Revista MORTAL Nº 000

Page 1

A T S I REV RTAL MO A + MÚSIC

A + CINEM

LITERATUR

R$ 7,00 # 000 - 2010

ATRO E +

GRAFIA + TE

A + FOTO A + POLÍTIC

MÁRIO BORTOLOTTO ANDRÉ LINARDI TIBOR MORICZ IZABEL BUENO RAUDA GRACO MÁRCIO CASTRO GUILHERME SANTOS MARPESSA DE CASTRO TALITA TALISSA LUCAS CAMPOS CARDOSO SHIKO (DERBY BLUE) ALLAN SIEBER MÁRIO AUGUSTO SÉRGIO GODOY WILLIAM S. BURROUGHS



INSIGHT REVISTA MORTAL Nº000 OUTUBRO DE 2010

C

VOCÊ, VOCÊ E VOCÊ! JUNTE-SE A NÓS, CONTRIBUA COM O PROJETO, PARTICIPE DA REVISTA MORTAL!

amaradas, é com entusiasmo que lhes apresento o número zero da MORTAL, uma revista de ideias, visionária, amante da contracultura. MORTAL nasce inspirada no slogan: “Descontente com a mídia? Seja a mídia!”. Nossa publicação tem ambiciosas pretensões e a primeira materializa-se já nesta edição, que é a de ser um veículo independente, uma revista forjada no ABC paulista, disposta a debater a cultura, a política e a arte em suas mais variadas manifestações. Nesta edição, a Revista MORTAL traz alguns dos grandes nomes do panorama artístico brasileiro. Este precioso extrato mostra de imediato nossa identidade, profundamente contemporânea, ligada aos grandes temas de nossa época. De Porto Alegre, o amigo Cardoso nos manda sua utopia; do Rio de Janeiro vem o chapa Allan Sieber, um dos WWW.REVISTAMORTAL.COM

melhores cartunistas do Brasil, com sua crítica mordaz. Direto de João Pessoa, o artista plástico Shiko nos dá uma bela entrevista sobre sua vida e obra. De Santo André, temos os fotógrafos Lucas Campos e André Linardi, a contista Marpessa de Castro, o Coletivo Zona Autônoma e Mário Augusto, do movimento Escola Livre em Alerta. De São Paulo, o amigo de longa data, Mário Bortolotto, nos traz a narrativa dramática do episódio que quase lhe tirou a vida; e Tibor Moricz, o húngaro da Praia Grande, nos apavora com seu conto de ficção científica perturbador. E tem mais, muito mais. A revista está sensacional! Aproveitem a viagem! Nós queremos ver ação! Jairo Costa Editor - Revista MORTAL 01


MORTAL # 000 OUTUBRO DE 2010 - R$ 7,00 EDITOR

07

Jairo Costa

PRODUZIDO POR Editora Interzone Cult www.interzonecult.com

EQUIPE MORTAL

Sérgio Godoy, Izabel Bueno, Jairo Costa

ROBERTO PIVA

REVISÃO

Izabel Batista Bueno

DIAGRAMAÇÃO/ PROJETO GRÁFICO

Jairo Costa

31

FOTOS

Lucas Campos, André Linardi, João I. Marcondes, Wikimedia Commons - Dennis J. Herring, Sueli Almeida

JORNALISTA RESPONSÁVEL

Marpessa de Castro MTB: 37.471

IZABEL BUENO

REDAÇÃO MORTAL

faleconosco@revistamortal.com www.revistamortal.com

© 2010 - REVISTA MORTAL

A reprodução do material contido nesta edição é permitida mediante solicitação por escrito encaminhada ao editor. A Revista MORTAL não se responsabiliza por opiniões/conceitos emitidos em matérias assinadas. Quaisquer questões sobre os textos deverão ser encaminhadas diretamente aos seus respectivos autores. Se você tiver interesse em colaborar com a revista, encaminhe seu material através de e-mail para a nossa redação. Esta publicação segue as normas do Novo Acordo Ortográfico. 02

43 SHIKO


23

17 MÁRIO BORTOLOTTO

CARDOSO

53 ESCOLA LIVRE DE TEATRO

09 BLACK BLOCK

61 NÚCLEO ZONA AUTÔNOMA WWW.REVISTAMORTAL.COM

68 ALLAN SIEBER 03


O

HOMEM NASCEU LIVRE E POR TODA A P DITO EM POETA EXPERIMENTAL COM APENAS UM ÚNICO PROBLEMA FILOSÓ VIDA VALE OU NÃO A PENA SER VIVIDA TAL DA FILOSOFIA - ALBERT CAMUS QUER O QUE PODE E FAZ O QUE LHE AGRADA - JE DEUS QUE QUER SER LOUVADO O TEMPO TODO TENDE ATINGIR ALGUMA COISA, É LIBERTAR AS PES SE SENTEM - JIM MORRISON * SÓ UM GRANDE ES ACREDITEM QUE PODEM SER FELIZES SEM DINHE TEME OVELHAS - ALEXANDRE, O GRANDE * A MÚS E LÁGRIMAS DOS OLHOS DA MULHER - BEETHOVEN QUE EU OS MANDE CORTAR - CAIUS CALÍGULA * VI * A AMIZADE DE UM ÚNICO SER HUMANO INTELIGE INSENSATOS - DEMÓCRITO * PARA VER UMA ESTR DE SI - FRIEDRICH NIETZSCHE * POLÍTICA É ESPE NÃO ESTAVA MENTINDO! ESTAVA ESCREVENDO FI MAIS INTERESSADOS NO LADO NEGRO DA VIDA, A SON * TODO HOMEM CARREGA DENTRO DE SI UM D ESCRAVO PELOS MEUS VÍCIOS E LIVRE PELOS MEU O QUE É DESORDEM, REVOLTA E CAOS, ME INTER PARECEM NÃO TER NENHUM SENTIDO. TALVEZ SE EXTERNA É O ÚNICO MODO DE REALIZAR A LIBERT


PARTE VIVE ACORRENTADO - ROUSSEAU * SÓ ACREVIDA EXPERIMENTAL - ROBERTO PIVA * EXISTE ÓFICO REALMENTE SÉRIO: O SUICÍDIO. JULGAR SE A A SIGNIFICA RESPONDER À QUESTÃO FUNDAMEN* O HOMEM VERDADEIRAMENTE LIVRE APENAS AN-PAUL SARTRE * NÃO POSSO ACREDITAR NUM FRIEDRICH NIETZSCHE * SE MINHA POESIA PRESSOAS DOS LIMITES EM QUE SE ENCONTRAM E QUE SNOBISMO ESPIRITUAL FAZ COM QUE AS PESSOAS EIRO - ALBERT CAMUS * UM AÇOUGUEIRO NUNCA SICA DEVE BROTAR FOGO DO CORAÇÃO DO HOMEM, N * ROMA É UMA CIDADE DE PESCOÇOS À ESPERA IOLÊNCIA É MINHA ÚLTIMA OPÇÃO - CHUCK NORIS ENTE É MELHOR DO QUE A AMIZADE DE TODOS OS RELA CINTILANTE É PRECISO TER UM CAOS DENTRO ERAR O CAVALO PASSAR - GETÚLIO VARGAS * EU ICÇÃO COM A BOCA - HOMER SIMPSON * ESTAMOS COISA MALIGNA, A COISA NOTURNA - JIM MORRIDITADOR E UM ANARQUISTA - PAUL VALÉRY * SOU US REMORSOS - JEAN-JACQUES ROUSSEAU * TUDO RESSA; E PARTICULARMENTE AS ATIVIDADES QUE EJAM O CAMINHO PARA A LIBERDADE. A REBELIÃO TAÇÃO INTERIOR - JIM MORRISON


ROBERTO PIVA IS DEATH! Foto: João I. Marcondes

POR RAUDA GRACO

Imagine-se frente a frente com Rimbaud, ou fitar os olhos de Álvarez de Azevedo... Trocar meia dúzia de palavras com Lautréamont, apertar a mão de Baudelaire ou pedir autógrafo pessoalmente para Edgar Allan Poe. Imagine sentar-se à mesa junto a Dante Alighieri, ouvir palestra de Sócrates ao pé de uma montanha, escutar as sonatas de Beethoven sendo executadas pelo próprio autor, ao piano. Imagine-se devidamente acomodado em uma das poltronas do “The Globe”, ao seu

lado Shakespeare, aguardando a estreia de Hamlet. Imagine-se ouvinte de William Blake, imagine-se confidente de Goethe, imagine-se parceiro de copo de James Joyce. Imagine-se. Em uma tarde ensolarada de 2007, tive a oportunidade de estar diante de um gênio de estatura igual à dos notáveis aqui citados. Esse encontro foi real e quem estava lá do outro lado era ninguém menos que Roberto Piva, o mítico poeta rebelde que perambulava pela cidade tomando vinhos,


PRAÇA DA REPÚBLICA DOS MEUS SONHOS

praticando orgias e tecendo poemas com o veneno do diabo. No dia 3 de julho, após um “tour de force” contra um câncer, Roberto Piva nos deixou. Neste modesto espaço, a revista MORTAL aplaude e homenageia o grande poeta, publicando um de seus mais assombrosos textos. MORTAL compromete-se a continuar divulgando sua obra perturbadora para as novas gerações. Roberto Piva está morto. Viva, Roberto Piva! RAUDAGRACO@GMAIL.COM

A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando na tarde de esterco Praça da República dos meus sonhos onde tudo se faz febre e pombas crucificadas onde beatificados vêm agitar as massas onde Garcia Lorca espera seu dentista onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão lábios coagulam sem estardalhaço os mictórios tomam um lugar na luz e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro há jovens pederastas embebidos em lilás e putas com a noite passeando em torno de suas unhas há uma gota de chuva na cabeleira abandonada enquanto o sangue faz naufragar as corolas Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa


08

Fotos: Arquivo Revista MORTAL


A TÁTICA DO BLACK BLOCK

INICIAMOS AQUI A PUBLICAÇÃO DE ALGUNS APONTAMENTOS ACERCA DE GRUPOS, TÁTICAS E AÇÕES DE ESQUERDA QUE SE DESENVOLVERAM AO LONGO DOS ANOS 2000 E QUE GANHARAM O NOME DE MOVIMENTO ANTIGLOBALIZAÇÃO OU ANTICAPITALISTA POR JAIRO COSTA

No princípio desta década, durante os protestos antiglobalização que sacudiram o mundo, um tipo ímpar de manifestação literalmente tocava o terror nas ruas das principais cidades do planeta. Eram os chamados Black Blocks, horda de anarquistas que saíam na porrada contra o capital. O termo Black Block (Schwarzer Block) nasceu na Alemanha Ocidental durante os anos 1980 e foi cunhado pela polícia para identificar grupos de esquerda na época denominados “autônomos, ou autonomistas” que lutavam contra a repressão policial aos squats (ocupações). Nesse período, uma gama maior de esquerdistas também se manifestavam contra a proliferação de usinas nucleares em território alemão e em defesa das ações diretas promovidas pela RAF, Facção Exército Vermelho, liderados por Andreas Baader e Ulrike Meinhof. Naquela época o movimento neonazista estava em pleno recrudescimento, promovendo manifestações violentas e grandes batalhas campais contra anarquistas e antifascistas. Sendo um momento de grande agitação política e principalmente de WWW.REVISTAMORTAL.COM

enfrentamento, distintos grupos anarquistas empregaram uma busca emergencial por novas táticas de combate urbano para serem utilizadas durante os inevitáveis entreveros contra as forças policiais e grupos nazifascistas. Assim, surge a tática do Black Block. Sim, uma tática, uma manobra, pois, diferente do que muitos pensam, o Black Block não é um tipo de organização anarquista, ONG libertária ou coisa parecida, o bloco negro é uma ação de guerrilha urbana. No afã de ocultar suas identidades, os ativistas políticos acabaram por desenvolver um tipo de vestimenta que passou a ser toda preta. Também adotaram o uso de capuz e capacete, óculos escuros, lenços no rosto e/ou máscaras antigás, entre outros truques para a autodefesa. Por princípio, o Black Block tem uma estrutura descentralizada, sem filiação partidária ou hierarquias, e é composto principalmente por ativistas libertários. Os blocos negros tornaram-se um meio de se expressar a ira anticapitalista, através da luta armada nas ruas. Os Black Blocks são geralmente formados durante grandes manifestações de 09


esquerda e praticam ação direta: destruição de bancos, joalherias, lanchonetes norte-americanas, depredação de instituições oficiais e empresas multinacionais, shoppings, câmeras de vigilância etc. Essas ações não têm como objetivo atingir pessoas, mas bens de capital. Um dos objetivos do Black Block sempre foi promover grandes prejuízos financeiros às empresas identificadas com o sistema capitalista. Seus ativistas não hesitam em enfrentar diretamente as forças policiais que veem como “o braço armado do capital”. Outra característica do Black Block é seu comportamento diante de grandes batalhas urbanas, movimentando-se concentrados, atacando e dispersando. Em outras palavras, praticando o famoso bater e correr. A tática do Black Block acabou por conquistar os corações de milhares de ativistas mundo afora, sendo empregada nos mais diversos lugares, como em Chiapas, no México, nas manifestações contra a invasão do Iraque, assim como nas ações contra o G8 (grupo dos 8 países mais ricos do mundo).

AS PRINCIPAIS AÇÕES DIRETAS DOS BLACK BLOCKS Em dezembro de 1980, as autoridades da cidade de Berlim Ocidental decidem pôr fim às ocupações de universidades e squats (ocupados pelos autonomistas). É nesse contexto que os ativistas usaram pela primeira vez a tática do “bloco negro”. Autonomistas vestidos de preto enfrentam a polícia e em alguns casos conseguem repeli-los. Em 1986 é fundada, em Hamburgo, a liga autonomista Black Block 1500 para defender o Hafenstrasse Squat. Em junho de 1987, anarquistas vestidos com roupas pretas protestam em Berlim Ocidental, por ocasião da presença de Ronald Reagan, presidente dos EUA, na cidade. Nesta ocasião, Reagan pronuncia o seu famoso discurso diante do Portão de Brandemburgo, pedindo para que o premiê soviético, Mikhail Gorbachev, derrubasse o Muro de Berlim. Em setembro de 1988, em Berlim Ocidental, o Black Block confronta-se com a polícia durante uma manifestação contra a reu-

BLACK BLOCK EM AÇÃO DENTRO DA “ZONA ROSSA”, NAS RUAS DE GÊNOVA, DURANTE A CÚPULA DO G8


FOGO, FOGO, FOGO! CENTENAS DE CARROS E LOJAS SÃO DESTRUÍDOS PELA AÇÃO DIRETA CONTRA O G8

nião do Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1991, durante a Guerra do Golfo, blackblockers quebram as janelas do Banco Mundial, em Washington. Em 1992, em São Francisco, na ocasião do 500º aniversário da descoberta da América por Cristóvão Colombo, o Black Block manifesta-se contra o genocídio de povos nativos das Américas. Em Seattle – a famosa manifestação contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), ocorrida em 1999, é considerada o marco inicial do movimento antiglobalização e teve presença maciça do Black Block. Em 30 de novembro daquele ano, milhares de pessoas foram às ruas contra a OMC, WWW.REVISTAMORTAL.COM

no evento que é hoje conhecido como a Batalha de Seattle. Grandes confrontos com as forças policiais locais estenderam-se durante todo o dia, com dura repressão policial, que se utilizava de spray de pimenta, gás lacrimogênio, cacetetes, balas de madeira e borracha. Em contrapartida, o Black Block insurgiase contra a linha policial utilizando bombas caseiras, pedras e garrafas, ateando fogo nas lixeiras. Em um vacilo das forças de repressão, uma frente extemamente móvel de blackblockers avançou até a chamada linha vermelha de contenção, que isolava o centro empresarial da cidade, e promoveu a destruição de várias propriedades; de limusines e viaturas policiais 11


a lojas da Nike. O bloco negro quebrou praticamente todo o centro comercial da cidade e espalhou pichações com os dizeres “Zona Autônoma Temporária” em muitos muros e fachadas de lojas. Estimativas apontam para dez milhões de dólares em prejuízos, centenas de feridos e 68 prisões. O Black Block foi apontado como um dos principais causadores do protesto. Lojas como McDonald’s, Starbucks e Old Navi também não tiveram o perdão dos anarquistas e algumas chegaram a ser incendiadas. Suspeita-se que aproximavase de 500 o número de integrantes do Black Block que quebrou Seattle. Em Washington, 16 e 17 de abril de 2000, durante reunião do FMI e Banco Mundial, cerca de mil blackblockers anticapitalistas saíram às ruas e enfrentaram a polícia. Em 2000, vários Black Blocks são formados durante manifestações diante das

convenções dos Partidos Republicanos e Democratas (nos EUA). Os incidentes não são graves. Entre 25 e 26 de setembro de 2000, forma-se um dos maiores Black Blocks que se tem notícia, em Praga, durante a reunião do FMI. Cerca de 3.000 anarquistas lutam contra a polícia tcheca. Os confrontos são muito violentos e a repressão é feroz. Relatos posteriores afirmaram que militantes neonazistas foram “convidados” pela polícia de Praga para dar um corretivo nos esquerdistas. Em abril de 2001, membros do Black Block são acusados de agredir um policial durante uma marcha pela paz nas ruas de Quebec, Canadá. Após esse evento, a população local e vários manifestantes de esquerda distanciaram-se da tática Black Block e de seus métodos extremos. Em junho de 2001, um grande Black Block é formado em Gotemburgo, contra a Cúpula

A COR NEGRA ESTÁ ASSOCIADA AO ANARQUISMO E AO FOLCLORE DA PIRATARIA


FÚRIA CONTRA O CAPITALISMO! JUNHO DE 2010, TORONTO, CANADÁ – BLACKBLOCKERS EM AÇÃO!

da União Europeia. A rua inteira da cidade foi devastada. A polícia abriu fogo contra a multidão e feriu gravemente um dos ativistas. Em Gênova, de 20 a 22 de julho de 2001, a cidade recebeu a cúpula do G8, e o movimento antiglobalização estava indo de vento em popa. Paralelamente à reunião do G8 ocorria o Fórum Social de Gênova, que debatia os efeitos nocivos da globalização e organizava os protestos contra o grupo dos 8 países mais ricos do mundo, concentrando informações e recebendo ativistas políticos de todo o mundo. Em contrapartida, a polícia italiana, os chamados carabinieris, cercaram a cidade e encomendaram 200 sacos pretos para cadáveres. A reunião do G8 começou e os protestos também; aproximadamente 200 mil ativistas nas ruas começaram a tentar furar a chamada zona rossa (que isolava a cúpula do G8 dos ativistas). Ao lado dos manifestantes “normais” um outro bloco WWW.REVISTAMORTAL.COM

surgiu na ação de Gênova, eram os chamados Tutti Bianchi, ou macacões brancos (falaremos deles mais aprofundadamente na próxima edição da Revista Mortal), que promoviam ações espetaculares de autodefesa, usando capacetes, escudos e máscaras antigás. Uma grande massa de anarquistas blackblockers estava por lá também, às centenas, porém fragilizados pela boataria que falava de infiltrações policiais entre suas colunas. Os conflitos ocorreram nos moldes de Seattle, o bloco negro avançou sobre a zona rossa quebrando bancos, lojas, lanchonetes, sedes de multinacionais, imobiliárias, revendedoras de automóveis, postos de gasolina, agências de viagem e placas de propaganda. Nessa manifestação, situações fantásticas acontecem como, por exemplo, uma linha avançada de blackblockers fez com que mais de uma centena de policiais batesse em retirada, abandonando 13


seus veículos blindados pelo caminho. A guerra urbana seguiu seu caminho natural avançando tarde adentro até que, na praça Alimonda, a história do movimento antiglobalização sofreu seu mais duro golpe. Carlo Giuliani, 23 anos, um garoto anarquista genovês, apontado por muitos como adepto da prática do Black Block, partiu para cima de um carro de polícia tentando atirar nele um extintor de incêndio. Muitos fotógrafos estavam por lá e seus registros falam por si. Ao se aproximar do carro, Giuliani é atingido por dois tiros, um na cabeça. E, numa cena macabra, o carro da polícia dá marcha à ré e atropela-o várias vezes. Na sequência, um pelotão de assalto dos carabinieris entra na praça, marcha sobre o corpo do anarquista, impõe pânico e desce a porrada em todo mundo. Não houve tempo para socorrer Carlo Giuliani, ele morre no local. O balanço final aponta para mais de 800 feridos na Ba-

talha de Gênova. Mais de duzentas sentenças judiciais condenaram o Estado italiano pela violência durante os protestos contra o G8. O assassino de Carlo Giuliani nunca foi preso, ficou alguns anos afastado da polícia (durante as investigações do caso), porém foi reintegrado aos carabinieris. A Justiça considerou seu ato como legítima defesa. Até hoje o processo de Gênova segue e ativistas de toda a Europa, ligados ao Black Block ainda são procurados pelos atos de depredação do patrimônio durante a cúpula do Grupo do G8. G8 em Evian, em 1, 2 e 3 de junho de 2003. Eventos em Genebra e Lausanne. Muitos negócios fecham por medo de incidentes semelhantes aos de Gênova. No decorrer do evento de Genebra, um posto de gasolina é destruído pelos participantes de um Black Block. O movimento é fortemente criticado por ativistas pela paz, mas também por alguns membros do próprio Black

NA MIRA DO CARABINIERE, CARLOS GIULIANI NÃO SABE QUE AQUELE É SEU ÚLTIMO SEGUNDO DE VIDA


FOTO RARA DE UM DOS PRIMEIROS BLACK BLOCKS OCORRIDOS NA ALEMANHÃ DURANTE OS ANOS 1980

Block, que acreditam que certos tipos de destruição são contraprodutivos, jogando a população contra os anarquistas. Reunião do G8 em Heiligendamm (Alemanha), com início em junho de 2007. Um Black Block de cerca de 5.000 pessoas é formado em uma grande manifestação contra o G8 e dá origem a confrontos violentos com a polícia (muitas lesões em ambos os lados). Cúpula da OTAN em Estrasburgo (3 e 4 de abril de 2009): um Black Block formase durante manifestações contra a OTAN. O antigo posto alfandegário na fronteira entre a Alemanha e a França é queimado completamente. Blackblockers queimam também postos de gasolina, fábricas e abrigos de ônibus. Toronto, Canadá, 25, 26 e 27 de junho de 2010. A última grande ação do Black Block ocorreu durante a reunião do G20 (grupo dos 20 países mais industrializados). Como WWW.REVISTAMORTAL.COM

de praxe, o Black Block ocupou o centro financeiro de Toronto e trucidou suas lojas. Destaque para um grande número de viaturas policiais depredadas e incendiadas. Outro detalhe sensacional desta ação foi a declaração da polícia de que vários blackblockers conseguiram avançar a linha de contenção vermelha (que isolava os manifestantes do local onde ocorriam os debates do G20) infiltrando-se através da rede de esgotos do centro de Toronto. Isso fez com que as autoridades soldassem várias tampas de bueiros. Mais de 500 manifestantes foram presos e dezenas de outros ativistas foram parar em hospitais com inúmeras fraturas. Não se tem notícias do uso das táticas Black Block no Brasil, e isso é lastimável. Vai para um protesto? Vista-se de preto e cubra a sua cara! OPPY@UOL.COM.BR 15


16

Foto: Divulgação


HOOLIGAN EM FINAL DE CAMPEONATO

DRAMATURGO REVIVE O FATÍDICO DIA EM QUE LEVOU 4 TIROS, NO BAR DO TEATRO DOS PARLAPATÕES POR MÁRIO BORTOLOTTO

N

ão adianta porra nenhuma você ter plena consciência da nuvem negra pairando no ar nos últimos meses. Tudo dando literalmente errado em minha triste vida de bufão beatnik tentando ainda ostentar um ar de lord de sarjeta, o perdedor que vai embora do campo de cabeça erguida e de quebra ainda ganha um olhar furtivo e aparentemente apaixonado da garotinha de óculos fundo de garrafa e camiseta dos Smiths, com tão poucos atrativos aparentes que só lhe resta mesmo tímidos devaneios eróticos com o loser do mês, primeira página do calendário, tipo não tem pra ninguém, a taça do mundo é minha e a conta do boteco também. Era assim que eu me sentia nos últimos meses, com a coisa toda se acentuando perigosamente nas últimas semanas com direito a um porre melancolicamente sozinho e o que é pior, em casa (prática essa que não admitia ter, se me interrogassem sob um chá de porrada e eletricidade nos cornos até bem pouco tempo atrás). Nas últimas semanas, até minha própria sombra já seria saudada por mim com fogos de artifício e cheer-

WWW.REVISTAMORTAL.COM

leaders com coreografias tesudas. Não sou do tipo talhado pra cair nos braços da torcida, mas a maré de azar ancorada na minha nuca nos últimos meses já tava me parecendo uma brincadeira de mal gosto divina, ou como diria meu saudoso avô depois de uma talagada de cachaça: “Quando o urubu tá com azar, o chef francês é que é convidado pra preparar o jantar”. Mas eu andava por demais entorpecido pra prestar a necessária atenção aos sinais. Vinha me comportando de maneira displicentemente temerária, bebendo negligentemente feito um hooligan em final de campeonato ou um irlandês no dia do juízo final. Só faltava mesmo um escrotinho de merda me tirando de cuzão e vaticinando o meu fim. Naquela noite de sexta-feira, depois de ter operado a iluminação do espetáculo “Brutal” do qual assino texto e direção, tava razoavelmente decidido a sair fora mais cedo, voltar pra minha kitchenette e pra minha garrafa de Jack, assobiar um punk rock e lamber minhas feridas. Mas aí me pagaram a primeira dose de whisky e todos os meus planos de uma noite tranquila desceram pela minha garganta 17


“ENTÃO EU GRITEI “ATIRA, FILHO DA PU ELE NÃO ACREDITOU DE PRIMA NO QUE ASSIM, EU CONSEGUI DERRUBÁ-LO NO OS TIROS DEPOIS DE TER LEVADO UM C com o primeiro gole. Tava bebendo no próprio bar do Teatro dos Parlapatões e foi um amigo guitarrista quem colocou o copo na minha frente. Quando me dei conta, já estava criticando o por demais eclético repertório musical, gritando com amigos do outro lado do balcão e tinha como certo um final de noite completamente chapado caindo de coturnos na minha cama. Não foi bem assim. Eu percebi os caras entrando. Parte do que vou narrar aqui extraí de uma nebulosa de álcool e da minha memória totalmente comprometida e que não merece nenhum crédito, mas devo atestar que reconstituí os fatos a partir de depoimentos e confidências de amigos que estavam no local durante o trágico (pelo menos pra mim) ocorrido, então creio que no atual estágio da minha vida, tirava de letra qualquer detector de mentiras. As portas estavam abaixadas deixando o bar totalmente incomunicável com a rua lá fora. Não sei onde é que tava o segurança. A Fernanda (a atriz Fernanda D´Umbra) e o Reinaldo (o escritor Reinaldo Moraes) haviam acabado de entrar no bar. As portas foram levantadas pra eles, possivelmente pelo segurança. Os quatro caras entraram na cola. Dois deles renderam o segurança e o levaram pro andar de cima. Os outros dois entraram no bar e tocaram o terror. Eles se colocaram de maneira acintosamente autoritária, berrando pra que todos deitassem no chão, deram um empurrão na Manu (a atriz Maria Manoela) e uma coronhada na Guta (a atriz Guta 18

Ruiz). Eu me neguei a deitar no chão. O cara com a arma veio pelas minhas costas e me acertou uma violenta coronhada na cabeça. Eu devia ter desmaiado com aquela porrada. Ia evitar todos os dissabores futuros, mas infelizmente sou mesmo um notório cabeça-dura e não foi o que aconteceu. Levantei surpreso e indignado, olhei pro cara que tava brandindo o revólver e o inquiri: “Qual é, cara? Cê ta louco?”. Ele apontou a arma e ameaçou atirar (isso tudo eu vi um mês depois pelo sistema de câmera interna de segurança do bar – tá tudo gravado). Não tenho nenhuma intenção de tirar uma de destemido ou de fodão, mesmo porque não me vejo assim. Sempre fui um cara cuidadoso e rego meus medos todas as manhãs, mas, ao mesmo tempo, quando sou desafiado, passo a ser irresponsável e inconsequente. E isso que eu saiba não é sinônimo de fodão. E o cara na sua pose de bad-gangsta boy tirando uma de “eu sou mais que você porque tenho uma arma na mão” conseguiu me deixar descontrolado. Então eu gritei “Atira, filho da puta” e fui pra cima dele. Acho que ele não acreditou de prima no que tava acontecendo, já que ainda assim, eu consegui derrubá-lo no chão. E foi caído que ele disparou os tiros depois de ter levado um chute do meu amigo Carcarah (o ilustrador e ator Carlos Carah) que levou três tiros na perna. Ele acertou o primeiro tiro no meu braço. A bala entrou e saiu. Eu continuei andando. Quando levei o segundo, no


UTA” E FUI PRA CIMA DELE. ACHO QUE E TAVA ACONTECENDO, JÁ QUE AINDA CHÃO. E FOI CAÍDO QUE ELE DISPAROU HUTE DO MEU AMIGO CARCARAH.” coração, foi um baque violento. Uma espécie de patada de elefante no peito. As pessoas tavam gritando. No chão, levei o terceiro, uma bala que se encostou atrevida na minha coluna cervical. Mais um sopro e eu não andava mais. Tava apagando quando ouvi e ainda vi o Carcarah do meu lado segurando a perna atingida e gritando: “Acertaram o Mário”. Resumindo o estrago, dos tiros desferidos pelo assaltante caído no chão, três foram pra minha carcaça, outros três foram parar na perna do Carcarah, e alguns no teto do bar. Devem estar lá até hoje e devem ficar eternamente como aqueles corações talhados numa árvore com canivete de escoteiro por casais de namorados. Fiquei sabendo ainda que o sujeito tava indo embora e resolveu voltar pra acabar o serviço e dar o tiro fatal. Devia estar puto por terem encontrado um irresponsável suficientemente louco capaz de acabar com a noitada deles. Mas aí o meu anjo da guarda já tava acordado e refeito do porre da noite anterior e, devo dizer, meu anjo é um bebum descuidado que sempre dorme em serviço, mas, quando acorda, não tem pra ninguém. Deu um tapa de leve na mão do cara e o tiro só pegou de raspão. Os quatro caras, tendo seus intentos frustrados, fugiram. Meus amigos Basa (guitarrista e companheiro de noitadas de bilhar) e Ayalla (nosso roadie internacional importado do Paraguai) tavam chegando no bar quando viram os caras saírem correndo. Imaginaram que alguma merda tinha WWW.REVISTAMORTAL.COM

acontecido, só não imaginavam o tamanho. Quando entraram viram a Fernanda com minha cabeça no colo e tentando falar comigo que apenas repetia que ia morrer. Ela retrucava dizendo que isso não ia acontecer. Tentaram convencer alguns policiais a me levar imediatamente pro hospital. Eles contra-argumentaram dizendo que deviam esperar a ambulância. Fernanda manteve a atitude firme e praticamente obrigou os caras a me levar no próprio Corsinha da polícia. O Basa e o Ayalla me colocaram no porta-malas e a Fernanda e o Brum (meu amigo Fábio Brum, guitarrista da nossa banda “Saco de Ratos”) foram junto comigo, sentados no banco de trás. A pronta atitude deles me salvou a vida já que os médicos me garantiram que, se tivesse chegado dez minutos depois, certamente não teria aguentado. Fiquei dois dias em coma após uma cirurgia de nove horas. Lá fora meus amigos queridos e pessoas que sequer me conheciam pessoalmente, mas que de alguma maneira se acreditavam ligados a mim pelo meu trabalho, estavam reunidos em vigília pela minha recuperação. Se tem algo que me deixa realmente emocionado nessa história toda, é quando ouço relatos sobre esses dois dias e sobre a corrente de sincera solidariedade que se formou lá fora. Sempre que ouço relatos desses dois dias, me dá um nó na garganta e um aperto no estômago difícil de explicar e de conter. Se existe um verdadeiro e bom motivo pra eu ainda estar vivo é o fato de poder 19


desfrutar por mais um tempo da companhia dessa rapaziada. O que aconteceu foi descrito pelos próprios médicos como um milagre. Dois dias depois, estava acordando na UTI da Santa Casa e vi ao lado da minha cama, minha ex-mulher Christine (e mãe de minha única filha Isabela) que tava sorrindo pra mim ao lado da minha irmã Eliane que me olhava num misto de consternação e alívio. Olhei pra elas, percebi que tava de volta e voltei a dormir logo em seguida. Imaginei que, se o quadro clínico fosse dos piores, a Chris não estaria sorrindo de maneira tão franca. De qualquer maneira, as notícias, boas ou terríveis, podiam esperar mais um pouco. Teve uma vez que eu caí de uma janela e perdi temporariamente a noção das coisas. Me levaram de ambulância prum hospital e me deram uma injeção me prevenindo de que eu deveria ficar em observação. Eu estava em São Paulo, morando no Brooklin e era casado com a Fernanda. Lembro que ficava perguntando pra ela o que eu estava fazendo naquele hospital em Londrina. Ela tentou me explicar que eu estava em SP, mas a convenci de que a gente devia fugir dali o quanto antes. Quando a enfermeira vacilou, me amparei no ombro da Fernanda e pedi enfaticamente a ela pra me levar até um táxi. Parecia que eu tinha passado por uma centrífuga de desenho animado, mas me senti feliz quando consegui fugir daquela antessala do inferno. E era assim que eu me sentia no hospital, por mais gentis que se mostrassem os médicos e enfermeiras. Imaginava o meu fígado arruinado, mas os médicos ainda me garantiram excelentes condições para um órgão tão maltratado por mais de 40 anos. Quebrei meu braço esquerdo e tive que sofrer outra cirurgia de três horas onde colocaram uma placa de titânio semiassustadora com uma dúzia de parafusos dignos da criação imortal de Mary Shelley. Perdi 20

meus coturnos e uma ótima camiseta da Jack Daniels, meu celular, o movimento pleno de minha mão esquerda (espero que temporariamente) e algumas crenças que ainda me restavam. Mas ainda estar por aqui com plenas condições de apitar a final de um campeonato de futebol de botão, convenhamos, é bem mais que grande parte da tripulação do Titanic conseguiu. Passei dois dias sem existir e confesso que não é nada demais. Um sonho tranquilo como um mergulho em Fernando de Noronha com alguns golfinhos frescos fazendo às vezes de entourage marinha, lá onde todas as noites parecem iguais, mas o DJ ostenta um surpreendente bom gosto e uma loura fatal saída extraordinariamente de um filme noir ronrona suavemente no seu ouvido. Se for só isso mesmo, sem aqueles cupinchas de belzebu ostentando fálicos tridentes, por mim tá tudo bem. Providencio o passaporte e espero o momento máximo de nossa inevitabilidade relendo minha coleção de Ken Parker. Porque eu não me lembro de ter rezado pedindo por uma nova chance. Sequer preenchi o requerimento em duas vias que os trâmites legais costumam exigir evitando o inevitável despejo, mas já que eu acordei e vi minha ex-mulher e minha irmã sorrindo do lado da cama, percebi que fui embora sem fechar a conta do boteco e o dono dessa espelunca vagabunda não é muito chegado em caloteiros. Agora faço de conta que essa Heindinger é um elixir de eternidade, brindo a duas ou três almas puras que sei que ainda andam por aí e coloco o pó na cafeteira. Já que fiquei por aqui, vou evitar qualquer calmante fitoterápico e fazer dessa minha noite uma daquelas recepções nas quais o cicerone não economiza no bufê. HTTP://ATIRENODRAMATURGO.ZIP.NET/


Fotos: Divulgação

KDK

BANDA ANDREENSE KRIAS DE KAFKA PARTICIPA DA COLETÂNEA “ROCK SÃO PAULO” #1 E LANÇA SEU 1º EP A banda de rock “Krias de Kafka” acaba de participar da coletânea “Rock São Paulo #1” e está lançando o seu 1º EP “Sessões Desenganadas”. Criada no ano de 2004, a banda conta com Lucas Campos na guitarra, André Linardi também na guitarra, Mateus Novaes no vocal, Héctor Alves no baixo e Otto Coelho na bateria. O CD e o EP podem ser adquiridos com os integrantes através do e-mail: kriasdekafka@yahoo.com.br. WWW.MYSPACE.COM/KRIASDEKAFKA WWW.REVISTAMORTAL.COM

21


22

Foto: Divulgação/Cardoso


O VERDADEIRO DISCURSO DE MARTIN LUTHER KING

CARDOSO APRESENTA-NOS ENFIM SUA VERDADEIRA UTOPIA POR ANDRÉ CZARNOBAI (CARDOSO)

F

ico pensando se a solução para o mercado editorial brasileiro (e QUIÇÁ mundial) não seria espelhar-se no bem sucedido exemplo da indústria TABAGISTA e apostar polpudas verbas em maciças campanhas de MARKETING. Quer dizer, se funcionou assim TÃO BEM para vender um cilindro herbáceo fedorento que não dá NENHUMA vantagem além da deturpação progressiva do organismo do usuário, provavelmente uma boa estratégia de PROPAGANDA surtirá algum efeito com o LIVRO - sobre o qual podem ser apontadas muito mais qualidades que defeitos. É lógico que não seria suficiente encher as cidades de OUTDOORS, os periódicos impressos de páginas duplas e a programação de TVs e rádios de INSERÇÕES ainda que tudo isso fizesse TAMBÉM parte do plano. Da forma que eu vejo, o primeiro passo seria investir na SUTILEZA, para conquistar o cidadão sem que ele sequer WWW.REVISTAMORTAL.COM

perceba. Para isso, seria necessário montar uma verdadeira estratégia de GUERRILHA, especialmente levando-se em conta o estado em que se encontra o RAMO nos dias de hoje. Todos os principais expoentes da mídia de MASSA seriam convocados e precisariam estar envolvidos para o sucesso do plano. Possivelmente dependeríamos de uma intervenção do ESTADO para que isso se concretizasse, mas deixemos os MEANDROS para os especialistas, que isso aqui é papo de SONHADOR. A primeira providência seria associar TODOS os personagens carismáticos em novelas, filmes, histórias em quadrinhos e letras de música ao hábito de ler LIVROS. É claro que a maioria dos arquétipos modernos (e muitos dos clássicos) teriam de ser reescritos, mas, na prática, seria tudo uma questão de chamar um CTRL+U no WORD e substituir todos os “acendeu um cigarro” por “abriu um livro”. Depois de ardentes cenas de sexo, cada 23


“NO PRIMEIRO DIA DE AULA NA NOVA ESCOLA, AQUELE MISTERIOSO E SISUDO ALUNO NOVO SOBRE O QUAL TODOS COMENTAM ENCOSTA-SE NA PAREDE, REVOLVE OS BOLSOS INTERNOS DA JAQUETA DE COURO E TIRA, NESTA ORDEM, UM PAR DE ÓCULOS E UMA EDIÇÃO POCKET DE PARAÍSOS ARTIFICIAIS.” participante alcança um braço na direção da mesa de cabeceira para de lá extrair um volume de Olhai os lírios do campo. Durante prolongadas perturbações preocupantes, não mais se alimenta de fumaça como distração, mas apela-se para concentrada prostração diante de um trecho qualquer de O processo. No primeiro dia de aula na nova escola, aquele misterioso e sisudo aluno novo sobre o qual todos comentam encosta-se na parede, revolve os bolsos internos da jaqueta de couro e tira, nesta ordem, um par de óculos e uma edição pocket de Paraísos Artificiais. Suspiros everywhere. Conforme o número de leitores dos CLÁSSICOS fosse aumentando, seria a vez dos Veríssimos, Baudelaires e Kafkas cederem espaço aos Nesky, Laub e Pellizzari, numa manobra pensada para mostrar ao nosso incipiente público leitor que a literatura não só AINDA existe como é praticada por nossos COMPATRIOTAS. Com o tempo, escritores ainda VIVOS e em ATIVIDADE fariam breves CAMEOS em peças ficcionais e ocupariam extensa parcela 24

de talk-shows e programas de variedade. Quando, por fim, começassem a nortear o trabalho dos paparazzi de plantão, a fase UM estaria encerrada. Depois de concluída essa etapa, seria a vez de atingir a indústria fonográfica. Num primeiro momento,definitivamente influenciadas pela propaganda dissimulada feita nos meios visuais, as novas bandas fariam escancaradas apologias aos seus autores prediletos e passariam a incluir em suas exigências de camarim quatro edições em capa dura de Finnegan’s Wake ou o novo do Joca Terron, autografado. Em resposta a isso, todas as festas rock de todas as cidades entrariam em um acelerado processo de fusão aos SARAUS, movimento que atingiria seu ápice quando, no balcão do bar, não se pudesse mais encontrar MARLBORO, mas sim aquelas estantes aramadas giratórias COALHADAS dos mais QUENTES lançamentos literários do momento. Daí em diante seria reação em cadeia: os encartes de CD teriam um número cada vez maior de páginas, nas


quais poetas e prosadores seriam convidados para fazerem as suas versões ou comentários sobre cada uma das letras da banda. Algo como Charlie Brown Jr. feat Daniel Galera. Ao mesmo tempo, o suporte seria lentamente cambiado do couché brilhoso atual para offset 75, pólen bold 90 ou coisa que o valha, diminuindo assim os custos e tornando viável a execução da ideia. Na decorrência destas duas ações, seria esperado que, mais dia menos dia, um escritor brasileiro fosse reconhecido, em público, por uma pequena multidão. Seria o SINAL esperado para dar início à terceira fase do estratagema: plain simple PROPAGANDA. Esta seria a hora de esnobar do populismo de que gozam estes novos artistas para veicular sua AURA através dos métodos tradicionais - outdoor, mídia impressa, TV e rádio. Internet? Nah, disso nem se precisa falar: na rede o escritor esteve desde SEMPRE, antes mesmo do desencadear desta reação. E ainda está. Também seria o momento ideal para emular reformatando os festivais de música e cinema. Em lugar da exibição do último Almodóvar ou das 16 bandas de maior vendagem no país, o público pagaria para ver memoráveis duelos de declamações e acirradíssimas discussões sobre o uso da primeira ou terceira pessoa e suas possibilidades. Quando o primeiro grande evento internacional lotasse o Maracanã, seria o fim da fase três. A essa altura do campeonato, a nota média em redação teria subido de 4 a 6 pontos nos vestibulares de todo o país. O mesmo seria verificado em literatura (claro) e língua portuguesa. Os trabalhos escolares voltariam a ser sobre Machado de Assis, e, sendo assim, as escolas poderiam convidar escritores para falar sobre os seus livros. Pela primeira vez em DÉCADAS, os alunos prestariam atenção. WWW.REVISTAMORTAL.COM

Nos blogs, MSN, ICQ e demais IRCs, o último GRITO seria o uso gramaticalmente correto da língua. O cara que tentasse abordar uma BELDADE com eae blz qr tc? seria imediatamente CORTADO. As revistas acolheriam de volta as grandes reportagens e os jornais voltariam a publicar jornalismo. Trechos inteiros de livros seriam citados em 90% das conversas pré-nupciais em rodas de chope e birinaites em boates. Livrarias veriam pela primeira vez seus estoques esgotados. Grandes editoras poderiam aumentar para 20% a participação do autor no preço de capa, e as pequenas poderiam se dar ao LUXO de pagar as edições dos seus autores. Paulo Coelho e Rubem Fonseca não seriam os únicos brasileiros sobrevivendo exclusivamente de sua obra. Em uma década ou menos, não seríamos mais 32 milhões de nicotinômanos, mas quase 40 milhões de LEITORES, desses com L maiúsculo. Todo esse movimento aqueceria outras atividades paralelas relacionadas, como os cadernos de cultura e as revistas especializadas. E o melhor de tudo: com a qualificação do leitor, a exigência do mercado aumentaria de forma significativa. É, meus amigos, seria LINDO. O mundo seria um lugar MUITO melhor para se viver. Principalmente para os ESCRITORES. Mas, enquanto o Brasil não tiver uma política decente de incentivo ao LIVRO nem possuir uma legislação específica para regulamentar os ingredientes adicionados ao cigarro*, seguiremos todos PIGARREANDO lamúrias pelo caminho e apagando muitas de nossas mágoas no almiscarado perfumoso do CRIVO. *Fonte: Souza Cruz

HTTP://QUALQUER.ORG/SALSBURY/ 25


MORTAL 03


CELSO 2010 YES, WE CAN!

O QUE TERIA ACONTECIDO COM A CIDADE DE SANTO ANDRÉ SE CELSO DANIEL AINDA ESTIVESSE ENTRE NÓS. POR RAUDA GRACO

S

exta-Feira Santa, 2 de abril de 2010, 19h32. Celso Daniel e sua namorada saem de mais uma sessão de cinema no Espaço Unibanco, na Rua Augusta. Sorridente, ele elogia a película que acabara de ver, o filme argentino ganhador do Oscar: “O segredo de teus olhos”. Ele diz: “Um filme muito bonito, cruel como a própria vida, mas fantástico! Gostei das tiradas do protagonista, Benjamín Espósito. Principalmente quando perguntam a ele se tudo está bem, e ele responde: cansado de ser feliz... cansado de ser feliz...”. Celso gargalha, olhando fundo nos olhos de sua companheira. Felicidade, sucesso e conquistas fazem parte da trajetória desse político andreense, professor, um “estranho” no ninho metalúrgico. Elegante, de gestos suaves apesar da altura, quem não conhece esse homenzarrão não faz ideia de que ele é hoje a figura central do PT, forte candidato a suceder Lula na Presidência da República. Celso Augusto Daniel nasceu em Santo André-SP, em 16 de abril de 1951; foi criado com mais quatro irmãos em uma grande casa localizada no centro da cidade. A paixão por cinema vem deste período, quando, aos domingos, frequentava o WWW.REVISTAMORTAL.COM

Cineteatro Carlos Gomes. Celso formou-se engenheiro em 1973 na Escola de Engenharia Mauá, em São Caetano do Sul. Depois obteve mestrado em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas-SP e doutorado pela PUC-SP. Paralelamente à sua carreira acadêmica, construiu sólida militância política, ajudando a fundar o Partido dos Trabalhadores, pelo qual foi eleito três vezes prefeito de Santo André. Na lanchonete ao lado do cinema, Celso e sua namorada pedem dois cafés. Seus três seguranças espalham-se em meio à pequena multidão. Celso precisa desta proteção desde 2002, quando seu carro foi alvejado no centro de São Paulo em um misterioso incidente. Nunca se soube realmente o que ocorreu. Se fora uma tentativa frustrada de sequestro-relâmpago do então prefeito reeleito ou se a ação fora um atentado político contra a sua vida. “Meu livro será publicado em cinco idiomas diferentes, sob a tutela da ONU”, diz Celso, referindo-se ao livro “Século XXI e as cidades, os desafios da reurbanização”, seu premiado projeto de reurbanização de favelas, iniciado lá nos anos 1990 e que se tornou modelo seguido por vários países em desenvolvimento. Celso toma um gole de seu café e sentencia: “Eu nunca pensei que um dia seria candidato a presidente 27


“SIM, SIM, CELSO DANIEL APRESENTA-SE. E REPRESENTA PARA O PT A POSSIBILIDADE DE EMPLACAR MAIS UM PRESIDENTE DA REPÚBLICA FORJADO NO ABC PAULISTA. MÉRITO DO PRÓPRIO CELSO DANIEL QUE SE CREDENCIOU POSTULANTE DA VAGA AO TRANSFORMAR A CIDADE DE SANTO ANDRÉ EM UMA DAS MAIS MODERNAS DO BRASIL.” do Brasil”. Sim, sim, Celso Daniel apresenta-se. E representa, para o Partido dos Trabalhadores, a possibilidade de emplacar mais um Presidente da República forjado no ABC paulista. Mérito do próprio Celso Daniel que se credenciou postulante da vaga ao transformar a cidade de Santo André em uma das mais modernas do Brasil. Desde 1989, quando se elegeu prefeito pela primeira vez, Celso tem se mostrado um formulador de políticas públicas sem igual, cercado por uma equipe tão brilhante quanto ele. Entre as várias marcas de seus governos, Celso cita suas favoritas: “Eu queria construir uma verdadeira cidade do futuro aqui no ABC, e nestes 20 e poucos anos nós melhoramos o transporte, a saúde e a cultura em Santo André. Reurbanizamos cerca de 50% das favelas, levamos infraestrutura hoteleira a Paranapiacaba, transformando o festival [de inverno] em um dos mais importantes do país, revolucionamos o paisagismo da região, transformamos o Cineteatro Carlos Gomes em centro cultural com salas de cinema, biblioteca, novo teatro, galeria de arte... Quando Ministro do Planejamento do segundo governo de Lula, conseguimos realizar o grande sonho da região de ter o metrô interligando São Bernardo, Santo 28

André, Mauá e São Caetano... E por aí vai!” – sorri mais uma vez Celso Daniel. E para o Brasil, quais seriam os planos do engenheiro? “Vamos inverter prioridades, fazer um plano de desenvolvimento que prepare o país para a liderança mundial, reurbanizar os grandes centros, apostar em uma malha ferroviária que interligue o país pelos trilhos, coisa que deveriam ter feito há pelo menos 50 anos... Vamos definitivamente resolver o problema agudo que é a reforma agrária, baixar juros, cortar impostos, redistribuir renda, fazer não mais um PAC, mas um Pacto(!) com os cidadãos de nosso país. Vamos crescer e liderar o século XXI. Parece um sonho, não é? Mas nós vamos fazer. Sim, nós podemos.” E Santo André? Celso suspira, fica pensativo por alguns segundos, lança um olhar reflexivo para o horizonte e responde pausadamente: “Agora que estou partindo, iniciando essa nova jornada, posso dizer que nunca esquecerei desta cidade que tanto amo, ela estará comigo sempre”. A cidade também estará contigo para sempre, prefeito. “Obrigado.” Despede-se Celso Augusto Daniel.

RAUDAGRACO@GMAIL.COM


1º CONCURSO DE CONTOS

REVISTA MORTAL

FICÇÃO CIENTÍFICA Escreva um conto visionário sobre como você imagina que será São Paulo e/ou o Grande ABC daqui a 100 anos e concorra a vários livros, além de ter seu conto publicado pela Revista MORTAL. Os ganhadores serão conhecidos em dezembro no site da MORTAL. Regulamento: será aceito apenas 1 conto por participante. O texto deve ser enviado em arquivo Word, com espaçamento 1,5, na fonte Times New Roman, tamanho 12. Serão aceitos contos com até seis páginas. O material deverá ser enviado para o e-mail: concurso@revistamortal.com. Fica a critério do participante inscrever-se utilizando pseudônimo ou não. Só serão aceitos contos inéditos. O julgamento do conto vitorioso será feito pela equipe da Revista MORTAL. Os critérios para a escolha do vencedor serão: estilo, coesão, coerência e inventividade. Prazos para o envio de textos: de 20 de setembro a 30 de novembro de 2010. WWW.REVISTAMORTAL.COM

29


30

Fotos: Divulgação


ASTRONAUTAS ERAM DEUSES: ITAMAR ASSUMPÇÃO

UM ENSAIO QUE NOS MOSTRA O QUANTO DE LITERATURA PERMEIA A COMPOSIÇÃO MUSICAL DE ITAMAR ASSUMPÇÃO POR IZABEL BUENO

O

cenário é São Paulo. O personagem: Benedito João dos Santos Silva Beleléu, vulgo Nego Dito. A música: MPB. Quem está lendo pode até pensar que falarei de uma peça de teatro, um livro... mas não. Apresento aqui uma pequena amostra da literatura existente nas composições do músico, ator, poeta, compositor, “maldito da MPB”: Itamar Assumpção. Nele, artista e música se confundem, tanto que as pessoas o conhecem como Nego Dito, Beleléu, o protagonista de várias de suas canções, apresentado já em seu primeiro disco, na música “Nego Dito”.

meu nome é benedito joão dos santos silva beleléu vulgo nego dito, nego dito cascavé eu me invoco eu brigo eu faço e aconteço eu boto pra correr eu mato a cobra e mostro o pau WWW.REVISTAMORTAL.COM

pra provar pra quem quiser ver e comprovar (...). Esse negão, de voz grave, mas suave, nasceu em Tietê, interior de São Paulo; de lá foi para Arapongas, no Paraná, aos 12 anos de idade; e em 1973, com 24 anos, veio para a capital paulista. Aqui, teve atuação marcante no cenário musical underground, na década de 1980, consagrando-se em memoráveis apresentações no Teatro Lira Paulistana. Junto a artistas como Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Rumo, participava da Vanguarda Paulista (rótulo criado por jornalistas e críticos para esses músicos independentes de São Paulo). Suas composições nos apresentam diversidade de sons, ritmos, personagens, imagens e temas. Muitas de suas músicas assemelham-se a uma narrativa literária. Quem as escuta não curte somente o 31


som, vivencia um enredo que desperta o imaginário do ouvinte, como na antológica música “Sampa Midnight”.

sampa midnight eu assessorado de mais dois chegados bartolomeu e ptolomeu partimos pra comemorar não lembro o que numa boate escabrosa noite deu blackout na paulista breu no trianon cadê o vão do museu, sumiu meu deus do céu que escuridão três seres transparentes baixaram não sei de onde imobilizando a gente e gritando não somos gente brilhavam, não tinham dentes traziam cortantes tridentes incandescentes nas frontes três chifres falavam rapidamente com gestos intermitentes simultaneamente

sons estridentes incríveis sampa midnight eu chumbado com mais dois embriagados bartolomeu ptolomeu quisemos levá-los prum bar mas qual o que, tomamos xeque-mate tenebrosa noite faltou light na paulista breu no trianon cadê a consolação escureceu o museu onde está o chão um trio intrigante desceu do céu num instante chegou intimando a gente e berrando não somos gente cantaram de trás pra diante letras fortes, indecentes músicas bem excitantes provocantes rumbas funks cantaram de trás pra frente uns reggaes de breque chiques bastante pique sambas de roda chocantes sampa midnight eu assessorado de mais dois chegados bartolomeu ptolomeu partimos para comemorar não lembro o que... ITAMAR ASSUMPÇÃO E BANDA ISCA DE POLÍCIA

32


“EU PENSO LOGO VIVO EU VIVO LOGO DURMO EU DURMO LOGO SONHO EU SONHO LOGO ACORDO ACORDO LOGO PENSO EU PENSO LOGO CANTO” Algumas parecem mesmo um diálogo, cujo interlocutor desconhecemos, mas imaginamos. Será o próprio Beleléu, na música “Parece que bebe”?

você parece que não sei diz tanta coisa que vou te contar olha pensando bem cala-te boca e tam e tal e coisa e lousa sempre a mesma lenga-lenga a mesma transa o mesmo tchans e zás e trás tá louco fica só naquela e fica nessa sei lá maior comédia o que que é isso logo pra cima de moi tô por aqui ô sai fora disso parece que bebe parece que sei lá O Nego Dito (cascavé) usava sua língua/letra para fazer crítica social e ironia, como em “Cultura Lira Paulistana”.

(...) baixaria na cultura tanto bate até que fura socorro elis regina a ditadura pulou fora da política e como a dita cuja é craca é crica foi grudar bem na cultura nova forma de censura pobre cultura como pode se segura mesmo assim mais um tiquinho coitada representada como se fosse um nada deus meu por cada feiura sem compostura WWW.REVISTAMORTAL.COM

onde era pixinguinha elizeth macalé e o zé kéti ficou tiririca pura só dança de tanajura porcaria na cultura tanto bate até que fura que pop mais pobre pobre pop. E também filosofia, em “Penso, logo sinto”.

eu penso logo eu vivo logo durmo eu durmo logo sonho eu sonho logo acordo acordo logo penso eu penso logo vivo viver é risco preciso verbo transitivo estranho os obuses são obuses são obuses são medonhos viver no país de alice só em livro só em sonho pois os mísseis são os mísseis são os mísseis são demônios eu penso logo vivo eu vivo logo durmo eu durmo logo sonho eu sonho logo acordo acordo logo penso eu penso logo canto (...) Na obra de Itamar, há uma representação perfeita da relação entre o homem e o meio em que vive. Vivendo em São Paulo, ele registra em muitas canções as múltiplas facetas dessa cidade caótica e a utiliza como espaço/tema constante, como pode ser visto em “Pretobrás”. quando acordei tava aqui entre são paulo e o mangue 33


brasil via MTV num clip de bang bang nem bem cheguei me feri foi bala na cidade grande compondo sobrevivi cantar estancou o meu sangue (...) E em “Aprendiz de Feiticeiro”: (...) aprendi que essa fumaça a minha janela embaça por fora, por dentro, não aprendi tetra depressa que a taça do mundo é nossa e que são paulo é meu sertão aprendiz de feiticeiro Quem ouve “Venha até São Paulo” sente-se conduzido ao ritmo intenso da própria metrópole.

(...) quem vem pra são paulo meu bem jamais esquece não tem intervalo tudo depressa acontece não tem intervalo vai e vem e tchan e tchum êta sobe desce gente do nordeste, do norte aqui no sudeste batalhando nesse mundaréu de mundo que só cresce só carece venha até são paulo relaxar ficar relax tire um xerox, admire um triplex

venha até são paulo viver à beira do stress fuligem catarro assaltos no dia dez (...) E visualiza seu clima inconstante, em “Tanta Água”. Nesta música, metaforicamente, Itamar relaciona clima e vida e nos mostra que, como o tempo na cidade, o viver nela também é inconstante, “é só quimera e mais quimera”.

é tanta água despencando lá do céu meu deus do céu meu deus do céu meu deus do céu o que que tá acontecendo é são pedro que ficou pinel com raiva de são paulo é primavera é primavera só que só fica chovendo são paulo está tal qual a torre de babel é inflação é vendaval é só papel esperanças vão morrendo é só quimera e mais quimera mas que merda é não e não e fel e fel mas que escarcéu que a gente tá vivendo não tem mais galo cantando não tem mais nem de manhã não vejo o sol que mundaréu que frio que tá fazendo garoa neblina sereno formando um véu quem me dera ver o céu mas eu só fico querendo é chuva fina encharcando meu chapéu e o solidéu e o solidéu e o solidéu

“SOZINHO NESTA COZINHA EM PÉ EU TOMO CAFÉ NA PIA A LOUÇA SUJA ME LEMBRA DA ROUPA SUJA NO TANQUE QUE A VIDA É” 34


daquele padre correndo é primavera só que escreveu não leu escureceu água desceu meu deus do céu o que que tá acontecendo. Há uma simbiose entre músico/cidade. Ela o marca, ele a retrata. De modo único, inusitado, como em “Bicho de 7 Cabeças”.

Eis aqui o Bicho de 7 cabeças Eis aqui um sim eis aqui também um não Eis aqui São Paulo metrópole intensa Eis aqui minha cabeça e o meu coração. Além do gênero narrativo, em suas composições há muita poesia, nas quais as palavras são trabalhadas de forma rítmica, harmoniosa, formando um significado simples e sensível (“Noite Torta”).

na sala numa fruteira a natureza está WWW.REVISTAMORTAL.COM

morta laranjas maçãs e peras bananas figos de cera decoram a noite torta sob a janela do quarto a cama dorme vazia encaro o nosso retrato sorrindo sobre o criado no meio da noite fria está pingando o chuveiro que banho mais apressado molhada caíste fora no espelho minh’alma chora lá fora está tão gelado sozinho nesta cozinha em pé eu tomo café na pia a louça suja me lembra da roupa suja no tanque que a vida é. Com suas poesias, Itamar doa à “humanidade mal-agradecida” uma visão singular da vida (“Sujeito a chuvas e trovoadas”).

(...) viver às vezes é morrer de tédio e de vício também de ataque de míssil 35


viver é virar de ponta cabeça o avesso e não se fala mais nisso De sua condição de negro em uma sociedade pseudotolerante (“Cabelo duro”):

eu tenho cabelo duro mas não o miolo mole sou afro-brasileiro puro é mulata minha prole (...) De sua própria poesia (“Z da questão”):

fiz essa canção com versos vulgares melhores não sei pra dar-lhes sou poeta não vim só entregar-me só vim cantar-lhe (...). De si mesmo e de sua profissão (“Ideia Fixa”):

(...) simples sou o maior trivial de que se têm notícias quem sou porém convém explicar muito bem meu bem eu vou dizer de uma vez por todas já tive muitos critérios hoje só vários delírios ativos cultivo em mim resolvi levar a sério o riso ao sair dum cemitério e eu estava bem vivo quem sou eu ainda não sei que canto porque gosto

talvez negócio de quem não tem bom juízo, mas lembrem-se astronautas eram deuses (...) Itamar também fez parcerias com Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ademir Assunção e outros poetas, que resultaram em inesquecíveis composições. Suas músicas já foram gravadas por artistas de renome como Ney Matogrosso, Cássia Eller, Zélia Duncan, Rita Lee. No entanto, apesar de todo o talento aqui registrado, a obra do Nego Dito continua pouco conhecida pelo grande público. Por ser figura controversa no meio artístico, ele não teve seus discos produzidos em grandes gravadoras. Foi de modo independente que deixou registrada sua versatilidade e genialidade.

o meu coração é um absurdo bate forte bate fraco bate surdo mudo bate por nada bate em vão bate por tudo bate pouco bate muito bate por ti sobretudo Em 12 de junho de 2003 este “Coração Absurdo” deixou de bater. Mas apenas fisicamente. Porque continua vibrando em vários corações que o escutam. HTTP://IZABEL-BUENO.SITES.UOL.COM.BR/

“VIVER ÀS VEZES É MORRER DE TÉDIO E DE VÍCIO TAMBÉM DE ATAQUE DE MÍSSIL VIVER É VIRAR DE PONTA CABEÇA O AVESSO E NÃO SE FALA MAIS NISSO” 36


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.