Revista literaria Macondo #6

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MACONDO revista literária

N.º 6 SEMESTRAL outubro 2012

NOVIDADE: SEÇÃO TEMÁTICA

apresenta raymundo netto, aline aimeé, élen rodrigues gonçalves, cesare rodrigues, luiz gustavo saldanha, ernane catroli, camila de sá, diana passy, anderson petroni, carina castro, patrícia vieira de faria, jorge luiz mendonça martinez, sebastião ribeiro, davi araújo, fabiola weykamp, ednice peixoto

POESIA POESIA VISUAL HAICAI DOMÍNIO PÚBLICO CONTO ENSAIO CRÔNICA BIBLIOPHILIA


expediente

EDITORES

francisco mariani casadore marcos mariani casadore COLABORADORES

os autores dos textos publicados na presente edição estão listados, por ordem alfabética, nas páginas finais da revista. IMAGENS CAPA:

"Mantiqueira", de Johann Moritz Rugendas (Domínio Público) POESIA VISUAL: Jorge Luiz Mendonça Martinez SEÇÃO TEMÁTICA: Fotografia do acervo pessoal de Diana Passy não nos responsabilizamos por ideias e demais conceitos expostos pelos autores, bem como pela autoria dos textos. APOIO À PAGINAÇÃO

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[...] jĂĄ cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silĂŞncio. Raduan Nassar


editorial

C

hegamos à sexta edição, neste segundo ano de existência da Macondo, e a sensação de satisfação ao fecharmos os números ainda nos é inebriante. A publicação deste volume, no entanto, foi um pouco mais complicada que as demais: já havíamos chegado à conclusão de que o melhor a fazer seria transformar a Macondo em uma revista literária semestral, com duas publicações por ano. Uma das novidades da vez, portanto, é a nova periodicidade da revista. Com isso, o tempo para o pre-

paro do material, de nossa parte, e para o envio de trabalhos, por parte dos interessados, também se estende – o prazo para envios que visem a uma próxima edição será aberto por quatro meses, e dedicaremos os outros dois à leitura, seleção e edição do material recebido. A Macondo #7, consequentemente, está prevista para abril de 2013, e receberemos os textos até o começo de fevereiro de 2013.

E

m relação à sexta edição, contamos com um novo espaço: a seção temática, também voltada à indicação de livros. A nossa primeira convidada é Diana Passy, gerente de mídias sociais da editora Companhia das Letras, que montou sua lista tendo em mente cinco obras nas quais ela gostaria de viver. No mais, contos, poesias, haicais, um ensaio sobre Molierè e uma crônica integram a produção literária e apresentam (ou reapresentam) bons autores a vocês, leitores! Para o Domínio Público, trazemos

POESIA

SEÇÃO TEMÁTICA

ENSAIO

página 6

página 23

página 28

HAICAI

CONTO

página 20

página 33


para a revista um texto do (sempre ácido) João do Rio, autor de uma produção indispensável aos que pretendem enveredar pela escrita, seja esta ficcional ou jornalística. Reservamos, apenas desta vez, a Bibliophilia para sugerirmos a leitura de alguns bons livros que passaram por nossas mãos nos últimos tempos – mas sintam-se à vontade para também participarem desta coluna, bem como enviarem resenhas ou apresentações de obras literárias, sejam novas ou clássicas.

A

por lá, a dica de bons livros já começa aqui, pelo editoinda sobre a presen- rial. E, por fim, só podemos te edição: a arte de capa é esperar que aproveitem uma das obras de Johann este novo número. Moritz Rugendas, pintor Boa leitura! alemão que viajou pela América do Sul, durante a primeira metade do século dezenove, e foi responsável por retratar e imortalizar tal cenário. O nome lhes é familiar, pela via literária? Rugendas também foi personagem em uma novela de Cesar Aira – “Um acontecimento na vida do pintor viajante” (edição brasileira pela “Nova Fronteira”, lançada em 2006). Caso ainda não o tenham encontrado

CRÔNICA

POESIA VISUAL

DOMÍNIO PÚBLI-

página 42

página 46

CO

BIBLIOPHILIA

página 48

página 43

COLABORADORES página 56


poesia


alter et idem eis que a ave volátil declama o peixe solúvel e de repente a geografia de uma rasura conta a história d’alguma literatura e são os ininteligentes elegíveis na universalidade intraduzível ismismos mesmo preferíveis à grande banalidade indigerível que a biblioteca me preserva a ignorância porque o pior labirinto é uma linha reta se nas leituras solitárias desde a infância tornar-me um outro e o mesmo é a meta contemplo o duplo na reflexão volúvel altero-me só um pouco e no reflexo outro é um eu de mim desconexo

davi araújo

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poesia

liberdade de expressão cada palavra que digo é o que significo não me contradiz não me liquidifico cada gole que entorno é o que beberico cada problema que assinalo é o que xis não me cicatriz não me metrifico cada linha que escrevo é o que versifico cada máscara que encaro é o que nariz não me perfis não me namorico cada beijo que abocanho é o que kiss

davi araújo

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"ondula e renasce..." ondula e renasce corpo magoado a despir-se dos hábitos a umedecer tantas marcas sangrando venenos escoando estofos a reduzir-se leve \ girassol descoberto / transluminoso em cor.e.o.grafado nas linhas de uma música dogmágica, ritualírica a desdobrar-se em hélices prum vôo acidentado nas infrações do fogo: (de)move-se desfênix

aline aimeé

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poesia

"impulso im/pele..." impulso im/pele açoita e me empurro - oroboro: criança borgeana (má)nivelada porque me arrast(r)o ainda que pesada sísifo das horas teim - ando ...woman being...

aline aimeé

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"o peso da tua letra..." o peso de tua letra leva-me, leve lava-me, lava mata-me, brasa para que eu evapore turva e incerta e revele minha verve amarga plena ainda que desfeita pura, pois que ilimitada.

aline aimeĂŠ

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poesia

roma, 1978 O homem está entre Deus e o vazio. E cabe a ele escolher. Descartes Não importava O quanto a fumaça Violenta ardia-lhe os olhos imaculados. Ergueu as mãos para o alto E declamou alguns versos russos Em nome daqueles Homens Que se vestiram de fumaça E voaram para longe dos campos. Campos estes, que no lugar de árvores Haviam plantado [em vermelho e preto] Sob a grama verdejante bombas. No lugar do perfume das flores Haviam exalado O cheiro de carne queimada. Não importa O quanto a fumaça Violenta, ainda, ardia-lhe os olhos imaculados da memória, Elegeu para si O amor da vida eterna Em nome dos Homens: À salvação da essência Humana.

fabiola weykamp 12 MACONDO revista literária


cônjugues à outra ele inflama tudo verte mobiliza o tédio lhe enche o dia com espaços até que se encha com sabor de fêmea de mim pouco estima vista cansada braços fracos de mim nada detém ele permanece engolindo o que nunca tira do lábio dela

sebastião ribeiro

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poesia

expect(a/o)re você está na casa que pagarei em 35 anos. faz-me acreditar que se pode guardar amor no pote de açúcar. tão claro é saber que não vais exigir sobriedade de minhas faltas na impensável data da confissão: é natural nos constatar imãs e, se puder chamar isto de amor, vai dormir no capacho. minhas certezas assistem à tv aberta numa casa cheia de baratas. e quando enfim encontrar tua boca seremos mais uma dúvida no universo. não bastamos – o corpo não cabe na mente – o resto é esperarmos amanhecer. pousares a cabeça em meu ombro implica preparar uma herança.

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sigo sem perceber essas linhas em tuas olheiras cheias de enfins. quando não pareceremos lençois encardidos? na saída dum truísmo [ausência é o jumento desesperado pelo saco de lixo no poste] quero a pureza de poder te dizer algo sem querer querendo. o resto é esperarmos amanhecer.

sebastião ribeiro

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poesia

orfandade Numa tarde de destinos quentes, na clareira aberta pela insônia costumeira, parei no centro de mim sem rumo. Entre suores e calafrios alternados, entre o vão do certo e o abismo do inesperado, decidi pôr fim aos intermináveis porquês. Quis chamar as coisas simplesmente de coisas sem enumerá-las, classificá-las, semantizá-las...

À margem de seus castelos imaginários, a razão perdeu sua condição de gélida senhora e se fez menina simples de flor e fita no cabelo. Com semblante cansado repleto de susto e medo, adormeceu silenciosamente farta de si. Inconsolável. Sem que ninguém decifrasse as entrelinhas da orfandade. Seu humilde e sonoro pedido de adoção.

patrícia vieira de faria

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moldura Você ainda dormia profundamente quando eu decidi traçar nossos destinos. Peguei uma caneta de azul desatino e liguei delicadamente os pontos sardentos das suas costas. Entre uma linha e outra, tatuava hieróglifos no seu corpo povoando seus sonhos como você fazia cócegas nos meus. Era uma espécie de vingança sádica. Um polígono de muitos lados que coubesse só você e eu.

patrícia vieira de faria

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poesia

garoa sobre mário a paisagem um pouco molhada de cinza não impressiona muito são pingos mínimos de pontilhismo as mãos de pedro peneiraram preces puídas e pela trama de arame passou a farinha pluvial e como uma nuvem esfarelada a poeira caía da abóbada as partículas de pedidos líquidos liquidados em pó, polinizando dânae infecunda rocio nos rostos gotículas, gorjetas mal molha apenas pousa como poesia

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não ameaça o guarda-chuva nem o guarda-sol do camelô todos aguardam reticentes os pingos nos is sinais celestes até que pagaram aos pagãos, carnavalizou-se arlequinal: taparam o sol com a peneira

carina castro

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haicai


sob o céu opaco vendedor de caleidoscópios negocia as estrelas.

encontro fino: cada um no seu figurino.

banco de metrô duas flores vermelhas rubor na face.

telhado claro põe breu quando amanhece: amoras caindo.

grama molhada chuva - menina corre lenço de lama.

camila de sá

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haicai

SUCULÊNCIA Ensinamento: comer tomate como fosse fruta.

ASAS Fui fisgado pelo céu no caminho para casa confundi azul e anzol.

CORTANTE Venta num domingo a tarde, e a tristeza de perder uma pipa.

anderson petroni

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seção temática


seção temática

Diana Passy é formada em Editoração (USP) e trabalha como gerente de mídias sociais na editora Companhia das Letras

Os livros servem para várias coisas (absorver conhecimento, apoiar copos, puxar assunto com pessoas legais), mas uma de suas melhores características é como eles nos transportam para outro mundo. Você pode nunca ter saído da sua cidade, mas viajar para vários outros lugares (existentes ou imaginários) e viver outras vidas com um bom livro. Como trabalho dentro de uma editora, vivo rodeada de livros todo dia. Tanto aqueles que adoro, quanto aqueles que ainda quero ler, ou aqueles que não me despertam o menor interesse. Às vezes considero um milagre que, mesmo após um dia difícil, eu tenha vontade de voltar pra casa e LER! Mas claro, isso não seria possível se cada livro não fosse tão diferente do outro, se cada um não representasse uma possibilidade nova de sair do meu dia-a-dia e experimentar uma vida completamente diferente. Partindo dessa ideia, escolhi cinco livros dentro dos quais eu gostaria de morar1:

1 A lista, claro, é bem diferente do que poderiam ser considerados meus livros favoritos. Afinal, não sei você, mas eu não gostaria de viver dentro de "Admirável mundo novo", por exemplo! 24 MACONDO revista literária


Só garotos - Patti Smith

O circo da noite - Erin Morgenstern

Viver a Nova York dos anos 70 junto com Patti Smith e Robert Mapplethorpe, presenciar alguns dos meus artistas favoritos surgindo e alcançando seu auge. Seria um sonho!

O livro descreve um circo que só funciona à noite e é, na realidade, o palco para um duelo entre dois jovens mágicos que acabam se apaixonando. Essa competição acontece não como uma luta, mas sim como uma competição em que cada um tenta criar a atracão mais incrível. As descrições são tão belas que é impossível não querer conhecer o carrossel, ou o jardim de gelo.

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seção temática

The time of their lives: the golden age of great american book publishers, their editors and authors - Al Silverman Confesso que esse é uma trapaça. O livro reúne relatos de mais de 120 editores, publishers e autores que trabalhavam no que é considerada a época de ouro do meio editorial americano (1946 até o começo da década de 80). Desde a criação das grandes editoras, até o surgimento dos autores reconhecidíssimos de hoje, o que fica mais claro é quantas dessas pessoas são fascinantes.

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The Disreputable History of Frankie Landau-Banks - E. Lockhart Frankie mudou durante o verão. Sua família ainda a vê como uma menina inocente, e os garotos do colégio a veem como a nova garota bonita que vale a pena perseguir. Nenhum deles, entretanto, reconhece que Frankie é mais inteligente que todos eles, e não aceita “não” como resposta. Ela então monta um plano para se infiltrar no clube masculino secreto do colégio, e mostrar que não deve ser subestimada. Coloquei esse na lista só porque acho que seria muito divertido me juntar à Frankie em seus planos geniais!


ordens do homem acidentado, que não sabe dizer qual é o objetivo final, e não se importa que quilos de fígado estejam sendo desperdiçados, ou que não faça realmente diferença se o pianista está lá ou se deixou uma gravação.

Remainder - Tom McCarthy Considero a história desse livro atraente justamente porque é tão estranha. Um homem acorda no hospital sem saber por que está lá. Ele só se lembra de ter visto algo caindo no céu, e aparentemente isso é o suficiente para que tenham lhe oferecido uma fortuna como indenização para ficar quieto. Confuso, o homem resolve gastar o dinheiro para recriar uma cena que lhe aparece na cabeça. Ele contrata empreiteiros, arquitetos e atores cuja única função é recriar a memória de um prédio com uma rachadura específica, com um pianista no primeiro andar, uma vizinha que cozinha fígado, gatos no telhado ao lado... A cena deve se repetir infinitamente, conforme as outubro 2012 27


ensaio


Dois desdéns fingidos, um flerte e a prontidão da justiça em Tartufo, de Molière Cesare Rodrigues 1 O rapaz entra esbaforido. Acaba de descobrir que sua noiva desposaria outro homem por ordem do pai. Discutem a amplitude do amor dos dois. Desdenham fingidamente dele. O rapaz a aconselha que siga a determinação. Ela se apresenta pronta a submeter-se, sendo ele quem aconselha. Fazem cena exagerada, disfarçando muito mal um amor que os deixa tensos. Não fosse a eloquente presença da criada botar-lhes os pés no chão e tudo estaria perdido para o amor dos dois. Ela tem que puxar um e o outro ao centro do palco, fazê-los dar as mãos e confirmar que seu amor pode vencer a ameaça. Depois tem trabalho para separar os namorados falastrões cada um para seu rumo. A cena é de Tartufo [1664], clássica peça do rei da comédia outubro 2012 29


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francesa, Molière, famoso por ter morrido efusivamente aplaudido em cena [de O Doente Imaginário, de 1673] e ter dado novo sentido ao gênero que se encontrava combalido, não gozando de nenhum prestígio até que o ator Molière se inventasse autor e o revitalizasse. Seu cenário é a então corrente Paris do século XVII, da graciosa corte do Rei Sol, Luis XIV, quando a modernidade ainda nem ameaçava ruir a aristocracia em seus velhos costumes e apenas começava a borbulhar no imaginário da burguesia. Molière, muito à frente, já fazia rir da ainda embrionária decadência dos costumes. As personagens dessa cena, a que encerra o segundo ato, são Valère, Mariane e Dorine, a criada. Pouco antes, Mariane e Dorine discutiam o amor da primeira por Valère, seu noivo. Prometida em casamento ao moço, Mariane agora deveria, por ordem do pai, casar-se com Tartufo, o falso beato que ainda sequer aparecera em cena, mas cujo angelical comportamento arrebatara o pai e o fizera inconsequente desonrar a promessa da filha. A situação tragicômica do desdém fingido, ridículo e dissimulado dos dois em meio às inúmeras críticas alegóricas à sociedade francesa é uma doce intransigência, a cena mais desnecessária da 30 MACONDO revista literária

peça para simplesmente rir-se da paixão, uma pequena digressão de amor.

2 Molière à época já gozava de prestígio como o grande comediante da França. Com ásperas análises sociais, suas peças iam além do riso: divulgavam ideias e estimulavam o pensamento crítico e atuante. Incomodavam, pela falta de sutileza, aos mais diversos estratos e tirava gargalhadas de tudo e de todos, o que acarretou-lhe problemas com a censura e a Igreja. Especialmente por Tartufo, um sacerdote mais exaltado chegou a conclamar: “sacrifique o autor no fogo, cujas chamas hão de ser-lhe o prenúncio do inferno!”. Mas se antes, ainda apenas ator, já peitara a todos e tornara-se grande com a menosprezada comédia, a despeito de ser então a tragédia maior garantia de fama e sucesso, o dramaturgo não retrocederia em polêmicas e potencial crítico, embora tivesse que ceder um pouco em seu arrebatamento à onipotência do Príncipe. Com pequenas alterações, o mundo estaria salvo para Tartufo & companhia e Molière faria outro retumbante sucesso no papel do manipulável Orgon.


3 Muito da potência e do mistério da peça intensifica-se a cada momento por uma ausência: Tartufo, a personagem-título, demora a aparecer em cena. Até o terceiro ato é ansiosamente aguardado, precedido de muita reputação [é em torno de si que se desenrolam os diálogos dos dois primeiros atos e inclusive a desnecessária cena dos desdéns]. Quando ele finalmente aparece [o noivo por quem Mariane trocaria Valère, o anjo que conduziria Orgon e toda a família ao céu, o falso beato tirando proveito da fé alheia], os conflitos começam a se apresentar e resolver tão rapidamente quanto sua ingenuidade permite. O “vilão mal-intencionado”, não consegue conter o desejo e atira-se sobre a mulher de seu anfitrião, ainda que essa atitude o desmascarasse. Fosse o vilão tão mesquinho e calculista, casar-se-ia com Mariane e viveria bem às custas de Orgon. Mas lá foi Tartufo dar ouvidos à emoção, seguiu seu desejo e botaria todo o plano a perder não fosse tão longe a cegueira de Orgon, que transferiria ao beato todo o patrimônio como prova de confiança mesmo após o flagrante do filho no primeiro flerte: Uma cena apresenta Damis e sua revolta diante da atitude do pai, que anunciara

o casamento de Mariane com o beato. Ele se esconde dentro de um gabinete e flagra, numa das primeiras aparições de Tartufo o grande ápice da peça, a demonstração de fraqueza que incrimina o vilão e começa a botar o plano a perder: o flerte. Estão em cena Tartufo, Elmire [a esposa de Orgon, pai de Mariane e Damis] e Damis, escondido. Tartufo toca o joelho de Elmire, aproxima-lhe a cadeira e confessa o amor. Provocado, [“o que desejo é apenas uma conversa em que seu coração de revele e nada me esconda” ou “acho que todos os seus suspiros dirigem-se ao céu e nada aqui em baixo atrai os seus desejos”] Tartufo revela-se verborrágico e audacioso ao ofertar-lhe o coração, mas o arrebatamento de Damis interrompe a confissão e rouba a cena [e acaba com o plano de Elmire de trocar seu silêncio pela rejeição de Tartufo em casar-se com Mariane]. Sua insatisfação o leva a denunciar o beato ao pai, a despeito da mãe preferir a discrição, e é expulso de casa pelo pai por ousar questionar tão pura alma. Cego, apaixonado por Tartufo, Orgon passa-lhe a propriedade de todos os bens e o falso beato prontamente os exige após ser flagrado por Orgon, escondido como o filho numa armadilha tramada por Elmire, em uma segunda outubro 2012 31


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investida pelo coração de sua esposa. O desastrado Tartufo exige pela força da justiça os bens e entrega a ela os segredos comprometedores de Orgon. A peça se encaminha para a vitória do vilão valendo-se da boa fé da aristocracia. Mas, para a felicidade da corte, a justiça não tarda em magicamente se fazer: pune o larápio e devolve os bens a Orgon. Um abrandamento necessário para ser aceito pela censura, no final a Justiça do Príncipe se sobrepõe ao talento e vilania de Tartufo e até Valère toma de volta a mão de Mariane, a despeito do desdém fingido de algumas cenas antes.

4 O núcleo donde se dá a explosão dramática em Molière é a interpretação do ator. Foi de dentro da cena que ele descobriu o teatro e é lá que o teatro acontece. O texto de Tartufo não passa de sequência de falas, um script com apenas uma ou outra rubrica, quando estritamente indispensável. A capacidade de improviso e personificação de alegorias do ator deve não apenas dar vida à personagem, mas conduzir todo o ritmo da peça. 32 MACONDO revista literária

O minimalismo cênico atira toda a representação apenas ao jogo de relações e é por dominá-lo que o vilão Tartufo sairia como o vencedor. Apenas Cléante e Dorine, menos influenciados por Tartufo e menos influentes na família, não perdem o controle das ações movidos pela paixão. Os racionais são os impotentes. E os poderosos entregam suas vidas a impostores, charlatães e todo tipo de vendedores de fé e de sorte. O grande problema estaria justamente aí. A Igreja viu-se ofendida por ter um personagem beato [cuja caracterização se assemelhava muito à dos sacerdotes] escancarando seus defeitos como vilão e tapeando a fé da aristocracia. Molière poderia utilizar suas histriônicas personagens alegóricas, equiparadas por Baudelaire aos deuses e heróis gregos em suas lendárias Flores do Mal, para fazer troça com todo o mundo, desde que não ofendesse a fé em Deus e no Príncipe. Então vem a fantástica lição de moral do final, corrige as intransigências, dá a vitória ao bem e permite que Tartufo se torne parte do cânone da literatura ocidental.


contos


contos

o personagem heleno luiz gustavo saldanha O ensaio – ensaia. O menino Heleno. O texto a decorar, quase completo. Não era papel protagonista, longe disso, mínimas falas, coadjuvante, com entradas em cena contadas em uma só mão – enxutas aparições em uma tragicomédia repleta vil. Às sextas-feiras, após o término da fatigante aula de matemática, Heleno lascava uma bitoquinha em sua estimada namoradinha, comprimia-a rijamente com braços de adeus e logo se apressava para o ensaio no acanhado teatro do próprio colégio. Nem almoçava. Desalterava-se de palco mesmo. Ainda ávido de pressa, vestia um traje mais frouxo e, como um ritual sacro despropositado, cumprimentava o restante do elenco, acenava ao senhor medianeiro diretor – seu também professor de palco e curador do espetáculo –, este que nada exprimia além de uma costumeira indistinção na face. Feito isso, o garoto ensimesmava em um canto ao ermo – às vezes no banheiro 34 MACONDO revista literária

–, represava-se nas duas laudas pendidas em suas mãos ansiosas, matronas de suas falas; apreendia cada fonema e suas devidas entonações, com fugazes frases abafadas pelas melindrosas mãos concavadas sobre a boca, apetecia ele penetrar como punhal a personagem. E conseguia. “Mas que tramoia é essa de teatro, meu filho”, era o que mãe de Heleno, com ameno espanto, indagava-lhe ao apanhar o garoto, buliçoso, burilando bucais mímicas de seu mindinho texto, em seu quarto eremita, agora tablado particular? “Coisa de professor, mãe”, respondia convincente, deslizando de si, ao menos na conversa, o pesar de sua escolha sobretudo instintiva – um lupino escondendo a fome. A mãe assentia e não mais discutia, voltava, portanto, à sua molesta pia – labuta de todo dia. O fato é que Heleno sempre farejou, escondido que fosse, tudo o que era simpático e contíguo a cênicas, apreciava as entrevistas com atores no diário dominical, lia as críticas, as quais eram escritas com garbo, falavam elas de energia espiritual dos personagens – como seria aquilo? O menino apenas achava descontração diante de sua compreensível temporã incompreensão –; contudo, enfunava-se em anseio próprio de pela primeira vez ser apresentado a um


espírito de artista. Heleno era recatado, calado, contido, ria para si, desejava só para si – não revelava. Teve magno estorvo ao abordar o professor diretor e admitir-lhe que gostaria, sem arengo e de corpo liberto, de estrear em sua trupe – gaguejou. O diretor professor sorriu faceiramente e pediu ao garoto assaz tímido que escolhesse uma personagem, visto que os papéis masculinos já haviam sido fisgados por outros dois meninos um tanto mais ligeiros. Dona Fausta, a mãe da personagem principal, mera secundária, resguardava-se, tomada pelo tricô, em uma cenográfica cadeira de balanço; quando entrava em cena, ora ou outra questionava sua filha sobre casório – tinha a presumida velha anseio de matrimônio, no roteiro. Tinha Heleno, moroso de empáfia, receio de sua manifestação; elegera, portanto, papel apoucado como o seu primeiro. Dona Fausta era o bastante para Heleno – era minúscula. Aliviado pela valentia na escolha arrojada, regressou salteando para casa ainda encorajado; proseou algumas ninharias com a família – pais e os irmãos –, entrincheirou-se, enfim, em seu quarto, aprazido, aprazendo-se do seu modo: só para si. Calcar os pés na madeirada brunida do acanhado palco do colégio era um sentir bem distinto do vislumbrar

do palco recheado com todos os seus atores afamados de um teatro hercúleo qualquer, na imagem preta e branca do diário de domingo, comprado com esse intento único: a contemplação. A fotografia caluniava – carecia do deleitoso. O sentir de Heleno tinha algo estrambólico e também aprazível, composto do penetrante cheiro inegável de madeira e seus agudos conservantes, amalgamado ao ranço natural que as combalidas cortinas empoeiradas exalavam; mas, sobretudo, aquele sentir do palco detinha, em sua composição, a visão do teatro de baixo para cima: de dentro para fora – o que de fato era deveras singular ao garoto; e aí, sim, era o anônimo espírito de artista lhanamente floreando. O prazer encoberto; esse talvez o real abismo da dualidade nata entre ator e espectador: a inefável visão em cena de quem tem por dever mencionar-se. Heleno optara agora por ser ator, não importando se absconso, mencionaria seu brado de alforria. Vivia, contudo, para os fatigantes ensaios de sexta à tarde, intumescia-se durante a duradoura semana, de ardor, vigor, amor, e o ensaio era a catarse de tudo isso. Levitava nu dentro de suas roupas frouxas, ouvia os mordicantes pisados dos atores outros no palco – lapsos régios de som –; e, então, Heleno asseverava-se de que ao outubro 2012 35


contos

cênico queria atar-se perpetuamente sem reversão do almejo, pois seu corpo florescia-se e, como é espontâneo do corpo, enrubescia-se, ansiava-se; os pulmões labutavam ao limiar do desespero – era momento de entrada em cena. Texto dito com retidão, uns ou outros remendos de expressão feitos pelo complacente diretor a título de direção – encenação mesquinha que fazia o menino crer que havia sido concebido para tal... “Não há desvio de destino”, pensava consigo. Ao final, o suor que escorria pela testa era o afirmado particular de logro, como quase sempre ele é. Suor que se anovelava às lágrimas voluntárias, em uma aguaceiro só – ninguém o percebia enquanto voltava para casa, à noitinha. Como o corpo não se manifestar ao descarar outra vida em si! Heleno chorava e secava-se. Tremia. Estremeciam as mãos finas de dedos alongados – os pelos ralos dos braços eriçavam de chofre. Era o deflorador som despretensioso enveredando-se pelos ouvidos surpreendidos de Heleno, e logo o mesmo corpo que suava de logro, suava agora de pavor. Logro e medo ladeiam-se sem notar-se um ao outro – ora se esbarram. Aquela concisa, porém bem cabida frase do diretor ao seu elenco, soara sobretudo angular no peito frágil do menino ago36 MACONDO revista literária

ra inteiro trêmulo – “Pessoal, é nossa última semana de ensaio”. O espetáculo precipitava-se com presteza de tempestade. Receio de Heleno. Hesitação de menino flanqueando os quatorze anos. Cria Heleno que permaneceria repetindo as enfadonhas minúsculas falas de Dona Fausta até quando se sentisse confortável, cingindo a perfeição; ou quiçá nunca houvesse devaneado semelhante esmo de apresentação. Era um menino parvo em si, parvo de si. E, se esquecesse, eventualmente, uma fala qualquer das duas laudas tão revisadas – receava –, se saísse ainda em disparada pela porta detrás do teatro no exato momento de sua entrada em cena – hesitava. Não lhe contaram que teria que se mostrar a um público sequioso e apreensivo, que abarrotaria o somítico espaço, testemunhando até os involuntários triviais coxos de verbos e de movimentos corpóreos de todos os atores. Ensaio é a fim de aguardar a apresentação, a Heleno era tão somente a fim de descoberta. O garoto chorava no enclausurado banheiro do teatro, desramava lágrimas de aflição dos olhos desencorajados em encarar-se – não se fitava de modo algum no espelho. Era incapaz. Náusea, náuseas – frisos no estômago. Cogitou abalroar o compreensível professor, com verossímil coragem


que o fizera anteriormente voluntariar-se à trupe, e clamar por adiamento ou até por sua renuncia ao papel de Dona Fausta – não o fez, estagnou-se no banheiro, purgando-se com seu sincero choro. Não iria comprometer a trupe e o público aflito do espetáculo, Heleno era fraco, mas zeloso para com os outros. Foi para casa, afinal, havia de engendrar um figurino e uma suave maquiagem; sobretudo, havia de lavrar, em reservado, sua ingenuidade com a água estreme e franca do seu pranto. Heleno fazia teatro de si. Custou a adormecer à noite, apenas uma dormitação ligeira que lhe fez sonhar com aplausos e ovação – um naco de credo ainda porfiava. E, quando o sol já acalorava, ergueu-se de súbito como se apurado do sonho, sem nenhuma relutância do corpo, havia de acossar um figurino. O espetáculo não tardava. “Ó Alguém, o que fazer”, o débil garoto questionava, desamparava-se. Heleno era tão somente desassossego. A casa desértica. Nela, naquela manhã, só Heleno desesperado, inquieto, obstinado a montar seu figurino, vagando de lado a outro a procura de... A única provável fornecedora de adornos à Dona Fausta, naquela casa, só poderia ser a senhora mãe de Heleno – solitária mulher em meio à família –, todavia, o empréstimo de qualquer trivial objeto

havia de ser velado da proprietária – a mãe desgostava, com ódio, Dona Fausta. Correu ao quarto dos pais, cômodo convidativo, aberto, no qual os armários eram recheados de feminidades da mãe. Vasculhou gavetas perras e armários rangentes, calhou nos vestidos diversos em cores e tecidos – figurino tão conveniente seria um vestido. Um vestido antiquado rubro, de seda, com uma linha cintilante prata perseguindo o decote – não vacilou em escolhê-lo. Quis carregá-lo o quanto antes, que fosse embolado nos braços – temia –, quis ainda o experimentar ali mesmo – precipitava-se. A forma para um conteúdo. A bainha do vestido um palmo abaixo do joelho ossudo do menino – cumprimento e largura exatos na lisura. A seda grudou naquele corpo esbelto de modo a evidenciar uma precoce, mas natural lascívia. Heleno, então, abriu uma gaveta larga, e lá estavam diversos pares de sandálias, sapatos, tamancos, chinelas; catou uma sandália preta sem muita arbitrariedade, contanto que tivesse tacão bem alteado. As sandálias pretas exibiram-se justas nos pés finos e firmes do garoto, marcando a pele e ateando-lhe aparência terna, de fêmea. Heleno abrandava sua pressa – respirava não mais imerso. Em seguida, deparou-se de relance perpassando ante ao espelho da outubro 2012 37


contos

penteadeira, retornou a ele e contem- lá – por fim, saiu do quarto caminhado plou-se: as nádegas bem sobrepujadas compassado, ás sobre o salto, rindo: Hepelo vermelho e pelo charmoso tacão leno rindo como Hiena. – curvatura bem contornada dos músculos, rígidos, um tanto mais estimados. Demorou-se um certo tempo transmudando as poses diante do espelho, de costas, de frente, de soslaio, alternando pernas; e, por fim, percebeu um busto liso, faltoso em tudo. Recorreu à penteadeira, apanhou o mais fulgurante dos vastos colares – alusivo a um rubim –, no pescoço árido era onde posaria a peça. Os braços longos e secos derramando-se na seda vermelha do vestido como orvalho sobre as folhas, ornavam elegância juntos às pulseiras douradas. Percorrendo adiante seu corpo com os olhos e com o tato, Heleno avistou o rosto lívido, insosso, paralisou-se estarrecido, pensou ter visto outra pessoa, quiçá uma legítima mulher – não prolongou desconfiança. Assaltou, sim, as tintas da mãe e não as poupou em seu rosto jovial, meneando-as: cílios tingidos de negro, lábios dardejantes – rubros. Fitou-se por penúltimas e últimas vezes no espelho escancarado da penteadeira – dos pés à cabeça –, escondeu com o cabelo curto as orelhas cruas sem brincos. E, como esmero, borrifou duas vezes, no pescoço e nos pulsos, o adocicado perfume de fêmea que encontrou por 38 MACONDO revista literária


o homem que virou relógio raymundo netto Cruzava a praça da igreja matriz quando, súbito, estacou e dali não mais deu único passo. As pessoas o viam, perguntavam “passa bem”, ele de apenas tiquetaquear palavras mecânicas, quase absurdas. Os dias passaram. Ele, inda imóvel na praça, empoleirado por pássaros e pombos. Movimento apenas o de sua sombra a alongar-se pelos mosaicos de cimento, servindo de relógio aos moradores da cidade. Com o tempo e o costume, aperfeiçoou-se na função: anunciava as horas, aniversários e datas festivas, cantava músicas de meia em meia hora, enfeitava comícios, despertava a cidade, acalentava os bêbados dela aos seus pés. Levou um tempo. As crianças e a cidade cresceram. Aquele homem no meio da praça parecia antiquado à modernosidade invadida e dominante da região. As mentalidades ditavam-lhe o

futuro de consumo. Tempos-há, olhavam-no com desdém, logo aqueles que, há pouco, lhe precisaram tanto. De outro lado, não era mais o mesmo... atrasava! Os mais saudosistas inda tentaram, levaram-lhes medicamentos, assistência médica, mas era de certo a sua debilidade. Sabia-se ser o rastro das horas implacável até com quem devotara a própria vida à sua causa. Dia, à tristeza de alguns – poucos –, operário veio à praça e o picaretou a não deixar-lhe sequer lembrança. Noutro, muito rápido assim, rapazinho de pele úmida surgia e se fixara em semelhante local. Olhos brilhantes, digitais, e lume no sorriso, anunciavam de o tempo não poder parar, ao final, é do futuro chegar sempre, devastando o entulho da humanidade.

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contos

espelho, espelho meu ednice peixoto A faca desliza sem estranhamento. Um filete de sangue escorre, descobrindo a falta de realeza no vermelho que cai. Um impulso mais forte atravessa a pele causando um pequeno estremecimento. Não dor, um roçar mais quente. Acostumada, não se importa. Enfinca a ponta da faca, fazendo um semi-arco no braço, deixando um risco de sangue viscoso a escorrer. O alvor do pano se escurece no enxugar. Normal. Nada para ela é estranho. Ninguém conhece esses traços que se misturam às veias das coxas, aos músculos das costas, às glândulas dos seios. Nua nunca se postara a ninguém, médico, amante. Só ao espelho se dá. E por causa dele começara a se lanhar em desespero à imagem refletida. Naquela hora aprendera a odiar seu corpo. Não adiantava os vestidos moldados com desvelo que a mãe insistia em meter-lhe corpo a fora. A lingerie comprada em grandes lojas, tecido que ama40 MACONDO revista literária

ciava as mãos e punha-lhe fogo. Vestia obrigada e amuava-se calada e hirta na cadeira da sala à vista de todos. O silêncio lhe roendo por dentro, na cabeça de todos uma doida. De que adiantavam aqueles panos, se a carne era má e feia? Pra que tudo se a danação vivia dentro dela, forçando léguas? Des tá, dizia pra si, um dia verão! A promessa nem mesmo lhe tinha sentido, pois não sabia o que fazer para descontar a raiva que lhe impregnava o viver. Olhar-se era o que lhe restava. A imagem era de um mar sem fim, o espelho parecia entronchar a moldura, querendo da parede se esvair. Se tivesse coragem, punha-se nua à frente de um médico pedindo que lhe arrancasse o excesso, deixando-a fina. A vergonha, no entanto, não lhe permite tal ousadia. A casa se tornara um claustro. Há tempo deixara a escola, os encontros com as amigas. Contato só telefônico, mesmo assim com poucos. Como se mostrar larga ao ponto de mal caber numa cadeira? A imagem que via era grotesca, puxada por um guindaste para subir num ônibus, em automóvel qualquer, vítima de risos, olhares de repulsa, alguns até de pena. Percebe que aos poucos uma inquietação se apodera da mãe. Olhares dissimulados, gavetas remexidas, sinais


de uma vigilância disfarçada. Não se incomoda. Aprendera a esconder os sinais. Confiante, sabe que a mãe não lhe descobrirá os esconderijos onde seus utensílios de tortura são guardados, onde seus líquidos viscosos em fel são enterrados. É preciso ter cuidado com o comer. Não pode se deixar convencer pela mãe que reclama da comida de pinto que jaz no prato. Todos os dias a cantilena à mesa lhe martela a necessidade de se alimentar bem, de se exercitar, que ela não está Moby Dick. Sabe de tudo isso, mas sucumbir àquele pudim é deixar mais disforme a imagem no espelho, é riscar mais sangue no corpo que a custo se mantém sobre os pés. Aos poucos um cansaço toma conta de seu corpo, as pernas com vida própria se negam ao movimento, deixando-a prostrada na maior parte do tempo. Recusa o suco, o remédio, nega-se ao médico. Alucinações lhe atormentam e aos gritos pede para que retirem do quarto o espelho, onde se vê com tantas longitudes. Alarmada ao ver os lanhos no corpo da filha, a mãe não compreende. O primeiro pensamento é de culpa pela cegueira em não ver o quanto a filha sofria. Na tentativa de remediar o que já parece definitivo, chama o médico.

Basta um olhar para que o doutor se transforme em juiz decretando um fim. O espelho ainda no quarto atesta um corpo ludibriado pela ilusão de ser vasto, quando na cama repousa somente pele, ossos à vista.

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crônica

Quase um fado (in Memoriam de Maria Ondina Braga)

Ernane Catroli AQUI, O CÉU NEGRO E FIXO. Março pelo meio. O vento frio lá dos lados do rio: um introito. Assim, evitando detalhes. Que se fosse contar, só olhos vermelhos e choro desamparado. Que também, nem era hora de morrer! Onde um deserto? E revejo o antigo casarão de frente para a avenida ladeada das centenárias tílias. Os escaninhos da memória devolvendo-me inteira, nítida, a casa paterna que deixara ainda jovem e a cidade natal que a marcara para sempre: Braga. Não esquecer: também e sempre, o seu desejo de outras terras. Uma errância que lhe caíra como uma sina. A Inglaterra, a França e a Escócia onde estudara e trabalhara na sua juventude. E aí, então, os lares alheios. As marcas indeléveis. Mais tarde, Angola, Goa, Macau. Pequim depois. Uma vida dedicada a escrever, a traduzir. A lecionar. Em Macau, no antigo colégio de freiras onde também ocupava um quarto – um cubículo, separado de outros por biombos - na casa destinada às professoras, atrás da igreja do convento. Alta madrugada, e ouvia-se o ressonar das companheiras. Tão próximas. Irmanadas no sono, no ofício e no salário pouco. A sua vida de recolhimento. De exílio. E que também muito dada ao silêncio. À solidão. Às vozes dos seus mortos. Um cotidiano povoado de personagens misteriosos, sedutores. As filigranas do seu texto, o seu sentir. Isso o que lhe sobrara, o que lhe ocupara, atendendo a um apelo interior, antigo, desde a infância. A infância. Esse território. Territórios. Aquela manhã envolta em brumas e o seu retorno à cidade natal... Uma senhora. O xale negro. Os ombros arqueados, um rosto de sombras. Até a missa na igreja de São Lázaro. Depois, o cortejo. O cemitério dos Arcos. Um silêncio. Tanto.

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bibliophilia


bibliophilia

A fugitiva (Em busca do tempo perdido, volume 6) MARCEL PROUST (TRADUÇÃO DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE), GLOBO LIVROS

392P. (2012)

A Globo Livros acaba de relançar o volume 6 de Em Busca do Tempo Perdido, magnânima obra da história da literatura mundial. Há quem diga que Proust foi não só o principal escritor deste último século como, ainda, responsável pelas melhores narrativas que acompanham os fluxos introspectivos de pensamento e consciência das personagens, construídos com tanta coerência quanto maestria. A fugitiva talvez seja um dos volumes que mais nos despertam a atenção dentre todos deste tempo perdido. A revisitação mnêmica de Marcel encontra-se com a reconstrução e recomposição da relação com Albertina que o deixa só e sem notícias. Na interposição entre memória e imaginação, a partir da separação, Marcel também se depara com descobertas e acontecimentos que mudariam significativamente seu caminho e percebe, por fim, que a perda é inerente à vida, assim como os constantes recomeços. Para além do autor e da própria obra, outras duas constatações merecem nosso destaque: em primeiro lugar, a reedição primorosa e muito bonita que, tratada com bastante esmero, não se sobressai somente pela qualidade “concreta” do livro – prefácios e posfácios escritos por grandes estudiosos da obra proustiana, bem como notas e novos trechos que não faziam parte da tradução da primeira edição brasileira, completam a obra-prima. Em segundo lugar, os méritos ficam pelo “conjunto da obra”: a Globo Livros nos brinda com livros cuja composição da tradução diz muito da qualidade literária nacional. O presente volume ficou a cargo de Carlos Drummond de Andrade, mas também compõem o time de tradutores nacionais de Proust os poetas Mario Quintana e Manuel Bandeira. Não dá pra não ler... 44 MACONDO revista literária


bibliophilia

Os acangapebas RAYMUNDO NETTO, FUNDO DE QUINTAL

150P. (2012)

Nascido em Fortaleza, O autor dedica-se ao mundo das artes desde 1995. As narrativas curtas que compõem Os acangapebas, embora autônomas, logram o estabelecimento de um diálogo entre si. A linguagem de Raymundo Netto tem tamanho potencial que

aquilo que poderia ser considerado, por vezes, um registro do corriqueiro, une-se, aqui, a uma notória inventividade. A capacidade de criar, em poucas linhas a maioria dos contos se concentra em duas ou três páginas -, personagens que são, a um só tempo, anônimos e permeados por características peculiares só corrobora com a força que emana da prosa (na melhor acepção da palavra) de Netto. Como exemplo, recomendamos a leitura de O homem que virou relógio, publicado na seção de contos desta edição da revista. No mais, desejamos a todos que tenham acesso à literatura vigorante - mesmo quando tematiza o contrário do autor.

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jorge luiz mendonรงa martinez

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domínio público

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João do Rio

Paulo Barreto (João P. Emílio Cristóvão dos Santos Coelho B.; pseudônimo literário: João do Rio), jornalista, cronista, contista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 5 de agosto de 1881, e faleceu na mesma cidade em 23 de junho de 1921. Eleito em 7 de maio de 1910 para a Cadeira n. 26, na sucessão de Guimarães Passos, foi recebido em 12 de agosto de 1910, pelo acadêmico Coelho Neto. Era filho de educador Alfredo Coelho Barreto e de Florência Cristóvão dos Santos Barreto. Adepto do Positivismo,

o pai fez batizar o filho na igreja positivista, esperando que o pequeno Paulo viesse a seguir os passos de Teixeira Mendes. Mas Paulo Barreto jamais levaria a sério a igreja comtista, nem qualquer outra, a não ser como tema de reportagem. Fez os estudos elementares e de humanidades com o pai. Aos 16 anos, ingressou na imprensa. Em 1918, estava no jornal Cidade do Rio, ao lado de José do Patrocínio e o seu grupo de colaboradores. Surgiu então o pseudônimo de João do Rio, com o qual se consagraria literariamente. Seguiram-se outras redações de jornais, e João do Rio se notabilizou como o primeiro homem da imprensa brasileira a ter o senso da reportagem moderna. Começou a publicar suas grandes reportagens, que tanto sucesso obtiveram no Rio e em todo o Brasil, entre as quais "As religiões no Rio" e inquérito "Momento literário", ambos reunidos depois em livros ainda hoje de leitura proveitosa, sobretudo o segundo, pois constitui excelente fonte de informações acerca do movimento literário do final do século XIX no Brasil. Nos diversos jornais em que trabalhou, granjeou enorme popularidade, sagrando-se como o maior jornalista de seu tempo. Usou vários pseudônimos, além de João do Rio, destacando-se: Claude, Caran d’ache, Joe, José Antônio outubro 2012 49


domínio público

José. Como homem de letras, deixou obras de valor, sobretudo como cronista. Foi o criador da crônica social moderna. Como teatrólogo, teve grande êxito a sua peça A bela madame Vargas, representada pela primeira vez em 22 de outubro de 1912, no Teatro Municipal. Deixou obra vasta, mas efêmera, que de modo algum corresponde à imensa popularidade que desfrutou em vida. Ao falecer, era diretor do diário A Pátria, que fundara em 1920. No seu último "Bilhete" (seção diária que mantinha naquele jornal), escreveu: "Eu apostaria a minha vida (dois anos ainda, se houver muito cuidado, segundo o Rocha Vaz, o Austregésilo, o Guilherme Moura Costa e outras sumidades)..." Seu prognóstico ainda era otimista, pois não lhe restavam mais que alguns minutos quando escreveu aquelas palavras. Seu corpo ficou na redação de A Pátria, exposto à visitação pública. o enterro realizou-se com cortejo de cerca de cem mil pessoas. Na Academia, que então ficava no Silogeu Brasileiro, na praia da Lapa, disse-lhe o discurso de adeus Carlos de Laet. (Texto biográfico retirado do site da Academia Brasileira de Letras)

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Crônica: Os livres acampamentos da miséria Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso - um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no Largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia de operetas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me. - Vocês vão fazer uma seresta? - Sim senhor. - Mas aqui no largo? - Aqui foi só para comprar um pouco de pão e queijo. Nós moramos lá em cima, no morro de Santo Antônio... Eu tinha do morro de Santo An-


tônio a idéia de um lugar onde pobres operários se aglomeravam à espera de habitações, e a tentação veio de acompanhar a seresta morro acima, em sítio tão laboriosamente grave. Dei o necessário para a ceia em perspectiva e declarei-me irresistivelmente preso ao violão. Graças aos céus não era admiração. Muita gente, no dizer do grupo, pensava do mesmo modo; indo visitar os seresteiros no alto da montanha. - Seu tenente Juca - confidenciou o soldado - ainda ontem passou a noite inteira com a gente. E ele quando vem, não quer continência nem que se chame de seu tenente. E só Juca... Vossa Senhoria também é tenente. Eu bem que sei... Já por esse ponto da palestra nós íamos nas sombras do Teatro Lírico. Neguei fracamente o meu posto militar, e começamos a subir o. celebrado morro, sob a infinita palpitação das estrelas. Eu ia à frente com o soldado jovem, que me assegurava do seu heroísmo. Atrás o resto do bando tentava cantar uma modinha a respeito de uns olhos fatais. O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado, descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a iluminação da cidade, no admirável noturno de sombras e luzes, e apresentando de

outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de edifícios públicos - um hospital, um posto astronômico. Bem no alto, aclareada ainda por um civilizado lampião de gás, a casa do doutor Pereira Reis, o matemático professor. Nada de anormal e nem vestígio de gente. O bando parou, afinando os violões. Essa operação foi difícil. O cabrocha que levava o embrulho do pão e do queijo, embrulho a desfazer-se, estava no começo de uma tranqüila embriaguez, os outros discutiam para onde conduzir-me. O soldado tinha uma casa. Mas o Benedito era o presidente do Clube das Violetas, sociedade cantante e dançante com sede lá em cima. Havia, também, a casa do João Rainha. E a casa da Maroca? Ah! mulher! Por causa dela já o jovem praça levara três tiros... Eu olhava e não via a possibilidade de tais moradas. - Você canta, tenente? - Canto, mas vim especialmente para ouvir e ver o samba. - Bom. Então, entremos. Desafinadamente, os violões vibraram. Benedito cuspiu, limpou a boca com as costas da mão, e abriu para o ar sua voz áspera: O morro de Santo Antônio Já não é morro nem nada... Vi, então, que eles se metiam por outubro 2012 51


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uma espécie de corredor encoberto pela erva alta e por algum arvoredo. Acompanhei-os, e dei num outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho, que serpeava descendo, era ora estreito, ora largo, mas cheio de depressões e buracos. De um lado e de outro casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão com cercados, indicando quintais. A descida tornava-se difícil. Os passos falhavam, ora em bossas em relevo, ora em fundões perigosos. O próprio bando descia devagar. De repente parou, batendo a uma porta. - Epa, Baiano! Abre isso... - Que casa é esta? - É um botequim. A tentei. O estabelecimento, construído na escarpa, tinha vários andares, o primeiro à beira do abismo, o outro mais embaixo sustentado por uma árvore, o terceiro ainda mais abaixo, na treva. Ao lado uma cerca, defendendo a entrada geral de tais casinhotos. De dentro uma voz indagou quem era. - É o Constanço, rapaz, abre isso. Quero cachaça. Abriu-se a porta lateral e apareceu primeiro o braço de um negro, depois parte do tronco e finalmente o negro todo. Era um desses tipos que se encontram nos maus lugares, muito amáveis, 52 MACONDO revista literária

muito agradáveis, incapazes de brigar e levando vantagem sobre os valentes. A sua voz era dominada por uma voz de mulher, uma preta que de dentro, ao ver quem pagava, exigiu logo seiscentos réis pela garrafa. - Mas, seiscentos, dona... - À uma hora da noite, fazer o homem levantar em ceroulas, em risco de uma constipação... Mas, Benedito e os outros punham em grande destaque o pagador da passeata daquela noite, e, não resistindo à curiosidade, eles abriram a janela da barraca, que ao mesmo tempo serve de balcão. Dentro ardia, sujamente, uma candeia, alumiando prateleiras com cervejas e vinhos. O soldadinho, cada vez mais tocado, emborcou o corpo para segredar coisas. O Baiano saudou com o ar de quem já foi criado de casa rica. E aí parados enquanto o pessoal tomava Parati como quem bebe água, eu percebi, então, que estava numa cidade dentro da grande cidade. Sim. É o fato. Como se criou ali aquela curiosa vila de miséria indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas abrigadas lá em cima. As casas não se alugam. Vendem-se. Alguns são construtores e habitantes, mas o preço de uma casa regula de


quarenta a setenta mil-réis. Todas são feitas sobre o chão, sem importar as depressões do terreno, com caixões de madeira, folhas de Flandres, taquaras. A grande artéria da urbs era precisamente a que nós atravessávamos. Dessa, partiam várias ruas estreitas, caminhos curtos para casinhotos oscilantes, trepados uns por cima dos outros. Tinha-se, na treva luminosa da noite estrelada, a impressão lida na entrada do arraial de Canudos, ou a funambulesca idéia de um vasto galinheiro multiforme. Aquela gente era operária? Não. A cidade tem um velho pescador, que habita a montanha há vários lustros, e parece ser ouvido. Esse pescador é um chefe. Há um intendente geral, o agente Guerra, que ordena a paz em nome do doutor Reis. O resto é cidade. Só na grande rua que descemos encontramos mais dois botequins e uma casa de pasto, que dá ceias. Estão fechadas, mas basta bater, lá dentro abrem. Está tudo acordado e o Parati corre como não corre a água. Nesta empolgante sociedade, onde cada homem é apenas um animal de instintos impulsivos, em que ora se é muito amigo e grande inimigo de um momento para o outro, as amizades só se demonstram com urna exuberância de abraços e de pegações e de segredinhos assustadora - há o arremedo exato

de uma sociedade constituída. A cidade tem mulheres perdidas, inteiramente da gandaia. Por causa delas tem havido dramas. O soldadinho vai-lhes à porta, bate: - Oh Alice! Alice cachorra, abre isso! Vai ver que aí está o cabo! Eu já andei com ela três meses. - Que admiração, gente!... Todo o mundo! Há casas de casais com união livre, mulheres tomadas. As serenatas param-lhes à porta, há raptos e, de vez em quando, os amantes surgem rugindo, com o revólver na mão. Benedito canta à porta de uma: Ai! Tem pena do Benedito Do Benedito Cabeleira. Mas também há casas de famílias, com meninas decentes. Um dos seresteiros, de chapéu panamá,. diz de vez em quando: - Deixemos de palavrada, que aqui é família! Sim, são famílias, e dormindo tarde porque tais casas parecem ter gente acordada, e a vida noturna ali é como uma permanente serenata. Pergunto a profissão de cada um. Quase todos são operários, "mas estão parados". Eles devem descer à cidade, e arranjar algum cobre. As mulheres, decerto, também descem para apanhar fitas nas casas outubro 2012 53


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de móveis, amostras de café na praça "troços por aí. E a vida lhes sorri e não querem mais e não almejam mais nada. Como Benedito fizesse questão, fui até à sua casa, sede também do Clube das Violetas, de que é presidente. Para não perder tempo, Benedito saltou a cerca do quintal e empurrou a porta, acendendo uma candeia. Eu vi, então, isso: um espaço de teto baixo, separado por uma cortina de saco. Por trás dessa parede de estopa, uma velha cama, onde dormiam várias damas. Benedito apresentou vagamente: - Minha mulher. Para cá da estopa, uma espécie de sala com algumas figurinhas nas paredes, o estandarte do clube, o vexilo das Violetas embrulhado em papel, uma pequena mesa, três homens moços roncando sobre a esteira de terra fria ao lado de dois cães, e, numa rede, tossindo e escarrando, inteiramente indiferente à nossa entrada, um mulato esquálido, que parecia tísico. Era simples. Benedito mudou o casaco e aproveitou a ocasião para mostrar-me quatro ou cinco sinais de facadas e de balaços no corpo seco e musculoso. Depois cuspiu: - Epa, José, fecha... Um dos machos que dormiam embrulhados em colchas de chita ergueu-se, e saímos os dois sem olhar para trás. 54 MACONDO revista literária

Era tempo. Fora, afinando instrumentos, interminavelmente, os seresteiros estavam mesmo como paus-d'água e já se melindravam com referências à maneira de cantar de cada um. Então, resolvemos bater à porta da caverna de João Rainha, formando um barulho formidável. À porta - não era bem porta, porque abria apenas a parte inferior, obrigando as pessoas a entrarem curvadas - clareou uma luz, e entramos todos. Numa cama feita de taquaras dormiam dois desenvolvidos marmanjões, no chão João Rainha e um rapazola de dentes alvos. Nenhuma surpresa, nenhuma contrariedade. Estremunharam-se, perguntaram como eu ia indo, arranjaram com um velho sobretudo o lugar para sentar-me, hospitaleiros e tranqüilos. - Nós trouxemos ceia! - gaguejou um modinheiro. Aí é que lembramos o pão e o queijo, esmagados, amassados entre o braço e o torso do seresteiro. Havia, porém, cachaça - a alma daquilo - e comeu-se assim mesmo, bebendo aos copos o líquido ardente. O jovem soldadinho estirou-se na terra. Um outro deitou-se de papo para o ar. Todos riam, integralmente felizes, dizendo palavras pesadas, numa linguagem cheia de imprevistas imagens. João Rainha, com os braços muito tatuados, começou a can-


tar. - O violão está no norte e você vai pro sul, comentou um da roda. João Rainha esqueceu a modinha. E, enquanto o silêncio se fazia cheio de sono, o cara de papo para o ar desfiou uma outra compridíssima modinha. Olhei o relógio: eram três e meia da manhã. Então, despertei-os com três ou quatro safanões: - Rapaziada, vou embora. Era a ocasião grave. Todos, de um pulo, estavam de pé, querendo acompanhar-me. Saí só, subindo depressa o íngreme caminho, de súbito ingenuamente receoso que essa tournée noturna não acabasse mal. O soldadinho vinha logo atrás, lidando para quebrar o copo entre as mãos. - O tenente, você vai hoje à Penha? - Mas nem há dúvida. - E logo vem ao samba das Violetas? - Pois está claro. Atrás, o bolo dos seresteiros berrava: O morro de Santo Antônio Já não é morro nem nada... E quando de novo cheguei ao alto do morro, dando outra vez com os olhos na cidade, que embaixo dormia iluminada, imaginei chegar de uma longa

viagem a um outro ponto da terra, de uma corrida pelo arraial da sordidez alegre, pelo horror inconsciente da miséria cantadeira, com a visão dos casinhotos e das caras daquele povo vigoroso, refestelado na indigência em vez de trabalhar, conseguindo bem no centro de uma grande cidade a construção inédita de um acampamento de indolência, livre de todas as leis. De repente, lembrei-me que a varíola cairia ali ferozmente, que talvez eu tivesse passado pela toca dos variolosos. Então, apressei o passo de todo. Vinham a empalidecer na pérola da madrugada as estrelas palpitantes e canoramente galos cantavam por trás das ervas altas, nos quintais vizinhos.

(Vida vertiginosa, 1917; para conhecer a obra de João do Rio, acesse o site do Domínio Público) www.dominiopublico.gov.br

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colaboradores ALINE AIMÉE ::: é graduada em Letras, com especialização e mestrado em Literatura Brasileira pela Uerj. Tem textos publicados em diversos sites e revistas virtuais: Diversos Afins, Conexão Maringá, Verbo 21, Garganta da Serpente, Armadilha Poética, Almanaque Virtual e Para ler e pensar. Publicou, ainda, na revista impressa Em Branco e participou da coletânea Entrelinhas II da editora Andross. É autora da coletânea de poemas 12 pétalas, nenhuma flor, ainda inédita e escreve desde 2008 o blog www.palavrainvadida.com . ANDERSON PETRONI ::: nasceu em 1985 em São João da Boa Vista-SP. Reside atualmente em São Carlos - SP. É formado em Imagem e Som pela UFSCar e cursa atualmente Bacharelado em Filosofia nesta mesma instituição. Publica seus poemas e delitos no blog “Pequenos Delitos” (http://delitospequenos.blogspot.com) desde 2007. e-mail: antoniocontini@gmail.com CAMILA DE SÁ ::: Nascida em São Bernardo do Campo, São Paulo, escreve por hábito. Mania de som e registro. Estuda Canto e já estudou Antropologia. Está embarcando na ideia de inspirar delicadeza pela cidade de São Paulo com o grupo de Dança haicai organizado pela dançarina Luciana Bortoletto. Ah, tem amigos incríveis. E um blog também: http://cami-cai. blogspot.com.br/ CARINA CASTRO ::: é estudante de letras e língua árabe na USP, escritora e pesquisadora de literatura infantil. Tem um blogue de coisas, “tudo é coisa!” tudoecoisa.wordpress.com E-mail: cc.carina.castro@gmail.com CESARE RODRIGUES ::: é fã de Rimbaud, Baudelaire, Borges, Walter Benjamin, Tom Waits, Bob Dylan e mais um bocado de gente. Tenta como eles encantar com a criação, ora de poemas, ora de contos, ora de ensaios. O ensaio sobre Molière fez parte do processo de estudo para a escrita de sua primeira peça, “Retalhos”. DAVI ARAÚJO ::: (São Paulo, 1979). Poeta, ficcionista e tradutor. Tem poemas publicados em TriploV, Pó&Teias, Diversos Afins e Mallarmagens. Traduziu Natureza, de Emerson, e Caminhada, de Thoreau. Conclui dois livros de poemas, continuações da trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal. Blogs: http://transatraves.blogspot.com e http://naofiquesao.blogspot.com. E-mail: davis.eu@gmail.com EDNICE PEIXOTO ::: Professora de Língua Portuguesa, assessora da Secretaria Municipal de Educação, Natal, especialista em Gestão Escolar, escrevinhadora. ÉLEN RODRIGUES GONÇALVES ::: é graduanda em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora e, nas horas vagas, escreve em busca de esquecimento. Na área de Letras, é integrante do Projeto de Pesquisa "Viagens por outros mares: diásporas africanas e seus mapas literários", no qual procura desenvolver um arquivo literário e teórico de poetas cuja criação poética precisa ser reconhecida. outubro 2012 57


colaboradores ERNANE CATROLI ::: nasceu em Sant'Anna de Cataguases, (MG-1953), onde passou a infância e juventude. Farmacêutico-bioquímico de formação (UFRJ-1976), exerce atividades científicas e acadêmicas na área de saúde, no Rio de Janeiro, onde reside desde 1972. Publica regularmente em alguns blogs dedicados à cultura. FABIOLA VICTÓRIA WEYKAMP ::: nasceu em Brasília - DF em setembro de 1988. Mudou-se para o Rio Grande do Sul ainda pequena, onde vive até hoje. Estudante - em reta final - do curso de Licenciatura em Letras, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), possui o blog Epílogo onde publica seus textos; é, também, eventual colaboradora do jornal Amigos de Pelotas. Blog pessoal: http://versodigital.blogspot.com/ JORGE LUIZ MENDONÇA MARTINEZ ::: (Santos/SP, 1977). Funcionário público, técnico em artes gráficas. Publicando no blog http://textosinfimos.blogspot.com.br e densamente afundado nos próprios mares mirabolantes. @JorgeLMMartinez LUIZ GUSTAVO SALDANHA ::: tenho 22 anos, sou nascido e residente em Brasília. Sou também graduando em psicologia pela Universidade de Brasília. Entretanto, gosto de literatura, leio literatura e, como é espontâneo de quem ler literatura, escrevo literatura, incipiente, mas ávida para ser lida. Email: luizgustavosal@gmail.com PATRÍCIA VIEIRA DE FARIA ::: é mineira de Coromandel, reside atualmente em Uberlândia, sextanista do curso de medicina da UFU, autora do Blog “Porta dos Fundos” (http://www. portaodosfundos.blogspot.com.br/) e amante incorrigível da palavra que supera o estado de dicionário. Twitter: @PatriciaVFaria RAYMUNDO NETTO ::: Escritor, designer, quadrinhista e produtor cultural. Autor do romance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada" (IMPRECE-2ªedição), ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da SECULT/CE (2005), e dos infanto-juvenis "A Bola da Vez" (2008), "A Casa de Todos e de Ninguém" (2009) e "Os Tributos e a Cidade" (2011), todos pelas Edições Demócrito Rocha. É cronista convidado do Caderno Vida e Arte do jornal O POVO desde 2007. Autor de Os Acangapebas, coletânea de contos, ganhadora do Prêmio Osmundo Pontes da Academia Cearense de Letras (2011) e do Edital de Literatura da SecultFOR (2007). Atualmente é editor adjunto das Edições Demócrito Rocha. SEBASTIÃO RIBEIRO ::: São Luís – MA, 1988. Antologia do Concorso Internazionale de Poesia ‘Castello di Duino” (Ibiskos Editrice Risolo, 2010). 2º lugar no 23º Festival Maranhense de Poesia (2010). Antologia Acorde (Scortecci, 2011), com Igor-Pablo e Wesley Costa. Autor do iminente &. www.sebastiaoribeiro.blogspot.com

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REVISTA MACONDO outubro 2012 www.revistamacondo.co.cc


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