murro em ponta de faca

Page 1

OUT/2011

ANA TEIXEIRA / GAL OPPIDO / HÉLVIO TAMOIO / KISSO / BALLET STAGIUM / KURT JOOSS /


ÍNDICE/ MURRO#01

02

04/ARTIGO DEFINIDO Por Ana Teixeira 06/TRANSGRESSÃO Nº1

Foto capa: Gal Oppido

Kurt Jooss 08/TRANSGRESSÃO Nº2 Ballet Stagium 10/CAPA - POLÍTICAS PÚBLICAS Por Mauro Fernando 20/INTERSECÇÃO Por Mauro Fernando 22/DIAFRAGMA Por Gal Oppido 28/ENTREVISTA Fabiano Carneiro 32/OUTRA MARGEM Por Hélvio Tamoio 34/BIBLIOTECA 35/EPÍLOGO Por Kisso

CONSELHO EDITORIAL Gustavo Domingues Mauro Fernando Sandro Borelli EDITOR Mauro Fernando EDITOR DE ARTE Gustavo Domingues REPORTAGEM Ana Carolina F. Nunes Isabella Holanda FOTOGRAFIA Luciana Temer COLABORADORES Ana Teixeira Gal Oppido Hélvio Tamoio Kisso

Esta publicação integra o projeto “Muro de Arrimo”, contemplado pela 10ª Edição do Programa de Fomento à Dança / 2011. Produção:

Revista Murro em Ponta de Faca Rua Sousa Lima, 300B, Santa Cecília, São Paulo/SP, CEP 01153-020 +55 11 3666 7238

Apoio:

PRODUÇÃO EDITORIAL Cristiane Klein

Veja também a versão on-line da Revista Murro em Ponta de Faca: www.murroempontadefaca.com.br Sugestões, reclamações, colaborações e comentários para Murro são bem-vindos pelo e-mail: contato@murroempontadefaca.com.br

Realização:

Siga-nos no Facebook: facebook.com/murroempontadefaca


EDITORIAL/ MURRO#01

03

MURRO EM PONTA DE FACA A DANÇA é uma das manifestações artísticas de menor visibilidade na mídia, tanto a impressa quanto a eletrônica. Os veículos de comunicação de expressão nacional dedicam pouca atenção à dança – o que não significa que ela seja uma arte menor, evidentemente –, e é preciso expandir o espaço existente. Murro em Ponta de Faca, pois, visa preencher uma lacuna aberta pela mídia mais interessada em assuntos cujo imediatismo insano atrai leitores, ouvintes e telespectadores ávidos pelo consumo superficial da informação. Trata-se de um processo que revela uma sociedade apartada de valores humanistas e que a revista pretende questionar. O objetivo é estabelecer um debate que jogue luz sobre as especificidades da dança e que conduza a uma compreensão mais ampla sobre suas necessidades. Incluída em projeto da Cia. Borelli de Dança contemplado pelo Programa Municipal de Fomento à Dança da Cidade de São Paulo, a revista pretende discutir com profundidade os aspectos que entrelaçam a dança, em todos os seus estilos, características, etc., à sociedade contemporânea. Murro em Ponta de Faca entende que a dança utiliza como matéria-prima as patologias sociais contemporâneas – como fenômeno de sublimação e como ato de reprodução – e se propõe como veículo que auxilie a detectar e a sobrepujar impasses.

A revista, enfim, não abre mão de abordar os assuntos com espírito crítico. É o caso da reportagem principal do primeiro número, que trata das políticas culturais públicas praticadas nos níveis paulistano, paulista e federal. Murro em Ponta de Faca detecta falhas graves na condução das políticas culturais relativas à dança – como a escassez de verba e a pouca inclinação ao diálogo – que inibem a produção dos artistas. E se posiciona pela reelaboração das práticas nessas três esferas a fim de que se evite um estado de abandono completo. A revista, que conta também com versão eletrônica (www.murroempontadefaca.com. br), traz colaboradores fixos e convidados. Os fixos são o fotógrafo Gal Oppido e o excoordenador da Representação da Fundação Nacional de Artes (Funarte) em São Paulo, Hélvio Tamoio. Além de ser o responsável pelas fotos de capa e contracapa, Oppido responde pela sessão Diafragma, na qual mostra um recorte de sua obra. Profissional com diversas exposições no currículo e requisitado por artistas de variadas linguagens – assina, por exemplo, a capa de CDs –, Oppido possui antiga ligação, como fotógrafo, com a dança. Oppido também materializa a concepção de um personagem que irá percorrer as quatro edições planejadas conforme o projeto aprovado pelo Fomento. Interpretado por

Roberto Alencar, Vaslav surge na capa e na contracapa como uma figura algo inadequada, algo patética à procura de saídas para a crise estrutural em que a dança contemporânea se encontra. Representa um rompimento com a estética tradicional do bailarino e sugere a necessidade de tomar posições. Tamoio é o titular da coluna Outros Cantos, na qual aborda as condições do fazer artístico – da dança, especificamente – no interior paulista. Proprietário de texto jovial e inteligente – que guarda parentesco com um gênero literário de especial colorido, a crônica –, Tamoio confirma a verve que o tornou conhecido na dança brasileira. A ex-diretora assistente do Balé da Cidade de São Paulo Ana Teixeira e o ilustrador Kisso são os convidados deste número. Com coragem, Ana analisa a questão das companhias 2 de corpos oficiais. Kisso coloca seu traço a serviço de uma ideia política, em consonância com a reportagem principal. Também alinhada com a reportagem sobre políticas públicas está a entrevista com o coordenador de Dança da Funarte, Fabiano Carneiro. Murro em Ponta de Faca ainda apresenta as sessões Transgressão 1 e 2, dedicada a iconoclastas dos palcos – Kurt Jooss e Ballet Stagium nesta edição –, e Intersecção, voltada à conexão entre a dança e outras expressões artísticas. Além disso, há Biblioteca, com sugestões de leitura.


ARTIGO DEFINIDO/ MURRO#01

POR/ ANA TEIXEIRA

04

COMPANHIAS 2: UM PROJETO ARTÍSTICO OU UMA ARMADILHA? A luta pela sobrevivência artística nas baias da administração pública

LANÇAR LUZ sobre uma realidade bastante particular, no contexto das companhias públicas de dança brasileiras, que começa a se delinear a partir do final dos anos 1990, é a intenção deste texto. Trata-se de assunto delicado, que ficou à margem das discussões que norteiam o universo da dança dessas companhias: o surgimento das companhias 2(1), matrizes de uma nova forma de organização profissional de bailarinos que atingem idade em torno de 40 anos. Implementadas, em geral, nesta época, pelos seus diretores, essas companhias se constituem com o bailarino denominado de “intérprete-criador”, que faz da sua maturidade artística uma ignição para a conquista de novos caminhos para a sua carreira. No Brasil, três companhias colocaram em prática esse perfil: o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP/1968), o Balé Teatro Guaíra (BTG-PR/1969) e o Balé Teatro Castro

Alves (BTCA-BA/1981). As rubricas desse novo espaço são respectivamente: Cia. 2 do BCSP, criada em 1999 (2) e extinta em 2009; Guaíra 2 Cia. de Dança (G2), também de 1999 (3); e BTCA 2, originado em 2004 e extinto em 2007 (4) . A problemática se inicia ao se observar a importância do posicionamento e do engajamento de uma instituição pública, de seus dirigentes e bailarinos em criar um segundo grupo, percebendo-se que, ao longo de suas trajetórias, ele nasce para justificar uma deficiência estrutural da administração pública, e não para dar continuidade, de fato, à atuação dos artistas veteranos. Tanto a Cia. 2 como o G2 e o BTCA 2 valeram-se da mesma atitude quanto às suas identificações: apropriaram-se da mesma denominação da companhia-mãe, distinguindo-se delas apenas pela utilização do número “2” (5) ao final de sua designação. Nasceram tendo como mol-

de artístico o do NDT III (Nederlands Dans Theater III), da Holanda, que surge em 1991 e encerra suas atividades em 2006. Para o coreógrafo Jiri Kylián, diretor nesse período, o grupo foi criado para dançarinos experientes treinados na técnica clássica, com idade acima de 40 anos, com o objetivo de propor desafios artísticos apropriados para seus corpos em transformação, ampliando, assim, suas carreiras. Ao longo da existência da Cia. 2, do G2 Cia. de Dança e do BTCA 2, pouco se soube ou se falou dessas companhias, para além do seu surgimento ou quando alguma criação ganhava destaque na cena da dança de suas localidades. Viviam em regime de pouca visibilidade, pois a luz dos holofotes incidia, geralmente, sobre a companhia-mãe. Os registros são vagos e insuficientes, e a maior parte das informações se encontra nos sites, em poucas críticas de jornais ou em alguns


A falta de um suporte conceitual fez com que as companhias 2 se tornassem somente estoques de boas intenções, em vez de se constituírem em alternativa político-artística para a chamada longevidade, maturidade e continuidade de seus artistas

artigos dos livros comemorativos dessas companhias. Um fator determinante para o surgimento desse modelo vincula-se à forma de contratação dos artistas. No G2 Cia. de Dança, bem como no BTCA 2, os integrantes, na grande maioria, são estatutários, quer dizer, funcionários públicos. Nesse caso, tanto no G2 como no BTCA 2, a companhia devia encontrar uma forma de propor a continuidade dos bailarinos veteranos, sendo a criação da companhia 2 uma saída. Já na companhia 2 paulistana, o caso foi diferente: como a maioria dos artistas era contratada com “verba de terceiros”, ou seja, eram prestadores de serviço, sem vínculo empregatício com a municipalidade, o tempo de casa lhes conferia um paralelo ao regime estatutário, pois muitos lá estavam há mais de 20 anos. Nos trechos extraídos de textos nas mídias eletrônicas de cada instituição, bem como de programas dos espetáculos, as expressões “dança contemporânea”, “experiência”, “intérprete-criador”, “criação coletiva”, “pesquisa de linguagem”, entre outras, são recorrentes, uma forma de justificar a sua existência no cenário artístico em vigor, operando como uma espécie de passaporte que, muitas vezes, não legitimava, mas mascarava a natureza artística delas. A falta de um suporte conceitual fez com que as companhias 2 se tornassem somente estoques de boas intenções, em vez de se constituírem em alternativa político-artística para a chamada longevidade, maturidade e continuidade de seus artistas. O fulcro dessa problemática parece estar na natureza da companhia- mãe e na complexidade da relação entre artistas, direções e a instituição pública. Muitas questões são pertinentes e devem ser levantadas no intento de construir um projeto artístico para que o surgimento de companhias dessa natureza tenha uma função efetiva para a dança pública brasilei-

ra. Tornam-se fundamentais as perguntas: poder-se-ia almejar a criação de um espaço que tivesse outra função dentro dessas companhias? Isso realmente é necessário? O que pretendem os bailarinos que integram esse tipo de estrutura oficial, no que diz respeito ao desdobramento de sua carreira artística? Se eles estão há tanto tempo no mesmo lugar, fazendo os mesmos trabalhos, discutindo a partir do padrão de conhecimentos inerentes a essas instituições, o que se poderá esperar deles nessa outra companhia? Será a idade condição suficiente para desenvolver um projeto que tenha na pesquisa o seu principal alicerce? Presumir que um estabelecimento público que mantém duas companhias deve considerar os mesmos modos de atuação artística para elas, considerando unicamente como diferença entre elas o fator da idade, é desprezar a arte em suas possibilidades de produzir conhecimento. Ao mesmo tempo, querer vislumbrar um processo artístico que evidencie outro modo de fazer dança é não entender a singularidade dos bailarinos que compõem essas companhias. É nesse panorama estrutural de companhia oficial que se pretendeu criar uma companhia 2. De 1999 até 2011, duas foram extintas e a única que sobrevive é o G2 Cia. de Dança, que mantém suas atividades em completa invisibilidade. Se houver interesse de todos os envolvidos nessas questões, é possível que o sistema da oficialidade e os artistas deixem a contramão dos modelos que optaram por implementar, descortinando a deficiência estrutural que os rege e passando a fluir a partir de outros princípios. Assim, foge-se da pasteurização e fazse emergir um referencial direcionador que contemple pluralidades em um sistema singular, regido por descobertas que legitimem a importância de sua existência.

(1) - Salienta-se que, quando a referência for relacionada à Companhia 2, como designação geral, manter-se-á por extenso. (2) - Criada pela ex-diretora da companhia, Ivonice Satie (1951-2008). O motivo que levou a Procuradoria da Secretaria Municipal de Cultura a interromper as atividades do grupo foi por esta não ter sido constituída em forma de lei. (3) - Criado pela ex-diretora do Balé Teatro Guaíra, Carla Heinecke. (4) - Criada na gestão de Antonio Carlos Cardoso, inicialmente era chamada de Cia. Ilimitada e dirigida por Carlos Moraes e Ivete Ramos. Em 2007, o Secretário de Cultura decidiu permanecer somente com os bailarinos estatutários, assim, fundiu-se as duas comapnhias. (5) - Ao empregarem o número “2” a companhia matriz passa ser designada com o número “1”.

Ana Teixeira é artista, consultora e pesquisadora na área da dança. Doutoranda em Comunicação e Semiótica (PUC-SP – CNPq) e mestre pela mesma instituição.

05


TRANSGRESSÃO Nº1/ MURRO#01

POR/ ANA CAROLINA F. NUNES

06

KURT JOOSS

AS QUESTÕES DA VIDA TRABALHADAS PELO CORPO

DIZEM QUE das adversidades nasce a criatividade. A história da dança-teatro comprova essa teoria popular. No cerne de uma Alemanha em ebulição sob a República de Weimar e um período pré-hitlerista, o coreógrafo alemão Kurt Jooss (1901-1979) dá impulso a uma forma de exteriorizar, por meio da dança, angústias, sentimentos e incertezas daquele período. A Tanztheater, ou dança-teatro, já havia dado seus primeiros passos por volta de 1917, pegando carona no forte movimento expressionista alemão, que teve como expoentes Bertolt Brecht (18981956) e Max Reinhardt (1873-1943). Jooss, Rudolf Von Laban (1879-1958) e Mary Wigman (1886-1973) formam o tripé que fez o estilo dar um salto no fim dos anos 1920. Entre as escolas fundadas por Jooss, a que mais se destacou foi a Folkwang Schule, em Essen. Logo em suas primeiras peças, Jooss já mostrava uma crítica à ordem social, levantando a bandeira das diferenças de classe em Big City. Em um período que a sociedade aplaudia o charleston, não foi difícil encontrar quem rejeitasse críticas tão diretas. O ano de 1932 registra um marco para o estilo. Foi quando Jooss apresentou o espetáculo A Mesa Verde, conquistando prêmio em Paris, posicionando-se politicamente e elevando a dança como forma de expressão do momento histórico e do pensamento, e adicionando ainda um toque de sátira. “Tinha de acontecer”, sentencia a bailarina, coreógrafa e professora Sônia Mota. De acordo com ela, a peça deu-se “no momento certo, no contexto ideal e com equipe e encenações perfeitas”. A Mesa Verde teve como cenário real um período posterior à maior crise econômicofinanceira registrada no mundo e o início de um movimento político que culminou com a Segunda Guerra Mundial. Material abun-


Se Jooss abriu o caminho para que a dança-teatro conquistasse seu espaço, sua aluna mais ilustre, Pina Bausch, o pavimentou

A Mesa Verde

dante para rechear o enredo da peça com guerra, dinheiro, morte e política. Na peça os bailarinos jogam o destino das nações sobre o pano verde. “É uma metáfora muito forte do panorama europeu daquele momento”, explica a pesquisadora e professora Cássia Navas. Sônia lembra que a dança-teatro trabalha a cena por um ângulo mais psicológico do indivíduo, envolvendo questões pessoais e filosóficas, baseando-se em temas mais concretos e cotidianos. Nada mais concreto para os alemães daquela época que a guerra iminente e um horizonte sombrio. Cássia conta que a companhia de Jooss, o Ballets Jooss, estava em Santiago, no Chile, quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial e não pode viajar logo de volta à Europa. “Alguns de seus bailarinos se fixaram no Chile e fundaram, entre outros, a primeira graduação em dança da América do Sul, na Faculdade Nacional do Chile”, revela. Claro que todo o envolvimento político e social do coreógrafo teria um preço. Até porque juntou-se ao perfil vanguardista de Jooss uma parceria nada bem vista à época de uma Alemanha dominada pelo nazismo – o compositor judeu Fritz Cohen, que assina a trilha de A Mesa Verde. Após receber a determinação de demitir e desfazer qualquer relação com judeus, Jooss se viu forçado a sair da Alemanha ao lado de outros companheiros, entre eles Cohen. Foi quando, em 1933, foi viver na Inglaterra, ajudando a disseminar a dança-teatro na ilha, retornando ao seu país natal somente em 1949. Se Jooss abriu o caminho para que a dança-teatro conquistasse seu espaço, sua aluna

Pina Bausch

mais ilustre, Pina Bausch (1940-2009), o pavimentou. A dançarina e coreógrafa alemã, que carinhosamente chamava seu tutor de Papa Jooss, apresentou o estilo ao mundo ao incorporar elementos mais universais e populares, como dança de rua, política e cultura. “Ela agregou à dança-teatro características mais modernas, mais atuais, reduzindo a mão pesada do expressionismo alemão e suavizando a maneira de se expressar pela dança”, explica Sônia. “Ela acreditava que Jooss lhe passou o rigor da comunicação de temas do homem e da mulher de cada tempo e o rigor na forma de expressá-los”, comenta Cássia. Críticos são unânimes em afirmar que a pupila de Jooss soube dosar perfeitamente teatro e dança, transformando a expressão moderna do dançar a um ponto que não era mais o passo de dança que conduzia a narrativa, mas sim a psicologia, a filosofia e a cultura do momento encenado. “Essa inclusão do viés psicológico teve sua virada no início dos anos 1930, quando Mary Wigman teve de adaptar-se à nova ordem imposta pela Alemanha nazista, uma vez que não emigrou, e Pina soube explorar esse mote com maestria”, afirma Sônia. Cássia classifica Pina como a grande criadora do século XX. “Não podemos avaliar sua obra em separado, mas vale dizer que Café Muller teve sua importância por ser um marco introdutório, de uma beleza inaugural para todos”, detalha. “Para nós, brasileiros, apontaria como sua obra importante Água, que ela constrói a partir do Brasil, mas não sobre ele”, lembra. Apesar de se manifestar no mundo in-

teiro e interferir no cinema e no teatro, o estilo ainda não encontra um expoente forte no Brasil, sendo mais frequente em países como Alemanha, Noruega e Dinamarca. “Na Alemanha a popularidade de Jooss é enorme, com biblioteca e museu dedicados a ele”, conta Sônia, que viveu por mais de duas décadas em Colônia. Ela destaca que o Japão é um dos países fora desse eixo que abraçou intensamente a dança-teatro. Em território verde-amarelo, a dançateatro pode não ter uma adesão massificada, mas Sônia aponta algumas das companhias que fazem uso maior dos elementos do estilo, como 1° Ato e Zikzira, de Belo Horizonte, Terpsí, de Porto Alegre, Regina Miranda, do Rio de Janeiro, e Cisne Negro, de São Paulo. “No Brasil as manifestações geralmente fazem apropriações de múltiplos estilos e elementos. É uma característica da nossa cultura produzir coisas miscigenadas e na dança não é diferente, por isso há muito espaço ainda para desenvolver algo fundamentado na dança-teatro”, diz Sônia. Já para Cássia existem criadores brasileiros que têm forte ligação com aspectos de uma narrativa teatral, como Sandro Borelli, de São Paulo, Renato Vieira, do Rio de Janeiro, e Lenora Lobo, de Brasília. “Algumas vezes, algum criador segue por essa vertente, fazendo dela uma fase de sua trajetória, como Márcia Milhazes, no Rio”, aponta. Em São Paulo, diz, “temos uma emergência da dança-teatro pelas mãos da grande mestra Marilena Ansaldi, que trabalha peças de referência como Escuta Zé Ninguém, baseado em Wilhelm Reich [1897-1957]”.

07


TRANSGRESSÃO Nº2/ MURRO#01

POR/ ISABELLA HOLANDA

08

BALLET STAGIUM

A VOCAÇÃO DESBRAVADORA DO STAGIUM POUCAS COMPANHIAS tiveram o privilégio de integrar-se tão profundamente à história e à cultura brasileira quanto o Ballet Stagium. Fundado em São Paulo pelo casal Marika Guidali e Décio Otero, o grupo completa 40 anos em outubro. Nas palavras da professora da PUC-SP e crítica de dança de O Estado de São Paulo, Helena Katz, o Stagium foi a primeira companhia a “dançar o Brasil”, levando espetáculos para os lugares mais remotos e menos explorados ou que nunca haviam tido contato com a dança. Helena afirma que a história da dança no Brasil se divide em antes e depois do Stagium e que suas influências são sentidas até hoje em outras companhias, como o Grupo Corpo. O Stagium difundiu a dança pelo país, promovendo a montagem de espetáculos de norte a sul. Ao incorporar a linguagem universal da dança com elementos das culturais locais, misturando-os às técnicas do balé e da dança moderna, o Stagium revolucionou padrões. Para os integrantes da companhia, não importava se o palco era de chão batido, uma barca no Rio São Francisco, um hospital, um presídio, os rincões mais desconhecidos do Nordeste ou a periferia de São Paulo. O espírito de nacionalidade estava enraizado na origem da filosofia da companhia, e era dele que nascia a inspiração para as montagens. Nesse sentido, um das experiências mais marcantes ocorreu em pleno Xingu, quando os bailarinos exibiram-se para uma plateia de 400 índios em um improvisado palco de chão batido.


09

Temas pouco discutidos como racismo, violência, direitos humanos e até mesmo as questões da América Latina, faziam parte do repertório da companhia e tornaram-se revolucionários para os padrões da época

Na época, a convivência com as tribos indígenas provocou reflexões profundas no grupo, traduzidas no livro Marika Gidali, Singular e Plural, de Otero, escrito em homenagem à trajetória da artista. A própria Marika relembra a experiência no Norte do País, realizada em meados dos anos 1970: “Já dancei para gente pobre, miserável, gente que não tinha nada a não ser o seu trabalho. Mas essa foi uma experiência diferente, uma coisa mais pesada. Vi então que estamos no mesmo barco, que somos todos oprimidos”, revelou. Com o título Kuarup ou A Questão do Índio, o espetáculo foi levado aos palcos das grandes cidades, percorrendo o território nacional e vários países. Estreou em 1977 – coreografia de Otero, direção de Marika e figurino de Clodovil Hernandes (1937-2009). A peça Navalha na Carne – o estilo cru do escritor e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) – entrou em cena em 1975, no Teatro Municipal de São Paulo. O texto, de 1967, foi transferido para a linguagem da dança antes de chegar aos palcos teatrais, traçando um retrato dos excluídos, dos bastidores do submundo e das mazelas do meio social. Censurado pelo conteúdo “altamente subversivo” pela ditadura militar (19641985), a obra chegou aos palcos da dança sob a direção de Ademar Guerra (1933-1993) e com outro nome: Quebradas do Mundaréu. “Nessa época todo mundo estava calado. O próprio Plínio estava calado. Por isso, era preciso usar a inteligência para driblar a cen-

sura. Nunca fomos censurados. A dança era encarada de outra forma pela ditadura. Mas tivemos de usar a criatividade para evitar isso”, relembra Marika, que atribui a existência do Stagium a fatores circunstanciais. “Precisávamos sobreviver, e a conjuntura histórica nos permitiu construir essa trajetória. Tivemos a história ao nosso favor. O estilo do Stagium era justamente não seguir uma definição, mas o de difundir e de levar a dança aos vários públicos e lugares.” O Stagium foi a primeira companhia a tocar em assuntos sensíveis em pleno regime militar, em tempos nos quais as limitações impostas pela censura impediam a livre manifestação artística. “Temas pouco discutidos, como racismo, violência, direitos humanos e até mesmo as questões da América Latina, faziam parte do repertório da companhia e tornaram-se revolucionários para os padrões da época. Foi também o primeiro grupo a dar voz aos grupos de excluídos, misturando as técnicas do balé clássico com as das danças populares”, explica Helena. À companhia também coube o pioneirismo de valorizar o papel educacional da dança e o seu potencial transformador, especialmente em ambientes de risco. Foi em 1974, durante a turnê de 15 dias sobre a barca Juarez Távora, no Rio São Francisco, que surgiu a consciência de se utilizar a dança como instrumento socioeducativo. De ônibus, a companhia viajou de São Paulo até Pirapora (MG), onde a barca já esperava. A navegação incluiu 150 artistas do Stagium,

da Orquestra Jovem do Teatro Municipal, da Universidade Federal de Juiz de Fora, do Teatro do Estudante do Paraná e outros, entre os quais o maestro Carlos Eduardo Prates, regente, na ocasião, da Orquestra Filarmônica de Berlim. A partir daí, surgiram inúmeros projetos: Stagium Vai à Escola, Projeto Dança a Serviço da Educação e Projeto Stagium Leva Estudantes ao Teatro. O Projeto Joaninha, direcionado a estudantes de 7 a 14 anos de escolas públicas da periferia de São Paulo, nasceu em 1999. Em 1986, em comemoração aos 25 anos da companhia, outro sonho de Marika tornou-se realidade: a criação da Rede Stagium. Sob a coordenação da pesquisadora Cássia Navas, a ideia era implantar um projeto de incentivo à pesquisa e extensão e de troca informações sobre dança. O Stagium, aos 40 anos e com mais de 80 coreografias realizadas, decidiu voltar às raízes paulistanas e prestar homenagem a Adoniran Barbosa (1910-1982), em montagem alusiva ao centenário de nascimento do músico que melhor cantou a urbanidade. Adoniran traduz, de forma brejeira e bemhumorada, o progresso, as dificuldades e as mudanças geradas pelo desenvolvimento da cidade de São Paulo. As comemorações em torno dos 40 anos devem prosseguir no decorrer deste ano, o que inclui Tangamente, espetáculo sobre a obra do bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla (19211992). Mas, segundo a própria Marika, “ainda são novidades”.


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

POR/ MAURO FERNANDO

LUZ NO FIM DO TÚNEL? Artistas questionam políticas públicas para dança e vereador apresenta projetos

10


“O Estado é ineficiente, burocrático e dominado pela lógica política perversa” INSATISFEITOS com a política cultural nos níveis paulistano, paulista e brasileiro, artistas da dança procuram alternativas – modificar as estruturas, eis o mote. A Cooperativa Paulista de Dança e o Movimento Mobilização Dança lideram os Encontros A Dança se Move, realizados desde maio com o objetivo de discutir – questionar, sobretudo – as políticas públicas. E propor mudanças que contemplem a melhoria das condições do fazer artístico. O Seminário A Dança se Move precedeu os Encontros, o que demonstra uma postura pró-ativa – pelo menos, de parte da classe da dança. O coreógrafo e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Marcos Moraes, mantém uma postura ácida e detecta uma ausência de políticas públicas para a dança. “O Estado é ineficiente, burocrático e dominado pela lógica política perversa”, critica. Para ele, a falta de planejamento constitui empecilho sério para o equacionamento de questões como a fixação de programas permanentes que reduzam as preocupações dos artistas. “O Estado tem respostas para demandas emergenciais”, diz. Prevalece, pois, o imediatismo em detrimento da edificação de um pensamento coerente sobre a dança que não envolva apenas o subsídio a companhias – a despeito do “esforço [da classe artística] de construção de um marco de políticas institucionais”. Ou seja, o Estado não cumpre o papel de indutor da produção cultural. O coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., aponta uma dívida “enorme” do poder público não apenas com a dança, mas com a cultura em geral, “que beira o desrespeito com a população”. “A cultura está completamente abandonada. Não falo da indústria cultural, mas da arte enquanto maneira de ver o mundo, como mecanismo de transformação da vida.” Moraes reconhece que mudar as estruturas é “um processo complexo e difícil”, especialmente em um país “que precisa amadurecer”. “Vivemos em um lugar arcaico, no qual o gestor público acha que seu gosto pessoal se sobrepõe ao funcionamento da sociedade. E cultura não significa uma oportunidade para

desviar dinheiro”, dispara. É nesse contexto que os Encontros A Dança se Move, realizados em sala da Câmara Municipal de São Paulo, se encaixam. A tônica: formular estratégias para desenvolver a dança. Nas – por enquanto – três reuniões debateram-se, por exemplo, propostas para reformar o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo, instutuído por lei em 2005. O consenso entre os artistas indica que o Fomento, tratado como importante antídoto contra a marginalização de criadores, não dá conta de toda a produção contemporânea. “Há a necessidade, por exemplo, de prêmios para artistas emergentes e de difusão para outras cidades e Estados”, argumenta a coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre. “É preciso formular políticas de longo prazo, de Estado e não de governo, programas pensados não para matar a fome, mas integrados a um pensamento maior, voltado à cidadania, à ética”, reflete Carvalho. O Fomento à Dança, por sinal, nasceu sob polêmica. Ao contrário do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, criado por lei em 2002, o Fomento à Dança não prevê dotação orçamentária fixa. Os recursos destinados à pesquisa, produção, circulação e manutenção de grupos flutuam, portanto, conforme os humores da Secretaria de Cultura. Mesmo assim, aponta Carvalho, o Fomento permitiu a formação de companhias mais consistentes, com a confecção de projetos de mais qualidade. Em termos artísticos, indica Sofia, o Programa “é fantástico”: proporciona mais segurança financeira às trupes e possibilita o estabelecimento de sedes, o que garante “a multiplicação da qualidade dos trabalhos”. Na comparação com os planos federal e paulista, a situação no município de São Paulo é a melhor. “O Fomento evidencia isso”, afirma Moraes. Com uma ressalva: as condições ainda estão “longe do ideal”. O coreógrafo e bailarino enxerga um “bom momento, de efervescência, de troca, dentro da categoria”. “Há visões políticas e estéticas diferentes conversando.” Da pluralidade de ideias renasce,

11


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

então, “um ambiente de dança” que tira os artistas do marasmo e faz as coisas avançarem. Os Encontros A Dança se Move debatem o estabelecimento de programas que abriguem profissionais em início de trajetória autoral, que contemplem a estabilidade de criadores com percurso superior a 15 anos e que favoreçam a circulação de companhias paulistanas. São lacunas que o Fomento mantém abertas. Além disso, os artistas pleiteiam mudanças na lei, como a ampliação do prazo de realização dos projetos de um ano para dois e o aumento do teto de recursos monetários que cada projeto pode solicitar, atualmente no patamar de R$ 300 mil. Moraes defende ainda a formulação de programa de formação de público e a ampliação da presença da dança em escolas públicas. As demandas da categoria, porém, esbarram na questão da mobilização. A classe está atenta o suficiente para fazer com que seus pleitos sejam considerados? Moraes demonstra certo ceticismo: “Há um limitador nesse embate com os mobilizados profissionais, que são os políticos. O artista precisa conciliar suas atividades [criativas com a participação na vida pública]”. Segundo Sofia, a classe não é suficientemente mobilizada: “Melhorou, mas precisa ser mais”. “A consciência está aumentando”, confirma Carvalho. Para o intérprete-criador Edson Calheiros, a dança não ostenta o mesmo estágio de mobilização que o teatro. “A dança tenta se

12

apoiar em parlamentares ou legitimar câmaras setoriais, utiliza instrumentos burocráticos criados pelo governo, instâncias engessadas. É um movimento amparado pelo Estado”, afirma. Por isso, conclui, os “avanços são mais tímidos” que os obtidos pelo teatro. E aponta a diferença crucial: “O teatro se contrapõe às instâncias oficiais para fazer valer suas reivindicações”. “É preciso construir algo que questione a ordem vigente”, sugere. Por “ordem vigente”, entenda-se o poder econômico. Sofia entende essa questão de outra maneira: dança e teatro possuem modos de organização diferentes para lutar por melhores condições para o artista. “É difícil mensurar assim [quem é mais mobilizado]”, diz. “A dança não tem o histórico do teatro”. Como exemplo, compara a longevidade do Teatro Popular União e Olho Vivo, nascido em 1970, à do Mobilização Dança, que existe há dez anos. Além disso, constata, “a quantidade de atores é maior que a de bailarinos”. “Mas, depois [do advento] do Fomento, a discussão se ampliou e mais pessoas estão acreditando [nas possibilidades de mudança]”, finaliza. A coreógrafa Eliana Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, concorda com Sofia e lembra que o Fomento à Dança, assim como o ao Teatro, é resultado da iniciativa de artistas que se mobilizaram para obter avanços institucionais. “A dança tem diálogo [com o Executivo e com o Legislativo] diferente, há uma articulação com políticos diferentes. A dança já atingiu um patamar de consciência política. É por isso

que está propondo mais coisas. O Fomento permitiu aflorar a produção contemporânea, mas ainda há mais a fazer”, diz Eliana. A produtora Solange Borelli é categórica: falta engajamento à classe. “A dança só se mobiliza para o imediato, e engajamento pressupõe algo a longo prazo. Vejo uma mobilização apenas para a sobrevivência. Para que um movimento seja potente é preciso haver muita gente, não somente líderes.” Para ela, essa é uma discussão que passa ao largo de ideologias. “É uma questão de ordem prática. O movimento da dança é imaturo. Existem apenas algumas pessoas com posicionamento político.” Solange considera ainda ser necessário “pensar a dança para além dos editais”. Do contrário, diz, o artista corre o risco “de perder a essência genuína da criação” por permanecer atado às regras estipuladas nos concursos que selecionam projetos. A arte, reitera, não prescinde de autenticidade, autonomia, liberdade. “Temos amarras. Precisamos discutir também questões ligadas à criação, não trocamos pontos de vista relacionados às experiências estéticas.” Outro ponto em que ela toca é o público: “Esquecemos de dialogar com a sociedade. O que há é um diálogo falso e demagógico”. É o caso de criadores voltados para o próprio umbigo, que colocam o ego à frente das produções. “O que faz as pessoas assistirem a núcleos artísticos [incensados pela mídia de alcance nacional] como o Corpo e não a trabalhos mais sofisticados?”, questiona. O Grupo Corpo cumpriu de 4 a 14 de agosto nove apresentações em São Paulo – lotou o Teatro Alfa, que possui 1.212 lugares, com ingressos entre R$ 40 e R$ 100. Moraes confia que o Poder Legislativo paulistano está sensível às demandas da dança. O vereador José Américo (PT) apresenta à Câmara neste mês propostas que reformulam o Fomento. Uma aprova a fixação de recursos orçamentários nos moldes do Fomento ao Teatro, além de prever a dilatação do prazo de realização dos projetos. Outra, ainda não formatada, favorece a difusão da dança paulistana para outras paragens, financia a pesquisa de grupos estabelecidos na capital há pelo menos 15 anos e estabelece bolsas para jovens artistas.


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

13 “Governos não querem verbas engessadas, mas manipulá-las conforme seus interesses”

Américo: “Prefeitura nada em dinheiro”

BATALHA LEGISLATIVA O VEREADOR DE SÃO PAULO José Américo (PT) considera que o Programa Municipal de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo “fortaleceu a produção contemporânea, gerou sinergias, mas tem de crescer”. “A dança precisa do apoio do Estado para se desenvolver sem interferência comercial, de marketing. A iniciativa privada segue regras de mercado. Sou a favor do financiamento direto [do Estado], embora seja contra acabar com leis [de renúncia fiscal] como a Rouanet e a Marcos Mendonça”, afirma. Ele ante vê uma batalha para aprovar na Câmara Municipal as propostas que apresenta neste mês para aperfeiçoar as condições do fazer artístico no município. A tramitação envolve um entendimento político para que a votação se dê até o fim do ano. “Como são projetos suprapartidários, a ideia é colher apoio de outros vereadores para que também sejam signatários [das propostas]”,

diz. A estratégia visa tornar mais rápida a passagem dos projetos pelas comissões da Casa. Há, na sequência, as duas votações no Plenário. Aprovados, passam para o prefeito, que pode sancioná-los ou vetá-los no todo ou em parte. “O problema é que a base governista não é muito afeita a investimentos em cultura, apesar de haver vereadores mais sensíveis”, explica. “A dotação orçamentária fixa é mais difícil de ser aprovada porque o Executivo não gosta de dinheiro que já chega ‘carimbado’”. Ou seja, de quantias que não podem ser remanejadas. “Governos não querem verbas engessadas, mas manipulá-las conforme seus interesses”, endossa o coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia. Para o vereador, falta vontade política do Executivo para que as coisas avancem. “A Prefeitura nada em dinheiro, há uma previsão de sobra de caixa de R$ 2,5 bilhões a R$

3,5 bilhões neste ano. O orçamento de 2011 para a dança é de R$ 7 milhões. Isso é suficiente? Não, é apenas razoável. Precisaríamos do dobro, porque hoje há mais grupos [que na época da aprovação do Fomento, em 2005]”, julga. “E dobrar a verba da dança não atrapalharia nada, não tiraria recursos dos setores sociais. A arrecadação [de impostos], que era de R$ 14,5 bilhões em 2005, hoje é de R$ 35 bilhões.” Carvalho segue essa linha de raciocínio, mas amplia o contexto. “O problema não é dinheiro, mas desejo político de investir em cultura. Embora seja um grande avanço para a cidadania investir em cultura, politicamente é um tiro no pé. Os governos temem os setores mais organizados da sociedade. A criação do pensamento muda a maneira como fazemos as coisas, e a arte pode produzir coisas fortes voltadas para a sociedade.” Américo atira à vontade contra a política cultural do município. “A cultura é um elemento fundamental para a formação do cidadão, para aumentar a consciência crítica, superar preconceitos, quebrar bloqueios. É estratégica, assim como o investimento em educação. E o Executivo não tem sido sensível a isso. Há uma concentração [de verba] na Virada Cultural, que pode existir. Mas a Prefeitura pode fazer mais coisas, tem de assumir o papel de financiadora da cultura”, diz. A coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, reclama da “carência de espaços”: “O Centro Cultural São Paulo e a Galeria Olido são insuficientes”. “Não há programação na maioria dos teatros. E existem de 40 a 50 espaços, incluindo os CEUs [Centros Educacionais Unificados]”, emenda o vereador. Procurada por Murro em Ponta de Faca, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo não se manifestou. (MF)


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

14 “A verba do ProAC é pequena, e a burocracia gera processos angustiantes. O que pleiteamos é muito menos do que a São Paulo Cia. de Dança consome”

Marcos: “Carência enorme no interior”

O COREÓGRAFO e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Marcos Moraes, aponta: a política pública para a dança no Estado de São Paulo “é um desastre”. O diálogo com os artistas “é falso”, afirma. “Há uma visão de Estado como poder imperial.” A coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, perfila-se ao lado de Moraes: “A Secretaria [de Estado da Cultura] ouve muito pouco [os artistas]. É uma coisa autoritária, não existe discussão”. O coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., compartilha essa opinião. “O diálogo é muito pequeno, e sem ele as coisas não melhoram”, diz. Além disso, diz Moraes, “a cultura virou moeda de troca política nos dois mandatos mais recentes, os secretários não são da área”. O administrador de empresas Andrea

Matarazzo sucedeu na Secretaria da Cultura, em maio do ano passado, o economista João Sayad, que assumiu o cargo em janeiro de 2007. Moraes contesta também a São Paulo Cia. de Dança, criada em 2008, “uma companhia que concentra recursos, que representa uma volta a Luís XIV, que pertence ao rei para a nobreza assistir”. O Rei da França Luís XIV (1638-1715) personificou o Absolutismo e fundou a Academia Real de Dança, que mais tarde redundou no Balé da Ópera de Paris, a companhia oficial mais antiga do mundo. O orçamento da São Paulo Cia. de Dança para 2011, segundo a Secretaria, é de R$ 14,5 milhões. “Para o resto sobram o ProAC [Programa de Ação Cultural] e o Mapa Cultural [Paulista], uma competiçãozinha para

dar um premiozinho. E isso em um Estado cujo PIB é maior que o de alguns países europeus”, conclui. Sofia concorda: “A verba do ProAC é pequena, e a burocracia gera processos angustiantes. O que pleiteamos é muito menos do que a São Paulo Cia. de Dança consome”. O fechamento do Teatro de Dança em maio – a Secretaria alegou más condições e problemas estruturais e não renovou o aluguel, mas a comédia Eu Te Amo Mesmo Assim reabriu a sala, que voltou a se chamar Teatro Itália, em agosto – completa esse cenário. “Como não há estímulo nenhum do governo estadual para mudar isso, as demandas se encaminham para os planos federal e paulistano.” O coreógrafo propõe o desenvolvimento de políticas públicas para o interior, “onde há uma carência enorme”, com a criação de cinco centros de referência “que fomentem a circulação de espetáculos e de profissionais de teoria”. “Polos com bolsas de estudo, intercâmbio com criadores locais, mostras de produções locais, professores para cursos e oficinas.” Sugere também subsídios a reformas de teatros. A Secretaria nega haver falta de sintonia com os artistas. “Tanto o secretário Andrea Matarazzo quanto a equipe da Unidade de Fomento e Difusão Cultural estão em constante contato com grupos e pessoas da área de dança para ouvir as idéias e projetos e encontrar formas de atender as demandas”, justifica. A Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso, que substituirá o Teatro de Dança, “deve ser aberta ao público em outubro”. A programação “será definida”, afirma a Secretaria. Os principais projetos para 2011, informa, são o ProAC, a São Paulo Cia. de Dança e a retomada do Programa Teatro de Dança. (MF)


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

15

Sofia: “Cultura não é sabão”

NO PLANO FEDERAL, o coreógrafo e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Marcos Moraes, sugere um mapeamento do universo da dança que aponte “quem somos, quantos somos, qual a atividade econômica”. Já houve um, lembra-se, mas incompleto. “Foi um diagnóstico parcial, limitado. Não foi todo mundo ouvido.” A partir desse levantamento de dados seria possível “traçar metas, um sistema de avaliação, ajustes” e indicar caminhos para o desenvolvimento da dança. “Em um mundo ideal, o Estado se capacitaria para isso.” O diálogo das instituições federais com a classe artística não é pleno, avalia Moraes. Além disso, poderia haver uma articulação mais intensa do Ministério da Cultura e da

Fundação Nacional de Artes (Funarte) com Estados, municípios e outros Ministérios, como Educação, Trabalho, Relações Exteriores, Turismo e Fazenda. “É um desafio, que esbarra na ignorância geral do País em relação à importância da Cultura, que não recebe a atenção que deveria”, diz. Os programas existentes não ajudam muito a aprimorar o panorama da dança no Brasil, analisa Moraes. Por duas razões: “pouca verba” e “dificuldade de alcance, de lidar com as diferenças regionais”. Inexiste um programa pensado para atender às especificidades de um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados e diversificado culturalmente, pondera. “Mesmo na Região Sudeste há realidades diferentes.”

“O problema não é só da dança. A cultura vem sendo negligenciada há muito tempo. E o obstáculo maior não é a ausência de troca de figurinhas entre governo e artistas. Diálogo existe” Prevalece, assim, a “política de balcão”. “O [Prêmio] Klauss Vianna [da Funarte], uma piada de verba, é a principal ação. E tem uma limitação, é condicionado à burocracia. Se [a quantia distribuída] aumentasse dez vezes, haveria uma política pública”, avalia. Falta autonomia à Funarte, considera. De acordo com ele, um Fundo Nacional de Cultura ativo – com um Fundo Nacional de Dança, “uma estrutura organizada e transparente” – evitaria que os “programas ficassem reféns de gestões políticas”. Para a coreógrafa Sofia Cavalcante, do Núcleo Passo Livre, “o problema não é só da dança”: “A cultura vem sendo negligenciada há muito tempo”. O obstáculo maior, para ela, não é a ausência de troca de figurinhas entre governo e artistas. “Diálogo existe”, indica. “O que não há é verba.” Ela lembra a existência da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 150, que tramita no Congresso Nacional e assegura o mínino de 2% do orçamento geral da União para o Ministério da Cultura. O coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., concorda: “A verba é pequena”. Além disso, examina, existe uma certa “lerdeza” na aplicação dos recursos, o que provoca “uma defasagem entre o discurso e a prática”. Um dos problemas mais sérios para combater essa situação, conforme Carvalho, é “a ausência de uma articulação nacional mais forte” dos artistas, embora não faltem lideranças para realizar tal tarefa. Murro em Ponta de Faca publica nesta edição entrevista com o coordenador de Dança da Funarte, Fabiano Carneiro, que apresenta respostas para os questionamentos dos artistas. (MF)


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

ARTE VERSUS MERCADO Renúncia fiscal combina com lucro, mas não com expansão de limites artísticos

16


“Cultura não é sabão. E ela é supérflua para o capitalismo. Essas leis de renúncia fiscal são um absurdo: verba pública para bancos, para produtoras mexicanas. É muito dinheiro público para quem não precisa. Acho isso escandaloso. É uma visão de cultura excludente.”

CONCEITOS de responsabilidade social foram adotados como instrumento de gestão no mundo corporativo há tempos. A exposição da marca na mídia com conotação positiva significa qualificação de imagem, o que redunda em expansão de negócios e, naturalmente, do lucro. O apoio a projetos ambientais e culturais apresenta à opinião pública a ideia de que a empresa investe no bem-estar da população. As leis de renúncia fiscal, como a Rouanet, constituem ferramentas utilizadas pelas empresas para dar visibilidade favorável às marcas. Mas, por delegarem à iniciativa privada a decisão do uso de verbas públicas e por privilegiarem produções de fácil digestão, essa leis são contestadas. Núcleos artísticos que trabalham com pesquisa de linguagem e com assuntos algo polêmicos, tendem a ficar à margem desse sistema. Trata-se de discussão que envolve a questão ideológica e inflama corações e mentes. “A Lei Rouanet contempla o mercado, os interesses do marketing, empresariais, que oferecem retorno pequeno para a população”, diz o intérprete-criador Edson Calheiros. A coreógrafa Sofia Caval-

cante, do Núcleo Passo Livre, engrossa o coro contra princípios neoliberais. “Cultura não é sabão. E ela é supérflua para o capitalismo. Essas leis de renúncia fiscal são um absurdo: verba pública para bancos, para produtoras mexicanas. É muito dinheiro público para quem não precisa. Acho isso escandaloso. É uma visão de cultura excludente.” Sofia ainda vai mais longe. Para ela, essas condições adversas a criadores que se sustentam na investigação de linguagem se refletem na formação de público. “Há pouco espaço para a produção mais artesanal”, diz. Essa situação reforça as plateias de companhias que já possuem visibilidade na mídia – o que inclui dinheiro para pagar anúncios – e dificulta o acesso aos grupos que têm poucos recursos, criando um círculo vicioso. “Se não há oferta, não há público”, argumenta. Para o coreógrafo José Maria Carvalho, do Espaço Viver Dança & Cia., “é fundamental assegurar um espaço de liberdade para a criação [artística] do novo”, de renovação de ideias. E essa postura, evidentemente, não se configura em ambiente corporativo. “Mercado não se coaduna

com pesquisa. É um engodo achar que a iniciativa privada, cujos interesses estão ligados ao lucro e ao poder, vai garantir isso. É obrigação do Estado subvencionar a arte de pesquisa e não a arte de mercado.” Já a produtora Solange Borelli revela postura pragmática. “Por que o artista não aproveita o sistema capitalista para fazer sua obra transcender?”, questiona. “Temos de desbravar isso, de aprender a dialogar com essa esfera. Por que não abrir diálogo, se há dinheiro? Eu quero e tenho direito a aporte financeiro. Se o artista tem trajetória, é possível a empresa se interessar [por um projeto artístico escorado em experimentação de linguagem].” Solange garante que “há empresas porosas a esse tipo de discussão estética”: “Não é fácil [dialogar], mas é possível”. O xis da questão é cruzar o projeto artístico com os propósitos mercadológicos das empresas. De acordo com ela, não é necessário vender a alma – basta haver “verdade artística” na proposta. O coreógrafo e bailarino Marcos Moraes, do Núcleo Marcos Moraes, também não rejeita esse jogo. “Já que vivemos nesse sistema [capitalista], é bom não descartar nada”, pondera. (MF)

17


POLÍTICAS PÚBLICAS/ MURRO#01

MTC ocupa Funarte e Cooperativa de Dança discorda

18


19

“Não separamos poética de política. Arte não é mercadoria, não nos encaixamos no mercado, não produzimos lucro” O MOVIMENTO dos Trabalhadores da Cultura (MTC) perdeu a paciência e ocupou a sede paulistana da Fundação Nacional de Artes (Funarte) de 25 de julho a 1º de agosto a fim de marcar posição contra a política cultural do governo federal. De acordo com o ator Osvaldo Pinheiro, da Cia. Estável, mais de 2 mil pessoas estiveram na Funarte (incluindo residentes e flutuantes). Artistas de teatro, principalmente – a participação dos de dança foi pequena. Mobilizações populares organizadas nacionalmente, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), manifestaram apoio à ocupação. A Cooperativa Paulista de Dança, que aprovou em um primeiro momento a iniciativa, retirou o apoio. O Movimento Mobilização Dança não se posicionou. Por não se reconhecer representada na ocupação, a Cooperativa manteve atritos com o MTC e soltou uma carta aberta. “Acreditamos que as manifestações populares organizadas e o diálogo com os gestores públicos são ferramentas legítimas e importantes para contribuir no desenvolvimento da sociedade brasileira. Também acreditamos ser legítima a ocupação da Funarte (...) como forma de chamar a atenção para a paralisia e o risco de retrocesso que parecem emanar de ações ou declarações da nova gestão federal da Cultura, sem que uma pauta amadurecida em anos de discussão seja posta em prática. Mas discordamos das ações promovidas pelo (...) MTC, que se estabeleceu buscando (...) a condição de porta-voz das demandas da cultura no plano federal”, afirma. O MTC reivindica o fim das leis de renúncia fiscal e uma política de investimento direto do Estado. Pleiteia também a aprovação das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 236 (que prevê a cultura como direito social) e 150 (que garante o mínino de 2% do orçamento geral da União para o Ministério da Cultura). E defende a arte pública, definida pelo Manifesto dos Trabalhadores da Cultura, divulgado pelo MTC, como “aquela financiada por dinheiro público, oferecida gratuitamente, acessível a amplas camadas da população – arte feita para o povo”. “O objetivo (da ocupação) é unir a classe em torno de uma luta maior, não imediatis-

ta, pela abertura de programas (estabelecidos em lei com orçamentos fixos) e não um único, como a Lei Rouanet”, declara o ator e diretor Caio Martinez, da Trupe Olho da Rua. A atriz e produtora Natália Siufi, do Grupo Teatral Parlendas, complementa: “Queremos sair da política de editais, de gabinete”. Isso significa garantir a continuidade de projetos artísticos interrompidos por serem gerados durante uma gestão pública que se esvai quando da alternância do poder político – quando uma nova administração promove uma virada de mesa. O manifesto critica a postura do Estado em relação à cultura. “A produção artística vive uma situação de estrangulamento que é resultado da mercantilização imposta à cultura e à sociedade brasileiras. O Estado prioriza o capital (...). É esse discurso que confunde (...) incentivo à cultura com Imposto de Renda doado para o marketing, servindo a propaganda de grandes corporações. Por meio da renúncia fiscal – em leis como a Lei Rouanet –, os governos transferiram a administração de dinheiro público destinado à produção cultural para as mãos das empresas. Dinheiro público utilizado com critérios de interesses privados”, afirma. O texto sugere, portanto, que o MTC trata o assunto sob vigoroso caráter ideológico – o que remete às batalhas socialistas. “Há uma disputa no campo simbólico”, confirma Martinez. “Não separamos poética de política. Arte não é mercadoria, não nos encaixamos no mercado, não produzimos lucro”, diz Natália. Para ela, toda ação humana possui um sentido ideológico: “O capitalismo é perverso porque finge uma neutralidade que não existe”. “Luta de classes” é uma expressão usada pelos dois, e eles asseguram que o MTC não possui vínculo partidário. O presidente da Funarte, Antonio Grassi, reagiu em 27 de julho por meio de carta publicada no sítio eletrônico da instituição. “Os principais pontos expressos no manifesto (...) encontram-se em discussão no Congresso Nacional. É importante que o debate extrapole os limites dos artistas e fazedores de cultura e chegue aos mais amplos setores da sociedade. Protestos legítimos auxiliam neste processo. Entretanto, quero ressaltar

algumas atitudes que não parecem coadunar com o espírito da luta comum dos artistas brasileiros. Cerrar os portões da Funarte – com correntes e cadeados – ofende nossa história de luta pela liberdade. Reitero a ampla disposição para o diálogo com os movimentos populares, conforme orientação da presidenta Dilma, da ministra Ana de Hollanda (...)”, afirmou. A ocupação culminou em 1º de agosto com um cortejo que saiu da Funarte, em Campos Elíseos, em direção ao Itaú Cultural – conforme a atriz e diretora Andressa Ferrarezi, da Cia. Estável, “um signo da cultura privada” –, na Avenida Paulista. Muitos dos cerca de 400 artistas que participaram da comitiva levavam como adereços cênicos assentos de vasos sanitários – contraponto ao “templo do mercado”, à “cultura transformada em mercadoria”, segundo alguns dos bordões utilizados. Última estrofe de uma música composta para a ocasião: “Descarga, gravata, fio dental / Produtor cultural / É o dinheiro global / Mas não saia do seu posto: / O seu imposto também traz / Galã internacionaaaaaal!”. O MTC avisa que esse foi o primeiro ato – a luta continua.

MTC contra cultura privada


INTERSECÇÃO/ MURRO#01

POR/ MAURO FERNANDO

20

DANÇA E CINEMA Duas linguagens artísticas e sua conexão intrínseca

“Luzes da Cidade”, de Charles Chaplin CRIADA A PARTIR DA INVENÇÃO do cinematógrafo – o aparelho permite a projeção de sequências de fotogramas que criam a ilusão de movimento – no fim do século XIX, a linguagem cinematográfica é conhecida como a “sétima arte”. Os irmãos Lumière – Auguste (1862-1954) e Louis (1964-1948) –, franceses, patentearam o cinematógrafo e realizaram em 1895, em Paris, a sessão considerada pela maioria dos pesquisadores o marco inicial do cinema. A cinematografia estadunidense, o expressionismo alemão, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa, a vanguarda

russa estabeleceram paradigmas que influenciam gerações de artistas de várias áreas. Cunhado no início do século XX pelo teórico italiano Ricciotto Canudo (1877-1923), o termo “sétima arte” indica que o cinema agrega outras linguagens artísticas, como dança, literatura, música e teatro. A trajetória da linguagem cinematográfica aponta que essa intersecção de expressões artísticas existe desde o cinema mudo. A dança, por exemplo, está presente na confecção de comédias, musicais e tragédias de criadores talentosos (e tão díspares) como o inglês Charles Chaplin (1889-1977), o es-

panhol Carlos Saura, o dinamarquês Lars von Trier e o estadunidense Robert Altman (1925-2006). Chaplin define Luzes da Cidade (City Lights, 1931), nos créditos de apresentação, como uma comédia romântica em pantomima. O Dicionário do Teatro Brasileiro (coordenação de J. Guinsburg, João Roberto Faria e Mariangela Alves de Lima) explica pantomima: “É a representação de emoções, de atos e de várias situações humanas somente por meio dos movimentos do corpo, dos gestos e dos passos”. “Na França e na Inglaterra, durante as primeiras décadas do século XVIII,


EPÍLOGO/ POR KISSO/ mondokisso.blogspot.com

“Carmen”, de Carlos Saura

dava-se aos balés clássicos o mesmo nome de pantomimas”, complementa o verbete, assinado por Carlos Eugênio de Moura. “No século XX”, registra o Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, “os melhores exemplos [de pantomima] encontram-se nos filmes burlescos de B. KEATON e C. CHAPLIN”. As películas passaram a adotar o som em 1927, mas Chaplin manteve Luzes da Cidade sob a égide do cinema mudo, o que o permitiu continuar explorando os recursos – entre eles, as inúmeras possibilidades que a expressão corporal evoca – que fizeram de Carlitos o grande clown do século XX. O filme está centralizado no amor de Carlitos por uma florista cega (Virginia Cherrill, 1908-1996). A fim de obter o dinheiro necessário para pagar o aluguel da casa onde ela mora e impedir o despejo – e custear a operação que a fará enxergar –, ele se candidata a uma bolsa de boxeador. Cria-se sobre o ringue uma das cenas memoráveis da película – uma coreografia cômica que envolve Carlitos, seu oponente (Hank Mann, 1887-1971) e o árbitro da luta (Eddie Baker, 1897-1968). Saura declarou sua paixão pelo flamenco – dança e música características da alma cigana, um dos pilares da cultura espanhola – por meio da trilogia formada por Bodas de Sangue (Bodas de Sangre, 1981), Carmen (Carmen, 1983) e Amor Bruxo (El Amor Brujo, 1986). Contou com a inestimável parceria de Antonio Gades (1936-2004) – que renovou a tradição do flamenco –, responsável pelas coreografias. O sentimento trágico aflora com

21

“Dançando no Escuro”, de Lars von Trier

uma rara potência nos três filmes. Em Bodas de Sangue, adaptação da peça de Federico García Lorca (1898-1936), Saura faz do flamenco o suporte da narrativa. Os bailarinos se apresentam logo na primeira sequência – no camarim, onde se preparam para transpor a obra de Lorca para a dança. No dia de seu casamento, a noiva (Cristina Hoyos) reencontra seu grande amor, Leonardo (Gades). Resolvem fugir, e o noivo (Juan Antonio Jiménez) parte atrás dos dois em busca da recuperação da honra. A intensidade dramática da coreografia é levada ao limite na cena do duelo entre Leonardo e o noivo. Em Carmen, transposição da novela de Prosper Merimée (1803-1870) e da ópera de Georges Bizet (1838-1875), há profundo jogo metalinguístico. Os personagens se confundem com os personagens que representam, e os planos da realidade e da ficção se contaminam. Gades é o coreógrafo que procura uma bailarina jovem para o papel de Carmen. Encontra na voluptuosa Laura del Sol a mulher ideal para interpretar a cigana volúvel de Merimée. Paco de Lucía comparece com seu violão flamenco para emoldurar as tensões dramáticas que a coreografia apresenta. Amor Bruxo tem suas raízes na música de Manuel de Falla (1876-1946) e no libreto de Gregorio Martínez Sierra (1881-1947). O cenário é uma aldeia cigana. José (Jiménez) e Candela (Cristina) casam-se anos depois de terem sido prometidos um ao outro por seus pais. Após o assassinato de José em uma briga, Carmelo (Gades) declara seu amor

“De Corpo e Alma”, de Robert Altman

por Candela. Mas ela está presa ao fantasma do marido – toda noite vai ao encontro dele para dançar. Ex-amante de José, Lucía (Laura) completa o quarteto. A sintaxe estética do flamenco e seu vocabulário humano – a paixão, o sofrimento –, enfim, sustentam as três narrativas. Von Trier usa em Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000) a estrutura dos musicais hollywoodianos a fim de, em chave de paródia, tecer uma crítica à indústria cultural que eles representam – o escapismo como instrumento de alienação. O filme é ambientado nos anos 1960 em uma pequena cidade estadunidense, onde a imigrante Selma (Björk) se estabelece. Apesar de saber que perde gradativamente a visão, ensaia sapateado em uma produção amadora. Imagina números de dança enquanto trabalha em uma fábrica. Nada de horrível acontece nos musicais, diz. Sua vida, porém, se encaminha para um final trágico. De Corpo e Alma (The Company, 2003), sob a direção de Altman, enfoca as relações humanas que permeiam o cotidiano de uma companhia de dança – no caso, o Joffrey Ballet, de Chicago. Em meio a ensaios, afloram a preocupação do diretor artístico com o estouro orçamentário, as metáforas de uma montagem em gestação que o coreógrafo tem de explicar ao elenco – o que remete à capacidade do público de assimilar hermetismos – e, sobretudo, egos. Protagonizada pela bailarina Ry (Neve Campbell), a película se aproxima do gênero documentário.


DIAFRAGMA/ MURRO#01

Vestes

POR/ GAL OPPIDO

22


OS SENTIDOS DA PELE ESTE CONJUNTO DE ENSAIOS alinha algumas imersões onde o corpo é sempre remetido à sua condição original, desprovido de vestes, sem ferramentas, desprotegido em vulnerabilidade animal, tal qual em passado recente quando era sujeito a toda sorte de ações severas e mesmo irreversíveis por parte da natureza e do próprio homem as quais hoje estão (em parte?) dominadas pela capacidade de intelecção do homem, levando-o à condição de manipulador e processador em escala planetária das matérias que compõem o mundo cotidianamente conhecido. É uma especulação da medida em que o animal humano dotado de particular inteligência revela através do seu corpo, como campo de prova, provação e devoção, expondo seus desejos, temores, origens, percursos, temporalidade e mortalidade. Hoje, nossa capacidade de sintetizar a matéria quase que nos gabarita a vencer a finitude do nosso corpo. A idéia de perenidade instalada por um desenho na caverna, pela mumificação, pela escultura e pintura, pelo registro fotográfico, cinematográfico, holográfico, fonográfico e televisivo, assim como os processos de clonagem humana, aproxima o homem de seus desejos bíblicos de eternidade e onipresença. É um exercício de dissecação em vida, com o corpo pulsante de significados, separando suas partes como uma singela guilhotina, diferente da original onde segundo Daniel Arasse (*) foi a primeira máquina de tirar retratos pois separava do corpo a face da vítima, expondo sua identidade como na foto 3 x 4 que é papel, mas que revela a vida contida na imagem. (GO)

Lembra, corpo... É TÃO PROFUNDO o mergulho de Gal Oppido nas questões do corpo, nas derivações do corpo, nos movimentos que o corpo provoca em torno de si mesmo, nos outros, na sua geografia tão privada... É tão profundo o firmamento memorial em suas imagens, que o presente (im)perfeito do corpo rasgado pelas incertezas do tempo surpreenda, ao acolher, numa mesma intenção, um coração-cicatriz. Ou que na cabeça rompida de um lado até o outro, pausadamente paralela à costura que refaz o cérebro, esteja o diadema feito em prata... É tão profundo esse mergulho que suas imagens alcançam o alvo de percepção de um escultor em busca desse mesmo corpo, o grande tema universal. Numa fotografia do ateliê de Rodin, feita por Jacques Ernest Bulloz, em 1904, um plano aberto revela uma seqü.ncia de corpos, uns solitários, outros não, uns ainda no gesso, outros indefinidos, em processo, mas todos eles vivos, já pousada a mão do mestre sobre seus músculos, num movimento que apenas a escultura moderna de Rodin foi, e é, capaz de provocar. Algumas fotografias de Gal Oppido, atentamente olhadas em seus planos fechados, têm algo de tão provocador quanto as esculturas do artista francês. Talvez o ritual nas formas, talvez o jogo de luz, talvez a atmosfera, talvez a poesia silenciosa da matéria retorcida em negativo e positivo. Entre aqueles outros corpos tão perfeitos, e os que aqui estão, “criados” pelo fotógrafo, existe o bisturi do tempo deixando suas marcas, um a um, história por história. É justamente essa ausência de medo, do que não é totalmente belo (sendo?), que torna Prata Sobre Pele Sobre Prata um ensaio tão avassalador. O corpo alterado, o tiro, a faca, o corte, o piercing atravessando o membro, a tatuagem onde a mulher nuavestida escreve para sempre os louros, o cetro, o tombo, tudo isso, toda essa “alteração” na alma, na pele, na carne, no osso, aqui, cuidadosamente, veste-se de objetos que não são objetos, mas sim parte desses mesmos corpos, veias, enigmas, estranheza, capacidade, solução de desejo: a prata que Hugo Curti fundiu para pertencer aos corpos que agora pertencem definitivamente às fotografias de Gal Oppido. Então, com sua solidão cósmica ou sua leitura de signos, Prata Sobre Pele Sobre Prata torna-se algo muito além de uma exposição - uma corrida contra o tempo, uma assemblage vista de dentro, um pacto entre dor e prazer, um grito parado no ar?

Diógenes Moura Curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo

23


DIAFRAGMA/ MURRO#01

Luciana e a Lei da Gravidade

24


Desprotegido em vulnerabilidade animal, tal qual em passado recente quando era sujeito a toda sorte de ações severas e mesmo irreversíveis por parte da natureza e do próprio homem

Luciana e a Lei da Gravidade

25


DIAFRAGMA/ MURRO#01

Prata Sobre Pele Sobre “Prata”

26


“A guilhotina foi a primeira máquina de tirar retratos pois separava do corpo a face da vítima, expondo sua identidade como na foto 3 x 4 que é papel, mas que revela a vida contida na imagem” Daniel Arasse

Prata Sobre Pele Sobre “Prata”

27


ENTREVISTA/ MURRO#01

COM/ FABIANO CARNEIRO

28


29

MAIS DO MESMO O COORDENADOR de Dança da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Fabiano Carneiro, assumiu o cargo em agosto de 2010. Possui formação em administração de empresas e especialização em administração esportiva e cultural. Integra a equipe da Coordenação de Dança desde 2007 e, afirma, “acumula a experiência de 20 anos como gestor cultural no setor público”. Também integra o Grupo de Trabalho do Ministério da Cultura para elaboração de propostas da área artística para a Copa do Mundo de 2014. Em entrevista concedida a Murro em Ponta de Faca por email, Carneiro aponta que o foco da Funarte em relação à dança é dar “continuidade às ações já testadas e com as quais a categoria conta”. Sinaliza que o Ministério da Cultura e a Funarte têm suficiente “prestígio com o Planalto” para brigar por mais verba para o setor e reconhece que a oferta de recursos é insuficiente para atender à demanda da dança. Carneiro fala também em “novas parcerias” e em “novas ações”, mas não especifica quais, e se esquiva de questão sobre encontro promovido pela Funarte em São Paulo que excluiu artistas da dança.

MURRO EM PONTA DE FACA – Qual é o norte da Funarte em relação à dança, uma vez que a classe reclama por uma política pública mais consistente nos níveis municipal, estadual e federal? FABIANO CARNEIRO – Temos como estratégia ouvir a necessidade da categoria através dos núcleos, grupos, colegiados setoriais de acordo com a especificidade do local e a partir daí propormos as ações. Com a criação das Câmaras Setoriais de Dança, em 2005, a Funarte tem utilizado essa entidade como órgão consultivo das suas ações, assim como houve também os grupos, companhias, etc. Também a experiência acumulada com o resultado artístico dos editais nos permite mapear demandas e carências que procuramos suprir a cada novo edital. Vale lembrar que, agora, os prêmios concedidos pela Funarte, quer de montagem ou de circulação, têm extensão nacional e proporcionalidade regional , sempre obedecendo à demanda. MURRO – Quais os projetos de dança em gestação na Funarte? Qual o foco, editais esporádicos ou a premiação da continuidade de trabalhos artísticos? CARNEIRO – O nosso foco é o de darmos continuidade às ações já testadas e com as quais a categoria conta. Temos vários projetos específicos de dança que serão desenvolvidos ainda este ano. Lançamos os editais de ocupação dos espaços da Funarte: Teatro Cacilda Becker (RJ) e Sala René Gumiel (SP) (exclusivos para a dança), Teatro Dulcina (RJ) (circo, dança e teatro),

Teatro Plínio Marcos (BR) (circo, dança e teatro) e Galpão 3 (Funarte BH) (circo, dança e teatro). Lançaremos em breve os editais para Bolsa de Residência Interamerica e o Prêmio Funarte Klauss Vianna 2011, com aumento de 50 % do orçamento em relação a 2010. O Edital do Procultura está sendo analisado, com prêmios de produção artística, circulação de espetáculos e programação de espaços cênicos, focado na revitalização de espaços já existentes e que por razões econômicas estão fechados ou funcionando precariamente. Teremos, ainda, o Iberescena 2011, as oficinas de aperfeiçoamento e capacitação e já está em andamento o projeto Outras Danças Brasil/Chile e Colômbia 2011, que consiste em duas residências, uma mostra internacional de solos e duos e encontros de gestores e intérpretes na capital cearense. Mais uma vez investiremos, também, no apoio ao circuito dos festivais. Todos estes projetos que já estão em andamento, estão disponíveis no site www.funarte.gov.br MURRO – A verba destinada para a dança neste ano é suficiente para cobrir a demanda dessa linguagem artística? Ou a Funarte precisa ser criativa (como os artistas) para satisfazer a demanda de pesquisa, produção, difusão e circulação dessa categoria? CARNEIRO – A demanda é sempre maior do que a verba, mas sabemos também que estamos enfrentando um corte orçamentário nas esferas municipal, estadual e nacional. Procuramos atender à demanda otimizando as ações e buscando novas parcerias.


ENTREVISTA/ MURRO#01

MURRO – A Funarte mantém diálogo com o Colegiado Setorial de Dança? E com os movimentos que têm aparecido de Norte a Sul do País? CARNEIRO – Sim, a Funarte vem mantendo um diálogo constante com o Colegiado Setorial de Dança. Além disso, tenho estado presente nos festivais, de Norte a Sul do País, e os movimentos regionais, onde o encontro com a categoria nos municia para pensarmos as futuras ações. Por exemplo, um novo edital, específico para novos talentos – companhia ou grupos de até cinco anos de formação – foi pensado a partir dessa experiência e em todos os locais tenho anunciado as ações previstas da Funarte. É importante ressaltar que a Coordenação de Dança da Funarte tem servido de referência e de consulta para conquistas de políticas públicas para a Dança dentro dos movimentos regionais. MURRO – Qual a importância do Plano Setorial de Dança? CARNEIRO – O Plano Setorial de Dança é de fundamental importância, pois este documento foi debatido pelos fóruns de todo o Brasil, por meio da Câmara Setorial de Dança a partir de 2005, debatido entre 2008 e 2010 no Colegiado Setorial de Dança, órgão colegiado do Conselho Nacional de Política Cultural. É o primeiro plano político governamental, escrito com a participação da sociedade civil, adotado como políticas públicas de Estado para a Dança, em toda nossa história, no Brasil. MURRO – O corte no orçamento do ministé-

30

rio da Cultura para este ano, de R$ 2,2 bilhões para R$ 800 milhões, atingiu os artistas da área?

MURRO – Qual o papel social da arte, gerar empregos ou elevar o espírito crítico da população?

CARNEIRO – Todo tipo de corte orçamentário atinge os artistas e gestores, mas procuramos cobrir os cortes elaborando novas ações.

CARNEIRO – O papel da Funarte ao estabelecer as suas políticas públicas, para quaisquer áreas, é dar condições para que as diferentes expressões artísticas, oriundas dos mais diferentes lugares, apareçam, circulem, interajam. É claro que se isso acontece – criação, produção e circulação – os empregos afloram e o espírito crítico se apura.

MURRO – A liberação de R$ 4,5 milhões para o Klauss Vianna neste ano, recentemente anunciada, preenche a lacuna aberta por editais previstos e não lançados e cobre pendências anteriores? CARNEIRO – Desde março deste ano, conseguimos pagar todos os editais que estavam em aberto na área da dança. O aumento do valor do KV 2011 é uma conquista, mas independente do prêmio, pretendemos realizar outras ações de continuidade. MURRO – A Funarte e o Ministério da Cultura possuem força política suficiente no Planalto para brigar por mais verba para implementar projetos de dança? CARNEIRO – Sem dúvida. A volta da Ana de Holanda – nossa ex-diretora, agora ministra da Cultura –, assim como a do Antônio Grassi à presidência da Funarte, por si só significa prestígio com o Planalto. MURRO – A Funarte trabalha com conceitos da chamada economia da cultura? CARNEIRO – Trabalhamos não somente com o conceito de economia da cultura, mas também com indicativos práticos em sintonia com o Ministério da Cultura.

MURRO – O sr., na função de coordenador de Dança da Funarte, viaja pelo País a fim de observar de perto a realidade e as demandas da dança? CARNEIRO – Viajo mais do que posso e menos do que gostaria. Nenhuma tecnologia substitui a presença, o sentimento de “pertencimento” que se tem quando se assiste, por exemplo, a um espetáculo de dança folclórica da cidade mais alemã do Brasil (Pomerode), no interior de Santa Catarina, a um festival de hip-hop no Norte do País ou aos festivais de dança contemporânea pelo Brasil. Também o “muito prazer” que dizemos pessoalmente aos secretários estaduais ou municipais de Cultura acabam por abrir novos viezes, novas parcerias, com excelentes frutos. Agora mesmo estamos oferecendo 20 oficinas práticas, em parceria com as secretarias municipais e estaduais, por todo o Brasil. Eu acredito muito no modelo de gestão “in loco e in foco”. MURRO – A cultura pode ser regida por regras mercadológicas?


“Sem dúvida. A volta da Ana de Holanda – nossa ex-diretora, agora ministra da Cultura –, assim como a do Antônio Grassi à presidência da Funarte, por si só significa prestígio com o Planalto”

CARNEIRO - Minha formação é em Administração de Empresas, e acredito que as regras mercadológicas pode ser um dos indicativos, mas temos outros que podem nos ajudar a traçar as metas. MURRO – O governo está atento aos problemas dos trabalhadores da cultura ou essa é uma questão menor? CARNEIRO – Nossos bravos servidores, a maioria ainda oriunda das antigas Fundações – de artes cênicas (Fundacen), do cinema (FCB) e da própria ex-Funarte (que acabou renomeando as três extintas pelo governo Collor) – continuam na sua batalha por um plano de carreira próprio da Cultura, aperfeiçoamento profissional e, é claro, por melhores salários. Houve um único concurso público para preencher as muitas vagas existentes, mas não foi o suficiente. O nosso déficit de funcionários é grande. O governo sabe disso e reconhece que somos funcionários “diferenciados”, que transitam da pesquisa às aulas da Escola Nacional de Circo, por exemplo. MURRO – A Funarte convocou recentemente encontro em São Paulo com artistas de circo e de teatro. Por que a dança ficou de fora? Qual foi o critério? CARNEIRO – Tivemos um recente encontro setorial da dança em Belém do Pará, com as presenças do presidente da Funarte, Antonio Grassi, do diretor do Centro de Artes Cênicas, Antonio Gilberto, e do secretário de Políticas Culturais, Sérgio Mamberti.

MURRO – Por que persiste a idéia de que as produções de teatro precisam de mais dinheiro que as de dança? Fazer teatro exige custos maiores que fazer dança? CARNEIRO – Não acredito que as produções de teatro precisem de mais dinheiro do que as de dança, são produções distintas. Temos várias produções de dança que custam tanto ou mais do que as de teatro. O que acontece é que um dos indicativos que temos na hora de pleitearmos mais verba são as inscrições dos nossos editais e aí temos um número que é bem significativo, as inscrições do teatro são quase 3 vezes maior do que as de dança. MURRO – A Funarte, ao longo dos anos, construiu uma imagem de gigante adormecido perante os artistas. Como o sr. lida com isso? CARNEIRO – Essa imagem é desmentida pelo alcance das nossas ações, cada vez mais se embrenhando por regiões longínquas, nos quatro cantos do País, pelo alargamento das nossas fronteiras, através dos festivais internacionais e das bolsas de residência artística no exterior, pelo banco de dados disponível em nossa página na internet e que contabiliza muito mais de 2 mil artistas e técnicos cadastrados e, principalmente, pelo entusiasmo com que lidamos no dia-a-dia que em nada lembra um gigante adormecido. Com tudo isto a Coordenação de Dança da Funarte tem apostado no contato direto com os artistas e com o objetivo de cada vez mais aperfeiçoar as nossas ações.

31


OUTRA MARGEM/ MURRO#01

POR/ HÉLVIO TAMOIO

32

VEJO UM MURO VELHO E UM SINAL DE GLÓRIA DESDE QUE VOLTEI PARA CASA, o interior paulista, como diz o velho e apocalíptico poema de Américo de Souza, o mundo nunca mais haverá de ser o mesmo. Com o tanto de obras que trombamos pelas ruas e placas anunciando um amontoado de outras novidades, as vezes, parece que estamos num formigueiro pisado de botas. O mundo das celebridades (sic) das pequenas, pacatas e medias urbes interioranas agora contam com cadernos semanais de fotos e amenidades e, os citadinos mais articulados, com revistas semanais reluzindo empreendimentos e atualizações comerciais médicas que, vez ou outra, precisamos nos acomodar no bar do Béba para saber que não estamos num oásis californiano. No campo da arte e da cultura limitaram os espaços e ouvidos para as mumunhas e

os discursos de coitadismo que imperava na relação com o poder local. Quem quiser sobreviver da coisa tem que ser membro do estabelecido, ter sua sede, estar em “foco” na mídia e, principalmente, ser integrado a algum coletivo em prol de alguma arcaica novidade. Os mais entendidos se articulam e confessam rezas em setoriais temáticas. O tema? Não importa, o que vale é estar inserido, mesmo que a maioria das pautas continuem sendo ditadas pela corte estabelecida no planalto central. Neste ziriguidum de atualidades - volta e meia vou ver - a estratégia tem sido a necessária revitalização de memorias e acúmulos, senão acabamos punindo-nos pela incapacidade de não fazermos parte deste carrocel collorido com traços de caras pintadas. Os poucos diálogos que, ainda, insistem em

perambular a cachola dos desincompatibilizados, leva-nos a reforçar aquilo que temos de peculiar e, como insiste o parceiro Antônio Cândido, como paulista o reforço de que nossa história não se limita a desterramentos e estupros. No campo da política cultural uma história que ronda sempre os miolos tem a ver com as apresentações das escolas de dança nos finais de anos e o encerramento das pautas no teatro municipal. Travestido de serviços gerais da cultura numa fundação de arte era comum ver nosso chefete com a cara amarrada no mês de agosto. Quando questionado o amargor na cara do sujeito, dizia ele: Não aguento mais esta coisa de fechar os dois últimos e mais lucrativos meses do ano para estas escolinhas e suas menininhas pulando no palco para ser aplaudi-


33

“Não aguento mais esta coisa de fechar os dois últimos e mais lucrativos meses do ano para estas escolinhas e suas menininhas pulando no palco para ser aplaudidas pelos pais e as professoras receberem flores. Isto não é da nossa praia”

das pelos pais e as professoras receberem flores. Isto não é da nossa praia. As escolas tem recursos, porque não alugam salões de festas ao invés de trancar as nossas portas? Berros acalmados, entrava o presidente da Fundação falando do prefeito, da mulher de um médico, da tia do vereador e o bancário aposentado se acalmava até o ano seguinte. Este roteiro foram os primeiros sinais de que existiam demandas e as pautas precisavam ser estabelecidas num possível plano de ação artística cultural na cidade. Ao voltar para a realidade real, como nos pede o obtuso comandante, mesmo não tendo acompanhado as diretrizes nas agendas teatrais, cartazes, banners vidros dos onibus e, para os mais enricados, outdoores revelam que o cenário não é mais o mesmo. Pelo menos, indicam os investimentos nas produções e nas escolhas temáticas das chamadas apresentações de finais de ano. As investidas, geralmente fitinhas da Disney e outras guloseimas, passaram a contar com iluminadores, coreógrafos e, num caso extremado, dramaturgos. Ou seja, profissionais qualificados e remunerados. Ou estarei enganado? A perturbação com as portas do teatro fechadas e as necessidades da política de balcão nos 90 obrigaram artistas, diletantes e amigos a formarem rodas, encontros, fóruns, câmaras setoriais, enfrentamento nos Conselhos Nacionais, mobilização que dança, reconhecimento de classe, lei de fomento e, com o debate, alguns saíram para a rua na busca de reconhecimentos e diálogos. Transeuntes, editais, fuligens, produtoras, carrinhos de pipocas, buracos, borderôs,

andarilhos, biriba, mamelucos subiram ao palco e ganharam até prédio na capital com o nome da dança. Com isto tudo, na colônia os ventos trafegam alamedas tortuosas e sem vias de termos uma pista de para onde estamos nos encaminhando. Arremedos de chamamentos públicos, por exemplo, acabam-se como estratégias de acomodação e cooptação de antenados ou tranquilizantes dos perturbadores do sossego barnabé. Ou seja, uma prática oportuna nociva de encaminhamentos para algo que poderia apontar para a construção de uma política cultural permanente e sustentável. Porém, faz bem lembrar Milton Santos quando dizia que somos um povo amalgamado na perversa cultura de não ter a crítica como elemento, sequer simbólico, no embate de ideias e a academia é a ilustração mais corrosiva desta missiva. Portanto, prevalece o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. No campo da criação algumas parcas iniciativas tentam dialogar com o seu entorno e, estas quando acontecem, são ovacionadas com mérito e louvor como assistimos numa apresentação recente de diálogos abertos de coreógrafos no palco sonhado de um Sesc. O público sintonizado não falou ao celular, não cutucou a cadeira, calou os choramingos dos bebes que continuam sendo levados às apresentações e, principalmente, aplaudiu com sustento os que buscam desafios e fez beiços aos acomodados. No que tange a formação, apesar de tantas perambulações que fazemos como público nos cantos paulistas, não colhemos e nem cozinhamos rupturas ululantes. Vemos

uma escola municipal ali ameaça aprofundamentos, mas logo muda a gestão e o balde volta ao raso; dois ou três fazedores radicalizam experimentações sonhando com uma bolsa permanente no exterior e aquela matrona municipal compra a capa e todas as páginas principais da revista para que os paitrocínicos mantenham-se informados. Caro leitor, a dança, a música, o teatro e as insustentáveis artes visuais continuam carregando suas pedras na capital e no interior. Vez em quando vão ao cume observando paisagens, ameaçam vôos e até rompimentos das gaiolas. Entusiasmados com os ventos e o visual montam companhias, porém não percebem que as pedras, mais uma vez, deslizam aceleradas ao planalto desmatado da floresta silenciosa dos canaviais. No descompasso desta marcha tosca a arte continua insistindo em representar a vida como ela é, no entanto, não precisamos aceitá-la. Então que venha mais um murro em ponta de faca ou fortes marretadas neste muro velho alimentado por almas sebosas e seus gabinetes mágicos. Afinal, a insatisfação é o nosso estímulo e o mote para que a existência não se reduza a meias verdades para a constituição de uma eternidade possível.

Hélvio Tamoio é produtor e apresentador do programa Paracatuzum.


BIBLIOTECA/ MURRO#01

34

DANÇA NAS LETRAS A DANÇA

KLAUSS VIANNA

A ESCRITA DA DANÇA

SUMMUS

ANA LÍGIA TRINDADE

Um dos maiores nomes da dança no Brasil, Vianna apresenta, enquanto resultado de rigoroso trabalho de estudo, experimentação, observação e reflexão, as possibilidades expressivas do movimento. A obra analisa o corpo e suas implicações anatômicas, funcionais e psicológicas. Vianna, um pedagogo do corpo, também realizou experiências no teatro.

EDITORA DA ULBRA

DANÇANDO NA ESCOLA

ANA LÍGIA TRINDADE

A autora propõe um registro detalhado do movimento, tal como a pauta e os sinais musicais formalizam a música. O livro investiga a conveniência do conhecimento de notações registradas para a criação de obras coreográficas e para a conservação das atividades da dança.

AS METÁFORAS DO CORPO EM CENA

CORTEZ

SANDRA MEYER NUNES

A obra discute questões concernentes à epistemologia, à sociologia e à educação no que diz respeito ao ensino da dança no Brasil. Trata da necessidade de embutir no ato de transmissão de conhecimento aspectos críticos e transformadores que revelem um relacionamento sadio entre arte, corpo, escola, indivíduo e sociedade. Também questiona os caminhos que o ensino dança no País toma.

ANNABLUME

A obra estabelece relações entre o método de Konstantin Stanilávski de preparação do ator, talvez o mais influente da história recente do teatro, e os estudos do corpo na contemporaneidade. A autora analisa o conceito de ação física tendo como referência maior o dualismo corpo-mente.


EPÍLOGO/ MURRO#01 POR/ KISSO

mondokisso.blogspot.com


POLÍTICAS PÚBLICAS / A felicidade bate à porta?

ANA TEIXEIRA / As companhias 2 na berlinda

KURT JOOSS / Revolução de linguagem

BALLET STAGIUM / Conhecendo um país e seu povo

INTERSECÇÃO / A dança e o cinema

GAL OPPIDO / Imagens do corpo

KISSO / A política do burro


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.