de Esther foi colocado. “Essa é a única coisa na vida que não podemos fazer, Johan”, é a resposta dela. Enquanto abraça Johan, Marianne olha para o sol e estica o braço. O plano seguinte, que coloca o espectador em posição da subjetiva dela, mostra a sua mão cobrindo o sol, não para proteger os seus olhos, mas para tocar a luz (figura 2). Imediatamente depois disso ela vai ver Esther. Sozinha no quarto branco imaculado, Marianne permanece imóvel em frente ao caixão, depois anda em torno dele, acaricia o tecido do mesmo e finalmente ajoelha-se na altura do rosto de Esther (figura 3). Ela se levanta novamente, curva-se sobre o corpo de Ester e beija seus lábios. Quando Marianne se afasta, vê-se apenas o rosto de Esther, agora filmado de cima. Uma lágrima escorre por seu rosto, sua bochecha. O plano continua e o espectador começa a pensar que essa lágrima não é de Marianne e que um movimento muito leve pode ser percebido no rosto de Esther. Em seguida, os lábios de Ester se separam e ela abre os olhos. “Pobre Johan”, ela fala para a câmera. “Johan vai ficar bem [literalmente, “em paz”, in frieden] agora”, responde Marianne. “Obrigado, Marianne”, responde Ester.

Figura 2 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

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Figura 3 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

O quarto, sua brancura, o milagre e a maneira como ele é filmado, são todas citações diretas a Ordet. No filme de Dreyer, o milagre se dá quando Johannes ressuscita Inger, sua cunhada, falecida durante o parto. Johannes, 27 anos, um antigo estudante de teologia, acredita que ele é o “Cristo vivo”. Porque ele é. No entanto, quando no início do filme ele afirma em uma de suas profecias que ele voltou “para dar testemunho de [seu] Pai que está nos Céus – e para operar milagres”, nem a sua família, o pastor da aldeia, nem o espectador acredita nele. Todos acham que ele enlouqueceu depois de estudar Søren Kierkegaard, uma crença que faz com que Inger, por sua vez, afirme ao marido que “Johannes talvez esteja mais perto de Deus do que o restante de nós”. Ordet se passa numa comunidade rural protestante na Jutlândia Ocidental (Dinamarca), que se encontra internamente dividida em torno da questão sobre o que constitui o Protestantismo correto. Esta divisão se manifesta na rivalidade entre duas famílias. A família Borgen, a qual Johannes e Inger pertencem, e na qual a família de Johan e Esther em Stellet Licht é livremente baseada, é de Luteranos tradicionais. Já os Petersens estão no centro de uma seita fundamentalista. Quando Peter Petersen se opõe ao casamento entre sua filha Anne e Anders Borgen, o pai deste último, Morten, acusa Peter de administrar um grupo de “coveiros”, enquanto associa sua própria cristandade à “vida”. No entanto, é a morte que irá reunir novamente os dois clãs, quando Morten e Peter fazem as pazes em frente ao caixão de Inger. Em seguida, Johannes retorna, depois de ter desaparecido no campo por vários dias. “Você encontrou seu juízo novamente”, exclama o pai quando percebe que a loucura deixou os olhos de seu filho. “Nenhum de vocês teve a ideia de pedir a Deus para trazer Inger de volta a vocês de novo”, Johannes responde friamente. Ele ainda é o salvador. Tudo o que teria sido necessário para ele salvar a vida de Inger é que uma pessoa, apenas uma, expressasse a sua fé nele. “Inger”, diz ele, “você deve apodrecer, porque os tempos estão podres. Coloquem a tampa”.

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Antes de retornar aos milagres que, em último caso, Johannes e Marianne realizaram, precisamos examinar os milagres que eles mesmos são. Johannes não é apenas o Messias, o novo Cristo; ele também é sua própria testemunha, o “homem enviado por Deus”, que João 1:6 descreve. Ele é tanto a palavra (ordet) quanto o verbo feito carne. Ele foi enviado “para dar testemunho da Luz”, a luz dos homens que é a vida, mas ele é também o portador desta luz.24 Marianne, por outro lado, pode ser vista como um anjo, um ser mais do que humano e menos que divino, que opera em nome de Deus e que anuncia, em silêncio, o acontecimento, o novo dia. Ou, como Luce Irigaray descreve a figura do anjo, Entre Deus, como ato perfeitamente imóvel; o homem, rodeado e encarcerado pelo mundo de seu trabalho; e a mulher, cuja tarefa seria cuidar da natureza e da procriação, os anjos circulariam como mediadores do que ainda não aconteceu, do que ainda está para acontecer, do que está no horizonte.25

Mas, se o anjo é a promessa em si mesma, como fica o caso de Marianne? Então o milagre não surge como uma surpresa; daí a ausência total de deslumbramento na reação das filhas de Ester quando encontram sua mãe acordada de “um sono do qual não se acorda”, como a morte lhes havia sido explicada anteriormente. Elas não reagem como se a ressurreição da mãe fosse um acontecimento normal, porque ele é. Comparativamente, em Ordet é a criança que primeiro expressa sua crença em Johannes, simplesmente porque ela não tem razão alguma para não acreditar que seu tio não é Quem ele diz ser. Para realmente crer, é melhor não saber. Maior é o maravilhamento criado no espectador, que por mediação da presença das meninas em ambos os filmes, e sua normalização do milagroso, afirma-se em seu ou sua descrença, e pelo fato de que as imagens posteriores dos milagres não podem ser explicadas simplesmente, por exemplo, atribuindo-se o evento à imaginação de um dos personagens. Esther e Inger realmente abriram seus olhos. Não apenas foi transformado o status ontológico das relações diegéticas dos filmes com a realidade, mas também a perspectiva do espectador sobre eles – uma transformação que é real e que não pode ser desfeita. É importante notar que o milagre de Stellet Licht, diferente daquele em Ordet, é um assunto só de mulheres. Anjos, como enfatiza Irigaray, apesar de seu papel mediador num sistema religioso patriarcal, não são seres destituídos de gênero. Marianne ainda é a “mulher natural” de Johan, e o beijo com que ela desperta Esther não é meramente uma transmissão simbólica do espírito divino, é altamente sensual e até mesmo erótico. Em outras palavras, Marianne continua a ser uma mulher, e o milagre que ela realiza é corporificado 24 John 1.1–14. Citações da Bíblia do Rei James, 1769. 25 Irigaray, Luce. An Ethics of Sexual Difference, trad. Carolyn Burke e Gillian C. Gill, Ithaca, NY: Cornell University Press, 1993, 15, ênfase no original.

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por sua existência corpórea e, talvez, coincida completamente com ela. No entanto, seria redutor fazer uma leitura da ontologia desta narrativa como sendo estritamente imanente. Johan pode ter perdido sua fé, mas o filme deixa em aberto a possibilidade de uma presença transcendente, embora não necessariamente personificada, intervindo na existência terrena. Primeiro, há uma forte sugestão da inspiração divina quando Marianne está estendendo a mão em direção ao sol. Em segundo lugar, antes mesmo do contato corporal, no momento da ressurreição de Ester, parece já existir uma ligação entre as duas mulheres. “Pobre Esther”, diz Marianne logo após ela e Johan fazerem amor; uma expressão que, como vimos, será repetida por Esther em relação a Marianne e Johan. Assim, ainda que permaneça explicitamente ambíguo se o filme em todos os pontos oferece uma mera representação de pessoas religiosas, ou se tem em sua diegese a marca de um Deus transcendente e/ou panteísta, esta, de todos os modos, é uma história moral (mas não moralizante) centrada nos temas religiosos do perdão, da culpa, e, em último caso, do auto-sacrifício, primeiro por Esther e depois por Marianne, que, voltando no tempo, desiste de seu “homem perfeito”, como ela havia chamado Johan anteriormente. Esta questão a respeito do status ontológico do próprio filme provavelmente teria sido resolvida, como é em Ordet, se houvesse sido incluído na narrativa o reencontro de Johan com sua esposa ressuscitada. Embora ele chegue a entrar na sala, a câmera omite esse reencontro apresentando-o apenas através do olhar de Johan, de um ponto de vista que mostra Esther de perfil, ouvindo sua filha. Após este plano, e seguindo uma borboleta atraída pela luz do sol, o filme corta para uma imagem externa da janela do quarto, com marcas do reflexo do sol, através da qual o inseto, neste momento, escapa por uma pequena abertura. O que é certo, sem dúvida, é que o espectador testemunhou um milagre, seja lá qual for a sua natureza ou origem. Johan foi perdoado por sua infidelidade e indeterminação, e por meio da intervenção de Marianne, que neste momento já desapareceu, foi-lhe concedido o impossível, uma volta no tempo e uma nova chance com sua esposa.

Uma vantagem sobre a verdade O que é, na verdade, um “milagre”? Um milagre é algo mais do que o impossível e menos que o possível. Um milagre não é simplesmente o impossível tornando-se possível; é o evento que permanece como impossível, ainda que sua ocorrência tenha demonstrado o contrário. E, a rigor, um milagre não ocorre, ou seja, não se dá no tempo presente. Um milagre não sabe o que é presença, dado que ele modifica a própria noção do que significa estar presente. Um milagre pode ou não acontecer ou já ter acontecido. É um evento que não pode ser imaginado antes de sua ocorrência, nem ser crível depois – apesar da exclamação “não posso acreditar nisso” significar exatamente o oposto do que ela afirma. Mas se o milagre aconteceu, ele sempre existiu. “Milagres não acontecem mais”, como diz o pastor a Johannes em Ordet. 116

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No capítulo 6, “Dos milagres”, de seu Tratado Teológico-Político (1670), Espinosa, que também não acreditava em milagres, escreve: Os milagres, enquanto entendidos como uma obra que repugna (nega) a ordem da natureza, estão, pois, tão distantes de nos mostrar a existência de Deus que, pelo contrário, nos fariam duvidar dela.26

“Deus ou [sive]27 Natureza”, para Espinosa, é causa imanente, isto é, simultaneamente, causa sui e causa generis, causa de si mesmo e causa de tudo. É a causa que é imanente a seus efeitos e, como tal, precede seus efeitos apenas logicamente, não diacronicamente. A essência de Deus, ao contrário de tudo o mais (incluindo os humanos), envolve sua existência. Ainda que Espinosa mantenha o nome e o gênero de Deus intacto, ele refuta a noção de Deus como um ser personificado, intervencionista. Se Deus intervier no curso da natureza para realizar milagres, significa que ele falha, no entanto o Deus de Espinosa é perfeito por definição. Deus é a Natureza e, como tal, simplesmente é. A crença das pessoas em milagres, argumenta Espinosa, baseia-se na imaginação de Deus como um poder distinto daquele da Natureza, a qual elas entendem ser sua criação. Em vez de se esforçar para entender Deus e entender o “fenômeno incomum” do qual eles não compreendem as causas naturais, preferem permanecer na ignorância “em parte por devoção, em parte pelo desejo de opor-se a àqueles que cultivam as ciências naturais”.28 Deus não se revela – ou seja, se expressa – através de milagres ou sinais. E quando ele parece fazê-lo, isto diz muito sobre as projeções antropomórficas do observador sobre Deus, mas nada diz sobre o próprio Deus. Por exemplo, em Stellet Licht, logo depois de Johan e Marianne terem tido relações sexuais, Johan, agora deitado sozinho na cama e olhando para o teto, vê uma folha caindo. A folha tem formato de coração e, como tal, contrasta com a outra forma simbólica incluída na perspectiva do ponto-de-vista de Johan: a cruz formada pelas vigas no teto. “O que é isso aí no chão?” Johan pergunta quando Marianne retorna ao quarto. “Uma folha”, diz ela. “Uma folha de cedro?” “Sim, cedro vermelho”. Tal como a borboleta na sequência da ressurreição, o filme deixa em aberto se a folha e as vigas simplesmente surgem para levar à Johan – e também ao espectador, por extensão – a possibilidade de observar uma constelação simbólica furtiva ou se elas são realmente revelações divinas. Mas se estas observações são entendidas como sinais que necessitam ser interpretados, de acordo com Espinosa isso só ocorre depois dos intérpretes (Johan; espectador) terem modelado esses sinais afirmados pelo

26 Spinoza, Benedict de. A Theologico-Political Treatise, in The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R. H. M. Elwes (New York: Dover, 1951), 86–87. Em francês: SPINOZA, B. Oeuvres 2: Traité théologico-politique. Trad: Charles Appuhn. Paris: Garnier-Flammarion, 1965. Em português: ESPINOSA, B. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins, 2003. 27 Este “ou” é traduzido como “ou, em outras palavras”. 28 Spinoza. Theologico-Political Treatise, 81.

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autor sob suas próprias concepções demasiado-humanas de liberdade, amor e sacrifício. Como explica Gilles Deleuze, acerca da posição de Espinosa, A revelação não é uma expressão, mas um cultivo do indizível, um conhecimento confuso e relativo por meio do qual emprestamos a Deus determinações análogas às nossas próprias (Entendimento, Vontade), apenas para resgatar a superioridade de Deus através de sua eminência em todos os gêneros (O supereminente, etc.).29

Na leitura que Deleuze faz de Espinosa, Deus é expressividade, o que explicita (literalmente desdobra-se) a si mesmo e que está implicado em cada coisa. Deus se expressa através de sua infinidade de “atributos”, que podem ser pensados como perspectivas sobre a substância que é simultaneamente parte integrante da substância e da qual apenas sua extensão e pensamento estão disponíveis para o intelecto humano. Deus expressa a si mesmo, e é somente através de suas expressões que a mente pode obter o conhecimento adequado; isto é, o conhecimento das causas pelas quais os modos são afetados. Os modos são definidos como “as afecções de uma substância, ou [sive], aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido”.30 Esta “outra coisa” é a substância. Espinosa distingue entre modos de extensão e de pensamento; isto é, corpos e ideias. Crucial é que os corpos e as ideias estão em relação de paralelismo, isto é, a ideia de uma coisa existe totalmente separada da existência desta coisa. Um ser humano é também um modo, um corpo-mente. É um corpo na medida em que é considerado sob o atributo da extensão; é uma mente na medida em que é considerado sob o atributo do pensamento.31 Como seres humanos se relacionam com a substância divina da qual eles provém? Espinosa distingue entre três tipos de conhecimento modal: a imaginação, a razão e a intuição. Enquanto a imaginação pertence ao mesmo tempo às afecções (corporais) e à percepção de signos, as quais produzem apenas conhecimento inadequado, passivo; os dois últimos pertencem ao conhecimento adequado e à atividade da mente, no sentido de que eles aumentam o poder de atuação da mente, seu poder de ser afetada. Por “adequação”, 29 DELEUZE. Expressionism in Philosophy: Spinoza, trad. Martin Joughin (New York: Zone Books, 1992), 181–82. 30 Spinoza, Benedict de. Ethics, trad. G. H. R. Parkinson (Oxford: Oxford University Press, 2000), I.D5. (Refiro-me a passagens da Ética, na parte do texto em que eles aparecem, “P” se referindo a proposição, “S” para escólio, “D” para demonstração, “A” para um axioma, “Def ” para definição, “C” para corolário, e “L” para lema.) Todos os modos individuais são compostos; isto é, são por sua vez constituídos de modos menores que “comunicam seus movimentos um ao outro por alguma proporção fixa” (Ethics, II.P13.L3.CA2.Def). Ver, Espinoza, B. Etica. Trad: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 31 Na medida em que os atributos são paralelos um ao outro, corpo e mente são, também, mas isso não significa que eles estão desconectados, já “que o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo existente em ato. Ademais, como não existe nada de que não se siga algum efeito, se, além do corpo, existisse ainda outro objeto da mente, deveria necessariamente existir em nossa mente a ideia desse efeito. Ora, não existe nenhuma ideia desse efeito. Logo, o objeto de nossa mente é o corpo existente e nenhuma outra coisa” (Ethics, II.P13). Uma maneira de pensar essa relação de conectividade paralela se assemelha à conexão entre duas pistas condutoras entre as quais corre a corrente alternada que as liga e as separa, sendo Deus esta corrente, a quintessência monista das coisas, em si.

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Espinosa entende o grau em que uma ideia expressa a sua própria causa. A primeira forma de conhecimento adequado é a razão, que procede pela interpretação de signos e pela criação de conceitos, voltadas para o desenvolvimento de noções comuns, ou daquilo que é universal para vários modos de existência. A segunda forma de conhecimento adequado é a intuição, que é dirigida ao conhecimento dos modos individuais. Espinosa escreve: “Este [terceiro] tipo de conhecimento procede de uma ideia adequada da essência formal de alguns dos atributos de Deus para um conhecimento adequado da essência das coisas”.32 É no terceiro tipo de conhecimento que estou mais interessado, não só porque essa postura epistemológica em direção ao Todo imanente pode potencialmente nos ajudar a entender as imagens-tempo cristal criadas no cinema, mas também porque a questão sobre suas possibilidades constitui o eixo da filosofia de Espinosa. Dado que tudo está ligado a tudo no sistema de Espinosa, compreender adequadamente a essência das coisas singulares implica, aparentemente, saber a causa da essência de uma coisa, e consequentemente a causa dessa causa, ad infinitum. Mas Espinosa, ao contrário de Descartes, evita a armadilha da regressão infinita. Para Espinosa, conhecer a essência de uma coisa singular significa conhecer o seu lugar e seu movimento na concatenação da Natureza e, portanto, em certo sentido, conhecer essa concatenação, que é causa imanente, em si. Dito de outro modo, conhecer intuitivamente significa compreender a Natureza através da essência de uma coisa singular, que serve como uma lente através da qual o modo “percebe” a Natureza. Essa não é uma lente, no sentido de uma lente de aumento colocada entre esse modo e a Natureza, o que implicaria numa forma de percepção como contemplação, que se aplica mais ao segundo tipo de conhecimento, mas uma lente no sentido de uma bola de cristal dentro da qual o modo, a identidade que agora se dissolve, é envolto por uma necessidade do mundo, “considerado sob uma espécie de eternidade”.33 Se a essência de um modo particular pode ser conhecida, é apenas através de lampejos de eternidade. Eu escrevo “se” porque a rigor permanece ambíguo na Ética se intuição – que, mais do que o “mais alto” tipo de conhecimento, é o excesso simultâneo e a condição de possibilidade dos outros tipos de conhecimento – pode ser alcançada de todo. Esta ambiguidade resulta da própria natureza desse tipo de conhecimento. Intuição simultaneamente ultrapassa a linguagem e forma sua condição de possibilidade, os conceitos e as estruturas linguísticas pertencentes à razão. Espinosa só reconhece esse dilema de forma implícita, através de seu estilo de escrita. Ao passo que, como Deleuze aponta, a maior parte da Ética é escrita sob a perspectiva narrativa do segundo tipo de conhecimento (até a proposição V.21),34 o restante da quinta seção é escrito a partir da perspectiva da intuição. Ou, para ser mais preciso, está escrito como se a partir da perspectiva da intuição. A abordagem de Espinosa nessas passagens pode ser concebida como uma forma de 32 Ethics, II.P40.S2. 33 Ibid., V.P36. 34 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 296.

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discurso indireto livre, no sentido de que ele tenta tornar sua voz narrativa imanente ao seu assunto, sendo este último o amor divino, “o amor com que Deus ama a si mesmo; não na medida em que ele é infinito, mas na medida em que ele pode ser explicado através da essência da mente humana, considerada sob uma espécie de eternidade”.35 O compartilhar este amor, Espinosa chama beatitude.36 Como se. O problema não é se a intuição é possível, mas que ela precisa ser possível. Todo o sistema de Espinosa se sustenta nessa possibilidade, uma possibilidade – e é esse o problema – que não é passível de prova por definição. Ainda que sob a perspectiva da substância não haja problemas, Deus sendo a perfeição em si, a partir de uma perspectiva modal os problemas existem para serem resolvidos por meio de teoremas e demonstrações, que é o que Espinosa faz. Sabendo que o conhecimento intuitivo precisa ser possível, ele escreve como se ele fosse possível antes dele tornar-se possível, se é que ele será. Espinosa avança sobre a verdade, mesmo antes de ter estabelecido a existência desta última, não porque ele considera que vale a pena correr o risco, mas porque ele tornou essa estratégia a única opção, ao proclamar a verdade como um modelo de si mesma e do que não é.37 Como consequência, é apenas sob uma perspectiva modal que o terceiro tipo de conhecimento surge por fim. De seu próprio ponto de vista, que é o de Deus, a intuição é o ponto zero que torna possível aos modos contar e mover-se do um para o dois, em primeiro lugar. É também neste sentido que interpreto a seguinte passagem crucial do Expressionism in Philosophy, de Deleuze: Seria absurdo não reconhecer o seguinte: que as coisas que não existem por sua própria natureza estão determinadas em sua existência (e na produção de seus efeitos) por algo que, este sim, existe necessariamente e produz seus efeitos por si. É sempre Deus que determina que uma causa qualquer produza seu efeito; assim, Deus nunca é, propriamente falando, uma causa “distante” ou “remota”. Não partimos, portanto, da ideia de Deus, mas a alcançamos muito rapidamente, no início da regressão; pois, sem ela, sequer entenderíamos a possibilidade de uma série, sua eficiência e atualidade. Pouco importa, então, se procedemos através de uma ficção. A introdução de uma ficção pode na verdade nos ajudar a alcançar a ideia de Deus o mais rapidamente possível, sem cair nas armadilhas de uma regressão infinita.38

35 36 37 38

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Ethics, V.P36. Ibid., V.P36.S. “Tal como a luz manifesta a si e a escuridãou, assim é a verdade para si e para a falsidade” (Ethics, II.P43.S). Deleuze, Expressionism in Philosophy, 137, ênfase no original.

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Se essa ficção necessária de fato resulta em faíscas cristalinas de “amor com o qual Deus ama a si mesmo”,39 o advento deste último só pode ser concebido como um “milagre imanente”. Em vez do sujeito escapar à imanência, como Ricciardi interpreta o fim de Milagre em Milão, eu diria que o milagre imanente é a sua ou o seu devir-imanente. Assim, no final do filme de De Sica, ao invés de Totó e seus companheiros levantarem vôo do mundo, eles tornam-se o mundo. A imanência desse milagre reside em que o instante de sua ocorrência é uma confirmação do mundo ao invés de uma transformação. Nele, não é o mundo que sofre uma mudança inexplicável, miraculosa. É a relação epistemológica do modo para com o mundo que é transformada. Em outras palavras, o milagre imanente refere-se a uma mudança radical da perspectiva do modo sobre o mundo, que surge de dentro dessa perspectiva, mas que não pode ser explicada ou expressa por ela. Nessa mudança, a possibilidade de tal permanece incerta por definição, o modo percebe a Natureza como se através da própria Natureza. Essa mudança epistemológica, que é uma das beatitudes, é tão instantânea quanto efêmera. Mas ao mesmo tempo é eterna, porque, no instante de sua ocorrência, que é atemporal em si, pode ser definida como um movimento da razão se autodesafiando, razão que também é desafiada em sua lembrança desse instante. Portanto, do ponto de vista modal o milagre imanente é realmente um milagre, enquanto que do ponto de vista da substância, ele sempre se explica pelas inexoráveis leis e regras da Natureza, sendo a última, para Espinosa, um sistema sem vestígios. Como conceito, milagre imanente junta estas duas perspectivas que conceitualmente excluemse mutuamente, mas que, no terceiro tipo de conhecimento efemeramente se tocam ou parecem se tocar. Antes de retornar ao milagre imanente que é Stellet Licht, é preciso examinar a teoria de Espinosa sobre o tempo, a qual fica bastante implícita na Ética. Espinosa distingue duas temporalidades: duração e eternidade, a primeira corresponde aos modos e a última à substância. Em relação à existência humana, enquanto a sua extensão corpórea tem uma duração limitada e mensurável, a alma ou a essência do corpo só pode ser expressa sob uma espécie de eternidade.40 “Nós sentimos e experienciamos que somos eternos”, explica Espinosa. “A mente sente essas coisas que ela concebe em equivalencia com aquelas que ela tem na memória. Para os olhos da mente, pelos quais ela vê e observa as coisas, são demonstrações”.41 Os sentidos da mente. É aqui que a ficção necessária de Espinosa se manifesta. De repente a imaginação vem em auxílio da razão, ainda assim, não como sua negação dialética, mas como sua valorização. Apenas em um intuitivo curto-circuito podem os olhos da mente, que realmente são bolas de cristal, ver as demonstrações que eles mesmos são. 39 Ethics, V.P36. 40 Ibid., V.P23.S 41 Ibid.

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Intuição é conhecimento da causa imanente, que é a condição de possibilidade da própria existência. Mais do que levar o entendimento humano de volta às paixões corporais, a intuição toca a mente, assim como a imaginação consiste numa impressão corporal. Por um lado, a intuição é um limite, a saber, da razão (duplo genitiva). É o ponto final do processo da razão, sem constituir-se o seu fim. É o ponto onde o conatus, o desejo humano de persistir em ser em combinação com uma consciência desse desejo,42 dá voltas em torno de si e volta, em diferença e diferenciação. Por outro lado, a intuição é um processo dentro e fora de si que “se abre” no ponto infinitesimal do tempo diacrônico, em que o conatus não é o que ele é; ou seja, no momento em que ele está em repouso. Nesse momento de descanso, o próprio tempo imobiliza-se. Esse processo, que é a concatenação da própria natureza, permanece perpendicular ao do conatus, tanto espacial quanto temporalmente, sendo espaço e tempo indistinguíveis neste ponto, que é o Todo não-diferenciado, que sempre existiu. É aqui, ou neste momento, que o conatus toca a eternidade, que é a essência infinita de Deus. Enquanto circunscrevemos esse conhecimento eterno, é importante lembrar o fato óbvio de que a Ética é um texto e que, como tal, não pode expressar esse toque de eternidade sem se contradizer. É como se a Ética então, nos pontos em que ela se torna mais expressiva, se voltasse contra os seus próprios limites discursivos. O limite da razão é também o limite da linguagem e o conhecimento da causa imanente é também o conhecimento da condição de possibilidade da linguagem. E, do modo como o texto de Espinosa performa sua própria virada linguística, embora implicitamente: “a mente sente”. Enquanto na maior parte da Ética Espinosa utiliza principalmente exemplos e comparações, nas páginas finais ele utiliza o recurso a metáforas. Na intuição, binários como “finito” e “infinito”, “movimento” e “descanso” – que são os fundamentos silenciosos das concatenações das definições, proposições e manifestações de Espinosa – se rompem. A “virada linguística” de Espinosa se torna mais visível quando, tendo em mente esse entendimento metafórico da intuição, volta-se às poucas sentenças da parte 2, em que Espinosa escreve sobre a intuição a partir da perspectiva da razão. Ele faz isso por meio de um exemplo. Tendo comerciantes ilustrados a capacidade de, dados três números, encontrar rapidamente um “quarto número que deverá ser para o terceiro como o segundo é para o primeiro”, tanto pela irrefletida experiência (imaginação) quanto pelo conhecimento matemático (razão), Espinosa escreve, Mas, no caso de números muito simples, não há necessidade destas [i.e., da experiência ou da matemática]. Por exemplo, dado que os números são 1, 2 e 3, todos vão ver que o quarto número proporcional é 6; e vemos isso muito mais claramente porque podemos

42 Ibid., III.P9.S.

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inferir o quarto número a partir da própria relação que intuímos ter o primeiro para com o segundo.43

Embora esse exemplo continue a ser pouco expressivo sobre a intuição, ele, no entanto, ilustra a relação da intuição com a razão. De uma perspectiva modal, a razão é o fundamento indispensável para o conhecimento intuitivo. Tal como o comerciante que imediatamente disse “6” precisou, obviamente, ter uma ideia da proporcionalidade. Caso contrário, ele também poderia ter escolhido “4” (sequência linear), ou “5” (sequência de números primos), ou qualquer número – porque para cada sequência finita, digamos yi, de comprimento n, existe uma função f(x) tal que yx = f(x) para todo x ≤ n, com x e n inteiros positivos. A intuição é a sua própria razão, neste exemplo, o conhecimento da proporcionalidade. É a razão incorporada que se retirou de si mesma, através da sua utilização. Através desta incorporação, a razão torna-se invisível, o que explica a segunda divisão na qual esse tipo de conhecimento vem à mente. Do ponto de vista modal, esse instante de intuição só pode ser expresso como um instante anacrônico, um “flash” instantâneo em que o tempo não faz sentido como resultado do não-reconhecimento diacrônico do sincrônico, da eternidade. É a temporalidade dos déjà vus e das visões, de fantasmas e de profetas, de milagres, fenômenos nos quais o próprio tempo parece estar fora de lugar. É também a temporalidade da imagem-cristal, o que me leva de volta para Stellet Licht, porque um aspecto do filme de Reygadas que até agora apenas apontei é sua intrincada representação e desenvolvimento do tempo. Imediatamente após o nascer do sol que dá início ao filme, corta-se para um relógio de parede que indica 6:27 a.m.. No pêndulo que balança, o espectador vê o reflexo da família de Johan e Ester reunida em torno da mesa do café. Eles estão orando, olhos fechados, contra o pano de fundo do monótono tique-taque do relógio. Terminado o café, Johan permanece sentado sozinho à mesa. Ele então se levanta, pára o relógio e novamente se senta à mesa, onde desata a chorar. A cena da cozinha demora quase 10 minutos e define o ritmo do restante da narrativa. No final do filme, pouco antes de Johan ir ver Ester, o mesmo relógio é alterado de novo pelo pai de Johan: 7:41 p.m.. Apesar desse parar e avançar do relógio de parede ser outra citação significativa a Ordet44, o que implica para a nossa leitura do filme essa representação da narrativa de Stellet Licht, fora do tempo diacrônico? Um pouco mais de treze horas de tempo diegético são mostradas como se passadas no intervalo entre o nascer e o pôr do sol, mas durante esse dia choveu, nevou e ficou quente o suficiente para ir nadar ao ar livre. O ritmo lento do filme é enganador, porque na verdade o tempo voa em Stellet Licht. Seu milagre não só ocorre no instante infinitesimal em que Esther abre os olhos – uma revelação que, em retrospecto, “lava” ou “encharca” as imagens

43 Ibid., II.P40.S2. 44 Em Ordet, o relógio de parede na fazenda do Borgen é interrompido logo após a morte de Inger, e reiniciado pouco depois de sua ressurreição.

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do filme – mas suas próprias imagens são feitas de matéria milagrosa. Como tal, Stellet Licht parece ser um excelente exemplo da expressão cinematográfica.

Tempos Cristais O que é um cinema de expressão? Para responder a esta pergunta é preciso primeiro olhar o que separa a expressão da representação. Deleuze, em sua discussão sobre os atributos em Espinosa, explica essa distinção através das metáforas do espelho e da semente, respectivamente. Enquanto o espelho reflete, ou reflete sobre a imagem; a semente, Deleuze escreve: “‘expressa’ a árvore como um todo.”45 Todos os atos de expressão movimentamse através da representação. Expressões refletem e multiplicam a essência da coisa. Mas, Deleuze escreve: “O que é expresso é ao mesmo tempo envolvido em sua expressão, como uma árvore em sua semente.”46 Espelho e semente, representação e expressão, correspondem a dois tipos de realismo: o realismo representacional e o realismo expressivo, sendo sempre o primeiro de alguma forma incluído no segundo. Ambos são categorias narrativas, mas enquanto o realismo representacional é caracterizado pela distância objetiva que se pretende manter entre o sujeito e o objeto da narração, no realismo expressivo essa distância está sendo superada pela tentativa incessante de tornar a perspectiva narrativa imanente ao seu tema. Em termos simples, o realismo representacional fala sobre realidade, enquanto o realismo expressivo fala, como se, por meio da realidade. Este processo de ‘imanentização’ da perspectiva narrativa também poderia ser chamado de discurso indireto livre. Linguisticamente, o discurso indireto livre é uma forma de citação sem aspas que borra as fronteiras entre o discurso subjetivo e objetivo. Quando realizado de forma consistente, como em A educação sentimental (1869) de Gustave Flaubert, tem o efeito duplo de, por um lado, tornar o ato de narrar do autor imanente à narrativa, e, por outro lado, mediar a narração por um ou mais desejos dos personagens.47 O discurso indireto livre, portanto, funciona como um discurso do desejo, não no sentido de que penetra no mais profundo da psicologia dos personagens, mas na medida em que revela o desejo dessas personagens como sendo o produto de grandes processos sociais e literários de subjetivação. Este escrutínio do desejo é um processo inerentemente auto-reflexivo em que o próprio ato de escrever é trazido à superfície do texto. Como V. N. Volosinov coloca, discurso indireto livre (ou discurso quase direto, como ele chama) é um dispositivo narrativo que permite ao artista expressar a “impressão viva de vozes escutadas como se estivesse num 45 Deleuze, Expressionism in Philosophy, 80. 46 Ibid. 47 Por exemplo, em The Waves (1931), de Virginia Woolf, o ponto de vista narrativo está dividido em sete vozes (da qual uma permanece em silêncio) que são lidas como totalmente imanentes à narração.

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sonho.” “É a própria forma da fantasia.”48 Na prosa de Flaubert, Volosinov argumenta, é dado a este dispositivo uma natureza especialmente complexa, dado que isso vem a refletir o conturbado relacionamento do escritor com suas próprias criações.49 Quando realizado de forma consistente, o discurso indireto livre provoca o efeito de que nenhuma de suas expressões podem ser totalmente atribuídas a qualquer ponto de vista subjetivo do protagonista ou do narrador ausente-presente. Assim, sempre que Frédéric, o “herói” de A educação sentimental, evoca o “amor”, o leitor simultaneamente ouve o escritor, ele mesmo ficcionalizado, ridicularizando Frédéric pelos clichés que ele fala e por aquele que seu personagem impotente encarna. Discurso indireto livre pode ser encontrado também em outras práticas narrativas além da literatura, como a filosofia e o cinema. Em seu ensaio “O Cinema de Poesia” (1965), Pier Paolo Pasolini discute o que ele chama de “subjetiva indireta livre”, que ele descreve como um “‘monólogo interior’ de imagens.”50 De acordo com Pasolini, uma subjetiva indireta livre nunca vai corresponder perfeitamente ao discurso indireto livre literário, pela razão de que um cineasta, ao contrário de um romancista, nunca pode desaparecer totalmente em personagens seus. No entanto, o cineasta pode se aproximar desse monólogo interior através do uso de meios formais: “Sua atividade não pode ser linguística, deve, ao contrário, ser estilística”.51 Essa abordagem estilística, afirma Pasolini, chega a seu clímax no filme Deserto Vermelho (Deserto Rosso, 1964), de Michelangelo Antonioni, dado que neste filme, o plano de ponto de vista indireto livre coincide com o filme inteiro. Pasolini escreve, Em Deserto Vermelho, Antonioni já não aplica, na contaminação desajeitada comum a seus filmes anteriores, a sua própria visão formalista do mundo a um conteúdo genericamente empenhado (problema da neurose da alienação): mas olha o mundo identificando-se com a sua protagonista neurótica, revivendo os acontecimentos através do olhar dela […].52

Concordo apenas parcialmente com Pasolini, pois me pergunto se não se pode também apontar formas cinematográficas de discurso indireto livre que não dependem 48 Volosinov, Valentin Nikolaevich. Marxism and the Philosophy of Language, trad. Ladislav Matejka and I. R. Titunik (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1973), 148. Ver: Bakhtin, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad: Michel Lahud e Yara F. Vieira, com colaboração de: Lúcia Wisnik e Carlos Henrique D. C. Cruz. São Paulo: Hucitec, 1986. 49 V. N. Volosinov escreve: “O discurso quase-direto, com sua capacidade de transmitir simultaneamente a identificação com e a independência, a distância de suas próprias criações, foi um meio extremamente adequado para Flaubert encarnar essa relação de amor e ódio que ele mantinha com seus personagens” (Marxism and the Philosophy of Language, 152). 50 Pasolini, Pier Paolo. “The ‘Cinema of Poetry’” in Heretical Empiricism, trad. Ben Lawton, Louise K. Barnett, ed. Louise K. Barnett (Washington DC: New Academia, 2005), 167–86, citação em 176 (publicado originalmente em 1972). Cf, Pasolini, P.P. Empirismo hereje. Trad: Miguel S. Pereira. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. 51 Ibid., 178. 52 Ibid., 179.

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exclusivamente de meios estilísticos, mas que são simultaneamente inerentes à narração e, como tal, são também linguísticas. Embora possa ser verdade que o delírio de Giuliana, mais do que o dos protagonistas anteriores de Antonioni, está mais próximo da experiência pessoal do diretor, já em O Eclipse (Eclipse, 1962), o diretor tinha tornado a sua perspectiva narrativa imanente às imagens. Neste filme, sempre o desejo de Vittoria ou de um dos outros protagonistas é o mediador da descrição do ambiente materialista pelo qual ele é constituído. Em outras palavras, espaço e personagem são mutuamente determinantes. Como resultado, não existe nenhuma imagem – ou enunciado cinematográfico – neste filme, que pode ser inteiramente atribuído a um ponto de vista diegético ou extradiegético. Também em Stellet Licht, muitas das sequências são explicitamente mediadas por uma ou várias das perspectivas dos personagens. Exemplo crucial é um já discutido em relação à sequência da ressurreição, em que a normalização deste evento – primeiro de Marianne e, em seguida, a das crianças – integra-se à representação do milagre em si. O segundo exemplo pungente se dá na cena em que Johan, depois de ter feito amor com Marianne, sai de casa para procurar seus filhos. Momentaneamente temendo o pior, o espectador se vê aliviado quando os encontra na van de um norte-americano, totalmente absorvidos pela performance de Jacques Brel cantando “Les bombons” (versão “parcial” de 1967), na tela minúscula de um aparelho de televisão portátil. Os filhos de Johan estão rindo alto desse homem esquisito cuja língua eles não entendem. Enquanto Johan e Marianne estão do lado de fora da van, ela discretamente pega na mão dele. Em seguida, Johan se junta a seus filhos. Depois que o proprietário da van fecha a porta e Marianne vai embora, a TV se torna o filme. Neste caso, o exemplo é tanto visual, dado que por um minuto e meio a tela será totalmente preenchida pela imagem da televisão, quanto auditivo, dado que o único som que o espectador agora escuta é a música de Brel (figura 4): […] Et tous les samedis soir que j’peux Germaine, j’écoute pousser mes cheveux Je fais glou glou je fais miam miam J’défile criant: paix au Vietnam Parce qu’enfin enfin j’ai des opinions Je viens rechercher mes bonbons […]53

53 “… E todas as noites de sábado que eu posso / Germaine, eu escuto o meu cabelo crescer / eu faço glub, glub, eu faço miam miam / eu marcho gritando: Paz no Vietnã / Porque, afinal, depois de tudo eu tenho minhas opiniões / eu venho buscar meus bombons…” Em contraste com esta versão de 1967, a versão original de 1964 de Les Bonbons era uma canção de amor bastante tradicional: “J’vous ai apporte des bombons / parc’que les fleurs c’est perissable…” [“Eu te trouxe bombons / porque as flores são perecíveis”].

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Figura 4 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

Provavelmente, Johan, como seus filhos, não entende as palavras. Mas, imerso na gravação preto-e-branca granulada da expressiva performance de Brel, em total oposição ao seu amargo problema, está a repentina felicidade de Johan, a simples felicidade a que ele está prestes a renunciar por amor. No cerne dessa felicidade, está aberta a visão de mundo de seus filhos, para os quais “bom dia” realmente significa “bom dia” e uma canção engraçada, uma canção engraçada. O espectador não irá chegar mais perto do que isso da alma de Johan, de sua mente vacilante. O que quero ilustrar com esses exemplos é que o discurso indireto livre, no cinema, assim como em outras práticas, deve ser concebido como uma postura em relação à realidade ao invés de um estilo de representação. O discurso indireto livre é um esforço em direção à mútua determinação do ponto de vista narrativo e do enredo-espaço, em direção a um ponto onde os dois se tornam imanentes um ao outro. Esse espaço é simultaneamente o ambiente ficcional no qual os personagens habitam, viajam ou passeiam, e o espaço textual em que a narrativa se desenrola. No cinema, este espaço textual é a combinação do quadro e da trilha sonora, o lugar do som-imagem cinematográficos em si. Num cinema de expressão, estas duas dimensões do enredo-espaço estão interligadas na medida em que se fundem ou parecem fundir-se. Se o cinema fosse o mundo, o “testemunho” desse instante em que se dá essa fusão seria o que Espinosa chama de intuição. No nível fenomenológico da diegese, a imanência é alcançada através da mútua determinação dos personagens (ou modos, em geral) e do espaço representado; no nível ontológico da imagem como imagem, isto é alcançado através da mútua determinação do espaço diegético e do espaço tela-banda sonora. A primeira dimensão de ‘imanentização’ tem lugar ao nível do espelho e se reflete sobre a essência dos personagens como modos. A segunda dimensão tem lugar ao nível da semente e expressa a Natureza cinematográfica, isto é, sua produção de imagens em movimento. Em analogia com a discussão de Espinosa sobre as essências, a primeira consiste no desejo dos personagens, e a última na mera existência do som-imagem, no fato de que o som-imagem do cinema é, antes de ser outra

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coisa. É somente através da imanência representacional que a imanência cinematográfica – ou seja, um som-imagem livre de representação – é alcançada, e que o cinema se torna realidade, ou, pelo menos, para parafrasear André Bazin, uma assíntota dela.54 Representação é um meio para um fim, sendo este fim a expressão da realidade. Ninguém expressou melhor do que Walter Benjamin a relação entre meios e fins cinematográficos. No ensaio “A Obra de Arte”, Benjamin afirma que o filme, por sua capacidade de “permear profundamente a realidade com equipamentos mecânicos”, oferece “um aspecto da realidade que é livre de todos os equipamentos”.55 A esperança de Benjamim era que o filme iria ajudar a humanidade a superar dialeticamente o choque da modernidade que a tecnologia do filme provocou, incluindo a montagem. Foi também essa esperança que o levou, na versão original daquele ensaio, a comparar a promessa do meio de uma “visão da realidade sem mediação” para “a flor Azul na terra da tecnologia”.56 Esta visão não deve ser pensada em termos de mimese, precisamente porque na experiência de uma sociedade capitalista ela é inerentemente mediada. Ao invés disso, a fim de redimir a realidade a uma paralisação efêmera – e trazer a dialética, que é o próprio movimento do capital – o filme precisa dissecar e fragmentar “o tecido da realidade”.57 Como Miriam Hansen argumenta, Se as capacidades miméticas do cinema foram postas para tal uso, ele não apenas cumpre uma função crítica, mas também uma função redentora, registrando sedimentos da experiência que já não são, ou ainda não são reclamados pela racionalidade econômica e social, tornando-os legíveis como emblemas de um “futuro esquecido”.58

Estamos muito perto aqui do realismo expressivo da imagem-cristal. Embora o cinema-filosofia de Deleuze seja menos pressuposto na tecnologia do meio do que em Benjamin e, embora seus caminhos para a redenção levem esses filósofos por territórios muito diferentes, suas utopias cinematográficas são idênticas: “um aspecto da realidade que é livre de todos os equipamentos”, “um pouco de tempo em estado puro”.59 Mais ainda se tivermos em mente o que representações e conceitos são para Deleuze e Espinosa: 54 BAZIN, André. “Umberto D: A Great Work” (1952), em What Is Cinema? vol. 2, ed. e trad. Hugh Gray (Berkeley: University of California Press, 2005), 61-82, citação em 82. Cf: Bazin, A. O cinema. Trad: Eloísa A. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1985. 55 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (1936), em Illuminations: Essays and Reflections, trad. Harry Zohn, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken Books, 1969), 217-52, citação em 234. Cf: Benjamin, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Cf: Benjamin, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica in BENJAMIN, W. Obras escolhidas I. Trad: Sergio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1985. 56 Benjamin, Walter. “The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility [First Version]” (1935), trad. Michael Jennings, Grey Room 39 (2010): 11-37, citação em 28. 57 Ibid., 29. 58 HANSEN, Miriam. “Benjamin, Cinema and Experience: ‘The Blue Flower in the Land of Technology’”. New German Critique 40 (1987): 179-224, citação em 209. 59 DELEUZE, Cinema 2, 79.

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ferramentas. Representações são as ferramentas necessárias para produzir uma imagem expressiva de uma parte (um aspecto) do mundo que está livre de ferramentas – muito como os conceitos no sistema de Espinosa, em última análise, são orientados para a produção de uma imagem cristal expressiva, não-conceitual, da essência de uma coisa singular. “O cristal é expressão”, Deleuze escreve em Cinema 2. “Expressão se move do espelho à semente”.60 Proponho ler esta passagem através do uso anterior que Deleuze faz dessas mesmas metáforas em seus escritos sobre Espinosa. Na base da imagem cristal está a imagem do circuito infinito de reflexão constituído por dois espelhos frente a frente, um circuito em que o “princípio de indiscernibilidade” entre o que é real e o que é virtual “atinge o seu pico”.61 Mas a imagem em movimento, como a mente, não é um espelho em si mesma, e no momento que essa imagem-mente tentasse se tornar parte integrante desse circuito de espelhamento, ela iria interrompe-lo. Daí a necessidade de um terceiro espelho, e um quarto, e um quinto… É a mesma armadilha de regressão infinita que encontramos em relação à intuição em Espinosa. Mas a mente – e para Deleuze o cinema é uma teoria da mente – também sente que o cristal deve ser possível. Por conseguinte, a fim de chegar ao cristal e tornar-se expressiva, a imagem cinematográfica deve saltar em direção ao cristal desde o início e postular-se como semente, tal como uma imagem na qual o real e o virtual se aderem: A semente é, por um lado, a imagem virtual que irá cristalizar um ambiente que é no presente [actuellement] amorfo; mas, por outro lado, este último deverá ter uma estrutura que é virtualmente cristalizável, em relação à qual a semente agora desempenha o papel de imagem real.62

O ponto de indivisibilidade entre esses dois lados é o que reside na essência da imagem-cristal, na e da qual captamos, como num flash, a promessa de um cinema imanente: para ver “o próprio tempo, um pouco de tempo em estado puro, a própria distinção entre duas imagens que continuam a se reconstituírem”.63 É um vislumbre daquilo que, simultaneamente, causa a si mesmo e tudo mais, causa imanente. Do espelho à semente: é esta passagem que Stellet Licht nos faz sentir. Ao envolver seus espectadores, o filme os faz perceber que eles foram envolvidos desde o início. Depois de aparentemente começar com uma representação de mundo em que as fronteiras entre o real e o irreal são claras, Stellet Licht, pouco a pouco, explicita-se como uma expressão do espírito divino. Mas no momento em que o espectador percebe – e para a maioria das pessoas esse momento será o da ressurreição de Esther – que presente e passado, real e virtual, não 60 61 62 63

Ibid., 72. Ibid., 68. Ibid., 72. Ibid., 79.

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são mais discerníveis, ele ou ela imediatamente percebe que eles nunca o foram, e que o milagre do filme já estava imbricado na escuridão da qual o filme se desdobrou. É assim que o milagre imanente opera, postulando-se, silenciosamente, no início, como se fosse possível.

Luz silenciosa Precisamos, portanto, voltar ao corpo celeste que aparece no início do filme, e que é representado como o fornecedor de energia da ressurreição de Esther: o sol. Mas o sol não é Deus, e se for, Deus está ali, como luz, a “matéria” da qual o cinema é feito. Em repetidas ocasiões ao longo de Stellet Licht, a imagem é banhada pela luz solar, quando a luz é refratada pela lente em pontos coloridos, translúcidos. Verde, laranja, azul, rosa. Eles são a luz silenciosa do título do filme. Como confetes, eles são polvilhados sobre a imagem, sobre a paisagem, sobre os animais, e sobre Johan e Marianne se beijando no campo (figura 5). Mais do que revelar a presença do equipamento do cineasta, esses pontos testemunham sua recusa em proteger a imagem da abundância de luz. Os pontos em que eles ocorrem constituem momentos de sobre-representação, não num sentido espetacular ou simbólico, mas como a representação excedendo a si mesma e, assim, tornando-se expressiva. Ao superexpor-se ao mundo, a imagem se expõe como imagem. Há simplesmente muita luz, e o único lugar para onde essa luz pode ir é a “superfície” da imagem, onde ela se move com a câmera, e adere à realidade diegética, criando assim uma membrana entre o espectador e a imagem real do filme. A imagem do filme então se faz sentir e de alguma forma se modifica de dentro para fora, voltando-se para as coisas intangíveis, “leve como a luz”, da qual ela é feita.64

Figura 5 Luz Silenciosa (Stellet Licht), dir. Carlos Reygadas, 2007.

64 CAVELL, World Viewed, 24.

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Essa luz colorida não é menos milagrosa do que o instante imperceptível em que Esther abre os olhos. É o filme como um todo que se apresenta como um milagre, no sentido de que escondido na superfície do seu realismo dogmático o filme desafia a realidade. Do nascer do sol fora de sincronia às paisagens ensolaradas, da performance granulada de Brel à ressurreição de Esther e do inverno anacrônico ao céu estrelado em que o filme se esvai – todos são apresentados como compartilhando um mesmo status ontológico; isto é, o conjunto milagroso que eles constituem, e que, ao mesmo tempo, só podem apontar para o não-imaginável dentro da imagem, o não-pensado dentro do pensamento. Para concluir, Stellet Licht é um filme inegavelmente religioso. Não só representa uma comunidade altamente religiosa, relações sociais incorporadas a um sistema rigoroso de crenças, mas sua própria narrativa romântica também é marcada por uma visão mistificadora do amor, do perdão, do desejo e da crença, seja em Deus, a Natureza, ou uma combinação dos dois. Embora parte dessa visão possa ser interpretada como resultante da vontade do cineasta (seja intencional ou não) de efetuar uma representação imanente, “indireta livre” das crenças e práticas menonitas, como em Ordet de Dreyer, é impossível dizer onde termina sua representação de uma comunidade religiosa e onde começa sua expressão de uma substância divina. Mas precisamente neste ponto invisível de indiscernibilidade, o filme se torna produtivo para examinar a luta por uma imagem-cristal imanente, tanto em filosofia quanto no cinema. Enquanto a primeira produz conceitos a partir de conceitos, o último produz imagens a partir de imagens. No entanto, e em analogia com o terceiro tipo de conhecimento de Espinosa, o conhecimento sem-conceito da essência de uma coisa particular, o cinema, a fim de tornar-se plenamente expressivo de seu próprio movimento, tem que, de alguma forma, libertar-se das imagens que produz. Ele tem que produzir uma imagem que simplesmente é, sem, ou pelo menos antes de, tornar-se outra coisa. Tal imagem livre do equipamento seria nada menos que um milagre.

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Niels Niessen obteve seu PhD em Literatura Comparada na Universidade de Minnesota (USA). Seu trabalho apareceu em publicações como Cinema Journal, Screen e Discourse. Atualmente trabalha no manuscrito de seu primeiro livro, A Cinema of Life: The New Realism of the French-Walloon “Cinéma du Nord.”

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Direito à comunicação

ATUALIDADE DO DEBATE HISTÓRICO COMO BANDEIRA DE LUTA PELA DEMOCRATIZAÇÃO

CHALINI TORQUATO GONÇALVES DE BARROS*

Resumo: O presente estudo se propõe a entender a base de sustentação argumentativa que orienta o discurso da sociedade civil na defesa pela democratização da comunicação. O levantamento analítico se desenvolve a partir das discussões acerca do direito à comunicação da década de 1970 quando se anunciava uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. As ações da sociedade civil, desde então, passam a ser pautadas pelo princípio dos direitos à comunicação ligada à visão essencialista dos direitos humanos, como parte inseparável dos direitos civis e sociais, defendendo participação de todos pela transformação da sociedade. Mesmo enfrentando a fragilidade de não estar claramente formalizado na legislação brasileira, o direito à comunicação, enquanto proposta emancipadora, ainda se repercute na atualidade e se materializa na militância das entidades de organização civil que emergem como atores sócio-políticos nessa nova configuração do espaço público de discussões. PALAVRAS-CHAVE: DIREITO À COMUNICAÇÃO, DEMOCRATIZAÇÃO, MOBILIZAÇÃO SOCIAL Right to communicate: actuality of a historical debate as an argument in defense of democratization Abstract: The present study aims to understand the argumentative support basis that guides the civil society speech in the democratization of communication defense. The analytical approach developed from the discussions about the right to communicate the 1970s when it announced a New World Order of Information and Communication. The actions of civil society has since come to be guided by the principle of the right to communicate linked to essentialist view of human rights as an inseparable part of civil rights and social participation of all advocating for the transformation of society. Even facing the fragility of not clearly formalized in Brazilian law, the communicate right, while emancipating proposal, still resonates today and is embodied in the militancy of the civil organization of entities that emerge as socio-political actors in this new configuration of public space discussions. KEYWORDS: RIGHT TO COMMUNICATE, DEMOCRATIZATION, SOCIAL MOBILIZATION.


Introdução Transformações recentes que interferem no setor de comunicações, sejam elas de ordem tecnológica, com as novas plataformas de comunicação questionando as barreiras entre as mídias, ou econômica, no que diz respeito ao modelo de negócio que passa a se estabelecer e às novas determinações concorrenciais, trazem consigo a urgente necessidade de reformular as políticas que orientam o setor. Historicamente, quando se está em jogo questões regulamentares das comunicações, um embate é travado entre forças conservadoras (instâncias governamentais), liberais (operadores, empresários e partidos de direita) e progressistas (organizações da sociedade civil, partidos de esquerda) que se articulam e se reposicionam de tempos em tempos para o estabelecimento de um modo de regulação setorial. Em trabalhos anteriormente desenvolvidos pudemos constatar a interferência que atores de forte poder político e econômico são capazes de exercer quando se questionam as regras de regimento de seu negócio, estruturadas para manutenção do modelo que lhes é conveniente, como é o caso da defasagem regulamentar em que permanece a radiodifusão brasileira, regida sob um código normativo da década de 1960.1 Ao longo dos anos, no entanto, as forças progressistas têm ganhado destaque na reivindicação questões que contribuam para o desenvolvimento de uma política nacional que priorize o direito humano à comunicação. As discussões da década de 1970 acerca de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC), a despeito de seu rechaço inicial, vêm ainda ganhando repercussão e defensores que, em seus ambientes acadêmicos ou governamentais, sustentam a luta pela democratização da comunicação. É imprescindível observar, neste contexto, a importância da participação dos movimentos da sociedade civil, como o Coletivo Intervozes, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Cris Brasil, Federação dos Jornalistas (FENAJ) entre outras entidades e associações, dos debates e fóruns destinados a discutir as reformulações políticas do setor. Entretanto, apesar ter alcançado repercussão em diversos aspectos, a discussão sobre direito à comunicação permaneceu truncada desde o boicote da Inglaterra e dos EUA à discussão acerca da Nova Ordem Mundial da Comunicação e da Informação (NOMIC) na década de 1980 de modo que até hoje a maturação do debate é custosa e o direito à comunicação nunca se concretizou positivamente. Não há acordo ou tratado que trate especificamente sobre este direito em seu sentido mais amplo e, no caso do Brasil, a expressão 1

Tema desenvolvido em profundidade em Barros (2009).

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“direito à comunicação” não aparece em nenhum documento normativo. Isso representa um grande entrave ao debate da comunicação na contemporaneidade na medida em que não dá sustentabilidade formal à defesa desse direito em seu caráter humanitário e contribui para que ele seja permanentemente violado. Dessa maneira, o presente artigo se propõe a entender a base de sustentação argumentativa que orienta o discurso da sociedade civil na defesa pela democratização da comunicação, uma vez que o direito à comunicação não é um conceito positivamente consolidado.

1. Direito humano à comunicação: debate histórico e definições O direito à informação foi reconhecido como fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. O documento assegurava, em seu artigo 19, a ideia de que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. (ONU, 1948) Em 1969, Jean D’Arcy levantava o questionamento sobre a insuficiência deste artigo observando que um novo direito, mais amplo que o de liberdade de expressão, deveria ser reconhecido, o de comunicação. (BRITTOS; COLLAR, 2008, GOMES, 2007) Ele propunha que o texto ali contido não fosse substituído, mas emendado, de modo que a comunicação fosse compreendida como um direito humano fundamental. Argumentava Jean D’Arcy: Agora parece possível um novo avanço: o reconhecimento do direito do homem a se comunicar, derivado de nossas últimas vitórias sobre o tempo e o espaço e de nossa maior consciência do fenômeno da comunicação… Agora está claro para nós que este direito engloba todas essas liberdades, e ainda lhes acrescenta, para os indivíduos e a sociedades, os conceitos de acesso, de participação, de fluxos de informação em ambos os sentidos, todos os quais são vitais ao desenvolvimento harmonioso do homem e da humanidade. (UNESCO, 1980, p. 149)

O desdobramento dessas discussões, entre os anos sessenta e setenta, repercutiu no lançamento, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), de uma comissão presidida pelo jurista irlandês Sean MacBride que problematizou o papel da comunicação para o fortalecimento da democracia, resultando num documento intitulado “Um mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa época”. O relatório MacBride, como passaria a ser conhecido, consiste numa crítica ao fluxo unidirecional da informação resultado da transnacionalização e da concentração 134

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da indústria de comunicação e é considerado um dos mais completos relatos acerca da importância da comunicação na contemporaneidade. (RAMOS, 2005) Trata-se do primeiro documento da ONU a entender a necessidade de conferir à comunicação o status de direito humano, incorporando-a a discussão da NOMIC e em suas metas: mais justiça, mais igualdade, mais reciprocidade na troca de informação, menos dependência das redes de comunicação, mais autoconfiança e identidade cultural. (UNESCO, 1980) No entanto, o relatório e suas recomendações foram recebidos com críticas severas que ocasionaram a saída de duas potências representativas da UNESCO, Inglaterra e EUA, como protesto. (BRITTOS; COLLAR, 2008) Por conta da representatividade que tinham, a deserção desses dois países, aliada ao cerco imposto pelos governos Reagan e Thatcher, prejudicou profundamente o encaminhamento do debate causando seu esvaziamento nos anos que se seguiram. Para o pensamento neoliberal que então começava seu período de hegemonia, era absurdo se pensar a comunicação na ótica de políticas nacionais. Mais absurdo ainda era pensar a comunicação como um direito mais amplo do que o consagrado, mas restritivo, direito à informação, do qual beneficiava-se fundamentalmente a imprensa, enquanto instituição, e seus proprietários privados, como agentes privilegiados de projeção de poder sobre as sociedade. (RAMOS, 2005, p. 246)

Definições mais esclarecidas a respeito do direito à comunicação são trazidas pelo relatório MacBride, desenvolvidas de maneira a ampliar a ideia de liberdade de expressão e de direito à informação que eram frequentemente abordados em acordos e convenções internacionais. A preocupação com um sistema internacional de comunicação não apenas livre, mas também equilibrado e capaz de garantir a diversidade e difusão de produção de informação e conhecimento, fazia emergir o conceito do direito de comunicar, a partir do qual a interatividade passaria a ser um fator essencial. A definição do direito à comunicação tem, portanto, como uma de suas características fundamentais a ideia de extrapolar os limites da comunicação unidirecional e possibilitar o intercâmbio de mão dupla. De tal modo, o direito à comunicação permitiria aos cidadãos “não apenas receber estaticamente informações selecionadas por terceiros, mas, sobretudo, interagir, participar e decidir com liberdade sobre as informações que desejam acessar e as opiniões que desejam emitir”. (WIMMER, 2008, p. 14) Trata-se essencialmente do direito inalienável de receber e compartilhar informações e conhecimento. De acordo com o relatório MacBride: Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber

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comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém um diálogo democrático e equilibrado. Essa idéia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos. (UNESCO, 1980, p. 300)

O relatório define ainda: Todo mundo tem o direito de comunicar. Os elementos que integram esse direito fundamental do homem são os seguintes, sem que sejam de modo algum limitativos: a) o direito de reunião, de discussão, de participação e outros direitos de associação; b) o direito de fazer perguntas, de ser informado, de informar e outros direitos de informação; c) o direito à cultura, o direito de escolher, o direito à proteção da vida privada e outros direitos relativos ao desenvolvimento do indivíduo. (UNESCO, 1980, p. 288)

Apesar de concordar que se trata de um conceito “guarda-chuva”, Desmond Fischer (1984), alerta para o perigo de sobrecarregá-lo com expectativas e considerações excessivas incluindo o hiato da informação entre países em diferentes níveis de desenvolvimento, acesso, participação nos processos de comunicação, responsabilização da mídia, etc. O direito de comunicar não é uma panaceia para os males do mundo. Não irá resolver os problemas de desenvolvimento, o problema de um fluxo de comunicações mais equilibrado, uma distribuição mais justa dos recursos de comunicações – nacional ou internacionalmente. Não irá assegurar a paz mundial, o progresso da educação, ou endireitar as insuficiências do Terceiro Mundo. Aqueles que procurar usar o conceito do direito de comunicar ou como justificação para promover o “imperialismo cultural” ou para combatê-lo ou para fins econômicos e políticos, estão prostituindo-o para fins os quais, ainda que dignos, não deveriam estar ligados ao direito humano fundamental de comunicar. (FISCHER, 1984, p. 48)

O autor não oferece, contudo, uma definição própria, mas orienta que para tentar alcançá-la é preciso englobar as necessidades da comunicação, seus problemas e possibilidades, mas evitando excessiva generalização, ou seja, ela não deve ser distendida para incluir uma gama de liberdades – como de expressão, de opinião, de informação, de imprensa, do profissional jornalista, etc. – pois elas não possuiriam a mesma importância 136

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básica. É partindo de tal raciocínio que Fischer (1984) passa a defender a hierarquização dos conceitos subjacentes ao do direito de comunicar, propondo os quatro níveis: 1) direito universal de comunicar (um direito humano abrangente, válido em todas as sociedades e encarado como uma meta final); 2) direitos específicos de comunicação (instrumentos de aplicação prática do direito geral); 3) responsabilidade de comunicação (aqueles que exercitam o direito de comunicação têm de prestar contas à sociedade por suas ações, à luz do bem comum; 4) questões de comunicação (problemas e possibilidades de comunicação em contínua supervisão e aprimoramento).

1.2 Direito à comunicação e liberdade de expressão A ideia de liberdade de expressão refere-se essencialmente a ausência de regulações que tragam qualquer tipo de restrição à produção de informações promovendo sua livre circulação. No entanto, a chamada doutrina do free flow of information, defendida pela delegação dos EUA na Conferência das Nações Unidas em Genebra (1948), consiste numa necessidade constante de desregulamentação dos mecanismos protecionistas a fim de permitir uma melhor circulação de informação e distribuição de conteúdo nos diversos mercados nacionais. (BARROS, 2008) Na medida em que a liberdade de expressão se sustenta na ausência de leis, ela pouco contribui para evitar a concentração de mercado por grandes corporações. Neste sentido, um deslocamento fundamental do eixo analítico é oferecido pelo conceito de direito à comunicação passando a entender a sociedade como uma estrutura complexa configurada fortemente sob relações de poder, e diante da qual a democratização da comunicação só pode ser garantida pela presença de políticas regulatórias. O direito à comunicação se distingue dos tradicionais direitos e liberdades individuais a ele associados – e.g. direito à informação, liberdade de expressão – por possuir uma forte dimensão coletiva e por se caracterizar também como um verdadeiro direito social, cujo reconhecimento implica no dever do Estado de criar os pressupostos materiais para seu efetivo exercício e na faculdade do cidadão de exigir as prestações constitutivas desse direito. (WIMMER, 2008, p. 147, grifo do autor)

Ao contrário, portanto do que é sustentado pelo discurso liberal, que entende qualquer tipo de intervenção do Estado como censória, a normatização regulamentar é fundamental justamente para o estabelecimento de diretrizes capazes de garantir a integridade de uma atividade essencialmente pública, dada a sua importância para a cidadania e cultura nacionais.

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Assim, acusando a liberdade de expressão de ser uma defesa de liberdades individualistas, o discurso do direito à comunicação traria uma proposta definida como coletiva, propondo-se não a suprimi-la, mas a ampliá-la. Ao contrário, portanto do que é sustentado pelo discurso liberal, que entende qualquer tipo de intervenção do Estado como censória, a normatização regulamentar é defendida pelo discurso progressista como fundamental justamente para imprimir medidas que fossem capazes de promover uma maior pluralidade de discursos, radicalizando a liberdade de expressão para todos, pensando-se numa abertura de oportunidade mais equitativa para os diversos grupos.2 Quando debate a relação entre direito à comunicação e liberdade de expressão, Bertrand (1999, p.65) afirma que: A liberdade de palavra e de imprensa não pode permanecer numa ausência de proibição, que beneficia somente uma ínfima minoria. Ela deve transformar-se em direito de comunicar, para todos. De que serve, com efeito, a liberdade de se exprimir se não é possível fazer-se ouvir? […] Sendo a comunicação uma necessidade essencial do ser humano, o “direito à comunicação” impõe-se: o direito reconhecido aos indivíduos, aos grupos e às nações de trocar qualquer mensagem por qualquer meio de expressão. E consequentemente, a obrigação para a coletividade de fornecer os meios desta troca. (BERTRAND, 1999, p. 68)

Philip Lee (1995), por sua vez, identifica a proposta do empoderamento e inclusão do cidadão como aspectos centrais do direito à comunicação: The right to communicate is an ideal that seeks to empower people to participate actively in the search for solutions to problems of development as perceived and defined by them. It means making available to the people the necessary facilities that will enable them to engage in dialogue on an equal footing. (LEE, 1995, p. 6)

2 “Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém um diálogo democrático e equilibrado. Essa ideia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das ideias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos”. (UNESCO, 1980, p. 300)

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2. Jusfundamentalidade do direito à comunicação e Constituição de 1988 Ao discorrer sobre a jusfundamentalidade do direito à comunicação, Miriam Wimmer (2008) argumenta que os direitos fundamentais não se restringem àqueles explicitados na constituição formal de cada Estado, mas também resultam de uma “interpretação constitucional sistemática” das regras nela instituídas, bem como no direito internacional, especialmente quando o tema põe em questão a promoção da dignidade humana – princípio que caracteriza os direitos fundamentais. De tal modo, não se pode desconsiderar juridicamente a existência de direitos fundamentais além daqueles já positivados. Se ao direito da comunicação deve ser associado o status de fundamental, isso se deve, antes de tudo, à importância que representa para a consolidação democrática no Estado contemporâneo. É também por este motivo que atividades de interesse coletivo, não devem ser relegados às leis da livre iniciativa, e devem estar sob constante vigilância do Estado, como é o caso da radiodifusão. Dessa maneira, mesmo sendo exercida pela iniciativa privada, a comunicação deve ser observada em seu caráter de serviço público, no que diz respeito ao interesse coletivo, um bem comum que não deve se submeter a regras de exclusão típicas do mercado. Assim, mesmo que no ordenamento jurídico brasileiro não haja um dispositivo legal que reconheça expressamente o direito à comunicação, ele prevê, por outro lado, a função social de empresas que exerçam serviços de relevância pública, como é o caso da comunicação. (BRITTOS; COLLAR, 2008) O que se observa, portanto, é que, na ausência de uma formalização desse direito, resta aos seus defensores a interpretação de textos legais existentes que tangenciam o tema. Embora seja considerada um marco para a transição democrática no Brasil, a Constituição de 1988, em seu art. 220 versa sobre a proibição de restrições à liberdade de pensamento, expressão e informação, repetindo o mesmo equívoco reducionista dos acordos internacionais desde a Declaração dos Direitos Humanos, ao não reconhecer expressamente do direito à comunicação. Ao invés disso, optou-se por tratar dos diversos direitos associados à comunicação de maneira assistemática e fragmentada, alguns espalhados pelo art. 5o, quando menciona direitos e garantias fundamentais, e outros definidos no capítulo destinado à comunicação social. (WIMMER, 2008) Portanto, embora a Lei Magna reúna alguns dispositivos que prevêem direitos associados à comunicação – vedação a censura, liberdade de pensamento, proteção da infância e da juventude, garantia do pluralismo das fontes de informação, Conselho de Comunicação Social, etc.- ela ainda se encontra pendente de regulamentação que os faça valer efetivamente. A imprecisão das normas constitucionais se soma à ausência de complementação legislativa e contribui para reproduzir o velho modelo de comunicação que se instaura no país ao longo de décadas, (BOLAÑO, 2007) fragilizando a sustentação de qualquer projeto emancipador. As poucas conquistas acumuladas pela frente progressista

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à época da elaboração da Constituinte, seguem até hoje sendo postergadas em função da força política de empresários da comunicação (JAMBEIRO, 2001). Historicamente a discussão sobre uma legislação da comunicação mais democrática no Brasil se firma como um tema bastante conflituoso e desafiador. No entanto, na deficiência do Estado surge a sociedade civil, assumindo para si as rédeas das determinações sociais. Historicamente, os movimentos pela democratização das comunicações no Brasil e sua luta pela institucionalização de procedimentos de inclusão da sociedade civil na elaboração de políticas públicas para o setor esbarram em resistências sistêmicas e renitentes lideradas por forças políticas e mercantis. […] No que se refere ao setor das Comunicações, as forças conservadoras alicerçadas no poder público do Ministério das Comunicações têm acumulado vitórias em função de seus interesses específicos, inclusive, muitas vezes contrariando forças liberais. A atuação progressista no setor, materializada por entidades civis, como FNDC e Intervozes, vem desde a Constituinte contando tímidas conquistas nos embates com os interesses das alas liberal e conservadora. (HAJE et. al., 2008, p. 16)

3. O papel da sociedade civil e a luta pelo direito à comunicação no Brasil Os novos atores sócio-políticos que compõem a chamada sociedade civil organizada procuram contrabalançar a dificuldade da participação social na estrutura burocrática da democracia representativa, que acaba afastando o cidadão comum da ação civil direta. A tecnocracia do modelo liberal democrático estabelece sua operacionalidade num Estado de direito centralizado que deixa a cargo de parlamentares a tomada de decisões políticas diretamente relacionadas ao interesse público. Com a crise do paradigma do Estado, acarretada especialmente, a partir da disseminação de uma cultura neoliberal antiestado, fica evidente a ideia de que a máquina burocrática é dispendiosa e ineficiente e sugere que a sociedade civil deve substituí-la. No entanto, resgatando uma perspectiva gramsciana, pode-se afirmar que, longe de representar uma instância antagônica ao Estado, a sociedade civil o compõe,3 caracterizando-se, essencialmente, como “um projeto político abrangente e igualmente sofisticado, com o qual se pode transformar a realidade”. (NOGUEIRA, 2003, p. 219, grifo do autor) Junto ao Estado emerge, portanto, a sociedade civil como uma nova configuração de atores sócio-políticos surgindo na esfera pública. Se no âmbito internacional a discussão 3

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Dentro de uma compreensão de “Estado Ampliado”.

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acerca do direito à comunicação ressurge atualmente, como na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (em Genebra, 2003 e na Tunísia, em 2005), isso se deve, particularmente, à campanha Communication Rights in the Information Society (Cris), uma articulação de organizações da sociedade civil e movimentos sociais ao redor do mundo dedicados primordialmente à efetivação do direito humano à comunicação.4 Esta defesa deve se dar, basicamente, por quatro pilares: a liberdade de expressão na esfera pública, o uso do conhecimento e do domínio público, o pleno exercício das liberdades civis (privacidade, associação) e o acesso equitativo às tecnologias de informação e comunicação (TIC’s). (BRITTOS; COLLAR, 2008) No Brasil, o advento de debates como sobre a Lei de Audiovisual, a regulamentação da TV a Cabo, a TV Digital, a TV pública, a defesa pela realização de uma Conferência Nacional de Comunicação, entre outras, tem sido marcado pela participação informal ou institucionalizada de entidades civis e militantes pela defesa de um modelo mais democrático de comunicação no Brasil. A reflexão acerca da criação de instrumentos que reforcem o sentido “público” das políticas para a área da comunicação ganhou novamente a pauta da sociedade com as propostas de Lei do Audiovisual, do Conselho Federal de Jornalismo e do Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Com o debate pautado sobre a cultura, a informação e a difusão destes como elementos estratégicos, as discussões reacenderam a divergência entre, de um lado, os movimentos sociais e as entidades de classe e comprometidas com o direito à comunicação e, de outro lado, o empresariado de comunicação. Enquanto os representantes do empresariado usam seus veículos para defender seu modelo de mercado desregulado e concentrador, os movimentos sociais pedem espaços de debate mais abertos e participativos. Essas pressões produziram resultado, mesmo que limitado, em algumas destas pautas. (INTERVOZES, 2005, p. 60)

Nacionalmente merece destaque o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação,5 criado em 1991, composto pela Federação Nacional dos Jornalistas, Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão, Central Única dos Trabalhadores, Conselho Federal de Psicologia, Associação Nacional das Entidades de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões e Associação Brasileira de Radiodifusão

4 5

<www.crisbrasil.org.br>. <www.fndc.org.br>.

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Comunitária. Outra entidade de notória atuação política é o Coletivo Intervozes,6 criado em 2002 e ligado à campanha Cris Brasil, que trabalha mais vinculado à retomada da bandeira de luta do direito à comunicação e, por conta disso, tem divulgado relatórios, como o “Direito à comunicação no Brasil”, em 2005, e publicações como “Contribuições para a Construção de Indicadores do Direito à Comunicação”, voltados especificamente ao tema. Essa construção de indicadores faz parte de uma proposta compartilhada pelo Intervozes em parceria com a Unesco, UnB e UFRJ,7 visando a construção de “Indicadores do Direito à Comunicação no Brasil”, que servirão como elemento central para “acompanhar o grau de desenvolvimento da democracia do país, garantindo um diagnóstico, monitoramento e avaliação do funcionamento do setor e das políticas públicas e assim podendo servir de referência segura para ações da Sociedade Civil e do Estado”.8 Além disso, o debate sobre a formulação de políticas de comunicação tem contado, nos últimos anos, com a participação de organizações de defesa dos direitos humanos como a campanha “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” de iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados durante a Conferência Nacional dos Direitos Humanos, em 2002. Já em 2005 houve o Encontro Nacional de Direitos Humanos cujo tema foi justamente “Direito Humano à Comunicação: um mundo, muitas vozes” em alusão ao relatório MacBride que completava 25 anos.

Conclusão O discurso do direito à comunicação na atualidade não somente endossa as questões fomentadas na década de 1970, repercutindo a ideia de um direito inalienável e inseparável dos direitos civis e sociais, mas estende o leque de discussão e adota a reivindicação de que todos devem ter a possibilidade de participar da transformação da sociedade. A luta dos movimentos sociais em escala internacional reforça o anseio de formalizar o direito à comunicação em ordenamentos jurídicos internacionais que garantam a concretização de diretrizes regulamentares mais democráticas, para que, posteriormente, sejam incorporadas às políticas nacionais de comunicação. O tema carrega, acima de tudo, portanto, um ideal de comunicação democrática, e de emancipação social que deve permanecer mesmo que ainda não haja uma formalização expressa do direito à comunicação. Longe de se reduzir à retórica esse debate carrega com ele todo um histórico de mobilização civil que, mesmo vagarosamente, vem se firmando força de pressão na esfera pública de discussões. Suas contribuições são capazes de fazer 6 <www.intervozes.org.br>. 7 Proposta firmada em 2009 com o Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília (LaPCom) e o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NETCCON). 8 <http://sites.google.com/site/direitoacomunicacaoindicadores/>.

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penetrar nos ambientes parlamentares, a agenda de questões pertinentes às esferas privadas e que de outro modo, não chegariam à esfera institucional. A construção de políticas democráticas que garantam o direito à comunicação deve, necessariamente, ser participativa para que o imperativo da igualdade e da justiça social tenha possibilidade de se concretizar.

Referências BARROS, Chalini. Radiodifusão e telecomunicações: um estudo sobre o paradoxo da desvinculação normativa no Brasil. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea). Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009. ______. Distribuição de conteúdo audiovisual: configurações de fronteiras em escala mundial. Comunicação & Informação. Goiânia, v.11, n2, jul./dez 2008, p. 197-207. BERTRAND, Claude-jean. A deontologia das mídias. Bauru: Edusc, 1999. BOLAÑO, C. R. S. Qual a lógica das políticas de comunicação no Brasil? São Paulo: Paulus, 2007. BRITTOS, Valério; COLLAR, Marcelo. Direito à comunicação e democratização no Brasil. In: SARAVIA et. al. (orgs.) Democracia e regulação dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: FGV, 2008. FISCHER, Desmond. O direito de comunicar: expressão, informação e liberdade. Brasiliense: São Paulo, 1984. GOMES, Raimunda Aline Lucena. A comunicação como direito humano: um conceito em construção. Dissertação (Mestrado em comunicação) – Programa de Pós-Graduação em comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007. HAJE, L.; LEAL, S.; PAULINO, F. Políticas de comunicação e sociedade civil: movimentos pela democratização das comunicações no Brasil em 2007/2008. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008. INTERVOZES. O direito à comunicação no Brasil. Relatório da pesquisa. São Paulo: Intervozes, 2005. JAMBEIRO, Othon. A TV no Brasil do século XX. Salvador: Edufba, 2001. LEE, Philip (org.). The democratization of communication. University of Wales Press, 1995. MNDH. Carta de Brasília. Encontro Nacional de Direitos Humanos. Movimento Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Câmara dos Deputados, 2005. NOGUEIRA, M. A. As três idéias de sociedade civil, o Estado e a politização. In: COUTINHO; TEIXEIRA.(orgs) Ler Gramsci, entender a realidade. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro. 2003. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembléia Geral das Nações Unidas. Paris: ONU, 1948. RAMOS, M. C. Comunicação, direitos sociais e políticas públicas. In: MARQUES DE. MELO, J.; SATHLER, L. Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. São Paulo: UMESP, 2005.

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Chalini Torquato Gonçalves de Barros é doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas – PósCom/UFBA. E-mail: <chalinibarros@gmail.com>.

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Las diversas repercusiones en los espectadores argentinos en relación a diversos dispositivos A PROPÓSITO DE LA IMAGEN DEL ROSTRO DEL CHE GUEVARA1

LIC. JIMENA CECILIA TROMBETTA*

Resumen: El presente trabajo se ocupa de analizar las diferentes prácticas espectatoriales (cine- video) y su relación con la utilización del dispositivo fotográfico. Para dicho análisis aplicado a estudiar la representación del rostro del Che muerto, se utilizan las teorías de Comoli, Bellour, Agamben, Deleuze y Barthes, las cuales trabajan sobre los conceptos de espectador, cine, video, fotografía y dispositivo. El corpus fílmico a trabajar se compondrá de ocho films que representaron la imagen mencionada desde diferentes posiciones subjetivas e históricas. PALABRAS CLAVES: CHE GUEVARA, DISPOSITIVO, ESPECTADOR

Introducción1 Plateamos la problemática de establecer comparaciones en los distintos niveles de afección producidos frente a las prácticas espectatoriales. La intención es encontrar un instrumento que analice las repercusiones de los films que representaron a Ernesto Che Guevara (como germen primero La hora de los hornos (Grupo Cine Liberación, 1968), 1 Teníamos la intención de trabajar con un corpus mayor de registro sobre datos duros que dieran cuenta de la repercusión en los estrenos comerciales, sin embargo dentro del registro en las revistas Deisica no se encuentran registros de los films hasta 1998. En los números que trabajan desde dicho año en adelante sólo registramos tres films con estreno comercial de los cuales solo dos tienen un número de espectadores específico. Los films registrados son Ernesto Che Guevara, el diario de Bolivia del suizo Richard Dindo que fue estrenado el 14 de mayo de 1998 quedando en el puesto 200 en la lista del ranking de films comercializados pero sin datos con respecto a la cantidad de espectadores; Che… Ernesto de Miguel Pereira que fue estrenado el primero de octubre de 1998 quedando en el puesto 207 también sin datos que refieran a la cantidad de espectadores. Otro registro de Deisica, quizás el más completo, se puede observar con Che, un hombre nuevo de Tristan Bauer que figura como una de las películas nacionales más taquilleras del año con 31.215 espectadores distribuidos en 1593 funciones dadas en trece semanas (a 20 espectadores por función) que fue comercializada por Distribution Company Arg. S.A. entre la semana 41 y la 52. De los años 1995, 1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2006, 2007 (averiguar sobre 1997) no hay registros de estrenos comerciales con dicha temática, solo se registró un tele film en el año 2005 de Alberto Nhasliah Chemen llamado Negro Che. Queda por fuera la década del ’80 ya que la revista no existía.


Che: ¿Muerte de la utopía?2 (Fernando Birri, 1997-1999), Che. Hasta la victoria siempre (Juan Carlos Desanzo, 1997),3 Che la eterna mirada (Edgardo Cabeza, 1997-2008),4 El che un hombre de este mundo, (Marcelo Schapces, 1999),5 El día que mataron al Che, (Pacho O’Donell, 2007) (Editado por Clarín y exhibido por tv) Los últimos días del Che, (Matías Gueilburt, se estrenó 7/10/07 en The History Chanel) y Che un hombre nuevo,6 (Tristan Bauer, 2010)), teniendo en cuenta las formas de difusión (cine comercial, cine clandestino, televisión, videos, internet). Una primera separación evidente es el conocimiento o desconocimiento del espectador sobre la figura mítica, mientras que los espectadores de televisión, cine comercial, videos e internet varían–quienes poseen un saber previo sobre la figura y quienes no- en la clandestinidad se tiende a tener como espectador modelo a quien tiene conocimiento propio sobre la imagen del Che Guevara. También se tendrá en cuenta la complejidad desde la utilización que realicen sobre las fotografías, ya que las mismas serían reconocidas o no por un público más especializado, por ejemplo los dos famosos casos: la foto tomada por Korda y la tomada por Alborta, siendo esta última la que iremos a analizar. Para hacer el análisis espectatorial emplearemos la teoría de Comolli en Ver y poder, la teoría de Raymond Bellour, la teoría de Barthes sobre la expectación fotográfica y los textos de Agamben y de Deleuze que analizan el concepto de dispositivo, ya que tendrá diferentes significaciones frente al espectador específico que quiera dirigirse.

El dispositivo histórico dentro del cinematográfico que capturó al dispositivo fotográfico (…) llamaré literalmente dispositivo cualquier cosa que tenga de algún modo la capacidad de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar y asegurar los gestos, las conductas, las

2 El 6 de abril de 1997 en el suplemento radar de Página 12 sale publicado el proyecto de Fernando Birri, con sus entrevistas en calle Florida. Hace mención como la misma se plantea como un ensayo polémico, en el que discute con algunos intelectuales volcados hacia la crítica del guerrillero. 3 El film de Desanzo fue estrenado en el Cine Tita Merello, el 9 de octubre, para ser primero en taquilla habiendo vendido 32 mil entradas en veintidós cines. La repercusión en críticas según los afiches publicados en los diarios fue buena, sin embargo la película fue criticada por varios críticos aunque enarbolada por la opinión del público según un articulo del Página 12. La contradictoria difusión hizo que de todas maneras se entrevistara al actor, al director y hasta se entrevistó al compositor de la música Frank Fernández. 4 Sale el4 de octubre de 2008 un artículo que comenta por el propio director el perfil del film que sería vendido como DVD por el Página 12 al día siguiente. 5 Se estrena el 11 de noviembre de 1999, y declara en una entrevista al página 12, haber realizado un film donde el Che es quitado del pedestal. 6 El film fue estrenado en 2010 en salas de cine, aunque el proyecto comenzó en 1997, y luego fue difundido en dvd. La repercusión de dicho documental fue la mayor registrada entre los films nacionales, en tanto espectadores, y en tanto difusión, son múltiples los registros críticos positivos y el seguimiento de la creación de la película con entrevistas a Bauer.

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opiniones y los discursos de los seres vivientes. (…) Resumiendo, tenemos así dos grandes clases, los seres vivientes o las sustancias y los dispositivos. Y, entre los dos, como un tercero, los sujetos. Llamo sujeto a lo que resulta de la relación o, por así decir, del cuerpo a cuerpo entre los vivientes y los aparatos. (AGAMBEN, 2011)

Partiendo de esta cita el dispositivo ubica un realizador que varía de acuerdo a que contexto lo sujetó, es decir las instancias políticas por las que era atravesado. Así vemos tres momentos históricos diferentes: el primero responde a la época de La hora de los Hornos, con la actividad clandestina del grupo Cine Liberación, el segundo al período neoliberal -donde tras el treinta aniversario de la muerte del Che Guevara hubo alrededor de ocho proyectos nacionales7 de la mano de Luis Puenzo (nunca realizado), Aníbal Di Salvo8, Juan Carlos Desanzo, Tristan Bauer (2010), Fernando Birri (1999), Miguel Pereira (1998), Edgardo Cabezas (2005) y Marcelo Shapces (1999) de los cuales sólo se concretaron 7 Los films registrados en el año 1997, tuvieron una gran repercusión en los diarios La Nación, Clarín y Página 12 donde fueron fuertemente criticados desde diferentes puntos de vista. La época pedía que se construyera una revisión histórica sobre el héroe guerrillero, para generar una contrapartida frente a la despolitización propagada desde el menemismo. Así Aníbal Di salvo, Juan Carlos Desanzo (ya director de su film Eva Perón) Fernando Birri, (quien propagó estas palabras mencionadas), realzaron los films: El Che, Hasta la victoria, siempre y Che, ¿Muerte de la utopía?, respectivamente. 8 El Che de Aníbal Di Salvo se dio a conocer en septiembre de 1995 como un proyecto de Fernando Siro (quien luego renunciaría a su rol de director para volcarse a la política) con guión de Agustín Pérez Pardella, autor que había escrito el musical, Eva Perón, la mujer del siglo en 1985. En la breve información que dio el diario La Nación mencionaba las locaciones en las cuales se iba a filmar (Argentina, Bolivia y Brasil) y los actores que iban a participar sin mencionar quien interpretaría al Che (Miguel Ángel Solá, Angela Molina, Darío Grandinetti, Imanol Arias, Alfredo Alcón, Osvaldo Laport, Cecilia Roth, Federico Luppi, entre otros). Ya en el año 1996 se vuelve a informar que el film que iba a ser filmado por Siro, pasó a ser material de Di Salvo, y que los actores serían Miguel Ruiz Díaz (Che), Emilia Mazer (Tania), Federico Oliveira (Regis Debray), Norman Brisky (Terán). Estos vaivenes en el proyecto, que contó con 2.200.000 de dólares (de los cuales el INCAA contribuyó con 700.000 pesos), daban cuenta que el film apuntaba a ser una superproducción y tenía la meta de lograr una amplia taquilla que no ha sido registrada, probablemente por las malas críticas acontecidas posteriormente que criticaban las escenas de emboscadas y tiroteos. (Escenas que habían sido previstas por el film y mencionadas por los diarios durante el período de rodaje. Al punto de tomarle a Di Salvo, una declaración en la que confiesa que Pombo le había sugerido hacer un Rambo con ideología socialista) Entonces, en este caso hay dos puntos de vista incluso por los mismos diarios, el primero es la impronta de difundir el rodaje, su estadía en salta, su presupuesto, su superproducción y en una segunda instancia marcar críticas que menosprecian el resultado del film, desde este punto de vista el film termina con una alta propaganda (positiva y negativa) que no llega a tener la repercusión que se esperaba.

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dos ese mismo año, que en todos los casos tenían la urgencia de combatir el vaciamiento de la imagen tomada por las distintas facciones políticas, pero sobre todo anulada por el costado mercantil de la misma- y el tercero corresponde al resurgimiento de las imágenes míticas, a la nueva participación política de la sociedad, acontecida a partir del año 2001 y sobre todo al aniversario cuarenta de la muerte del Che. Tanto como en el segundo período, en este también se observan ciertos desfasajes, aunque no responden a un retraso en el estreno o en la realización, sino más bien a un adelanto a la fecha de muerte como el film de Walter Salles que comienza a ser producido en el 2001 y es estrenado en el 2004 a cuarenta y cinco años de la revolución cubana. Desde la óptica de Agamben, el dispositivo cinematográfico fue un propagador de mitos y del dispositivo histórico que de diferentes maneras exigía una revisión en los contextos marcados. Sin embargo, las subjetividades de los realizadores de una época determinada no era referencia a una forma de relato específica, tanto así que narraron de modos diversos la manera de dirigir la mirada del espectador a las dos fotografías icónicas del Che Guevara, la de Korda y la de Alborta. En este punto como sostiene Deleuze los dispositivos no son universales. El universal, en efecto, no explica nada, sino que lo que hay que explicar es el universal mismo. Todas las líneas son líneas de variación que no tienen ni siquiera coordenadas constantes. Lo uno, el todo, lo verdadero, el objeto, el sujeto no son universales, sino que son procesos singulares de unificación, de totalización, de verificación, de objetivación, de subjetivación, procesos inmanentes a un determinado dispositivo. Y cada dispositivo es también una multiplicidad en la que operan esos procesos en marcha, distintos de aquellos procesos que operan en otro dispositivo. (DELEUZE, 1989)

Así cada film utiliza de forma disímil los recursos cinematográficos y a su vez incluyen de diversas maneras el dispositivo fotográfico.

La apropiación de una fotografía en el cine y cómo se direcciona la mirada El lugar del espectador de cine se define, primero, por la doble obligación de la inmovilidad del cuerpo, bloqueado en una butaca (que no está necesariamente en el centro de la séptima fila, lugar focal presumible de toda buena sala…) y de la contención del campo visual. En ese sentido, lo que llamamos “mirada” en el cine, difiere radicalmente de la “mirada” de la experiencia visual

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no cinematográfica. La elaboración de este estadio superior de la visión que sería la mirada, comienza en el cine por una renuncia. Pierdo uno de mis dos ojos, lo oculto, me vuelvo tuerto. La cámara tiene un solo ojo (el objetivo) y yo deslizo mi aparato de visión al mismo tiempo que mi deseo de ver en la estrecha hendidura de este único ojo (también ojo maquínico). Renuncio al mismo tiempo a las ilusiones aseguradoras de la estereoscopía, a las cualidades, al domino autorizado de la visión binocular. (COMOLLI, 2009: 391)

En esta cita Comolli refiere en algún punto a que esa disposición material del cuerpo trasciende al espectador que se encuentra sujetado, atado su ojo al de la cámara. Este tema pasa a ser de gran importancia ya que implica una doble actividad política por parte del que define la concatenación de las imágenes, por que cada plano del Che muerto y su subsiguiente imagen requiere una definición política, tanto en ficción como en documentales. Y esa definición política también será expuesta en el tratamiento particular de la foto del Che muerto. Bellour plantea que la utilización del congelado en la imagen marca una inmovilidad que juega con lo único real: la muerte. Sin embargo, agrega, que ese detener el tiempo la retorna a una vida indeterminada o duradera de acuerdo al relato. En este sentido, veremos como en muchos films, el rostro del Che muerto es utilizado de este modo: fijando esa fotografía para hacerla vivir como imagen, cambiando su plasticidad con las panorámicas impresas en las mismas o los cambios de ángulos sobre el material fotográfico utilizado. Otra cuestión importante que se debe evaluar es como retorna a esa vida la imagen a partir del siguiente fotograma, es decir, qué enigma se plantea en ese pasaje entre una instantánea y la otra. Y éstas podrán ser una nueva foto, un nuevo ángulo, testimonios de personajes de la historia o incluso unas sucesivas sobreimpresiones que incluyan discursos del Che en vida. Desde este aspecto podemos observar como se produce así entre foto, cine, video una multiplicidad de superposiciones, de configuraciones poco previsibles. (BELLOUR, 2009: 14)

La de Aborta y la captura Analizar La hora de los hornos, simplemente es repetir las palabras de Mariano Metsman, quien sostuvo como el film alcanzó una difusión clandestina o semi-clandestina en Argentina y en los festivales internacionales en los que fue exhibida. En ese período, señala como eran ocupados los últimos cuatro minutos con la imagen del Che-muerto/ Che-Cristo, buscando como “film-acto” “un acto político alrededor de su circulación clandestina”. (Metsman, 1996:18) Metsman en su artículo destaca como la provocación política de exponer al Che muerto como elemento de reacción, no era así percibida por los espectadores cubanos, quienes veían en esa imagen un final de derrota.

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En Che ¿La muerte de la utopía? de Fernando Birri la narración de la muerte comienza con la reivindicación de la vida. Con la voz de Galeano preguntándose cómo puede el Che tener la peligrosa costumbre de renacer, junto a recortes de diarios que anuncian el paradero de sus restos. En esa conjunción de recortes, dónde además se ve la foto de Alborta, simil al Cristo de Mantegna, dice “quizás porque hubo algo extraordinario en este hombre. Él decía lo que pensaba y hacía lo que decía”. La presentación del film continúa con el ingreso de la cámara en la lavandería del hospital en Vallegrande, allí un plano detalle sobre las piletas con vasos de Coca- Cola con flores silvestres muertas, para abrirse y recorrer los grafitis. La misma escena transcurre sobreimpresa en la concatenación de fotografías, que se van resignificando con esos mismos grafitis. Por ejemplo: la imagen más pregnante es el rostro del Che muerto, que vive con la otra imagen superpuesta de la pared de la lavandería; y en el movimiento de ésta se puede leer: Che: no pudieron cerrarte los ojos por eso eres eterno. Ese rostro suma aún más la afección del espectador al imprimirse sobre la fotografía un leve acercamiento hacia los ojos del Che. (…) el instante de la fotografía, por desgarrador que sea, y cercano a la pose, como lo sentía Barthes, es siempre, por la fuerza de las cosas, “un instante decisivo” arrancado a la realidad. Solo se lo puede llamar pregnante en relación con la inversión del tiempo y la inscripción de la muerte, en cuyo índice se transforma, y que es el trauma, el sujeto secreto que dobla a su sujeto aparente. (BELLOUR, 2009: 121)

Sin utilizar específicamente las fotografías en Hasta la victoria siempre de Juan Carlos Desanzo, se narra y se ritualiza la escena de captura. En la misma se representa un vía crucis, que comienza a justificar esa mirada religiosa en los testimonios de los pobladores entrevistados en diferentes documentales. Además, este aspecto religioso llega a su máxima expresión una vez que el Che es representado muerto, donde los planos en la camilla y su traslado en el helicóptero con el rostro mirando al cielo, incluye por analogía la foto de Alborta, a ese perfil sobrenatural al que fue vinculado. En este aspecto el tiempo del plano en movimiento responde a un tiempo detenido que busca la contemplación de ese ascenso a la memoria del espectador. Ese plano cumple la función de recurrir a cada subjetividad que irá a descubrir el punctum del que habla Barthes, ese plus que cada hombre le imprime a una fotografía de modo subjetivo. Otro modo narrativo de la captura y de la muerte se observa en Che un hombre nuevo de Tristan Bauer. Aquí la escena de captura se representa a través de seis fotografías (entre las cuales se encuentra la que le sacó Rodríguez al Che con las manos atadas) que se acercan lentamente forjando un cierre del plano. En este caso, el tiempo de las fotografías exige esa contemplación y la subjetividad del espectador que renueva su atención con el sonido de la cámara fotográfica en cada cambio de instantánea. Posteriormente a esa escena se sucede una donde ingresa el sonido del helicóptero para luego ver su llegada a 150

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Vallegrande. Este cuadro es acompañado por el ingreso a la lavandería donde se verá el video con quienes recorren el cuerpo, pero está vez no será en blanco y negro sino que Bauer elige pasarlo en color. En Che, la eterna mirada de Edgardo Cabeza, la afección en el espectador, se produce en la filmación de las imágenes de su muerte que son acompañadas por el discurso de Susana Osinaga (la enfermera que estuvo a cargo de lavarlo, cambiarlo y seguir las órdenes del médico que realizó la autopsia). Aquí la detención temporal se produce desde el discurso de Susana, desde su subjetividad, pero las fotografías se suceden con mayor velocidad que en el film de Birri, donde las mismas son detenidas desde el propio relato. Aquí se muestra una multiplicidad de fotos entre las cuales también se destacan aquellas donde el Che es rodeado de pobladores para afirmar el discurso de la enfermera. La imagen del Che muerto también es expuesta para darle otro significado. Patricio Contreras narra con voz en off, que las piletas están como hace treinta años, que “solo falta la imagen que sacudió al mundo, la última y eterna mirada” para realizar un montaje e incorporar la imagen de la foto del cuerpo entero que saco Alborta subido a la pileta. La foto que puede ser vista como algo morboso se transforma desde el discurso de Contreras como un estandarte político, un cuerpo muerto que vive, que descansa en el discurso final que dice Osinaga “Parecía Cristo”. Así, el Che queda como una imagen sagrada entre lo ritual y lo mítico dónde el relato es mítico y la descripción del rezo a la imagen, la acción es el rito. La potencia del acto sagrado –escribe Benveniste– reside en la conjunción del mito que cuenta la historia y del rito que la reproduce y la pone en escena. El juego rompe esta unidad: como ludus, o juego de acción, deja caer el mito y conserva el ritual; como jocus, o juego de palabras, elimina el rito y deja sobrevivir el mito. “Si lo sagrado se puede definir a través de la unidad consustancial del mito y el rito, podremos decir que se tiene juego cuando solamente una mitad de la operación sagrada es consumada, traduciendo solamente el mito en palabras y el rito en acciones. (AGAMBEN, 2011)

Otra manera de filmar la fotografía que se distancia de la idea del santo, es mediante la mostración de los diarios de la época. Así, en Che un hombre de este mundo, el hecho es narrado de esa manera, sin embargo las mismas son seguidas por un discurso del Che que declara la desconfianza en el imperialismo, un discurso que lo hace vivir, junto a la declaración de su hermano Roberto Guevara que asegura que el Che ésta vivo y que las fotografías son falsas. Por último hay que mencionar dos documentales expuestos en la televisión y vendidos en los diarios, El día que mataron al Che de Pacho O’Donell y Los últimos días del Che guionado y conducido por Jorge Lanatta. El día que mataron al Che ubica al espectador

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haciéndolo ingresar a la lavandería junto a Pacho O’ Donell que da vueltas alrededor de las piletas en el mismo sentido que lo hacían los pobladores de Vallegrande en 1967. Así se suman las imágenes de archivo desde fundidos encadenados que aparecen y desaparecen en el mismo recorrido que hace el periodista del film. El mismo se ubica en un tiempo virtual, va del pasado al presente y viceversa. Con el testimonio de Liga Morón, una vecina de La Higuera, se narra la foto de Alborta, mientras su imagen es reiterada desde diversos ángulos, desde el color y desde el blanco y negro, desde distintos planos, e incorporando el video realizado por Chousiño. Los escritos en la lavandería también son filmados individualmente pero como registro histórico. Posteriormente a esa escena, ya arribando hacia el final se puede observar como a través de dibujos que complementan las fotografías se reconstruye la escena de captura, sostenida por el discurso de Gary Prado, quien le dio la orden de muerte al Che, a Mario Terán. En cambio, en Los últimos días del Che, cuando Jorge Lanata ingresa al museo de la guerrilla en Bolivia, se muestran las fotografías que hay, posteriormente al comentario del periodista que da cuenta de la foto del Che muerto dentro del museo. Se filma las mismas de un modo distanciado, donde el foco está puesto sobre las expresiones del periodista, y sobre su recorrido, pero no sobre las fotografías. En este punto estas fotos no funcionan como elemento a contemplar, sino como registro histórico. Por ejemplo, en el caso de la foto “El cadáver del Che y sus camaradas” (título de la misma que solo se puede percibir deteniendo y acercando el plano donde es filmada). Más adentrado el documental, Lanata ingresa a la lavandería y a diferencia del documental de Pacho O’ Donell y del tratamiento de las imágenes en el documental de Birri, no se adjuntan a la lavandería las fotos del Che muerto. Porque la misma será expuesta bajo el discurso de Susana Osinaga donde mientras ella narra el episodio de la gente recorriendo el cuerpo, y ella misma preparando el cadáver, se ven las imágenes que recorrieron el mundo.

A modo de conclusión El breve análisis que hemos elaborado, viendo como el dispositivo cinematográfico se apropia del fotográfico, nos da la pauta de como las mismas ingresan en una interrelación entre la subjetividad del espectador que se encuentra sujetado a la butaca y el manejo de la mirada que imprimen los realizadores sobre las mismas. A su vez pudimos observar como en la práctica espectatorial del video esa subjetividad del espectador sigue presente pero se encuentra liberada en tanto que puede detener la fotografía para reflexionar sobre la misma. Esa misma detención que se provocaba en las exhibiciones de La hora de los hornos.

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Lic. Jimena Cecilia Trombetta es doctoranda-becaria tipo I, CONICET, México. E-mail: <jimenacecilia83@gmail.com>.

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ESTRUTURAS (IN)VISÍVEIS

o conteúdo e a forma em Zelig, de Woody Allen ANDRÉ RUI GRAÇA*

Resumo: Este texto pretende reflectir sobre as tensões inerentes ao conteúdo e forma fílmicas, e ao modo como o mock-documentary nos demonstra isso. Através de uma análise fílmica meticulosa do exemplo de Zelig, é nosso objectivo pensar acerca da ténue linha que separa os conceitos de documental e ficção e de questões que se prendem com o cómico e a subversão da fórmula do cinema documental. PALAVRAS-CHAVE: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, TEORIA DO CINEMA Abstract: This text intends to meditate on the tensions inherent to the content and form in film, and on the way the mock-documentary practice exposes that. Through a meticulous film analysis, and using the example of Zelig, it is our goal to think about the thin line that divides the concepts of documental and fiction and about questions regarding the comic and the subversion of the formula of documental cinema. KEYWORDS: MOCK-DOCUMENTARY, WOODY ALLEN, FILM THEORY

S

ituado naquele que Maurice Yacowar (YOCOWAR, 2006, p. 78-80) e Sam B. Girgus (GIRGUS, 1993, p. 5-6) consideram ser o ponto de maturidade do período paródico de Woody Allen – de Annie hall (1977) em diante, e especialmente durante a década de 1980 –, Zelig (1983) é frequentemente incluído não só no contexto particular da filmografia de Allen, como também no corpus da então recente e ainda hoje escassa prática do mock-documentary1 (pseudo-documentary, entre outros termos, é um sinónimo frequente). Com efeito, de acordo com Yacowar, os anos oitenta tes-

1 Pese embora que seria possível avançar com uma tradução do termo (algo como ‘documentário farsesco’, ‘pseudo documentário’ ou ‘falso documentário’) , penso que, à falta da existência deste em grande parte da literatura corrente sobre o tópico, é melhor opção manter o anglicismo. Por outro lado, nenhuma das alternativas normalmente apresentadas me parece traduzir capazmente a intenção da expressão original.


temunharam o surgimento de “uma visão mais profunda e pessoal”2 (YOCOWAR, 2006, p. 79) no estilo de Allen: “agora, o parodista fala directamente”. (YOCOWAR, 2006, p. 79) Um comediante já estabelecido (Allen começou a vender anedotas e guiões aos média desde o início dos anos 50, e Zelig é a sua décima terceira longa-metragem), por esta altura o escritor/realizador já havia demonstrado e consolidado um dos principais traços de estilo do seu cinema: a sua própria imagem, enquanto referência. Interligando conscientemente a sua persona (e todos os aspectos psicológicos que lhe são adjacentes) e a personagem à qual dá corpo, o público tende a naturalmente estabelecer um continuum entre as duas. (HÖSLE, 2007, p. 3) Normalmente considerado como um paradigma da corrente do mock-documentary (sendo várias vezes evocado enquanto estudo de caso quando este tópico é abordado), Zelig é, porém, um claro exemplo de como por vezes a comédia se revela um meio apropriado para trazer à superfície problemáticas sérias, relacionadas com questões fundamentais (tais como problemas políticos e sociais da sociedade contemporânea, ou reflexões sobre a cultura), gerando assim, conscientemente, uma forma de riso particularmente estimulante do ponto de vista intelectual. Como Vittorio Hösle propôs no seu ensaio seminal sobre 2 Tendo em conta que a maioria das fontes consultadas se encontram escritas em língua inglesa e não existem ainda disponíveis em edição portuguesa, a tradução das citações é da minha responsabilidade.

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a origem do cómico no cinema de Allen: “Zelig foca-se em problemas da filosofia clássica tais como a identidade […] Nenhum outro realizador vivo tem conseguido abordar as grandes questões filosóficas de forma tão aberta como Allen”. (HÖSLE, 2007, p. 5) Adicionalmente, este autor defende ainda que: “[as comédias de Woody Allen] possuem uma posição peculiar na história da arte”. (HÖSLE, 2007, p. 6) Efectivamente, até certo ponto, a forma como Zelig abertamente parodia, usa e subverte os códigos e convenções do estilo documentário parecem ser pertinentes no quadro da década de 1980. Embora não obliterando completamente o conteúdo altamente conceptual que o lado técnico (e tecnológico) de Zelig representa, trabalhos de académicos como Hösle, Del Jacobs, Roscoe e Hight, Columbani e Sam B. Girgus (para mencionar apenas alguns, os principais) parecem mais direccionados para a interpretação filosófica e psicológica do estranho caso da “doença única” de Leonard Zelig, o camaleão, da forma este é tratado por via da psicanálise3 e até que ponto esta doença consiste numa metáfora para sintomas mais abrangentes e exteriores ao filme. A título de exemplo, acerca desta última hipótese, Girgus sublinha que “o desejo de Zelig em ser amado resume a ideia do sonho americano”; (GIRGUS, 1993, p. 72) Mary G. Nichols explora o modo como a Dra. Eudora Fletcher (Mia Farrow) desconstrói tecnicamente o caso psicológico de Zelig e como, irónicamente, é o amor que Fletcher oferece ao camaleão que é a causa da sua cura. Noutro quadrante de interesse, Robert Sham e Ella Shohat debruçam-se sobre as referências e estereótipos culturais/raciais presentes no filme. Por seu turno, Del Jacobs e Roscoe e Hight produzem uma tentativa de localização de Zelig na tradição do mock-documentary, prestando especial atenção à sua natureza autoreflexiva e ao modo como os elementos fictícios (no sentido do fantástico, e logo impossível) internos da trama são articulados com a estrutura do documentário. Assim, poderemos concluir que, até certo ponto, a análise do conteúdo tem vindo a ser privilegiada em detrimento do forma. Porém, neste caso, poderemos argumentar que a forma - a materialidade, o aspecto visual, a estrutura e o dispositivo retórico – são de tal forma centrais que são dotados per se de conteúdo intrínseco, e que esse conteúdo merece a nossa atenção. É neste âmbito que propomos uma reflexão em torno da complexa relação que este mockdocumentary paródico estabelece com o espectador, onde reside o riso, e de que forma é possível ler-se nas entrelinhas intertextuais. Nesse seguimento, faremos uma tentativa de descrever e desconstruir a tensão implícita entre conteúdo e forma, manifestada em Zelig. Por ronda da década de 1980, os quatro modos que Bill Nichols identifica na edição de 1991 de Representing reality já estavam desenvolvidos e sedimentados, o que indicia que por essa data já havia um historial substancial de discursos concernentes aos fundamentos ontológicos da imagem documental. Com efeito, como Patrícia Aufderheide aponta, o público veio a aceitar progressivamente a dicotomia entre ficção e documentário, com base 3 Convém neste ponto relembrar que Sigmund Freud, a neurose e a psique humana são lugares-comuns nos filmes de Allen.

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na premissa cultural de que este último formato tem sérias “pretensões à representação da verdade real”. (AUFDERHEIDE, 2007, p. 1-3) Tal premissa deve-se em parte ao facto do documentário ter sido associado ao naturalismo e ao realismo desde um estádio inicial, bem como ao argumento de que a câmara não mente. (ROSCOE & HIGHT, 2001, p. 11) Como podemos encontrar nas palavras de Bill Nichols: “a ligação entre documentário e o mundo histórico é mais importante das características da sua tradição” e que “uma das expectativas geradas em torno do documentário é que as imagens e sons carreguem em si uma relação de referencial para com o mundo histórico”. (NICHOLS, 1991, p. xviii) Desta forma, a produção contínua de filmes que reitera esta perspectiva ajuda a moldar as expectativas do público, uma vez que estas são baseadas em experiências anteriores; os espectadores esperam não ser enganados e trapaceados, mesmo estando cientes das diferentes possibilidades de captação da realidade e da hipótese desta ser manipulada tecnologicamente. Pese embora que se trata de uma “definição flexível”, (AUFDERHEIDE, 2007, p. 3-5) em derradeira análise, o termo “documentário” normalmente indica que se irá assistir a um filme baseado na vida real. Mais ainda, “documentário” quer também dizer que esse filme irá pautar-se por certos códigos e regras, indispensáveis à sua legitimação. Por conseguinte, de forma a manter a sua credibilidade retórica, o cinema documental teve de adquirir um método rigoroso; um dispositivo específico, determinado por convenções estéticas e técnicas que permitissem veicular e suportar a concepção teórica supramencionada. A propósito desta questão, Hösle defende que “a rigidez contradiz uma das maiores solicitações da vida, a elasticidade”, (HÖSLE, 2007, p. 20) abrindo desta forma o caminho para o sistema de paródia. Em sintonia com esta opinião, Henri Bergson considera que “o riso é sanção da sociedade para com aqueles que tentam impor algo de mecânico ao fluxo da vida”. (BERGSON apud HÖSLE, 2007, p. 19) Efectivamente, o mock-documentary consiste num mecanismo altamente disruptivo. Expõe abertamente, mina e joga com as convenções das quais está auto-consciente. Enquanto que os “documentários oferecem prazer visual e atraem ao mesmo tempo que a sua estrutura permanece invisível”, (NICHOLS, 1991, p. v) um dos principais objectivos do mock-documentary é a apropriação dessa estrutura com a finalidade da expor. Se tivermos em conta que “o documentário poderá falar de tudo no mundo histórico menos de si próprio”, (NICHOLS, 1991, p. 17) então o mock-documentary funciona de acordo com uma lógica inversa. É ao auto-reflexivo; é um filme sobre cinema, no qual a identificação de características cinematográficas de uma determinada prática é central. Como Jacobs metaforicamente coloca a questão: “o pseudo-documentary é parasítico por natureza, assumindo as propriedades de outros estilos fílmicos de forma a alimentar a sua própria forma”. (JACOBS, 2000, p. 2) O mesmo autor vai mais longe e afirma que o mock-documentary incorpora o “o modo ficcional utilizado em Hollywood, completamente ausente de realidade”. (JACOBS, 2000, p. 7) Acerca deste ponto, Nichols admite (muito embora normalmente este não se comprometa com a discussão em torno do mock-documentary): “não há nada que distinga o documentário da ficção de forma absoluta ou infalível”; acrescentando que,

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“a natureza histórica e a função dos diferentes modos de produção podem ser simulados dentro de um enquadramento de narrativa de ficção”. (NICHOLS, 1991, p. 24) Por fim, é importante mencionar que um dos aspecto mais fulcrais do mock-documentary é:”[esses filmes] não tentam enganar a plateia, levando-as a pensar que realmente retratam pessoas ou eventos factuais”. (BORDWELL & THOMPSON, 2010, p. 352) Contudo, esta mascarada intencional apenas resulta na medida em que se baseia na assunção de que a audiência será capaz de decifrar as mensagens contraditórias a dada altura, reconhecendo assim as verdadeiras intenções do filme e deixando de parte a via que induz em erro. Zelig é precisamente o caso onde todos estes elementos se conjugam e são postos em prática. Logo no início, aquando do surgimento do primeiro intertítulo, o filme define-se a si próprio como “documentário” e, tal como os documentários reais, agradece as colaborações e a quem o tornou possível. Após isto, vemos primeiramente dois planos gerais, monocromáticos (nos quais podemos reconhecer a presença de automóveis antigos, o mais conspícuo dos elementos do segundo plano), seguidos de um corte abrupto para um plano médio, a cores, da intelectual americana, Susan Sontag. Até agora, tudo parece suficientemente coerente: de acordo com os códigos visuais do documentário, somos compelidos a associar as imagens a preto e branco com um passado longínquo, e a cor ao tempo presente (para mais, a tecnologia da película colorida ainda não estava satisfatoriamente desenvolvida nos anos 1920, que é o período histórico no qual o caso fictício de Zelig é inserido). Podemos observar a imagem de Sontag na tela – ela surge identificada como sendo ela própria –, sendo que esta se comporta em sintonia com aquilo que poderíamos esperar dela. Quando os anos 20 são mencionados no decorrer da entrevista, temos a confirmação entre da ligação entre planos. De seguida, regressamos à parada e aos festejos. Enquanto ouvimos a voz sobreposta de Irving Howe à imagem (Howe será apresentado pouco tempo depois, num formato semelhante a Sontag, bem como Saul Bellow, que vem completar esta sequência introdutória de entrevistas), temos a oportunidade de reconhecer a figura de Woody Allen dentro de um dos automóveis. De facto, ao reconhecer-se Allen neste contexto (não sabemos ainda que ele está a actuar como Zelig, o que significa que a única hipótese que resta é identificar aquele homem como sendo Allen), emerge um sentimento de estranheza, uma vez que Allen pertence ao presente e não à década de 1920. Assim, a ideia linear e estável associada àquilo que nos disseram que estávamos a assistir fica comprometida. Esta é igualmente a primeira pista dentro do filme que nos parece indicar aquilo que realmente está a acontecer. No momento imediatamente posterior, música jazz de cerca de 1920 começa a soar, é-nos dado a ver um retrato dessa era através de imagens de arquivo (vemos diversos aspectos da vida quotidiana da altura) e a voz do narrador irrompe pela imagem – a omnisciente e desincorporada “voz de Deus”, vastamente utilizada em documentários expositi-

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vos. (NICHOLS, 1991, p. 37) Finalmente, um intertítulo anuncia que iremos assistir a um cinejornal4 e o problema de Zelig é-nos finalmente apresentado. Ainda acerca desta sequência inicial, se a pensarmos à luz dos termos da retórica aristotélica, verificamos uma forte coesão argumentativa. O ethos está presente nas entrevistas, dadas por figuras intelectuais reais acima de todas as suspeitas – por extensão, os testemunhos fictícios, se apresentados com características idênticas, beneficiariam de credibilidade semelhante. As detalhadas contextualizações – tantos orais como visuais – e descrições dos anos 20 podem ser encaradas como uma forma de logos, sendo que, finalmente, o pathos pode ser encontrado tanto no fascínio com que os entrevistados falam de Zelig, como no texto pomposo dito pelo narrador. Por conseguinte, o discurso parece estar perfeitamente escudado, quase de uma forma monolítica, o que aumenta exponencialmente o impacto da sua exposição à paródia. Como veremos, a identificação de como a forma está a ser utilizada e a incongruência lógica são, possivelmente, os meios mais eficientes de detectar e desvelar este dispositivo de engodo. Após o momento inicial ainda agora analisado, devido ao facto de Allen ter apresentado uma vasta gama de elementos parodiados, o público deverá estar perfeitamente consciente que tudo neste filme é fabricado, concordando por conseguinte em lê-lo como um texto de ficção, até porque a história de Leonard Zelig é altamente improvável. Como foi anteriormente mencionado, a estrutura do documentário pode, com efeito, acomodar ficção. Neste caso, Allen não só “quebra as barreiras, normalmente invioláveis, que separam as duas ordens de discurso [ficção e documentário], substituindo a barreira por uma membrana permeável”, (STAM & SHOHAT, 2006, p. 199) como chega ao ponto de inserir “uma absurdez no seio de uma fórmula sagrada”. (HÖSLE, 2007, p. 20) Todavia, este filme confronta o espectador com um paradoxo inicial que urge ser resolvido: “o que é que estou realmente a ver?”. As expectativas preconcebidas acerca de um género ou um estilo (com o documentário), poderemos afirmar, permite, por um lado, uma ligação facilitada ao filme, mas, por outro, facilita igualmente que caiamos em armadilhas deste género. Por isso, a identificação dos elementos de “gramática visual” de uma determinada prática cinematográfica é fundamental, dado que nos permite entender a forma como essa mesma prática é construída. Trata-se de uma questão de literacia visual. Quando vemos Zelig, convém ter em conta o seu contexto. Até certo ponto, deve ter sido confuso para um espectador, em 1983, pensar que se iria deslocar à sala de cinema mais próxima para assistir a um documentário sério, uma vez que um documentário não seria (e nunca foi) um filme típico da linha estética de Woody Allen. Adicionalmente, já o realizador americano havia utilizado este género de esquema anteriormente, se bem que a uma escala menor, em Take the money and run (1968). (COLOMBANI, 2010, p. 31) Isto leva-nos a concluir que estar consciente do estilo e intenções recorrentes do realizador 4 O cinejornal será utilizado várias vezes ao longo do filme, evocando a célebre parodia a “March of Time” feita em Citizen kane.

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ajuda a, numa etapa posterior, entender que, afinal, Zelig não é algo assim tão estranho no panorama filmográfico de Allen. Porém, teoricamente, as convenções sabotadas são utilizadas de forma correcta, fazendo com que o filme pareça aquilo que não é. Até certo ponto, até o caso de Zelig é válido. Embora em todos os aspectos estranhas e incongruentes, as características proteiformes de Zelig possuem os atributos necessário para que serem alvo de atenções: ele é único, e tanto a sua história como o seu lugar na sociedade merecem ser examinados. (JACOBS, 2000, p. 21) Assim, gera-se uma tensão entre o valor que atribuímos a como vemos (vemos através da forma) e o que vemos (vemos o conteúdo fotográfico). Por exemplo, quando avistamos Allen no carro pela primeira vez em Zelig, sentimo-nos compelidos a aceitar como reais as imagens que vemos devido às premissas inerentes à forma - sendo que é suposta esta ser a forma documental. No entanto, damos também conta de uma grande contradição, que nos é expressa através do conteúdo – Woody Allen está ali, e isso é logicamente impossível. De certo modo, o mesmo tipo de confusão surge com a forma engenhosa como imagens de arquivo e imagens capturas por Allen são entrelaçadas e “artificialmente envelhecidas e riscadas para dar um aspecto visual granuloso e tremeluzente”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 101) Seguindo esta linha de pensamento, poderemos assumir que, em primeiro lugar, o espectador necessita se aperceber de que certos códigos e convenções estão a ser utilizados com outra finalidade que não a tradicional, e logo que as expectativas estão a ser postas 160

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em causa por uma série de contradições. Tal implica que o mock-documentary apenas pode ser entendido e assimilado por alguém que esteja minimamente familiarizado com as convenções parodiadas. Desta forma, o mock-documentary é um produto auto-consciente em relação à história e estética do cinema, capaz de espelhar essa propriedade no espectador: também ele, de forma auto-consciente, tem de se confrontar com sua literacia cinematográfica de modo a conseguir passar o teste que o mock-documentary lhe coloca. Consequentemente, ao resolver este puzzle inicial, o espectador sente alívio; resolvida a confusão, o espectador está apto a sintonizar-se plenamente com a verdadeira intenção e mensagem do realizador. Portanto, o riso – que é um objectivo primordial no cinema de Allen e na paródia em geral – é um de cumplicidade, pois o espectador ri-se “juntamente com o comediante de alguém ou algo, mas não de si mesmo”. (HÖSLE, 2007, p. 16) Em última análise, nós não nos rimos de todo de Zelig (conteúdo), mas antes da forma elaborada como o filme nos apresenta esta personagem. Estando resolvido com sucesso este dilema, causado por um distúrbio na percepção da forma e pela denúncia do conteúdo, a atenção vai, progressivamente, virando-se para a trama e o seu desenvolvimento narrativo. Antes de prosseguir é importante relembrar que os primeiros minutos do filme são cruciais para a supramencionada questão, o que significa que Allen nos sobrecarrega com quantas referencias consegue, fazendo com que a nossa atenção se centre nelas. Desse momento em diante – após o reconhecimento – e até ao final do filme, um desvio é verificável: a exploração da forma diminui naturalmente (também porque o espectador se libertou entretanto da ansiedade do dilema) e o conteúdo é privilegiado. Mesmo tendo em consideração que os aspectos formais de Zelig são estilisticamente inovadores, o filme desenrola-se dentro do esquema tradicional de narrativa em três actos (JACBOS, 2000, p. 44) e, como veremos, tem um desfecho tipicamente hollywoodesco. Efectivamente, o que acontece no seguimento do primeiro acto é descrito por Girgus como sendo “uma aparentemente incessável sucessão de eventos e situações”. (GIRGUS, 1993, p. 72) Nas palavras de Borwell e Thompson a propósito de Zelig: “[a trama] pode criar padrões de acção repetitiva por via de ciclos de eventos: o padrão ‘aqui vamos nós de novo’ que nos é tão familiar”. (BORWELL & THOMPSON, 2010, p. 91) Durante este processo repetitivo – no qual as sequências se ligam umas com as outras embora sejam diferentes ao nível do conteúdo – somos, porém, convidados a olhar de novo para algumas nuances da forma quando Allen conjuga um pano de fundo histórico com a narrativa particular de Leonard Zelig. Esta combinação acontece de duas formas distintas. Primeiro, ao inserir Zelig em momentos históricos chave, Allen está de certo modo a reescrever a própria história ao reciclar esses momentos filmados. (YOCOWAR, 2006, p. 83) Por seu turno, a retórica e a forma do documentário “validam” uma mentira tão descarada. Com efeito, o conteúdo começa a tornar-se paulatinamente mais incongruente, nomeadamente quando vemos o nosso anti-herói ao lado do Papa, ou numa multidão, durante um dos mais famosos discursos de Hitler. Assim, chegamos à conclusão de que apenas a imagem documental (e, claro, a sua manipulação, pois a manipulação é o que é

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possível fazer-se com o material pré-existente) é capaz de produzir este resultado. Seria praticamente impossível contar a história de Zelig da forma como é contada, e incluindo todas as aventuras e desventuras desta personagem, num outro formato. O documentário prova ser ideal para veicular o conteúdo cómico e a essência de Zelig (ele necessita de ir àqueles locais e estar no meio daquelas pessoas), mesmo que a narrativa siga uma via tradicional, normalmente utilizada no cinema de ficção. Em segundo lugar, a profusa utilização de material de arquivo significa que toda esta série de documentários compactados para caber neste mock-documentary representa diferentes filmes, e por conseguinte diferentes estilos e pontos de vista. Como Osvaldo Manuel Silvestre nos lembra, há uma constante mudança de material fílmico e de sujeito enunciador, em Zelig. (SILVESTRE, 2010, p. 4) Devido à utilização de tantos excertos, o filme de Allen consegue ser tão híbrido que seria difícil enquadrá-lo dentro de um dos modos de documentário propostos por Nichols, caso fosse um documentário de facto. Consequentemente, ao se dar conta dessas mudanças constantes de material, é gerada hipermediacía, o que nos leva a atentar de novo na questão da forma. Por último, o que a nossa cultura visual nos diz é que estamos perante um exercício de colagem, feito para parecer real e congruente, mas que ao mesmo tempo é entendido como artificial, de acordo com as premissas do mock-documentary, anteriormente acordadas. Tendo em conta toda a problemática acima exposta, poderemos argumentar que, apesar da narrativa ser privilegiada, existe uma contenda contínua entre a importância da forma e do conteúdo, o que por sua vez nos dificulta a escolha entre se nos deveremos focar nos aspectos formais ou deixar acomodar no conteúdo. Note-se que, a uma certa altura, o elemento de surpresa da forma começa a esvanecer, enquanto que o conteúdo nos contínua a envolver, tanto quanto qualquer outra narrativa de ficção. No final do filme, depois de várias peripécias e aventuras, Zelig e Eudora Fletcher decidem casar-se, fazendo com que o filme culmine no “final formulaico da ficção – um grande plano do casal, que se detém num longo beijo, acompanhado por música romântica, em direcção a um clímax”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 204) Devido à sua natureza patológica, este momento proporciona a possibilidade de uma total imersão no conteúdo, como se a felicidade que o casal manifesta fosse o objecto e a função do nosso próprio desejo. As personagens saem de campo, a música continua a tocar, e dá-se um corte para o ecrã negro. À medida que o texto vai aparecendo, somos informados da morte de Zelig. Eis então que, parafraseando Osvaldo Silvestre, somos mais uma vez relembrados que se trata de um documentário e não apenas de uma história de amor. (SILVESTRE, 2010, p. 5) Confrontados com este último elemento, chegamos à conclusão, através do conteúdo veiculado pela forma, que a história que há momentos testemunhámos e que de nós esteve tão perto, aconteceu há várias décadas. “Zelig já morreu, aquela felicidade em celulóide foi um instante longínquo”. (SILVESTRE, 2010, p. 5) Deste modo, neste último exemplo podemos sentir o choque provocado pela tensão entre conteúdo e forma, pois estes representam diferentes níveis de percepção, ora 162

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harmoniosamente interligados, ora em competição pela nossa atenção. Por outras palavras, o espectador estabelece uma relação dual com este filme por causa da existência de dois estratos de conteúdo: o conteúdo da narrativa e aquilo que é visto na película, e o conteúdo da forma. Durante a maior parte do tempo, o conteúdo depende da forma para se transportar. Todavia, a colisão ocorre quando o conteúdo da forma – que é em grande parte a essência do filme – é evidenciada. Somos solicitados para imergir na narrativa ao mesmo tempo que somos deslocados do estrato da forma, de modo a conseguir ter uma experiência do filme diferente daquela oferecida pela trama. Em derradeira análise, de maneira a obter uma plena compreensão deste filme, temos de lidar com esta tensão e oscilar entre estes dois pólos de possível percepção: o caso de Zelig, e a subversiva paródia do estilo do mock-documentary. Para concluir, resta-nos mencionar a vocação arqueológica de Zelig. Este filme não só nos traz peças da história do mundo, como também a possibilidade de, de forma consciente, reconhecer diversos elementos formais do documentário e da ficção. Quase um compêndio, ao nível formal, Zelig mostra-nos a originalidade e inovação da sua abordagem ao demonstrar, fundir e trazer para o seu tempo “diversos ramos de documentário e diversos ramos de ficção”. (STAM & SHOHAT, 2006, p. 203) Note-se ainda que Zelig estreou pouco depois de Sans soleil, (Chris Marker, 1983) um documentário grandemente suportado pela selecção e utilização de imagens de arquivo. Para mais, cerca de cinco anos depois, em 1988, Jean-Luc Godard aderirá também a este tipo de empresa técnica e começará a produzir a sua enciclopédica Histoire(s) du cinema (lançada dez anos depois, em 1998). Mesmo que o trabalho e as carreiras destes três realizadores sejam deveras distintas, partilham no entanto, nesta época, o factor comum da reflexão acerca da herança visual. Em suma, todas as considerações sobre as tensões entre conteúdo e forma elaboradas ao longo deste texto apenas foram possíveis e motivadas devido à inegável riqueza intertextual das características subversivamente únicas de Zelig.

Bibliografia ALLEN, Woody. Three Films of Woody Allen. London: Faber and Faber, 1990. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010. AUFDERHEIDE, Patricia. Documentary Film: A Very Short Introduction to, Oxford: Oxford University Press, 2007. BOLTER, David; Richard Grusin. Remediation: Understanding New Media, Cambridge (MA) and London: The MIT Press, 2000. BORDWELL, David e Kristin Thompson. Film Art: An Introduction. New York: McGraw-Hill, 2010. COLOMBANI, Florence. Woody Allen. Paris: Cahiers du Cinema, 2010. CHRISTLEY, Jaime. Chris Marker. Disponível em: <http://www.sensesofcinema.com/2002/great-directors/marker/>. Acesso em: 10 Janeiro 2012.

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GIRGUS, Sam B. The Films of Woody Allen. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. HÖSLE, Vittorio. Woody Allen: An Essay on the Nature of the Comical. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007. LAX, Eric. Conversations With Woody Allen: his films, the movies, and moviemaking. New York: Alfred A. Knopf, 2007. JACOBS, Del. Revisioning Film Traditions: The Pseudo-Documentary and the NeoWestern. Lampeter: The Edwin Mellen Press, 2000. NICHOLS, Bill. Representing Reality. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1991. NICHOLS, Mary P. Reconstructing Woody: Art, Love, and Life in the Films of Woody Allen. Oxford: Rowan and Littlefield, 2000. ROSCOE, Jane e Craig Hight. Faking it: Mock-documentary and the Subversion of Factuality. Manchester: Manchester University Press, 2001. SILET, Charles L.P. (ed.). The films of Woody Allen, critical essays. Oxford: Scarecrow Press, 2006. SILVESTRE, Osvaldo Manuel. Notas de Apoio às Aulas de Análise de Filmes 2010/2011 (II). Coimbra: Edição do autor, 2010, p. 1-5. STAM, Robert e Ella Shohat. “Zelig and Contemporary Theory: Meditation on the Chameleon Text”. In: Charles L. P. Silet (ed.), The films of Woody Allen, critical essays. Oxford: Scarecrow Press, 2006. YACOWAR, Maurice. “Beyond Parody”. In: Charles L. P. Silet (ed.), The films of Woody Allen, critical essays. Oxford: Scarecrow Press, 2006.

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André Rui Graça é licenciado em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e conclui actualmente o mestrado em estudos fílmicos na University College London (Reino Unido). Nesse âmbito, tem desenvolvido investigação em torno da dicotomia entre cinemas nacionais e a indústria de Hollywood. Adicionalmente, o seu interesse académico incide sobre cinema documental, ontologia da imagem e música no cinema. Email: < andreruig@gmail.com >.

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Sosa Como Eva, aun insisto en comer del fruto. A la ramera de la profecía me voy pareciendo más cada día. En mí, la Magdalena guarda aun luto. A mí, viene aun por consejo Dalila. Como Débora, en mi mano victoria venderá el Dios. Será mía la gloria. Conmigo, mordaz, Jezabel vacila. Extender el placer es hedonismo, y esto que hago ahora aquí no es lo mismo. Me fastidia el estigma. Aún Betsabé de su inmundicia purificada fue. Yo así, como cualquier otra selecta, prosigo aun la oportunidad abyecta.

O poema é sobre uma mulher muito livre: nomeando sete personagens da Bíblia, ela exemplifica o seu agir. A minha inspiração foram personagens de mulheres transgressoras que trabalhei na minha tese de graduação. A minha formação é em Literatura Espanhola e o nome do trabalho e “Esposas en La Furia de Silvina Ocampo”. Erik Diesel*


Luna Yamanik La luna es una flor resplandeciente. De gardenia, magnolia fabulosa. Reina la noche. Un faro. Poderosa. Del firmamento un risco fluorescente. Diosa Ix Chel, sí, la llaman nuestros padres. Es del caminero fuerte guía y el alma inspirada sus secretos fía. Fue musa del pintor en tantas tardes. Mago que rotuló tu silueta; es su concepción eficaz saeta: osada, tierna, sí, templada, amada. Grato, como su hija, Quiché esmeralda, néctar. Tu madre Juzeth, tu padre Erik, tú, imperio e impetuosa, Luna Yamanik.

A minha amiga Juzeth teve uma situação muito triste há cerca de um ano atrás quando a pequena Luna nasceu e esteve em desengano no hospital. Faz cerca de dois anos que Juzeth perdeu o seu pai. Ele desencarnou muito jovem. Finalmente, no México, a linguagem Maia tem variações das que Ix Chel e Yamanik são feitas. Erik Diesel

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Colegio Antonio José Sucre Colegio Antonio José Sucre afrenta triste moño blanco imprudente a puertas: de, por Yireli, mis angustias ciertas; que, por Gina, llevó su casa imprenta. Vano argüir muerte de una criatura, reconocer que no hay razón que valga, y qué incesante es la pena que embarga. Infame agonía que le captura. Flores blancas, mismo velas de cera, engalanan la comunión primera. Blanco atuendo de Ayrton en su fiesta. Y blanca la Divinidad que, enhiesta, tartamuda, inconsecuente, y muy a medias, explicará cuantas nuestras tragedias.

“Colegio Antonio José Sucre” foi o meu primeiro soneto e é sobre a dor que a morte de uma criança tatua no coração, e além disso, na razão. Três das quatro personagens do poema têm sido parte do núcleo da minha vida. O poema é um tributo a eles. Erik Diesel

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Erik Diesel é poeta mexicano e pesquisador na área de Letras. E-mail: <erikdiezel@gmail.com>.

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OS MALDITOS DA VIDA HUMANA

la Rochefoucauld e seu antimoralismo MAGDALENA MENDONÇA*

Resumo: O propósito maior deste artigo é o de sinalizar o quanto perigoso é considerar o pensar de la Rochefaucauld como similar a um de uma pensamento moralista. Trata-se de destacar o quanto o autor das célebres Máximas e Reflexões, em pleno século XVII recusou veementemente o caráter coercitivo da moral, endossada pelo pensar cristão e humanista, bem como dos adeptos do determinismo no que se refere à conduta humana que tão fortemente desprezavam a temática e relevância das paixões. Trata-se, sobretudo, de pontuar o quanto o pensamento Rochefauldiano é atual e atemporal, pois, ainda pode nos mostrar os mitos e pressupostos presentes nas crenças da Psicologia Comportamental ou do Behaviorismo e suas técnicas. PALAVRAS-CHAVES: ANTIHUMANISMO, MORALISMO, DETERMINISMO Abstract: The major purpose of this article is to signalize how dangerous it is to consider the Rochefaucauld thinking as similar to the thinking of a moralist. It intends to emphasize to which extent the author of the celebrated MAXIMS AND REFLECTIONS, in the midst of the Seventeenth Century vehemently refuted the repressive character of morals , endorsed by the humanist and Christian thinking, as well as the followers of determinism in regards to the human conduct , those who so strongly despised the propositions and relevance of strongest feelings, such as passion. It intends, mainly, to punctuate the extent to which the Rochefaucauld thinking is current and timeless, since still can show us the miths and assumptions present in the beliefs of the Behaviorist Psychology or Behaviorism and their techniques KEYWORDS: ANTI-HUMANISM, MORALISM, DETERMINISM

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ão poucos os especialistas da psicomportamental que não se valeram da “grande ferramenta” de modelagem do comportamento infantil, o célebre timeout. Considerada de grande valia tal procedimento técnico consiste em controlar os arroubos de um dito ato anti-social, que devidamente censurado é acompanhado de uma retirada do “sujeito” de um grupo quando este vai de encontro ao imperativo do coletivo. A regra maior prescreve que se deve conscientizar o sujeito pela privação do prazer da


companhia do grupo à cada apresentação de um ato inconveniente ou rebelde e isso, ao longo de um tempo, tem como efeito a extinção do comportamento indesejável que, em poucas palavras, pode ser dito mecanismo de socialização. Ainda hoje não são poucos os técnicos que não deixam de recomendar tal procedimento em creches, escolas primárias, etc… Deixando a querela do ser (visto como um em-si) civilizado, que mais parece adestrado, pode-se pensar no que há de humanismo cristão por trás de tal crença. Não é nada fácil remar contra tal correnteza, que o digam aqueles pensadores do século XVII, como Pascal, Montaigne, Hume que se debatiam com o ideal imaginário de uma vida pautada sob os referenciais do bem e do mal e que por isso não eram afeitos ao moralismo, mas nem por isto deixaram de se encantar pela temática da moral. Importa, aqui lembrar, La Rochefaucauld, pois inegavelmente foi ele – que antes daquele outro apelidado, devido à sua poesia corrosiva contra os ‘bons costumes’, de ‘boca do inferno’, e, ainda antes de Nietzsche –, quem se incumbiu de apresentar a plausibilidade de se pensar em um modo de vida humana mais pautada pelas paixões do que pela razão. Convém, aos desavisados, advertir: tais autores de obras esconjuradas e malditas não conheceram senão o disfarce para lograr não cair nas armadilhas de seus inimigos ardilosos. Eis a razão de uma das maiores obras de la Rochefoucauld, Máximas foi feita na Holanda sem a sua devida autoria. De fato, em nada deve agradar as falas de um vozeirão que ecoa na contramão do ideário da boa convivência, que ´confere às ações o funcionamento passional que desvela com clareza a inquietude de um impulso que nada pode deter, mesmo na maior aparência de mansidão. E aqui não cabe enquadrar uma forma outra de pensar o agir humano, não mais a partir dos cânones do bem/mal, virtude e vício. Parece ser justamente tal lógica que o filósofo do século XVII quer questionar com a força das suas máximas arrebatadoras. Dando-se ao prazer dos ares de um sobrevôo seguido de argúcia e sutileza em bom termo, La Rochefoucauld, contra a mediocridade de um comportamento dito normal, humano e social, refuta a tradição aristotélica e seus sonhos de uma vida harmônica socialmente, quando fala em nome das paixões violentas e adverte com ironia singular: “Há no coração humano uma germinação perpétua de paixões” (máxima 10), e, “As paixões têm uma injustiça e um interesse próprio que tornam perigoso segui-las e necessário delas desconfiar, ainda que muito razoáveis pareçam” (máxima 9). Com a força das paixões é que ele esbraveja contra o teísmo e determinismo incrustado no humanismo cristão, ao dizer: “Por mais vantagens que conceda a natureza, não é ela somente, mas a fortuna e ela, que fazem o herói” (máxima 53). E dá mostras suficientes do seu pensar singular sobre a razão quando reconhece: “Não temos força o bastante para seguir toda a nossa razão” (máxima 42). E com fôlego não deixa de zombar do mito do essencialismo, dos adoradores do imutável e da sua fixidez imponderada, quando anuncia: “A felicidade está no gosto, não nas coisas, é por ter o que amamos (desejo, busca, ânsia de apropriação) que somos felizes, não por ter o que os outros acham amável” (máxima 48). E já na antecipação de Freud, pensa alto: “É difícil definir o amor: o que dele se pode dizer é

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que, na alma, é paixão de reinar, nos espíritos, simpatia, no corpo somente vontade oculta e delicada de possuir o que se ama, depois de muito mistério” (máxima 68). A única pergunta que não quer calar é: Qual a razão de se valer do estratagema de maldizer tal pensar, assim como tantos outros que com bravura zelam pelo humano, demasiado humano? Talvez o altruísmo, o amor-próprio, o egocentrismo contido na prodigalidade não sejam cúmplices de tamanha racionalidade passional que não carrega consigo qualquer vestígio de pureza casta, castrada! Tal missão pode ser resumida em um afã: não ser moralista para ter possibilidade de um falar do humano sem tanta pieguice e sem o maldizer. Ah, quanto mal faz aquela quando maltrata as paixões calmas e violentas. E se perguntarmos o que é o amor, de certo cairemos de súbito na lucidez rochefaucauldiana que a tantos incomodou, sempre atual! E quem vai a ele maldizer nos tempos de agora? A psicomportamental e suas normatizações da vida humana? Talvez ainda ela vigore para uns poucos, quiçá…

Referências bibliográficas BRAGA, Antônio. C. La Rochefaucauld e la Bruyére: filósofos moralistas do séculoXVII. São Paulo: Ed Escala, 2012. ROCHEFOUCAULD, La. Máximas e Reflexões. Rio de Janeiro: Imago, 1994. MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e Prazer na Idade Moderna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

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Magdalena Mendonça é doutora em filosofia pela UNICAMP, SP, autora de O problema do Eu no ceticismo de David Hume. São Cristóvão, SE: Editora UFS; Aracaju, SE: Fundação Oviedo Teixeira, 2003.

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Poemas JUAN TORO CASTILLO*

1 diz-me mais ou menos assim: em duas horas te encontro no meio da trama em sonho eu te acordo: de um susto de um grito ou te empurro de um barranco da escada te jogo de um avião te enfio a faca ou uma bala uma paulada te asfixio te persigo no fim… te acordo. 2 Calo-me nos edifícios da cidade e canto nos rincões das aranhas mais confortável e mais familiar um pouco de vento não faz mal.


Das pedras de concreto renegadas destaca-se a verdade das lacunas loucuras que agora são minhas vividas no chão empoeirado trincheiras onde nunca serei escutado. A luz nasce da negação da criação vem a transformação. Amarra com um nó as veredas da estação monta em trens alargados por miradas que um dia passaram sem dar palavra para depois, gesto oportuno conceder nos fundos uma dança mera menção para defuntos. 3 Firme turquesa feita de simpleza mares e mares de tu infinita estrela firme rosa do melhor aroma brisas e brisas de tu musa inspiradora firme flor campestre brincalhona ventos e ventos de tu boca de amora.

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Juan Toro Castillo é poeta, roteirista e diretor de curtas. E-mail: <lennmarx@hotmail.com>.

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Poética y procesos de creación video-cinematográfica brasileña en la contemporaneidad ANGÉLICA MARISOL MORA VÁZQUEZ*

Duelo y melancolía: una mirada al interior de Os famosos e os duendes da morte (2009) de Esmir Filho Es probable que alguna vez hayamos perdido (entiéndase perder como dejar de existir) a un ser querido o algún objeto de gran valor, y las reacciones que tenemos al respecto son distintas, algunas más dolorosas, otras no tanto. Todo depende del sujeto/objeto de valor perdido. El proceso que sigue a esa pérdida se llama duelo, el cual se define como “la reacción frente a la pérdida de una persona amada, un objeto o un ideal, como la patria, la libertad, etc.”1 Muchas veces la melancolía se desata después de un duelo. Sigmun Freud llama melancolía a lo que ahora suele describirse como estados de depresión. Estos tópicos, el duelo y la melancolía, son los ejes sobre los que gira el filme brasileño Os famosos e os duendes da morte (Los famosos y los duendes de la muerte, 2009), la ópera prima de Esmir Filho que en 101 minutos narra a través de una bella composición audiovisual la historia de un chico que escribe en un blog, donde usa el sobrenombre “Mr. Tambourine Man”. Es fanático de Bob Dylan, al punto de planear un viaje casi imposible, como modo de escape, desde su suburbio rural hasta la ciudad brasileña en la que pronto tocará el cantante. El tema de la muerte, por el tamaño de la comunidad, es común y ocasionalmente constante, de tal manera que se comparte un sentimiento de melancolía desatado por el duelo que se respira en el ambiente, principalmente al cruzar un puente que comunica a una parte de la comunidad con otra, pues éste se ha usado como trampolín suicida. Mr. Tambourine tiene un mejor amigo llamado Diego, quien recientemente perdió a su hermana después de haber planeado un suicidio con su novio, el cual no murió. 1

Sigmund, Freud, Obras completas. Buenos Aires, Amorrorto editores, 1978, vol. XIV, p. 241.


Después de una perdida, se confía en que pasado cierto tiempo se superará. La melancolía se caracteriza por el desinterés hacia el mundo exterior, la pérdida de la capacidad de amar, regularmente se exterioriza en autorreproches, autodenigraciones y ocasionalmente en castigo. Así vemos a Mr. Tambourine negándose a llevarle flores a su padre al panteón. O a una mujer (otro personaje) que decide suicidarse al negarse la existencia después de la muerte de su esposo. Freud afirma que el duelo consiste en comprender que el objeto amado ya no existe, por lo que ahora se tiene que inhibir toda libido enlazada a ese objeto. En este proceso es comprensible toda renuencia, ya que la existencia del objeto perdido sigue presente en la psique. Cada uno de los recuerdos y las expectativas anudabas al objeto son clausurados, sobreinvestidos. Vemos a Mr. Tambourine refugiado en el ciberespacio, sitio donde también sufre otro duelo por la muerte de la hermana de su mejor amigo, chica por la que sentía atracción. El protagonista obtiene experiencias vicarias observando videos del ser deseado en la red, de un primer amor que no pudo ser. En el mundo virtual no existe la muerte, todo es un viaje mental, una ensoñación, en ese mundo online todo es más seguro y también más libre, es el medio que utiliza Mr. Tambourine para despegarse de la soledad y la melancolía de su habitación. Esta película se mueve entre la realidad, el sueño y un universo virtual que sobrevisten la melancolía de los habitantes del Brasil alejado del turismo donde se desarrolla la trama. Una pequeña población colonizada por alemanes, perfecta para que los adolescentes protagónicos paseen su angustia y sus deseos entre realidades alternas. No siempre el sujeto/objeto de valor está realmente muerto, pero quizá se perdió como objeto de amor (por ejemplo, el caso de una novia abandonada o un ideal). En ocasiones no atinamos a discernir con precisión lo que se perdió, aquí entra el papel de la melancolía, la cual es “la pérdida del objeto sustraída de la conciencia; a diferencia del duelo, en el que no hay nada inconsciente que atañe a la pérdida”.2 En Os famosos e os duendes da morte los personajes coinciden en que realmente lo que han perdido no son seres queridos u objetos de gran valor, sino el ideal de la libertad, por lo menos así lo dan a entender los adolescentes protagonistas. Tienen grandes ansias por llenar el vacio que sienten en su vida, es decir, encontrar la libertad, abandonar su comunidad y volar, volar lejos hasta sentirse libres. Pero la melancolía implica más que el duelo: una rebaja en su sentimiento yoico, un enorme empobrecimiento del yo. En el duelo el mundo se hace pobre y vacío; en la melancolía eso le ocurre al yo mismo. Un claro ejemplo sucede cuando una vecina, madre de un compañero de clase de Mr. Tambourine, se suicida, y hasta con los sentimientos del propio Mr. Tambourine. Los personajes se sienten vacios por sus pérdidas, una por su esposo, el otro por su libertad y el resto por diversas razones. Su melancolía en realidad son querellas de estar con alguien que ya no existe o de hacer algo que desean. 2

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Ibíd, p. 243.

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Como resultado del empobrecimiento del yo, el amor por el objeto se invierte y se convierte en odio, se insulta, denigra, se le hace sufrir, provocando una satisfacción sádica. Algunas veces esos sentimientos negativos experimentan una vuelta hacia la propia persona, inclinándose al suicidio. Diego culpa a su hermana por “haber arruinado a su familia” con su suicidio, pues obviamente cambió su vida, su madre es distraída y siempre está triste. Él intenta seguir viviendo pues a final de cuentas tan solo es un adolescente pero rehúsa hablar sobre el incidente, es un tema que le incomoda y podría decirse que hasta le molesta. Cada personaje vive de manera distinta su duelo: Mr. Tambourine se desahoga publicando en su blog, escribe un texto llamado Infancia donde narra las vivencias que tuvo con su padre y su madre; la maestra enfrenta la muerte de su hija dando clases; otra vecina decide suicidarse. Lo que sí es seguro, es que el puente es el paso entre la vida y la muerte, el odio y el amor, todos los sentimientos investidos recaen en dicho lugar, pues como se ha mencionado, funge como trampolín suicida. Atravesar el puente es conseguir libertad e integrarse a ese mundo virtual en el que el chico vive, un mundo onírico donde no existe el sufrimiento provocado por las pérdidas. El chico que no murió, en cierto momento funge como la solución o sanación de la melancolía, como la muerte o la libertad, pues después de superada la muerte regresa a su pueblo. También influye en el futuro de Mr. Tambourine, quien tiene dos caminos al cruzar el puente: alejarse o lanzarse por la orilla, y de una u otra forma alcanzar la libertad ansiada. Hablan sobre el Taquari, de quien dicen, estaba loco por caminar por las plantaciones a media noche, pero no era así, él sólo encontró una salida a ese sentimiento de melancolía. Este filme conecta íntimamente al espectador con sus miedos, nostalgias, deseos, fantasías, vergüenzas, penas, transmite una experiencia completamente sensorial e intimista.

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Cabe mencionar que la música, la composición de la imagen, los encuadres, la iluminación, en general todos los recursos técnicos/visuales acentúan las emociones/sentimientos de los personajes. Este filme es rico en temáticas para analizar, pues plantea tópicos como la adolescencia actual (rock, drogas y cibercultura), pero proyectados en un nivel onírico donde la nostalgia, lo cotidiano, el deseo, la oscuridad, lo mágico y la muerte se entrelazan. Es una película que revive experiencias y consigue involucrar al espectador en la historia contada.

Ficha técnica Os famosos e os duendes da norte; Brasil/Francia; 2009; Director: Esmir Filho; Productores: Sara Silveira y Maria Ionescu; Guión: Esmir Filho, Ismael Caneppele, basada en la novela de Caneppele; Fotografía: Mauro Pinheiro Jr.; Montaje: Caroline Leone; Música: Nelo Johann; Vestuario: Andrea Simonetti; Reparto: Henrique Larre, Ismael Caneppele, Tuane Eggers, Samuel Reginatto, Áurea Baptista; Duración: 101 min.

Bibliografía Sigmund, Freud. Obras completas. Buenos Aires: Amorrorto editores, 1978, vol. XIV.

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Angélica Marisol Mora Vázquez é jornalista e pesquisadora de cinema na UNAM, México.

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OLHAR é uma publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem por objetivo sistematizar, no formato revista, a difusão de conhecimentos, pesquisas, debates e idéias nas áreas das Ciências Humanas e das Artes, gerando assim um canal de intercâmbio acadêmico e cultural. O texto submetido à OLHAR deve ser inédito, sendo vedada sua apresentação simultânea em outra publicação. Após seu envio, o material será analisado por membros do Conselho Consultivo do periódico e sua aceitação dependerá do julgamento realizado pelos pareceristas. Podem ser enviados em fluxo contínuo artigos científicos, capítulos e resumos de dissertações e teses, entrevistas, resenhas literárias e cinematográficas, além de produções artísticas tais como fotos, ilustrações, charges, poemas, contos etc. CALL FOR PAPERS The Olhar magazine, a multidisciplinary publication in the fields of arts, literature and humanities at the Center for Education and Human Sciences UFSCar, SP, Brazil, is accepting articles, translations, interviews and reviews of movies and books for their next issues. The first deadline for submissions is January 10, 2012; the second March 20, 2012. Articles, interviews or unpublished translations may contain from 7 to 25 pages (exceptions are considered), reviews of books and films should contain about 5 pages. The originals – in Portuguese, Spanish, English or French – should be sent to the following address: josettemonzani@gmail.com. The texts need to be accompanied by an abstract containing 30 to 80 words, three keywords, abstract and key words, plus information about the authors’ professional work and other relevant biographical data (educational background, major works and publications, etc.). As the magazine is illustrated, iconographic material is welcome. The relevance to the publication will be evaluated by the Advisory Board of the journal, according to its editorial guidelines. Editors: Josette Monzani and Julio César De Rose. More information: revistaolharufscar.wordpress.com

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REGRAS PARA PUBLICAÇÃO 1) ENVIO E ACEITE: – Enviar por e-mail o arquivo contendo o texto, com os seguintes elementos: título do trabalho, nome do autor, seu vínculo institucional, sua titulação, e-mail do autor, resumo de no máximo 10 linhas, 3 palavras-chave, abstract e keywords, o corpo do texto e, quando for o caso, elementos ilustrativos. O eventual apoio financeiro de alguma instituição deve ser mencionado em nota de fim de página, inserida com asterisco (e não número) logo depois do título do trabalho. Salvar como: SOBRENOME-NOME do autor. – Cada trabalho será apreciado por dois pareceristas (anônimos). Em caso de discordância desses pareceres, o texto será submetido a um terceiro parecerista (também anônimo). Serão publicados apenas os textos que receberem duas avaliações favoráveis. Os pareceres serão encaminhados aos autores pelos editores ou pelo editor-associado. 2) FORMATAÇÃO E ESTRUTURA DO TEXTO: – O texto deve ser editado em programa compatível com o Windows (Word), em fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entre linhas de 1,5, alinhamento justificado, parágrafo assinalado pelo recuo da primeira linha (Tab), com páginas numeradas. – A extensão mínima é de 15.000 caracteres e a máxima de 25.000 caracteres, sem espaços (incluindo notas e referências bibliográficas). Casos excepcionais serão avaliados pelo Conselho Editorial. – Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens, etc.) podem ser acrescentados e não serão computados na extensão máxima do texto. Os elementos ilustrativos podem ocupar duas páginas, no máximo. A obtenção dos direitos de imagem e de reprodução está a cargo do autor de cada texto e deve ser encaminhada no prazo de uma semana após a aprovação do texto para publicação. – O título do trabalho deve ser centralizado, em negrito, apenas com a primeira inicial em letra maiúscula; o subtítulo (se houver) deve seguir a mesma recomendação. – Na linha abaixo do título, deve constar o nome do autor, à direita, sem negrito. Junto ao nome do autor, deve constar, entre parênteses, a instituição com a qual tem vínculo, e também o tipo de vínculo, separado por vírgula (no caso de vínculo discente, deverá haver indicação se é em curso de mestrado, doutorado ou pósdoutorado). Em nota de rodapé, o autor deve incluir seu endereço eletrônico para eventuais contatos dos leitores. – No transcorrer do texto, deve-se empregar o itálico para termos estrangeiros e títulos de filmes, livros e periódicos. Os títulos de obras audiovisuais e bibliográficas devem ser escritos apenas com a primeira inicial em letra maiúscula. Exemplo sobre filme: “Em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963), a discussão em torno…”. Ressalva: a menção ao diretor/autor e ao ano deve ocorrer apenas na primeira vez em que a obra é citada. – As citações de até três linhas devem contar no corpo do texto (Times New Roman, corpo 12), entre aspas duplas. Com mais de três linhas, devem ser destacadas do corpo do texto, sem aspas, em

fonte Times New Roman, corpo 10, espaço simples, com recuo esquerdo de 4 cm. As notas explicativas, numeradas sequencialmente (sobrescritas, com algarismos arábicos), devem constar no final da página (rodapé), em Fonte Times New Roman, corpo 10, alinhamento justificado, mantendo-se espaço simples dentro da nota e entre as notas. As citações bibliográficas devem ser indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com os seguintes dados, separados por vírgula: sobrenome do autor em letra maiúscula, data da publicação, abreviatura de página, número da(s) página(s) – Ex.: (PASOLINI, 1975, p. 323-324). Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens etc.) devem ser inseridos no texto, logo após serem citados, contendo a devida explicação em sua parte inferior (legenda), se necessário. As referências bibliográficas devem ser completas e constar no final do texto, obedecendo às normas da ABNT em uso. Não numerar as obras, empregar alinhamento justificado e espaçamento 1, mantendo-o entre uma obra e outra. Em caso de tradução, citar o tradutor, logo depois do título da obra. Ver os exemplos, a seguir.

LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS: MANTOVANI, B. et al. Cidade de Deus: o roteiro do filme. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. PASOLINI, P.P. Abjurei a trilogia da vida. In: Últimos escritos. Tradução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Centelha, 1977, p. 24-29. PERIÓDICOS: AMELIO, G. Birth and death of a nation. Cineaste, New York, v. XXVIII, no 1, winter 2002, p. 19-20. MENA, F. Sob o sol do Recife. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 dez. 2009. Ilustrada, Caderno E, p. 1. SITES: VISCONTI, L. Rocco, un seguito di La terra trema. Disponível em: XXXXXXX. Acesso em: 8 dez. 2007. OBRAS AUDIOVISUAIS (POR ORDEM ALFABÉTICA) BAILE PERFUMADO. Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Brasil, 1997, filme 35 mm. MANGUE NEGRO. Rodrigo Aragão. Brasil, 2008, video. NÃO SERÃO ANALISADOS TEXTOS FORA DO PADRÃO DA REVISTA. Envio de originais: josettemonzani@gmail.com Revista online: revistaolharufscar.wordpress.com RESPONSABILIDADE: Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de responsabilidade do(s) autor(es).

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