Revista Literatas

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ano

Comissão Nacional de Moçambique Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 29 de Junho de 2012 | Ano II | N°36 | E-mail: r.literatas@gmail.com

As minhas lembranças são horríveis! O Poeta e o Mundo Por: Wislawa Szymborska pag. 6

Um Brevíssimo Olhar Sobre a Literatura de Timor Por: João Paulo T. Esperança pag. 13 e 14


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Editori@l FICHA TÉCNICA

Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa Direcção e Redacção Centro Cultural Brasil - Moçambique

Av. 25 de Setembro, N°1728, C. Postal: 1167, Maputo Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117 117 Fax: +258 21 02 05 84 Fax: +258 21 02 05 84 E-mail: r.literatas@gmail.com E-mail: r.literatas@gmail.comz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz

Independentes até que ponto…?

N

ão querendo portanto opor-me a todo custo, e sendo pelas circunstancia favoráveis

a um escrevivente serio que não sou, mas lúcido destinado nesta arena; veio-me a ideia, nesta edição, pela consciência, reflectir sobre os 37 anos da nossa tão propalada independência, apesar de, poeta, ou mesmo artista qualquer que seja ser-se em si mais independente

DIRECTOR GERAL Nelson Lineu (nelsonlineu@gmail.co m) Cel: +258 82 27 61 184

do que a independência em si. Pois a mesma efeméride é comemorada no dia 25 de

DIRECTOR COMERCIAL Japone Arijuane (jarijuane@gmail.co m) Cel: +258 82 35 63 201

fez jus a pompa, desde os comícios, showmicios, corupmicios; que vão desde as

EDITOR Eduardo Qu ive (eduardoquive@gmail.co m) Cel: +258 82 27 17 645 CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele (amosse1987@yahoo.com.br) Cel: +258 82 57 03 750 REPRES ENTANTES PROVINCIAIS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa COLABORADORES FIXOS Pedro Do Bois (Brasil), João Tala - Angola Mauro Brito (Maputo) Izidro Dimande COLABORAM NES TA EDIÇÃO Décio Bettencourt Mateus - Angola Lop ito Feijoó K.-Angola Fernando Aguiar-Portugal Affonso Romano Santanna-Brasil Cida Sepulveda-Brasil

Junho, como aconteceu na última segunda-feira; uma comemoração que a política oferendas expiatórias, júbilos falaciosos, a bajulação crónica. A questão é: até que ponto vai a liberdade para dar lugar a libertinagem? Pois, no actual Moçambique é difícil identificar estes limites. Como se vê, para qualquer mente, culta ou não; Moçambique é uma arena onde os gladiadores (moçambicanos) estão em jogo de sobrevivência, motivada pela fúria e loucura. É neste cenário em que tudo vale a pena, como valem a pena os 50 anos de ensino superior inferiorizado; de universidades sem paternidade que vão surgindo como cogumelos; institutos fantasmas, formados desinformados; onde valem os diplomas sem méritos, académicos estéreos e quizilentos; juristas, professores, economistas e engenheiros astutos; pessoas a quem importa apenas o titulo e as honras; igrejas torpes e inúteis, onde vale mais o que é de César do que do tal Deus vivo. Os jovens num longo cortejo, em dias laborais, cujo a vida é uma negação ao futuro. Uma arena onde: a corrupção, o crime organizado, a bajulação, a astúcia, a fraude, a superstição, prostituição, o narcotráfico, aparecem como pressupostos básicos que tecem os dias dos meus contemporâ-

COLUNIS TA Marcelo Soriano (Brasil) Nelson Lineu - Maputo Victor Eustaquio– Portugal FOTOGRAFIA Arquivo — Kuphalu xa Eduardo Qu ive ARTE E DES IGN Japone Arijuane PARCEIRO Centro Cultural Brasil—Moçambique

neos patrícios. É neste cenário de adversidades onde a excepção é a regra, a desorganização é organizada, a mediocridade é professada. É, realmente paradoxal, neste cenário, alguém conseguir ser a encruzilhada do pensamento, não é por o caso que o presidente da república chama estes de “distraídos”! Acrescento: anormais, ou mesmo extraterrestres. Japone Arijuane jarijuane@gmail.com


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Livros & Leitores Cida Sepulveda-Brasil

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livro de contos Noites urbanas, de Daniel Piza, é uma compilação de textos muito distintos entre si em matéria de qualidade literária. Há que se pergunt ar: o que considero qualidade literária? A resposta é: um bom texto agrada ao leitor, no caso específico, ao leitor exigente, acostumado às diferentes leituras e ávido por prazer estético. Cert amente tal leitor não nec essita portar carteirinha de filiado a correntes estéticas. Basta que leia por desejo, curiosidade, espírito investigativo e imaginativo. O livro em questão traz alguns contos excelentes e out ros muito fracos. Entre os primeiros cito Golpe de vista e Ledinha. Golpe de vista trata da disputa entre craques de futebol. O texto se destaca pela narrativa tensa que reflete muito bem o clima de uma disputa acirrada. Os per-

sonagens s ão c onvincent es, suas histórias nos remetem à realidade dos jovens pobres que se tornam semideuses através do futebol. Em Ledinha, a intertextualidade com Dom Casmurro é feliz. Uma jovem de periferia, sem dotes físicos e com poucas chances de c onseguir um bom marido, surpreende ao aparecer com um rapaz educado, bem estruturado materialmente, um marido modelo. Casada e ciente das traições do marido, Ledinha as releva, até mesmo quando descobre que a esposa do melhor amigo do casal é amante de seu marido. Quando o marido morre, ela cogita a possibilidade de se aproximar do amigo traído, identifica-se com ele. Mas, logo descarta a idéia. Cert a melancolia perpassa o texto, resultado da consistência humana e poética que o estrutura. A meu ver é o melhor conto da coletânea. Entre os últimos, temos a maioria dos textos. Há de se pergunt ar como o aut or se deixe entrevar a pont o de publicar um “conto” como As quat ro estações, a seguir transcrito integralmente: Alimentou as esperanças no Natal, brindou a chegada do Ano -Novo. Espant ou a tristeza no Carnaval, renovou a fé com a Páscoa. Cobriu os pés no inverno, colheu flores na primavera. E assim chegou ao fim do ano, aguardando o futuro que não veio.

O texto choca pela primariedade. Não se justifica em hipót ese alguma, assim como Descontrole, também transcrito int egralmente: Matou a mulher num surto e foi preso em camisa de força. Alegou que estavam casados havia 20 anos e havia 20 anos brigavam pela posse do c ontrole remot o. E anunciou que vai processar a operadora de TV por ter aumentado, sem aviso, o número de canais. Texto de qualidade muito aquém de uma not ícia comum de jornal. Qual o propósito disso? Educação pelo outono, título insinuant e de um cont o que frustra. A personagem Susana não t em consistência, embora o narrador, convencido de sua obra, tent e construí-la culta e distinta. Ao leitor, ela aparece sem graça e artificial. Circuito interno apresenta indícios de um suspense que não se concretiza, drama forçado. Melodrama escrito com ardor artificial e título sugestivo que a narração frus tra. Auto-estima revela o caráter da maioria dos cont os do livro: falta de assunto e de poesia. Então ela decidiu cont ar para a amiga que vai se casar de novo: “Sim, casar. Voc ê vai conhecê-lo, ele é um homem muito atencioso, que melhorou minha auto -estima. Todas as mulheres gostam dele, sabe? E ele é muito interessante, um ótimo profis sional, que ganha muito bem, mas sabe que a vida não é só dinheiro. Ele me fez sentir mais jovem, mais bonita”. “Mas, afinal, quem é esse homem?” “Meu cirurgião plástico.” Em O último monólogo do grande ator percebe -se o intuito de profundidade psicológica do pers onagem, porém o texto fica na aparência dos sentimentos, nos lugares-comuns do envelhecimento. O drama é apenas sugerido, não vivenciado textualmente. Há um discurso poético do personagem que “salva” o texto da ruína completa. Em c ontrapartida, o desfec ho é protocolar: O ator caiu no banheiro, quase sem fazer barulho. Na manhã seguinte, sua mulher chamou o port eiro do prédio para arrombar a porta. O socorro não chegou a tempo. Seu rosto estava lívido e nítido como nunca.

AQUI ASSISTE-SE FUTEBOL (CONSUMO minímo 2 CERVEJAS, APOSTA 6 CERVEJAS) Aos meus amigos perdedores

FONTE: Porta-Livros Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz

«

Aos meus amigos perdedores

Pela primeira vez, as cartas de amor de Fernando

Pessoa e de Ofélia Queiroz são apre-

Todinho, Gito , Adriano, Edgar e outros que nos acompanhavam

Amosse Mucavele-Maputo

sentadas em edição conjunta, a forma mais adequada para dar a ler uma correspondência, que pressupõe sempre um diálogo, uma interação, a existência concreta de dois interlocutores. Cada carta é, em si mesma, ou a resposta a out ra carta ou pretexto para ela. Até quando o destinatário opta por não responder, de algum modo, o seu silêncio se inscreve na cart a seguinte. Assim, uma relação amorosa, sustentada epistolarmente, como a de Pes-

Quando se joga a bola, joga-se as tristezas e as alegrias. E quando o golo bate a porta do adversário com as suas pedras. A dor mu ito rapidamente machuca o coração do jogador que esta fora das 4 linhas .e quando o arbitro apita falta, penalte o homem se débito que se julga adepto em vez de pedras dispara palavrões em direcção ao juiz da partida ,mas de que valem os palavrões se a sentença foi dita? O ho mem pensa na proposta da vitória que saiu contraria ao resultado. O que fazer se a derrota esta na mesa com as cervejas depositadas antes do jogo? E agora amigo é tempo de reconhecer que na triangulação do meio campo da equipa que os teus olhos sempre declaram-se amantes. jamais conseguirá albergar a circu lação da bola que os pés da minha equipa joga a favor do vento e da sabedoria milenar da qual estão revestidos. Os olhos do homem são grandes, cheios de esperança, mas com graves problemas de cegueira e lembrança (afinal não fo i a minha equipa que vos mandou arrumar as botas no mundial?).

soa e Ofélia, só é, na verdade, ent endível quando os dois discursos se cruzam

e

mut uamente s e refletem.

Neste livro a ideia comum de que estaríamos perante um namoro platónico, sem réstia de erotismo, des faz -se por inteiro. Vemos, enfim, surgir um P essoa diferente do out ro lado do espelho. Um P essoa não só sujeito e manipulador da escrita, mas um Pessoa indefeso, objeto do discurs o (e do afeto) de out rem, personagem de uma história real.»

as suas lágrimas são doces e molham o nosso final feliz, triste é, este seu destino infeliz, as tuas lágrimas são do tamanho do rio Amazonas. por favor ,limpe as com a bandeira do vencedor para melhores sentir o sabor da vitória. Sem margem de duvidas, d úvidas que na margem do rio existem tantos homens alegres? e na foz a felicidade fo i arquitectada. Então foge para longe abordo das asas das aguas do rio que as tuas lágrimas brotaram .E as cervejas que depositamos no silencio dos bancos que agachavam as nossas ovações depois amigo! co m os bolsos vazios, a sede a roubar-te as aspirações ,e agora amigo só te falta beber as suas lágrimas eu continuo a bombardear as cervejas aposentadas na mesa da aposta. (sinta o estrondo GOLLLLLLLLLLOOOOOOOOOOOO,nao é Al Qaeda).


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Eles leram e disseram Olá, Pessoal, Mais uma vez agradeço de coração mais este número dessa fantástica revista. Parabéns pelo belíssimo trabalho! Estive aí em Maputo em Junho de 2011 e adorei o país de vocês. Sua gente é maravilhosa demais da conta (como dizemos aqui em minha terra - Minas Gerais). Quando aí estive comprei inúmeros livros e um deles é de um autor chamado Alex Dau. Gostei demais do trabalho dele. Contos simples e de uma beleza e tanto. Soube inclusive que ele lançou um out ro livro há pouco tempo. Estou até interessada em adquiri-lo. Gostaria de saber de vocês se em alguma revista Literata anterior há algum publicação sobre ele ou entrevista. É que só recebi os números 02, 13, 25,27, 30, 32, 33, 34 e agora a 35). Caso t enha, poderiam me enviar por favor? Mais uma vez, muito obrigada Um abraço Dôra

Recebido. Grato. Repassarei a possíveis interessados.

Saudações Quero vos parabenizar pela passagem do primeiro aniversario da criação do movimento Kuphaluxa. Avante. Avante. Avante. Continuem inspirados e cometidos a causa literária (e social). Quero, igualmente, dar uma opinião em relação as fotos publicadas nesta ultima edição. A edição das fotos merece um grande destaque. Algumas fotos que estão publicadas mostram grandes indícios de terem passado por um trabalho de edição amador. Isso não espelha o profissionalismo com que nos habituaram. Refiro-me as fotos que foram "recortadas". O resto esta' uma maravilha. Notei que o conteúdo da vossa revista tem vindo a ser cada vez mais rico, e aumentou o número de páginas. Isso é de se louvar. Mais uma vez, parabéns. Abraços Vicente Sitoe- Rússia

Por falar nisso, tenho interesse em literatura infantil e juvenil. Agradeceria a gentileza de receber contactos e informações deste segmento em Moçambique. Recebam meu mais cordial abraço, desde Recife, Pernambuco, Brasil. Att., António Nunes

Crónicas

DE TANTAS FALAS & ALGUMA ESCRITA

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uma curta, mas muito bem sucedida, estadia na Covilhã – onde reencontrámos o José Carlos Venâncio, que há mais de duas décadas ali se estabeleceu leccionando e divulgando literaturas africanas na Universidade da Beira-Interior –, tivemos o grato praz er de, uma vez mais, conviver com o mestre Luandino. Falámos de tudo mais alguma coisa dent re tantas coisas do hoje da vida política, cultural (principalmente literária, claro!), da nossa terra nossa amada sempre presente. Inevitavalmente, falámos da nossa História e dos movimentos literários geracionais desde os idos da década de quarenta do passado século. J.A.S. LOPITO FEIJÓO K.- Angola Falámos dos movimentos editoriais em Angola e das actuais editoras do burgo. Falámos dos autores nacionais e estrangeiros, tal como Tomás Vieira da Cruz e seu filho Tomás Jorge, cuja obra poética foi recentemente recolhida e publicada exemplarmente pela „‟Kilombelombe Editora‟‟ do Lapin. Falámos de Geraldo Bessa Victor e de alguns dos seus pecados. Do folclore angolano: Óscar Ribas da Casa Museu e do „‟Missosso‟‟. De Manuel dos Santos Lima de „‟O Buraco‟‟. De A. Neto, Viriato, Mário Pinto, de Jacinto – poeta do ‗‘Kiaposse‘‘, e do Mário António dos ”100 Poemas‟‟. Poeta de refinada pena e apurada sensibilidade. O próprio ensaís ta do „‟Reler Á frica‟‟. Falámos do carácter e da pers onalidade literária de cada um deles, bem como do papel por eles desempenhado no movimento de libert ação nacional. Falámos de Rui Nogar, Craveirinha, Noémia de Sousa, da tia Alda do Espírit o Santo e de Amílcar e Vasco Cabral, todos já falecidos. Falámos, como não podia deixar de ser, da nossa geração de 80 e do nosso contributo para a consolidação e o desenvolvimento do corpus e da ossatura da moderna literatura angolana. Falámos do Ruy Duarte, do David Mestre, do Arlindo Barbeit os e naturalmente da influência destes nas subsequentes propostas de texto estético e literariedade conteudística. Falámos do suplemento «Vida & Cultura», do Jornal de Angola e do ‗‘general‘‘ do jornalismo cultural dos anos 80 em Angola, referindo-nos ao Américo Gonçalves ou Ocirema, como também subscrevia.

Falámos do Luís K andjimbo enquanto dedicado ensaísta africano, das suas polémicas e contradiç ões espirituais. Falámos da Paula Tavares, que chegou mesmo a ser apelidada e taxada (por algumas femeninas mentalidades puritanas de então...), de poeta pornográfica em razão do seu profundo e intenso erotismo poético. Do Zé Luís Mendonça, que desprecisou de ser brigadista da literatura para se afirmar no nosso contexto geracional como um dos maiores senão mesmo o maior, com a sua „‟Chuva Novembrina‟‟, seguida da „‟Gíria de Cacimbo‟‟ e de tantos outros títulos cuja diversidade temática e irónica podemos agora certificar com a sua mais recent e rec olha poética editada em Port ugal pela NÓSSOMOS, uma editora de poesia com propósitos essencialmente de divulgação cultural além-front eiras. Refiro-me, em suposta primeira mão, ao „‟Africalema‟‟. Livro com 102 poemas escolhidos „‟na quinda utilitária „‟ de 9 dos cerc a de 20 publicados pelo autor, sob os desígnios da «existência popular generalizada», em função da incomplet a glória de ser HOMEM e cidadão do mundo, que se alimenta só e somente do fruto das palavras sempre rentes à metáfora dos corpos desnudos. No meio de tantas falas faladas, no carro, no departamento de sociologia da Universidade da B eira-Interior, na biblioteca da Câmara Municipal da Covilhã, e até mesmo nos res taurantes corredores e elevadores do hotel cujo nome não é aqui chamado, algo que nos chamou devidamente a atenção e tocou profundamente o coração foi o facto de que o público leitor e amante da literatura em Portugal já entendeu que Angola, e os demais países africanos colonizados por Portugal, não têm só uma metade de meia dúzia de escritores que lhes são insistentemente apresent ados em razão do circuit o do c omércio editorial. Ficou clara – a preto-e-branco e a cores ! –, a necessidade e e avidez de conhecerem também os outros. Os não euro-descendentes, como diria o Ricardo Riso. Os outros ainda não edit ados em P ortugal. Os outros que só editam localmente. Os outros, os outros, os outros.... pois, os leitores estafados... muito cansados mesmo com os mesmos, os mesmos, e com os mesmos . ...E falámos que isso acontece também por culpa da debilidade das políticas culturais no mundo da culturalmente „‟inexistente‟‟ Comunidade dos P aís es dos cidadãos falant es da Língua que «supostamente» Camões imortalizou. Por isso e por exemplo, os livros editados entre nós não circulam em lado nenhum nem mesmo no interior dos nossos países africanos. Assim sendo, julgamos estar mais que na hora, já com t amanho atraso, de quem de direito pensar e repensar sobre esta suave polémica em questão. Os bens culturais devem circular, mas não de qualquer maneira. Na Covilhã e em boa companhia, passamos momentos regrados e muito bem regados. Falámos, falámos, falámos mas, em abono da verdade e para vosso governo, int eressa me dizer-vos, finalmente, que nós ouvimos mais do que falámos, pois assim reza a regra primeira segundo Ruy Duarte de Carvalho no seu legado: HUMILDADE ! J.A.S. Lopito Feijóo K. Odivelas, Maio de 2012


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Reflexão D

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Wislawa Szymborska –Polónia

O Poeta e o Mundo*

izem que a primeira frase de um discurso é sempre a mais difícil. Bem, ela já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que as fras es ainda por vir - a terceira, a sexta, a décima e assim por diante, at é a última linha - serão igualmente difíceis, pois tenho de falar sobre poesia. Falei muito pouco sobre o assunto - quase nada, de fato. E sempre que falei me veio a furtiva suspeita de que não sou muito boa nisso. Portanto, minha palestra será bem curta. A i m p e r f e iç ã o é m ai s fáci l de t ol e r a r em d o s es pequenas. Os poetas contemporâneos são cépticos e desconfiados até, ou talvez sobret udo, de si mesmos. Só com relutância confessam publicamente ser poetas, como se tivessem um pouco de vergonha. Mas em nossos tempos estrepitosos é mais fácil reconhecer nossos erros, ao menos se estiverem atraent emente embalados, do que reconhecer os próprios méritos, pois estes se mantêm ocultos mais no fundo, e nós mesmos nunca acreditamos muito neles... Quando preenchem fichas ou batem papo com estranhos - ou seja, quando não podem deixar de revelar sua profissão -, os poetas preferem usar o termo genérico "escritor" ou substituir "poeta" pelo nome de qualquer outro trabalho que façam, além de escrever. Buroc ratas e passageiros de ônibus reagem com um toque de inc redulidade e alarme quando descobrem que estão tratando com um poet a. Creio que os filósofos enfrentam reacção semelhante. Cont udo, estão numa posição melhor, pois na maioria das vezes podem ornamentar seu ofício com algum tipo de título universitário. P rofess or Dout or de Filos ofia: iss o s im s oa muit o mais res peit ável. Mas não existem professores de poesia. Afinal de contas, isso significaria que a poesia é uma ocupação que requer um estudo especializado, exames regulares, ensaios teóricos com bibliografia e notas de rodapé anexadas e, por fim, diplomas conferidos com pompa. E significaria, em troca, que não basta encher páginas de poemas, mesmo os mais primorosos do mundo, para tornar-se um poeta. O factor decisivo seria um pedaç o de papel que traz um selo oficial. Lembremos que o orgulho da poesia russa, o futuro ganhador do Prémio Nobel Joseph Brodsky, foi certa vez condenado ao ex ílio em seu próprio país justamente com base nessa ideia. Chamaram -no de "parasita" porque não possuía o certificado oficial que lhe assegurava o direito de ser poet a. Há muitos anos, tive a honra e o prazer de encontrar com Brodsky. Notei que, de todos os poetas que eu conhecia, ele era o único que gostava de se chamar de poeta. Pronunciava a palavra sem inibição. Ao contrário: ele a falava com uma liberdade desafiadora. Isso devia ocorrer, é o que me parece, por causa da lembrança das humilhações que sofreu na juventude. Em países mais afortunados, onde a dignidade humana não é agredida tão facilmente, os poetas almejam ser publicados, lidos e compreendidos, mas fazem pouco, ou quase nada, para se situarem acima do rebanho geral e da roda -viva do dia-a-dia. No ent anto, ainda não faz tanto t empo, os poetas se esforçavam para nos escandalizar c om suas roupas extravagantes e seu comportamento excêntrico. Tudo isso era só para encher os olhos do público. Sempre chegava a hora em que os poetas tinham de fechar a porta atrás de si, despir suas capas, seus penduricalhos e outras parafernálias poéticas e enfrentar - em silêncio, com paciência, à espera de si mesmos - a folha de papel ainda em branc o. P ois , n o fi na l, é is s o o qu e de f at o c ont a. Não é por acaso que filmes biográficos sobre cientistas e artistas célebres são produzidos aos montes. Os directores mais ambiciosos tent am reconstituir de forma convincente o processo criativo que gerou importantes descobertas científicas, ou o surgimento de uma obra-prima. E se pode retratar certos tipos de actividade científica com algum sucesso. Laboratórios, instrumentos diversos, máquinas complicadas em acção: tais cenas podem prender o interesse da plateia durante algum tempo. E aqueles momentos de inc erteza - será que a experiência, realizada pela milésima vez com uma ínfima alteração, produzirá por fim o resultado desejado? - Podem ser dramáticos. Filmes sobre pintores podem ser espectaculares, enquanto recriam todos os estágios da evolução de um pintor famoso, desde o primeiro traço a lápis até a pincelada definitiva. A música se expande nos filmes sobre compositores: os primeiros compassos da melodia que soa nos ouvidos do músico emergem, no fim, como uma obra madura em forma sinfónica. Claro, tudo isso é ingénuo, e não explica o estranho estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas pelo menos existe algo para se olhar e se ouvir. Mas os poetas são os piores. Seu trabalho, inabalavelmente, nada tem de fotogénico. Alguém senta a uma mesa ou deita num sofá enquanto olha imóvel para a parede ou para o teto. De quando em quando, essa pessoa escreve sete linhas, só para riscar uma delas quinze minutos depois, em seguida mais uma hora se passa, durante a qual nada acontece... Quem aguentaria assistir a esse tipo de coisa?Mencionei a ins piração. Poetas contemporâneos respondem de forma evasiva quando lhes perguntam o que é isso, e se existe de verdade. Não é que nunca tenham conhecido a bênção desse impulso interior. Só que não é fácil explicar a uma outra pessoa aquilo que você mesmo não compreende. Quando ocorre de me perguntarem sobre o assunto, também me esquivo. Mas minha resposta é esta: a ins piração não é um privilégio exclusivo de poetas e artistas. Existe, existiu, existirá sempre certo grupo de pessoas a quem a inspiraç ão visita. É formado por todos aqueles que conscientemente escolheram sua voc ação, e faz em seu trabalho com amor e imaginação. Pode incluir médic os, professores, jardineiros - eu poderia fazer uma lista de mais de cem profissões. Seu trabalho se torna uma aventura constante, enquanto forem capazes de continuar a descobrir nele novos desafios. Dificuldades e reveses nunca sufocam a sua curiosidade. Um enxame de questões novas emerge de cada problema que eles solucionam. Seja lá o que for a inspiração, ela nasce de um cont ínuo "não sei". Não existem muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para ganhar a vida. Trabalham porque têm de trabalhar. Não escolhem este ou aquele tipo de trabalho por paixão; as circunstâncias de suas vidas fizeram a escolha por eles. Trabalho sem amor, trabalho maçante, trabalho cujo mérit o consiste no fato de que outros nem isso têm - aí está uma das mais penosas des venturas humanas. E não há sinal de que os séculos vindouros produzirão qualquer m elhora em r e l aç ã o a es t e es t a d o de c o is a s . Assim, embora eu possa recusar aos poetas o monopólio da inspiração, ainda os situo num grupo seleto de favoritos da Fortuna. Neste ponto, certas dúvidas podem surgir na minha plateia. Toda sorte de torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos que lutam pelo poder com um punhado de retumbantes palavras de-ordem também gostam de seu trabalho, e também cumprem suas obrigações com um fervor inventivo.

Bem, está certo: mas eles "sabem", e o que quer que saibam é o suficient e para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada, uma vez que isso pode reduzir a força de seus argumentos. Mas todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperat ura nec essária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a rep res ent a r um a ameaça l etal à soci edade. É por isso que dou tanto valor à pequena frase "não sei". É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande nossa vida para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se Isaac Newt on nunca tivesse dito a si mesmo "não sei", as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter c aído no chão como uma chuva de granizo - no máximo, teria parado para pegá-las e devorá-las com deleite. Se a minha compatriota Marie -Curie Sklodowska nunca tivesse dito a si mesma " não sei", na certa acabaria lecionando química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias, e terminaria seus dias cumprindo esse t rabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela não parou de dizer "não sei", e essas palavras levaram-na, não só uma vez, mas duas, a Estocolmo, onde espíritos inquietos, indagadores, são de tempos em tempos contemplados com o Prémio Nobel. Poetas, se autênticos, também devem repetir "não sei". Todo poema assinala um esforço para responder a essa afirmação, mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a hesitar, a se dar conta de que essa resposta particular era puro artifício, absolutament e inadequada. Portanto, os poetas continuam a tentar e, mais cedo ou mais tarde, os resultados da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, e presos num clipe gigante pelos historiadores da literatura, e passam a ser chamados de suas "obras". Às vezes, sonhos com situações que não podem virar realidade. Imagino, por exemplo, que tenho uma chance de trocar umas palavrinhas com o aut or do Eclesiastes, aquele comovente lamento sobre a vaidade de todos os esforços humanos. Curvo-me profundamente diante dele, pois é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois seguro a sua mão. "Não há nada de novo sob o sol - foi o que você escreveu. Mas você mesmo nasceu novo sob o s ol. E o poema que criou é também novo sob o sol, uma vez que ninguém o havia escrito antes de você. E todos os seus leit ores são também novos sob o sol - aqueles que viveram antes de você não puderam ler o seu poema. E esse cipreste sob o qual está sent ado não cresceu desde o início dos tempos. Nasceu de um out ro cipreste semelhante ao seu, mas não exactamente igual. E, Eclesiastes, eu também gostaria de lhe perguntar que coisa nova sob o sol está agora em seus planos de trabalho. Um suplemento adicional às ideias que já expressou? Ou talvez esteja agora tentado a cont radizer algumas delas ? Em sua obra inicial, você fez menção à alegria - de que adianta se é fugaz ? Então, será que o seu poema novo sob o sol vai falar da alegria? Já tomou notas, fez rascunhos? Duvido que você responda: „Já escrevi tudo, não tenho mais nada a acrescentar'. Não existe no mundo nenhum poeta que possa dizer isso, muito menos um grande poeta como você." O mundo - o que podemos pensar quando estamos apavorados com a sua amplidão e com a nossa própria impotência, ou quando estamos amargurados com a sua indiferença em relação ao sofrimento individual, das pessoas, dos animais e talvez at é das plantas (pois por que estamos tão seguros de que as plantas não sent em dor?); o que podemos pensar sobre as suas vastidões penetradas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas começamos a descobrir, planetas já mortos? Simplesment e não sabemos; o que podemos pensar sobre este teatro imensurável para o qual temos ingressos reservados, mas ingressos cujo prazo de validade é risivelment e curto, delimitado como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos sobre e s t e m u n d o e l e é a s s o m b r o s o . Mas "assombroso" é um epítet o que oc ulta uma armadilha lógica. Ficamos assombrados, afinal de contas, por coisas que divergem de alguma norma conhecida e universalmente aceita, de um truísmo ao qual nos habituamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso assombro existe per se e não s e baseia numa comparação com outra coisa. Claro, na fala quotidiana, em que não paramos a todo instante para ponderar cada palavra, todos usamos expressões como "o mundo comum", "vida comum", "o desenrolar comum dos acontecimentos". Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as palavras, nada é usual ou normal. Nem uma únic a pedra e nem uma única nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem uma única existência, a existência de nenhuma pessoa neste mundo. Tudo indica que os poetas terão sempre uma tarefa muit o árdua à espera. >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>... .... >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

*Este foi o discurso de Wislawa Szymborska na Academia Sueca,

nasceu em 1923, no

vilarejo polonês de Bninie. Durante a Segunda Guerra, foi funcionária do depart ament o de estradas de ferro. Mais tarde, trabalhou como secretária, ilustradora e, durant e décadas, como editora de uma revista cultural. Começou a escrever poesia aos vint e e poucos anos. Em 1949, seu primeiro livro foi censurado pelo regime comunista, que o considerou obscuro demais para as massas. Em 1996, a poeta ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Tinha 73 anos e era praticamente desconhecida fora da Polônia.


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Poesia O TRUMUNO!

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QUE PAIS É ESTE?

Affonso Romano de Sant’anna —Brasil

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Despertar

Waldir Araújo Guiné Bissau

(Fragmento 2) Há 500 anos caçamos índios e operários, Há 500 anos queimamos árvores e hereges,

Décio Bettencourt Mateus – Angola Pés voam descalços o quente d‟areia trumuno o jogo da bola que gira e rola pernas marotas riscam espaços em bolas apressadas de meia. Correrias em pernas loucas cololas, cabritos fintas e trucas na disputa da bola na fuga à escola a garotada feliz aos gritos. Dribles, fintas e truques em pernas craques o mundo na garotada em peitos suados de fora a escola à espera o velho em fúrias de porrada. Nos pés do maestro mestria no passe ao companheiro o maestro finta e escova enfia na ova do defesa o maestro finta e chuta p‟ra baliza. Uaaá! Uaaá! Chulipas, quinhões e cabritos brigas e porradas cafriques quedas e truques acode, acode, é batota, é batota.Apitos, algazarra na garotada. – Oh!, saudades! Eu nas pernas da garotada no peito da miudagem a fazer vadiagem a correr descalço um campo d‟areia; depois o medo a tareia eu em medo, o velho e a porrada! Eu no trumuno do futebol É golo! Golóóóóóóóóóóóóóóóóóó!

Há 500 anos estupramos livros e mulheres, Há 500 anos sugamos negras e aluguéis. Há 500 anos dizemos: que o futuro a Deus pertence, que Deus nasceu na Bahia, que São Jorge é guerreiro, que do amanhã ninguém sabe, que conosco ninguém pode, que quem não pode sacode. Há 500 anos somos pretos de alma branca, não somos nada violentos, quem espera sempre alcança e quem não chora não mama ou quem tem padrinho vivo não morre nunca pagão.

Ergui a taça do vinho e num só gole Traguei a essência das palavras, engoli Gota-a-gota as frases deslizaram-se adentro Sereno, repudiei as faces carentes de alento Ergui a voz e soltei as frases dilacerantes As palavras que ansiavam, escutaram, inertes. Os gestos imobilizaram-se, olhares húmidos! Do verbo, deslizei-me então nos gerúndios: Querendo, lutando, acreditando, negando Provoquei, invocando o medo sonegado Dos murmúrios pedi barulho, agitação Dos olhares vagos se projectaram acção Ergui o olhar e vislumbrei um céu nubloso O prenúncio de uma noite no fundo do poço Invoquei as divindades num parco discurso E fez-se luz! Escolhemos outro percurso!

Dois. Dedos. De. conversa.

Há 500 anos propalamos: este é o país do futuro, antes tarde do que nunca, mais vale quem Deus ajuda e a Europa ainda se curva. Há 500 anos somos raposas verdes colhendo uvas com os olhos, semeamos promessa e vento com tempestades na boca, sonhamos a paz na Suécia com suiças militares, vendemos siris na estrada e papagaios em Haia senzalamos casas-grandes e sobradamos mocambos, bebemos cachaça e brahma joaquim silvério e derrama, a polícia nos dispersa e o futebol nos conclama, cantamos salve-rainhas e salve-se quem puder, pois Jesus Cristo nos mata num carnaval de mulatas

Fernando Aguiar-Portugal


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Entrevista

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Por Érica Cristina Bispo | www.omarrare.uerj.br

As minhas lembranças são horríveis! Abdulai Sila nasceu em Catió, na Guiné-Bissau, em 1º de abril de 1958. Após a proclamação da independência, em 24 de setembro de 1973, participou das brigadas de alfabetização, sob a orientação de Paulo Freire. Formou-se em Engenharia Electrotécnica pela Universidade de Dresden (Alemanha) e dedicou-se aos estudos das Tecnologias de Informação e Comunicação, tornando-se empresário nessa área. Junto com Teresa Montenegro e Fafali Kouduwa fundou a primeira editora privada guineense: a Kusimon Editora. Participou da fundação da revista Tcholona e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa/INEP na Guiné-Bissau. Começou a escrever motivado por uma professora do Liceu onde estudou. Ao publicar três romances, em quatro anos, deu início a carreira como ficcionista. Sua obra hoje transita por vários gêneros. Começou com os romances Eterna Paixão (1994), A última tragédia (1995) e Mistida (1997). Produziu contos para Contos da cor do tempo (2004), livro comemorativo dos dez anos da editora Kusimon. E, recentemente, enveredou pelo gênero dramático, com a publicação de As orações de Mansata (2007). Tem obras publicadas em Cabo Verde, na França e no Brasil. Além de ficção, Sila tem textos publicados em revistas de diversos países sobre economia, política, educação e desenvolvimento social. Um traço curioso do escritor é a pronúncia de seu sobrenome, que é uma oxítona (Silá). A fim de transgredir a língua, o autor optou por ferir a regra e tirar o acento. A transgressão à língua é um dos traços de sua escrita, que mescla a língua portuguesa ao crioulo e às demais línguas nacionais da Guiné-Bissau, ora apresentando vocabulário, ora ignorando o leitor exógeno. A entrevista foi feita em duas partes. Algumas respostas foram dadas no final de 2009 e outras em setembro de 2010. Na conversa, há a tentativa de esclarecer algumas questões acerca da função da escrita num país como a Guiné-Bissau, onde mais de 40% da população é analfabeta. Além de discutir o primeiro romance guineense, Eterna paixão, publicado apenas na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Érica Bispo: No lançamento da edição brasileira de A última tragédia, você mencionou seu encontro com Paulo Freire. A educação e a figura do Professor (com letra maiúscula, como em seus livros) são constantes em sua obra. Por que tamanha reverência ao trabalho do magistério e à importância da educação? Abdulai Sila: Acho que foi em 1976 que tive a ocasião de conhecer Paulo Freire. Eu fazia parte (de fato era o chefe) de uma Brigada de Alfabetização, que tinha por missão ensinar a ler e escrever aos nossos concidadãos mais velhos. Pessoalmente, achava e continuo a achar uma grande injustiça uma criança não ter a oport unidade de ir à escola. Como tinha familiares que foram vítimas dessa injustiça e tinha a consciência de que a construção do país requeria o envolvimento de todos, cada um dando o melhor de si (o que requeria certo nível de instrução), pus muito entusiasmo na alfabetização de adultos. O método de ensino que adotamos foi o que o professor Paulo Freire desenvolveu. Não era só o ler/escrever que estava em causa, mas todo um processo educativo, que desemboc ava na capacitação do concidadão para a assunção cabal das suas responsabilidades, para o exerc ício pleno da cidadania. E podes imaginar qual é uma das minhas maiores decepções? Quase trinta anos depois, esse objetivo tão nobre continua sendo uma miragem.

Érica Bispo: Num país em que poucos são os alfabetizados e em que o livro é um objeto de luxo, por que ter uma editora e escrever? Abdulai Sila: Antes de mais, gostaria de dizer que esta questão é legítima. Ela faz tanto sentido que eu tenho tido que lidar com ela no meu dia a dia. E a resposta situa-se a dois níveis distintos. A nível pessoal a explicação é esta: tudo o que faço em termos culturais (escrever ficção, contribuir para a existência de uma editora de obras literárias etc) enquadra-se naquele conjunto de coisas que simplesmente gosto de fazer. Faz parte das atividades geradores não de dinheiro ou de qualquer outro beneficio material, mas que proporcionam imenso prazer. Fazendo parte daquilo que efetivamente gosto de fazer, essas atividades são, como acreditava o meu pai, imprescindíveis a essa indescritível sensação de realização. E essa realização pessoal, numa primeira etapa, adquire uma dimensão coletiva e extraordinária quando se tem em conta que, como você disse, poucos são os meus concidadãos que sabem ler ou se podem dar ao luxo de comprar um livro. E sabe por quê? Apesar da triste e anômala situação decorrente do fato de tanto o Governo como o Parlamento contar com elementos com capacidade muito limitada em termos de leitura/escrita, há um consenso a nível do povo em torno do valor e utilidade de se ser alfabetizado. Assim, se continuamos a ter uma taxa inaceitável de analfabetos é porque algo está errado. E esse algo vem de há muito tempo. Devo talvez lembrar que o meu primeiro emprego foi na alfabetização. Sempre achei que uma das maiores injustiças praticadas pelo colonialismo português foi justamente ter deixado tanta gente fora do sistema educativo, reduzindo dessa forma a sua possibilidade de promoção individual e coletiva.

Trinta e cinco anos mais tarde constatar que essa injustiça continua sendo praticada é deveras frustrante! Nesse contexto, torna-se dever de cidadão intervir de modo a que essa injustiça seja banida. E o primeiro passo nessa direção é fazer com que esse algo a que me referi anteriormente como estrangulamento seja paulatinamente eliminado. Publicando contos tradicionais, em línguas locais, estaremos a “banalizar” (no sentido positivo) o livro e, por essa via, a ganhar adeptos para a leitura e a promover, naturalmente, a alfabetização. Quebrar esse mito construído ao longo de muito tempo acerca do livro, revelar autores locais, que escrevem sobre temas locais, resgatar essa vasta herança cultural veiculada oralmente e promover a sua mais ampla divulgação através do livro são, na minha opinião, algumas das formas mais eficientes de quebrar esse algo que tem impedido que houvesse um maior interesse e empenho das nossas populações em serem alfabetizadas.

Érica Bispo: As palavras ―recordar‖, ―lembrar‖ e suas cognatas compõem os três romances, sempre que se inicia um flashback. A memória dos acontecimentos factuais influenciou sua escrita? Abdulai Sila: Sim, e muito! Já falei de alguns antes, isto é, de acontecimentos que afetaram sobremaneira a vida dos da minha e de outras gerações e que a gente não pode ignorar. Num momento em que tudo parece falir, em que esse edifício novo, que prometemos construir com nosso calor e com nossa inteligência parece desmoronar, pode ser útil lembrar que passamos por situações idênticas – ou até piores –, mas que conseguimos sempre ultrapassar. Para alcançarmos os objetivos coletivos que almejamos como nação, temos que proceder a mudanças, sobretudo a nível cultural. Uma mudança cultural baseada não nos valores que hoje prevalecem, mas naqueles que, por vários motivos, tendem a ser banalizados. Então, é preciso lembrar, ir buscar na nossa História os ingredientes, os valores morais, a motivação, de que hoje tanto necessitamos para levar de vencida as complexas tarefas que este momento histórico menos favorável nos coloca.

Érica Bispo: Na entrevista à Fernanda Cavacas, que abre a edição caboverdiana de Mistida (trilogia), você afirma que viveu intensamente a guerra. Você era bem novo durante a guerra. Eu gostaria de saber sobre essas suas lembranças da guerra.


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Por Érica Cristina Bispo | www.omarrare.uerj.br

Abdulai Sila: Não é fácil para mim falar da guerra de libertação. As minhas lembranças são horríveis! Perdi o meu melhor amigo de sempre, o meu irmão Idrissa, que numa manhã de fevereiro de 1972 foi gravemente ferido. Tinha na altura oito anos de idade, ficou paraplégico, viveu mais 6 anos. No mesmo dia, uma outra irmã minha, que tinha 10 anos, perdeu uma perna. Ela era a melhor fute bo lis t a de Catió… podes imaginar como foi a vida dela depois? O meu pai morreu pouco tempo depois em consequência do choque que teve ao ver metade da família a sangrar. A minha mãe foi quem aguentou mais, mas perdeu a alegria da vida. Tomou conta do meu irmão paraplégico. No dia em que ele morreu, ela passou a ser muito mais reservada. Quase que não falava com ninguém… Bem, tudo isso é o resultado de uma bomba, que caiu em frente de casa. Antes e depois desse dia houve muita coisa que aconteceu. Vi muita gente morrendo na sequência de ataques e bombardeamentos. Convivi com muita gente que sofreu, no corpo e na alma, os efeitos da guerra. Saí de Catió tinha doze anos para frequentar o Liceu, em Bissau. Mas ia todos os anos, no fim de cada trimestre, a Catió para estar com a minha gente. Tendo começado em 1963, quando tinha 5 anos, a guerra só acabou em abril de 1974, pouco tempo depois de eu completar os 16 anos.

Érica Bispo: O romance Eterna paixão é dedicado a seu irmão Idrissa. Como, em sua opinião, o enredo do romance o homenageia? Abdulai Sila: O enredo em si não tem a ver com Idrissa, que faleceu quando tinha menos de 14 anos de idade. Devo esclarec er que, embora sendo o primeiro livro que consegui publicar, Eterna Paixão não é o primeiro que escrevi; e ac ontece que cada um dos anteriores já tinha uma dedicatória própria. Dedicar esse livro a Idrissa pode ter sido a forma que me ocorreu na altura de manifestar publicamente essa enorme cumplicidade que existiu ― e sempre vai existir ― com aquele que continua sendo meu melhor amigo. Vendo as coisas de um outro ângulo, acho que há um elemento comum que caracteriza as duas personagens (a real, Idrissa, e a fictícia, Dan), que se pode resumir nisto: uma enorme paixão por uma vida plena de adversidades.

Érica Bispo: Eterna Paixão costuma fisgar os leitores, quanto eles compreendem o contexto guineense, em que a desilusão da não concretização do sonho nacional idealizado e discursado durante os anos de luta armada. O romance traduz um pouco disso, denunciando a corrupção e apontando caminhos possíveis? Abdulai Sila: Não posso esconder que quando iniciei a construção do enredo (já lá vão duas décadas), já era previs ível o marasmo em que se encontra hoje o meu país. Já havia provas reais de que o “espírito da luta” já não existia mais, que os nossos concidadãos, que ontem abnegadamente participaram na concretização daquilo que para mim foi o maior feito deste povo no século passado – acabar com a colonização, aprofundando o processo de construção daquilo que Amílcar Cabral chamou de “Nação africana forjada na luta” –, estavam incompreensivelmente a enveredar por uma via em todos os sentidos oposta àquela que tinha sido anunciada. Estava acontecendo tant a coisa, tão nociva quanto ininteligível, assistia-se ao desmoronar de tantos sonhos “legítimos ”, assistia-se a um desfasamento cada dia maior entre o discurso político e a prática diária, que entendi por bem ir buscar alguém de fora, (nesse caso Dan), carregado de uma boa dose daquilo que hoje se pode chamar de utopia, mas que no contexto da época era abs olutamente exequível, para encarnar toda a desilusão e frustração que o cidadão comum sentia. Mas mais do que denunciar essa calamidade e ridicularizar os seus principais prot agonistas, era necessário passar uma mensagem positiva, de fé e de esperança. É minha convicção que a literatura pode, sem ser doutrinaria nem tão pouco estereotipada, contribuir para a mudança cultural que se impõe, sem a qual continuaremos por muito tempo fazendo tanto mal a nós mesmos .

\ Érica

Bispo: Daniel é uma personagem que se parece com muita gente. É engenheiro, como você; trabalha no Ministério de Agricultura, como sonhava Amílcar Cabral; se torna professor no modelo de Paulo Freire; ensina, entre outras coisas, a aldeia a se tornar autossutentável, como um dos ideais de Cabral, relativos ao fim da fome. O que você pode falar sobre isso? Abdulai Sila: Tem razão, Dan se parece com mu ita gente, sobretudo com gente da minha geração; uma geração que viu concretizado um sonho secular, que tem u m co mpro misso com a História; u ma geração que tem o orgulho ferido, mas que não abdica de lutar por aquilo em que acredita.

Érica Bispo: A descrição em seus romances é extremamente minuciosa. Elementos como ―Land Cruiser‖, ―cerveja Cicer‖, ―sofá de couro‖, ―quadros surrealistas‖, ―livros de diferentes políticos africanos‖, ―blusa branca de seda‖ etc certamente não estão nos romances para ―preencher espaço‖. Para quem não vive, nem viveu na Guiné-Bissau, é um pouco difícil entender certas alusões. Você pode explicar algumas? Abdulai Sila: Há certas situações caricatas que foram vividas neste país e que deixaram marcas, em vários aspectos, incluindo no léxico corrente. Por exemplo, na altura em que todos os governantes e dirigentes políticos tinham viaturas da marca Volvo, falou-se de “volvocracia” para se referir a toda essa gente e/ou ao regime estabelecido. São vários os termos e expressões que entraram na linguagem corrente, alguns deles pejorativos, aos quais convém, às vezes, fazer recurso não s ó para descrever os fatos e o ambient e em que ocorreram, mas também e sobretudo para denunciar certas práticas e opções, ridicularizando-as, revelando quão absurdas eram.

Érica Bispo: Você hoje colabora com o desenvolvimento do país através na sua empresa Sitec, que é uma das maiores firmas do país e especialista em serviços eletrônicos. Sitec é a tradução da sua Eterna paixão Abdulai Sila: Talvez. Sabe, uma das maiores lições que aprendi do meu pai é esta: “um ser humano tem que faz er duas coisas na vida para se sentir realizado: o que tem que fazer e o que gosta de fazer”. A Sitec é aquilo que tenho que fazer. Não posso negar que nela também há muita coisa que faço por gosto, mas essencialmente é das tais coisas que t enho que fazer para ganhar o meu sustento. Eu procuro as coisas que gosto de faz er em ações menos vis íveis, aparentemente mais banais. E isso está essencialmente na área da Cultura, não tanto da Tecnologia. É evidente que dá um certo praz er provar a si próprio, nas lides diárias e nas realizações a nível técnico e profissional, que, apesar de todo o ambiente desfavorável em que operamos, conseguimos competir em pé de igualdade com qualquer pessoa ou empresa em qualquer part e do mundo numa área t ão exigente e complexa; é também verdade que, através daquilo que tenho que fazer na Sitec, posso recorrer a essas mesmas realizações, nessa incessante bat alha de “educar pelo exemplo” que aliás bem cedo aprendi com o profes sor Paulo Freire, para tentar convencer aos meus concidadãos mais jovens que se pode ter uma vida digna e condigna sem ter que se prostituir politicamente.

Érica Bispo: Para termimar, quem são seus autores preferidos? O que você gosta de ler? Algum deles motivou você a escrever? Algum deles é modelo para você? Abdulai Sila: Embora a minha atividade profissional me obrigue a ler muita literatura técnica, devo confessar que é-me difícil dormir sem ler um livro de ficção; onde quer que eu vá, tenho sempre um livro comigo. Tive aut ores preferidos em várias fases da minha vida; no início, eram todos africanos: do Chinua Achebe ao Luandino Vieira, do Ngugi Wa Thiongo à Nadine Gordmer. Com o tempo e graças à ajuda de algumas pes soas amigas, fui descobrindo e apreciando no seu devido valor obras e autores de outras paragens. Por exemplo, durante os anos em que estudei em Dresden tive um amigo alemão que possuía uma rica biblioteca pessoal e um interesse especial por literatura afro-americana. Foi através dele que travei c onheciment o com grandes escritores como, por exemplo, James Baldwin, Richard Wright e Toni Morrison. Esta última é aquilo que poderia considerar, pelos temas que aborda nos seus romances e pela maneira como escreve, como um dos meus modelos ________________________________________________________

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Érica Cristina Bispo

Mestra em Let ras Vernáculas, área de concentração Literatura Portuguesa/UFRJ, 2005/ Doutoranda do Programa de Pós -Graduação em Letras Vernáculas, Área de concentração: Literaturas Portuguesa e Africanas/UFRJ bispoerica@gmail.co m


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Conto contigo

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se as guerras que surgem no mundo são, em primeiro lugar de próximo que não professam mesma religião, ou por outras de próximo que vem muito distantes pela religião. -Como é possível que alguém não amar a si mesmo?

Humo singelo virado ao horizonte de todas as possíveis disposições, a viração era simples e serena feita espórtula na epiderme macia de quem celebrava a aurora. A ramagem ia assim feliz como dois adolescentes a mercê do prazer numa primeira intensa, com o cio a realizar-se no âmago do ser. Era verão de Setembro, coagulado no tropical africo. O magote de jovens sempre que o tempo aponta-se a hora dez faziam-se na orla à beira-mar curtir o sol e deixar os olhos saciar de traseiros que sobressaem em biquínis, deixando nitidamente marcas a olho num nos utentes. O hábito era quase que compulsivo, como é Japone Arijuane-M aputo ócio canino em período exacto; a ligação destes com a praia era uma questão de brio, um sentimento que os unia todos os domingos; santo dia para alguns, alguns que tem a praia como uma verdadeira sinagoga; nada de admiração muito menos apreciação às curvas fêmeas, era um claustro de fervorosa veneração; para estes de diversão, dia de gratificação sim, a fervorosa jovialidade; sempre presentes, munidos de garrafas e latas. Sempre que lá estivessem nutria as manhãs com conversas de papo ao ar, divagava sobretudo, como sabido quando o álcool governa, governa ditatorialmente e as conversas feitas povo, vão e voltam, autenticas submissas; mas nessa toda um deles sempre opunha-se a por lenha a fogueira, aparentemente tímido começava calado e por vezes saía mudo. Neste dia os jovens encontravam-se em discutindo conceitos de conjenturas e opiniões metafísicas; debate estava acesso de tal maneira que interveio, pelas intervenções, obcecado, um fanático de religiosidade intacta; trazia com ele uma versão bíblica; uma face esbranquiçada como mais simplicidade de acenar, trajava algo feito de enormes panos, branco e vermelhos vestes que o davam aspecto ridículo pela hora e o momento, de trás esboçada uma cruz vermelho. Este foi cativado quando a batata quente era mesmo sobre o sobrenatural, a divindade, na qual o grupo de amigos opinavam sem dissentimentos, todos fazia juízes de valores unânimes a inexistência de um ser omnipresente e omnisciente. Vocês estão perdidos, meus irmãos… ele existe, sim… e esta aqui neste exacto momento. Todos esbugalharam-se, atónitos olharam sem soltar palavra alguma. O intruso tomou balanço, sentiu-se um orador clamado pela qualidade da sua eloquência, rematou: -Vocês deveriam, era agradecer pelo ar que respiram, a praia que usufruem… como é vivem sem crerem no criador? A turma continuava contemplando, e num gesto simples e calmo viravam as garrafas de variadas escritas, desde laurentina, dois emmy; que cada um ostentava, a boca. Olhavam-se um para outro e em coro soltavam um sardónico, bem carrasco; mas nem por isso intimidou o homem a tagarelar. Continuava casmurro, a propor um alvitre, que eles devem rever no fundo deles uma sensibilidade humana. Ai sim teve uma resposta a altura. -Como é quem você para mandar-nos um exame de consciência? Se tu não pareces consciente…? Rematou o tímido, o qual que sempre opunha-se a intervir. Prosseguiu -Deixem-no, esse é… um asno psicopata! O homem feito pastor, pareceu não entender nada, mas pelo gesto e o tom, redarguiu: -Vocês devem ter compaixão, amor ao próximo, humanismo -De que lado você esta defender, afinal? Se a religião é em si anti-humana, é sobretudo., contra o homem. O Pastor parou, quase que abrisse a boca, continuo o ex-tímido: - Olha, quando você fala de compaixão, amor ao próximo quer dizer o quê? Quando o pastor já se preparava para responder, o mesmo tomou dianteira. -Não precisa responder, sei o que vais dizer; mas saibas, senhor, o amor ao próximo na perspectiva que dizes é simplesmente uma contrariedade, assim como é um controvérsia a vida naturalmente dita na visão religiosa; como é que explicas que alguém possa ter amor a um próximo, quando, em si, o próximo não si ama? Primeiro, como e quando, deves amar um próximo quando ele mesmo não si ama? Segundo porque é que a religião guia-se de princípios que são simplesmente impossíveis de, um homem de carne adoptar? Por fim, só para descobrires sua agnosia, como que é dizes amar a um próximo,

-Você é exemplo categórico dessa premissa. Eu -Você, sim! Como é que um homem assim como você, feito de não de ferro, como muitos nós outros, consegue fazer-se a praia, num dia tão soalheiro como esta hoje, trajado dessa maneira, e acima de tudo, negando-se do prazer que o ser, em si, exige, e não só criando espaço para que todos seja assim, como você. Olha meu senhor, eu não sou contra deus, muito menos a religião, mas o uso que os homens fazem dela. -Como é que explica isso? -Como é que explica, já agora a ultima Seia? Não achas que alguém bebeu de mais e começou a falar o que não deveria? -Não fala a si do senhor, ele morreu na cruz para salvar-te. -Achas que ele morreu de livre vontade? -Sim! -É isso é, o que eu chamo de mão uso. Isto é o que vos torna pós-deus, mas saiba que, enquanto tu, desculpa a proximidade; não existir, não existe nada, até mesmo o Deus. -O quê que queres dizer com isso? -Que deus existe porque você existe, não pelo contrário. -O quê?

A conversa foi monopolizada por estes dois estranhos na visão dos que só limitaram-se em ouvir, esboçar um riso como prestação ao debate, dar um gole, põe vezes afligir-se quando mais loquaz fosse o discurso do tímido. Em seguida, num gesto pouco convicto, um membro do grupo, aceno dois a mão, fez sinal a mamana que vendia cervejas bem ao lado, que trouxesse garrafas em número correspondente as de sempre. Um outro activo em exercícios físicos, que exibia um corpo duro e forte, com as curvas da anatomia a demarcarem a pupila de quem o via, mesmo depois de a senhora trazê-las, fez questão de esboçar mais um gesto, pedindo mais uma. Ninguém o interferiu, aliás naquele momento a tracção era o papo como pastor; na qual apresentava-se em estado de pausa, o pastor mostrasse-se cismático, um jeito que calhava bem dizer-se que estava a organizar ideias para eloquentemente triunfar no areópago improvisado de are branca suja, misturada de latas vazias e cazuarinas de raízes foras. - Achas que tens capacidade de evangelizar alguém aqui ou noutro lugar semelhante? -Eu não estou aqui para evangelizar ninguém, isto que faz é Deus… -Então interveio na conversa para quê? Afinal não é sua missão pregar esta palavra dum senhor que menos conheces? O monopólio quebrou-se. “Hoje ele ganhou fôlego usado e inspirado”, palavras ditas pelo um membro do grupo, quando o tímido seguiu um rabo de saía que dava nas vistas de todos, eis que um de muitos calados que só ouviam ria disse: -Para uma mente translúcida, deus acaba sendo ele mesmo… O pastor virou flanco, agora encarar novo foco, imagina se todos voltarem-se a contribuições, o que será dele. -Que mentes são estas? Continuo o novo opinante. -A crença, meu caro companheiro de ocasião, é prepotência que inibe toda a manifestação de mudança e adopção de novas experiencias. Sabes? Tudo na vida muda, disse um pensador que a memoria o diabo usa, ―que mudam-se os tempos mudam-se as vontades, até a verdade muda‖, visto que este livro que trazes ai é, e continua a ser, uma discrição fiel dos retardados hábitos e costumes dos judeus. -Então, você esta dizer que… -Olha, não cria pêlos na palma da mão, pega essa birra e vamos viver a vida como se deve e merecer vive-la. Numa primeira fase o pastor vestido desapropriadamente excitou, mas como ninguém, ninguém estava nem ai, preocupando-se em olhar a enfadonha cara dele. Aceito nas calmas sem propriedade categórica, esboçando gestos do tipo só para provar, o grupo já se desfazia cada olho no seu traseiro, alguns teclava o telefone. Na praia mais gentalha se fazia presente. Na cara do pastor, na medida que um gole desfilava na garganta o areal ia transformando-se em latas e garrafas, tantas latas e garrafas que deu para fazer cama e colchão. *** Dia seguinte entre areal, latas, garrafas, muitas estilhaçadas, caricas, um corpo semi-vivo e um livro, tão espesso.


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O passo certo no caminho errado

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Africanidades As Desavenças da língua

Os especialistas e analistas

Victor Eustáquio– Portugal

Nelson Lineu - Maputo

E

nquanto esperava pelo concerto do seu carro na oficina ao lado do seu emprego

(era assim como ele tratava o seu trabalho), onde era cliente assíduo assim como na alfaiataria que por causa das lutas no chapa tinha que cozer a camisa ou engomar, João (não o das anedotas) verificava em pensamentos que a televisão, rádio, jornal nos seus informativos em relação aos assuntos que fazem barulho na praça, terem sempre um especialista ou um analista para falar da problemática em questão. Para ele não havia o que discutir, os órgãos dessas comunicações sociais é que escolhiam os temas, porque não era possível não se dar especial enfoque para falar relação Salvancos -transporte. Da sua casa para o emprego tinha que contar quilómetros, os chapas que optavam por ir a sua zona estavam danificados (o adjectivo mais bonito que encontrei), mas mesmo assim eram preciosos por causa da quantidade de carro e das pessoas que necessitavam os serviços.

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V

era Falcão Martins é provavelmente um nome que nada dirá à maioria dos leitores dos PALOP (tal como o de Ryta Vinagre, no caso particular do Brasil). Mas Stephenie Meyer diz. E muito. Bem ou mal, «Crepúsculo» e a panóplia de sucedâneos são livros que têm feito sensação no meio literário mundial. O que poucos decerto se lembram é que a popularidade internacional destas obras deve-se também ao trabalho “esquecido” de figuras como Vera Falcão Martins, a tradutora do romance para a língua portuguesa. E o curioso é que quem se der ao trabalho de comparar o original em inglês com a edição portuguesa rapidamente chegará a uma conclusão: Vera Falcão Martins fez milagres com a prosa patética e infantil da escritora norte-americana. Contudo, coloca-se a questão: deve reclamar o mérito? É que, se nesta situação concreta, o resultado é um texto francamente superior, a tradutora não deixou por isso de cometer um pecado: a adulteração, reescrevendo, mesmo que escudada pela interpretação do suposto alcance semântico perseguido por Meyer. É o drama das traduções. Que tem igualmente uma possibilidade inversa; a total incapacidade de compreender e traduzir os sentidos que correm pelas palavras dos autores. Sobretudo quando escritas em contextos potencialmente menos ininteligíveis no quadro da dominação histórica das línguas ocidentais para a comunicação global. Que o digam os autores africanos que escrevem em português, mesmo pondo de lado aqui o malfadado (des)acordo ortográfico. Será que os musseques de Luanda poderão ser traduzidos por «slums», quando até na mesma língua, em português, correspondem a uma realidade diversa de outros «slums» como por exemplo as favelas do Rio de Janeiro ou as villas de emergencia de Buenos Aires?

Querendo evitar esses transtornos teria que se mudar para a cidade ou mais próximo, mas aí quer as casas quer os talhões eram proibitivos para gente com o seu salário. Boa ou má escolha optou por fazer um

É certo que uma tradução é sempre uma reconstrução, porque implica a intervenção de terceiros. Mas rever-se-á o autor nela? Senão, que condições são necessárias para que assim seja? Fica o desafio e o desejo de voltar ao assunto.

empréstimo e comprar um carro pelo qual passaram dezenas de traseiros, o mesmo que ele a guardava enquanto reflectia. Se fosse para cha-

Projecto Turismo nas escolas da Acetur

mar um especialista que comentasse sobre essa realidade teria que ser ele, desanimou-se porque quem aparece quase sempre nessas ocasiões são membros de um partido sendo cidadão simples tinha que ser doutor, de preferência os formado fora do país. Quanto ao João ser analista, como sempre entre nós os que falam dos assuntos quer com olhar sociológico, antropológicos ou outras janelas epistemológicas, a sua opinião estaria intrinsecamente ligada a questões políticas. E por aqui não se discutem aspectos apenas do país mas também de fora, o que muitas vezes chama atenção é facto dos protagonistas falarem dos outros como se fossem eles, ou seja, saberem muito dos outros do que deles. É nesse campo onde o João quer meter o dedo na ferida ou como sempre ser a ferida, para ele não havia dúvida que quem trazia a democracia em África eram rebeldes, como aconteceu recentemente na Líbia. Uma coisa que lhe deixou estupefacto é que o regime de khadafi sendo o que se tem dito pele imprensa como é que aquele número de líbios tinha acesso a arma, e por quê das forças ditas da paz apoiarem os rebeldes não a soberania de um estado (a não ser que essa palavra para eles tenha outro significado). Para ele tinha uma mão externa, claro que vão dizer que se os outros fizeram isso acontecer tinham também

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propósito do mês de criança que igualmente é intitulado mês do ambiente, a ACE TUR promove na próxima Sexta-feira 15 de Junho de 2012, pelas 11 hora s, na

Biblioteca Nacional mais um evento de sua iniciativa Turi sm o nas Escolas. O Programa que é levado a efeito a propósito do Dia da Criança Africana, vai oferecer uma vi sita guiada às instalações da Bibliotec a Nacional que igualmente é património histórico -

um factor interno e o mesmo aconteceu com os nossos cá em Moçambi- cultural e a projecção do filme ―Africa´s Lost Eden – Gorongosa o Paraíso Perdido de Àfrique que se chamam pais da democracia.

ca‖. Nisto, estão convidadas a participar do evento crianças do ensino primário dalgumas escolas da Cidade de Maputo. ACETUR – Estimulando a Sensibilidade Turística!


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Claudio Daniel- Brasil MARINHA BARROCA

Índia SÓ A LOUCURA. Vem, do púbis às omoplatas, canta o antigo sol, sua face de flama animal raiando desejosa. Flor de sândalo, diz ao tempo: agora é sempre, fecha tua asa, expira em fumo e cobre. Vêm, Lakshmi-Naráyana, flagelar o medo,

o azul-espuma-catarata, azul-quase-branco-nébula, de mar branqueado no azullótus-krishna; delfim que sulca em saltos as vagas azul-marinho-almíscar como graciosa dançarina cambojana, pés-apsara; e (miríades!) aves aquáticas em mandálicos dervixes rodopios rumo ao meru, imenso portal laqueado, sob o céuplumas-lakshmi, que se abre como noiva. filetes de azul-violeta nas pupilas do inseto que vê: nos brancos lençóis de areia, a velha senhora obesa, vulva em pêlos esbranquiçados, suas lágrimas fermentando taças licorosas, sob o guarda-sol; o sardônico bioquímico alemão, longas suíças platinadas, que corta o presunto em fatias, entre cusparadas; e a bela ninfeta vietcong, sinuosas pernas mecânicas, cujo olhar incendeia como napalm. por fim, o pinguim ártico banido por excessivo daltonismo. depois, nada se vê, só o mais puro azul.

Cláudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em 1962, em São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, cursa atualmente o doutorado na mesma instituição. É curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo. Publicou 20 livros de poesia, ficção, antologias e traduções, entre eles Figuras Metálicas (Perspectiva, 2004) e Fera Bifronte (Lumme Editor, 2010). É editor da revista literária Zunái. Participou de diversas antologias de poesia brasileira contemporânea no Brasil e no exterior, entre elas Pindorama — 30 Poetas de Brasil, organizada e traduzida por Reynaldo Jiménez (revista Tsé Tsé n. 7/8, Argentina, 2001); New Brasilian and American Poetry organizada por Flávia Rocha e Edwin Torres (revista Rattapallax, no 9, Estados Unidos, 2003); Cetrería, Once Poetas de Brasil, organizada e traduzida por Ricardo Alberto Pérez (Casa de Letras, Cuba, 2003); Antologia comentada da poesia brasileira do século XXI, organizada por Manuel da Costa Pinto. (Publifolha, São Paulo, 2006) e Novos Olhos sobre a Poesia: Brazilian Poetry Journals of the 21st Century, organizada por Raymond Bianchi (Aufgabe, Journal of Poetry, Number 6, Spring 2007, Berkeley, CA, Estados Unidos). Mantém o blogue Cantar a Pele de Lontra.

LEOA, CLAVÍCULA Jovem negra pinta de azul-violeta as pontas dos mamilos. Há jaguares sob as unhas. Mímica de esfinge nos pulsos. Núbia voz animal raio-de-pedra golpeia nudez janaína reflexo de híbrida orquídea ou seionoiteflorque incandesce. (Três colares de relva; riscos gravados na rocha, sortilégio.) (Pintura: mascar o carvão leonino da desértica epiderme, ruminando arenoso até cantar a clavícula.)


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João Paulo T. Esperança Timor - Leste Ensaio Um brevíssimo olhar sobre a Literatura de Timor FONTE:Várzea de Letras*

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ntes de mais um esclarecimento se impõem. Porquê literatura “de Timor” e não “timorense”? É que não pretendo limitar-me aqui aos autores nacionais, mas sim incluir também um pouco daquilo que há para ler de naturais de outras paragens que tenham tomado Timor como tema literário. Não me irei debruçar sobre as recolhas de literatura oral e tradicional, tema que guardarei para outra oportunidade. Não quero, no entanto, deixar de chamar a atenção para o facto de que muito poucas das que foram até hoje publicadas são realmente merecedoras deste rótulo. Uma recolha feita com critérios científicos tem como um dos seus princípios base o reconhecimento da existência de múltiplas versões do mesmo “texto”, as quais devem ser registadas da forma mais fiel possível ao que foi realmente enunciado pelos informantes. O registo na língua original é condição absolutamente essencial. Só depois se pode partir para uma análise minimamente credível. Uma das obras que se aproxima deste método é Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, publicada em 1961 pelo Pe Artur Basílio de Sá (1), apesar de o texto em tétum térique das lendas ter sido depurado e fixado pelos mestres-escola Paulo Quintão e Marçal Andrade. Também merecedora de destaque é a compilação (sem aparato crítico) The book of the Story Teller (2), dado à estampa na Austrália em 1995, na qual apenas o título e algumas notas introdutórias estão em inglês, mantendose nos textos em tétum as expressões e repetições características da performance oral do contador de histórias. A grande maioria das restantes colectâneas da arte verbal dos timorenses é afinal uma reformulação mais ou menos literária, inspirada na tradição, mas recriada numa outra língua. Antes da chegada dos portugueses a Timor, no início do século XVI, já outros povos visitavam estas costas para fazer comércio de sândalo, essencialmente chineses, malaios e javaneses. Dado que os povos de Timor não conheciam a escrita, foram estes estrangeiros os primeiros a deixar breves apontamentos sobre a ilha e os seus habitantes. Foram os portugueses, porém, que começaram a estabelecer-se permanentemente, principalmente através de missionários católicos, séculos antes da efectiva ocupação colonial do território. Gradualmente viriam a aparecer monografias, memórias, dicionários e livros de orações em línguas locais, da autoria de religiosos, militares, administradores, viajantes e deportados. Um dos mais conhecidos é A ilha Verde e Vermelha de Timor, de Alberto Osório de Castro, primeiro publicado na revista Seara Nova, em Junho de 1928 e Junho de 1929, e depois, em livro, pela Agência Geral das Colónias, em 1943. Recentemente foi reeditado pela Cotovia (3). Trata-se de um peculiar livro de viagens, escrito em prosa poética, cheio de informações exaustivas sobre a ilha, a sua natureza e as suas gentes. Um pequeno volume de Paulo Braga, A Ilha dos Homens Nus (4), é digno de nota pela forma como o autor faz a descrição do Ataúro visto (recriado?) pelos seus olhos idealistas: uma sociedade tradicional libertária, sem exploração do homem pelo homem, onde impera o amor livre. A época do colonialismo fez surgir também um tipo de ficção a que chamamos hoje ―literatura colonial‖, que na definição clássica de Pires Laranjeira é aquela que é ―escrita e publicada, na maioria esmagadora, por portugueses de tornaviagem, numa perspectiva de exotismo, evasionismo, preconceito racial e reiteração colonial e colonialista, em que a visão de mundo, o foco narrativo e as personagens principais eram de brancos, colonos “ (5). Em Timor, um bom representante deste género é Caiúru, de Grácio Ribeiro (6). Novela de pendor aut obiográfico, conta-nos as aventuras e des vent uras de um jovem comunista deportado por actividades políticas contra o regime fascista em Portugal, que aqui vive um idílio amoroso com uma nona de nome Caiúru. Apesar de mostrar alguma simpatia com os condenados a trabalhos forçados e com os revoltosos de Manufahi, e de se orgulhar de, ao contrário dos camaradas, não espancar os criados, a sua situação privilegiada de branc o fala mais alto do que as suas inclinações políticas, e hei-lo a tomar atitudes de senhor todo poderoso dos destinos do seu semelhante autóctone. O livro constitui um interessante document o sociológico, que nos mostra aspectos da realidade da época, nomeadamente como se processava a compra de uma nona – que lhe custou mais barata do que o cavalo que também adquiriu. As nonas são assunto recorrente da literatura escrita por metropolitanos, talvez por c onstituírem um dos lados da sociedade local com que mais de perto interagiam, representando assim as moças para os seus companheiros expatriados um papel de janela para o mundo timorense. Grácio Ribeiro retoma o tema da vida dos deportados políticos num romance publicado posteriorment e (7). Já integrado na corrente da literatura pós-c olonial, e fort emente crítico dos males do colonialismo, destaco Corpo colonial (8), “um romance profundamente feminino, que nos conta o percurso de Alitia, mulher de um alferes miliciano colocado em Timor, colónia distante e esquecida onde a guerra colonial não chegou e o tédio é o principal inimigo dos militares. Pode dizer -se que é um livro de leitura difícil, onde o desenrolar da narrativa é constantemente interrompido por longos monólogos filos óficos ou diálogos inveros ímeis sobre questões existenciais, mas que nos oferece um int eressante painel sobre a vivência das mulheres dos militares colocados naquela ilha entre a Ásia e a Oceânia e sobre a própria condição de ser mulher. É também um romance de desencanto, de traições e de vidas incompletas.”(9) O enredo anda em torno da aproximação entre a prot agonista e Manuc odiata, a jovem prostituta timorense que o seu marido frequenta, e dá conta de uma realidade nova nas relações entre os metropolitanos e algumas mulheres locais: “Antigamente, os brancos barlaqueavam as nonas. Depois da vinda da tropa contentam -se em dar dinheiro para abaixar o sarão” ( RUAS, 1981:16). Um livro de sinal completamente oposto ao da literatura colonial é Uma deusa no “inferno” de Timor, de Francisco A. Gomes (10). Este livro pertenc e ao que poderíamos chamar uma “literatura de remorso”, cheio de referências depreciativas a tudo o que seja port uguês e de personagens timorenses (principalmente mulheres) revolucionárias cheias de seguidores, completamente anacrónicas,

Retomando uma vez mais o velho tema, temos A nona do Pinto Brás (Novela Timorense) (11). Uma pequena novela, ambientada nos anos que precedem o fim da administração colonial portuguesa, cujo autor demonstra um conheciment o mais profundo da cultura e história timorenses, ainda que na narrativa praticamente só nos seja dado a conhecer o ponto de vista dos magalas sobre o que vai ac ontecendo – quase nada ficamos a saber afinal sobre Joaquina Mêtan, a sua maneira de ver o mundo, as suas reais emoções e relações sociais, para lá da sua existência enquanto nona de um malai. O livro é assinado por Filipe Ferreira, mas o estilo da escrita leva-me a formular a hipót ese de que este seja o nome literário escolhido pelo grande historiador de Timor e da presença portuguesa na Ásia, Luís Filipe F. R. Thomaz. Saltemos de seguida para o mundo da poesia, agora da pena de autores timorenses. Destes o mais representativo s erá talvez Fernando Sylvan, pseudónimo literário de Abílio Leopoldo MottaFerreira. Tendo sido levado para Portugal ainda criança, jamais perdeu a identificação afectiva com a sua terra natal, motivo constante da sua poesia, a par com temas mais universais como a celebração do amor e da mulher amada. Intelectual empenhado, ocupou durante bastantes anos o cargo de Presidente da Sociedade da Língua P ortuguesa. O essencial da sua obra poética está reunido no livro A Voz Fagueira de Oan Tímor (12). Faleceu no dia de Natal de 1993. Eis um pequeno texto, publicado ent ão por Luís Cardoso (“Takas”) no Kaibauk – Boletim de Informação Timorense (13): “Fernando Sylvan ou O Silêncio das Palavras Depois (mas só depois) os galos lutarão sem lâminas Este é o poema dedicado a Xanana Gusmão. Fernando Sylvan era um poeta para quem as palavras e só as necessárias deviam ser ditas. Pois o silêncio não é o vazio das palavras. Mas, no dia 25 de Dezembro, quando todos procuravam as mais variadas palavras para saudarem o Nascimento do Menino, Fernando Sylvan calou se. E o seu pequeno corpo curvou-se sob o peso do silêncio que, desta vez, tinha o peso de todas as palavras. Do exílio, desde os tempos de menino e depois de décadas de ausência da ilha querida, fizeram com que ele próprio construísse com palavras ilhas que salpicavam o oceano do seu silêncio e tormento. Estudou o idioma português e usou a sua es crita como “ai-suak” para escavar até ao fundo das palavras onde procurava o que unia todas as línguas, entre as quais, a da sua infância. Finalmente, no dia de todos os nascimentos, Fernando Sylvan deixou-s e cair nos braços da mãe de todas as línguas: o silêncio ou a palavra muda.” Sylvan é um dos poetas timores incluídos na colectânea E nterrem meu coração no Ramelau (14), publicada em Luanda pela União de Escritores Angolanos, ao lado de José Alexandre Gusmão, Jorge Lautén, e outros menos dotados literariamente, que o tempo se encarregou de fazer esquecer. Dois casos na poesia timorense são representativos da literatura profundamente alinhada ideologicamente, Borja da Costa (incluído na colectânea da UEA), na esquerda revolucionária, e Jorge Barros Duart e (15), na direita reaccionária. O já citado Jos é Alexandre Gusmão, mais conhecido por Xanana, actualmente Presidente da República, publicou em 1998 Mar Meu – Poemas e pinturas (16), escrito na prisão. Diz-nos o escritor moçambicano Mia Cout o no prefácio: “E naquelas páginas confirmei: pela mão de um homem se escreve Timor. Um livro de Xanana Gusmão não poderia ser apenas um livro. Por via da sua letra se supõe falar todo um povo, uma nação. Há ali não apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia que queremos que seja nossa.” Esta primeira edição é bilingue, com tradução para inglês de Kirsty Sword e A na Luísa Amaral; mais tarde surgiria uma nova edição, também bilingue, com apoio do Instituto Camões, traduzida para tétum por Luís Costa. João A parício é outro nome a reter, com dois livros de poemas public ados pela Caminho, À janela de Timor (17) e Uma casa e duas vacas. Um outro, sob o pseudónimo Kay Shaly Rak mabean, foi publicado pela Real Associação de Braga, com o título Vers os do Oprimido (18). Abé Barreto, que na sequência do massacre de Sant a Cruz, aproveitou a presença no Canadá num programa de intercâmbio de estudantes universitários para pedir asilo político, e que veio a distinguir-se como cantor de intervenção ao lado do activista canadiano Aloz MacDonald, publicou na Holanda em 1995 Menari Mengelilingi Planet Bumi (Dançando à volt a do Planeta Terra), poesia em língua indonésia, e em 1996, na Austrália, Come with me singing in a choir. Há outros jovens autores timorenses que se têm expressado poeticamente, alguns com livros já publicados, outros com colaboração dispersa por jornais e boletins diversos. Cito dois: Crisódio Araújo e Celso Oliveira. Um poeta que, ainda que português, se salienta pela s ua identificação e proximidade espiritual com Timor e os timorenses, além da qualidade literária dos seus escritos, é Ruy Cinatti. Poeta, agrónomo, antropólogo, botânico, a sua obra é vasta e conhecida, incluindo os títulos Não Somos Deste Mundo (1941), Poemas Escolhidos (1951), O Livro do Nómada Meu Amigo (1966), Sete Septetos (1967), Borda d‟Água (1970), Uma Sequência Timorens e (1970), Cravo Singular (1974), Timor – Amor (1974), O A Fazer, Faz-se (1976), Poemas (1981), Manhã Imensa (1982), e Um Cancioneiro para Timor (1996). São escassos os escritores timorenses a dedicarem-se ao romance. Pont e Pedrinha, pseudónimo literário de Henrique Borges, é autor de Andanças de um Timorense, publicado em 1998 pelas Edições Colibri (19). O poeta moçambicano José Craveirinha escreve no prefácio: “Mágoa imensa tão belo canto ter produzido este frágil texto. Frágil e modesto mas incontestavelment e sincero. Sincero e Grande!”. Episódio crucial na estrutura da narrativa é o desrespeito por parte do jovem c asal Kotená e Kêti-Kia, de uma antiga tradição dos ataúros, segundo a qual a noiva na noite de núpcias devia partilhar o leito não do seu marido mas de um tio deste. O mesmo costume é referido pelo Padre Jorge Barros Duarte: “Decorridos dois ou três dias sobre a fase preliminar, a mãe do noivo vai buscar a noiva a casa dos pais desta e leva-a para casa do noivo. É nesta fase que o irmão mais novo do pai do noivo roi tada («experimenta» intimamente, i.e. desflora) a noiva. ” (20). Numa posição de relevo, temos finalmente Luís Cardoso, o mais genial dos autores timorenses, com três romances publicados, além de colaboração dispersa por vários jornais e revis tas.


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João Paulo T. Esperança -

Crónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam (21) é um relato autobiográfico que acompanha a história recente de Timor e uma série de travessias quer físicas quer interiores na vida do narrador e do seu pai, tudo a acontecer num univers o mágico que em Timor impregna também a História, ou a percepção que as pessoas têm da História. Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo (22) entra mais fundo nesse mundo do fantástico, e vai à procura de mitos fundamentais do imaginário colectivo timorens e, como os que rodeiam a revolta de Manufahi. A última morte do Coronel Santiago (23) maneja habilment e as técnicas narrativas enquanto vai contando as avent uras de figuras que incluem um escritor alter ego do autor, apaixonado pela personagem feminina principal do último romance deste. O maravilhoso e o fant ástico do sobrenatural timorense fundem-s e com a ironia típica de Luís Cardoso e com referências abundantes aos ambientes, obras e referências de uma certa intelectualidade de esquerda europeia e moderna. Saindo novamente da esfera da produção nativa, dois livros mais merecem ser aqui mencionados, dentro do que podemos denominar de “literatura de denúncia”. Saksi Mata (24) (Testemunha Ocular) é um conjunto de contos ambientados no Timor da época da repressão indonésia, escritos por Seno Gumira Ajidarma, um dos autores mais signific ativos da geração mais recente da literatura indonésia. Os cont os foram sendo publicados em jornais daquele país, depois de Ajidarma ter sido demitido das funções que exercia na revista Jakarta Jakarta por ter noticiado o massacre de 12 de Novembro de 91. Uma pequena edit ora, a B entang Budaya, fez sair a primeira edição em livro em 1994. A obra vai ser brevemente publicada em tétum pela Timor Aid, com tradução de Triana Oliveira. Estou a traduzi-la também para português, mas ainda sem editor à vista. Um out ro volume digno de atenção é A redundância da coragem (25) de Timothy Mo, publicado originalmente em inglês em 1991. O autor, filho de mãe ingles a e pai cantonês, consegue descrever admiravelmente a sociedade timorense dos últimos tempos da administração portuguesa, os primeiros anos da guerra no mato, e a vida dos que depois se renderam ou foram capturados, tudo isto pela boca sarcástica do narrador Adoph Ng, um chinês timorense, homossexual e homem do mundo algo deslocado na sua terra natal, já que o pai o tinha mandado fazer os estudos universitários em Toronto, no Canadá. A literatura escrita por timorenses tem sido, com poucas excepções, fundamentalmente em língua portuguesa, veículo de afirmação de resistência, identidade e nacionalidade. Creio que a geraç ão actual, que se vai libert ando da pressão cultural dos anos passados a decorar o Pancasila em indonésio, não tardará a fazer nascer também uma literat ura pujante de vida e de novidade em tétum. Vamos lendo e vendo… SÁ, Artur Basílio de [ed. crítico] – Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, vol.1, Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar/ Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1961

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Timor - Leste

P EREIRA, Agio [compilador] – Timor: The book of the Story-Teller. Cabramatta (Austrália), T imorese Australian Council, 1995 3 CAST RO , Alberto Osório de – A ilha verde e vermelha de Timor. Lisboa, Livros Cotovia, 1996 4 BRAGA , Paulo – A ilha dos homens nus. Lisboa, Editorial Cosmos, 1936 5 L ARANJEIRA , Pires – Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 26 6 RIBEIRO , Grácio – Caiúru. Lisboa, Colecção «Amanhã», 1939 7 RIBEIRO , Grácio – Deportados. s.l., edição de autor (?), 1972 8 RUAS, Joana – Corpo colonial. Coimbra, Centelha, 1981 9 E SPERANÇA , J.P. – Uma leitura lilás de Corpo colonial de Joana Ruas, in: «Revista Lilás», Amadora, (29), Dez. 2000, p. 15-29 10 GOME S, Francisco A. – Uma deusa no “inferno” de Timor. Braga, Ed. do autor, 1980 11 FERREIRA , Filipe – A nona do Pinto Brás (Novela Timorense). Lisboa, ERL-Editora de Revistas e Livros, 1992 12 SYLVAN , Fernando – A voz fagueira de Oan Tímor. Lisboa, Colibri, 1993 13 ―T AKAS‖, Luís – Fernando Sylvan ou O Silêncio das Palavras. «Kaibauk – Boletim de Informação T imorense», Linda-aVelha, 1(7), JanFev 1994, p. 14 14 UNIÃO DOS E SCRITORES ANGOLANOS – Enterrem meu coração no Ramelau – Poesia de Timor-Leste. Luanda, 1982 15 DUARTE, Jorge Barros – Jeremíada. Odivelas, Pentaedro, 1988 16 GU SMÃO , Xanana – Mar Meu – Poemas e Pinturas / My Sea of Timor – Poems and Paintings. Porto, Granito, 1998 GUSMÃO, Xanana – Mar Meu – Poemas e Pinturas / Tasi Ha’un – Dadolin no Taturik. Porto, Granito/ Instituto Camões, 2003 17 APARÍCIO , João – À janela de Timor. Lisboa, Caminho, 1999 18 RAKMABEAN , Kay Shaly – Versos do Oprimido. Braga, Real Associação de Braga, 1995 19 P EDRINHA , Ponte – Andanças de um timorense. Lisboa, Colibri, 1998 20 DUARTE, Jorge Barros – Timor – Ritos e Mitos Ataúros. Lisboa, ICALP, 1984, p. 49 21 CARDOSO , Luís – Crónica de uma travessia – A época do ai-dik-funam. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997 22 CARDOSO , Luís – Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001 23 CARDOSO , Luís – A última morte do Coronel Santiago. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003 24 AJIDARMA , Seno Gumira – Saksi Mata, cetakan keempat. Yogyakarta, Yayasan Bentang Budaya, 2002 25 M O, Thimothy – A redundância da coragem. Lisboa, Puma Editora, 1992 2

__________________________ *Texto publicado em duas partes no Várzea de Letras, Suplemento Literário mensal do jornal Semanário, nº 3 [4] e nº 4 [5], Junho e Julho de 2004 A versão em tétum foi publicada no Várzea de Letras, Suplemento Literário mensal do jornal Semanário, nº 8, Setembro de 2004 Ambas as versões foram incluídas na colectânea: O que é a lusofonia/ Saida maka luzofonia / J. P. Esperança et al . – Díli: Instituto Camões, 2005 . – VIII+163 p.


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Croniconto A infectada pelo passado e há debate, com que, ultimamente, não desperdiço inteligência nem

SN

A-traidora

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Dunga, o Estragado Eduardo Quive-Maputo

palavras, é o debate sobre a escassez de mulheres e homens para

Dany Wambire - Beira Dany Wambire casamento. Digo, mulheres -eBeira homens sérios, pois os contrários existem

Só na madrugada do dia 24 de Junho de 2012 conheci a sua copiosamente. Para quê depositar argumentos nos factos? Apesar de verdadeira identidade: Luís Valente Funjua. Antes daquela madrugada em que copos de cerveja faziam a confraternizamudos, os factos explicam melhor queem os que argumentos. o primeiro bairro, deixei a vida correr, igualmente vivia um ção com a minha exclusiva presença (pela primeira vez) na Entretanto, serão os próprios pagar a idade, factura,a as consequências das suas jovem dejovens quaseasegunda quem chamavam Albertino barraca da tia Vitória, a vizinha esposa do tio Manhiça, o polínefandas caçoadas, da era faltaesguio, de seriedade. a primeira o Paupérrimo. O jovem olhos daEcor do céu, econsequência, cabelos ralos.eu O mesmo moço era cia, não poderá imaginar que Dunga ou Estragado, nomes conheço e reconheço, tem aessa ver com o tempo. Ele será escasso, medida que estimulherengo, suavizando penosa qualidade do jovem. Eraàprostituto, a bem que desde criança ouvi os moradores da zona a chamarem-no é Luís Valente. vermos a correr atrás do prejuízo. Aliás, já o meu avô sabiamente me ensinava: dizer. Gabava-se, garboso, de ter despido mulheres várias, sobretudo casadas e Sempre soube que seu pai é o madala Fúndjua, no jeito suburbano de se dar os quem faz uma vida de rascunho, levará muito ou infinito tempo a passá -la a limpo. E bem posicionadas. Afinal, era esta a sua preferência: andar com mulheres ou filhas nomes, mas a informação não passava disso. Eu mesmo, quem saberia que sou Eduardo Quive se não fosse esses jornais em que ando a laborar, rádios e televiparados isso tenho convincentes provas. Ora vejamos. A estória queera voucontar cronicontar. “grandes”. Mesmo que fossem feias. Importava para ele com os sões que me chamam para entrevistas e opiniões? A propósito, hoje me estreei Injustino Mafilhoso era umdedos jovem as de já muita beleza, livre da feiura comum nos homens desfrutadas mulheres. como parte da equipe do jornal @Verdade, mais uma dessas coisas que me fazem de Fim-de-Mundo, mas suprida pelo dinheiro. Era bastante mulherengo, cumprindo ― Já vi nus de esposas e filhas de gente importante! ser pouco escritor e muito jornalistas. as hodiernas e tortas ordens. Diz-se em Fim-de-Mundo que homem que é homem Foi um hábito de Albertino Paupérrimo. Acabou e ponto final. O jovem quis E por esta veia da profissão acabei de me lembrar de tirar umas fotos ao Dunga deve ser infiel, ter tanta mulher e nunca ficar com nenhuma delas. ter uma mulher, só sua, livre de outras disputas masculinas. E acabou conhecendo enquanto estava nas habituais sessões de toques, hábitos que mais ganhou depois de ascender para loucura, vencendo os longos anos de lucidez que tivera. É isso Entretanto, na senda dessas nefandas brincadeiras, o meu Injustino conheceu uma uma jovem de invejável presença, que enchia extraordinariamente as suas calças. mesmo Dunga é um extra-lúcido. E será problema de nome? moça bonita, apenas comparável à maçã. Mas a miúda tinha a cabeça abarrotada de Sim, um estudo apurado do seu traseiro fazia e encontrava as vestes que o agitaMas esta coisa de nomes é mesmo verdade. Conta-se desde a infância na zona malcriadez, produto da má educação que recebeu em impropícios cantos, distantes vam fascinantemente. A jovem atraía homens, apenas com o movimentar estudado sobre Estragado, Dunga, o filho de quem não se sabe, mas esse era seu nome. de casa. Porque a malvada jamais apreciara a educação de casa. do traseiro. E foi justamente esse agitar de nádegas que cativou Albertino. Estragado. E como era? Era um estragado em pessoa, se não fosse, então estraDe resto, Injustino Mafilhoso meteu-se com a moça, corpos encostando-se frequenNa primeira hora, conheceu a composição do traje da mulher, e, na hora gava. Estragado, enlouqueceu na flor da idade. Colheu perfumes de mortos em pletemente, nu-a-nu. Faziam amor? Sei lá, essa é pergunta de escassa resposta. Sei, na vidisse. Alimentou almas profundas com seu juízo. Ficou maluco de verdade, o segunda, a composição do seu corpo. De imediato, estava a deliciar-se dos segreEstragado. Estragou a cabeça e já não batia 100. contudo, dizer que fazer sexo distingue-se de fazer amor. O acto de fazer sexo é dos molhados da moça. E extasiado, Albertino estabelecia a condição: se a moça Na zona a história é assim contada. egoísta, virado só para nós. Enquanto o acto de fazer amor é sempre para o outro, o era do sexo feminino, ele era do sexo masculino. Um dia o jovem Estragado, arrebentou as calças, girou consigo mesmo e entornou nosso parceiro. Preocupamo-nos com a sua plena satisfação. Então posso dizer, de No seguido, Albertino Paupérrimo saiu a contar o sucedido aos amigos palavreados pela boca que não tirava simples falácias. Delirava. Gemia. Balbuciaresto, que Injustino só fazia sexo, ao trocar mulheres frequentemente. Nunca amou a va. Patinava. Alucinava. Falava sem provérbios o que nem se quer se entendia. ― Conheci uma pita e já aconteceu aquela cena, vi o seu nu. ninguém. Todos assustaram-se. Pegou no pai a 25, pelas golas. Carregou o velho igualando― Usaste condom? ― Interpelou-o um dos amigos. E com a supracitada moça, de nome Amarida Sofrimento, Injustino assistiu a contrao à sua altura de dois metros, mesmo com pernas arqueadas. Estragado era alto. ― Usei, sim. Como não? Se não conhecia a moça! Corria quilómetros de altura. E com seu pai ao mesmo nível de altitude, rebentou a riedades, antes jamais vistas. A moça nunca aceitou praticar relações sexuais com Na verdade, o jovem preservativo usou, como imperam as regras das rela- voz dizendo: Afinal quem é meu pai? protecção ou uso de preservativos. Depois, lá ela estava a justificar -se, penosamenções ocasionais. Comportou-se bem, na primeira instância. Mas o triste ia em breve É verdade. Estragado estava decidido a estragar o pai para saber quem era seu te: suceder. O moço foi estreitando relações, convivendo com a jovem. Os contactos pai! Uma tremenda loucura. Como pode? Perguntavam as bocas famintas de curio― O preservativo aleija-me. sidades. sexuais continuaram a ser protegidos por preservativos, esses plásticos de pingo Verdade ou não, ela acabou admitindo feto a crescer no seu ventre. Aliás, esta era a Entretanto, o velho espinluncava sob o domínio do ora emouquecido filho, o Estradoce, como o próprio Paupérrimo dizia. Mas isso foi efémero, durou apenas dois gado. Tremia, transpirado até aos calcanhares. Calculava os metros que o separaforma fácil de ela se casar com Injustino. Mas gravidez seria pretexto para convencer meses. Pois no mês seguinte, Albertino estava visitando o sexo da moça desprotegi- vam do chão com temor e ansiedade. Temor de lhe ser emprenhada uma aterraInjustino Mafilhoso? Não. Esse pretexto, quase a chegar a motivo, não o convencia a do, como um operário que trabalha ignorando as regras de higiene e segurança no gem brusca e ansiedade em estar de facto no chão que o seguraria com mais conele. Pois, nos dias que corriam, engravidar não impedia divórcio ou rotura de namoforto. Estragado ainda dungava o pai com ameaça de o estragar caso não revelastrabalho. E Albertino Paupérrimo justificava-se, penosamente. ro, aliás, muitas gravidezes surgiam onde não havia nem casamento nem namoro. se o grande segredo. Cavilhava-o, sem dó. Amassava-o. Esticava-o a pele rugosa ― Já estou com a moça há mais de quatro meses, já foi suficiente para nos Sim, parece-me que os homens de Fim-de-Mundo imitavam o canino comportamenjuntando-a com a camisa pela gola. O velho tremia no olhar da vizinhança boquiaconhecermos. to: nenhum cão tem a sua cadela certa para sempre, e vice -versa. berta. Estragado não era homem de cometer tal delito. Nunca se vira, muito menos Engraçado! Esfarrapada ou não, a injustificação estava apresentada. Passase imaginara tal atitude por parte de tão perene gente que era o Estrago. Então dali Não tivesse a família da Amarida remanescente da feitiçaria, única prática de orderam meses, e outrora a moçaválida ficou em grávida. SubmetidaeaInjustino testes, aquando da primeira con- saiam as conclusões, Estragado estava mesmo de juízo estragado. namento social Fim-de-Mundo, abandonaria aquela gesEnquanto agitado o quintal, a mãe chega de trás. Estragado solta o pai de imediato sulta pré-natal, foi-lhenão diagnosticado o vírus HIV. casando E informado incrétante. Pois da polícia tinha ele medo. E de acabou comoaAlbertino, moça, para o e vira para a mãe com a mesma indagação – quem é meu pai, mamã? – e nada de dulo ficou. Como é que uma mulher, a quem bem conhecia os passos, podia estar brotar de infortúnios. resposta. A mãe apenas palavreava de um lado para o outro. Vociferou em tons de infectada? A verdade é que a mulher, a partir do momento em que se conheceram, Injustino passou a receber da esposa pesados insultos. Como quando um médico ameaça contra o filho, mas este continuava e mais agressivo ainda. jamais entregara a qualquer outrodehomem. seuà nu eraeexclusivamente Então, na ausência duma resposta que o satisfazia, Estragado correu para a coziprescreve fármacoso aseu um nu doente: uma dose, manhã; O uma tarde; outra à noite. desfrutado e disputado pela sua própria e pelo em relação nha e de lá, veio a rua com uma faca. Cortou a pele. Viu que era pouco. Pegou Sim, às vezes, Amarida pendurava-se no roupa cimo da casaAlbertino. de aluguerCuidados para o insultar: aos instrumentos cortantes, tinhaEsse em filho demasia. Incrível como terá aparecido o numa lâmina e foi depenando-se centímetro a centímetro, para a dor da mãe, ― Quem é você?! Faz filho você?! não é seu, seuéngómua. senhora já separada do pai e vivendo no lar doutro homem no bairro vizinho. Já vírus! vez, quando o marido começou, frustrado, a traí-la com Marieva, mulher igualCerta com o sangue a espaçar-se pelos braços, vira-se a mãe, dizendo: Foi, então, a partira irdeste impreciso momento, que Albertino Paupérrimo mente casada, ela chegou contar o sucedido ao marido da o rival: Olha, mamã… olha para este sangue e diga-me a que pai pertenço? Sou filho de ficou lembrado denão quevês a mulher tinha passado, que muitos homens também por quem? Diga-me a verde, já! ― Estás relaxado, que a tua mulher anda de com o meu marido?! ela tinham passado. por outra, ela tinha passado homens. Aliás, mes- A mãe era redundante no falatório, contudo, nada dizia sobre o pai do Estragado. E Incrível! A vítima , queOu recebia tal informação, mais do por quevários estupefacto, ficou estúpicontinuava a sua loucura, estragando-se a si próprio. Até hoje, diz-se na zona, mo o Albertino, tinhaalimentar igual história. dofacto, pronto para com o prevaricador violências. Virilências, poder-se-ia Estragado está maluco. Caso para entrar nos dizeres da população, os nomes Albertino exteriorizou o problemacom aos viris amigos, iniciando acesos dizer, pois aquela Paupérrimo violência seria de dois protagonistas características. Sim, fazem a personalidade do homem. Como pode Estragado ser nome de alguém que eram debates. ambos Imaginaram do sexo forte. nos Mais inquantificáveis do que do sexo casosmasculino, semelhantes, eramde do casais sexo maiusculique usam nem se quer é estragado? Consequência, agora estraga-se a si próprio, estraga o no. preservativos, apenas na primeira relação sexual, e, na segunda, já violam as regras murro dos vizinhos, estraga corpos agredindo e etc. de protecção, acreditando que já se conhecem mutuamente, mesmo sem fazer pelo Mas na sua loucura, Estragado também arranja, continua um bom pedreiro como menos o teste de HIV. Julgam-se as pessoas, pelo excesso ou insuficiência de pol- aquele dos tempos da construção da barraca da minha casa e de muitas outras infra-estruturas a nível local e não só; Pintor e rachador de lenha, para além de ter pas corporais, ignorando-se-lhes o passado. boas habilidades para cabeceador de bolas e carregador. Que se mude de atitude!


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